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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.42  Maringá  2020  Epub 01-Abr-2020

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v42i1.47545 

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS

O cotidiano escolar como princípio das pesquisas em educação

School daily as a principale of research in education

Escuela diaria como principio de investigación en educación

Graziela Zambão Abdian Maia1 
http://orcid.org/0000-0001-5698-000X

1Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília, Universidade Estadual Paulista, Av. Hygino Muzzi Filho, 737, 17525-900, Marília, São Paulo, Brasil.


RESUMO.

A história do conhecimento em administração da educação no Brasil é contada a partir de dois paradigmas: da gestão empresarial e da especificidade da escola ou gestão democrática, sendo este a superação do anterior. Após os anos 1990, as pesquisas em política e gestão da educação privilegiam a escola como instância de pesquisa, e a analisam com base na teoria da gestão democrática. Neste artigo, tem-se como objetivo defender o cotidiano escolar como princípio de pesquisa e analisar três grandes desafios aos pesquisadores da área: os rumos da teoria crítica e da própria crítica; as relações teoria e prática; e os sentidos da política e da gestão. Tem-se como primeiro desafio conceber a crítica como atitude de virtude, de inservidão voluntária e como possibilidade de nos desassujeitarmos dos modos de produzir verdades na relação entre o sujeito, o poder e a verdade. Tal atitude de virtude pressupõe, como segundo desafio, a tentativa de conceber novas relações entre teoria e prática, as quais escapem do normativismo e do modelo prescritivo. Como terceiro desafio, indica-se que as reflexões precedentes possibilitam questionar os sentidos práticos que circulam e legitimam uma forma de pensar na área, especificamente, os de política e gestão.

Palavras-chave: teoria crítica; político; política; administração da educação

ABSTRACT.

The history of knowledge in Education Administration in Brazil is based on two paradigms: business management and school specificity or democratic management, which is the overcoming of the previous one. After the 1990s, research in Education Policy and Management privileges the school as a research entity and analyzes it based on the theory of democratic management. In this article, the objective is to explore theoretical-methodological references used by researchers who have the school as a research institution, analyze their weaknesses and defend the position that everyday school life can be understood as a research principle. If so, it also proposes the discussion of three major challenges to researchers in the field: the directions of critical theory and criticism itself; the theory and practice relations; and the meanings of politics and management. The first challenge is to conceive of criticism as an attitude of virtue, of voluntary indulgence, and as a possibility of disassociating ourselves from the ways of producing truths in the relation between subject, power and truth. This attitude of virtue presupposes as a second challenge the attempt to conceive of new relations of theory and practice that escape normativism and the prescriptive model. As a third challenge, it is pointed out that previous reflections make it possible to question the practical meanings that circulate and legitimize a way of thinking in the area, specifically, politics and management.

Keywords: critical theory; political; politics; administration of education

RESUMEN.

La historia del conocimiento en la administración de la educación en Brasil se cuenta a partir de dos paradigmas: la gestión empresarial y la especificidad de la gestión escolar o democrática, que es la superación de la anterior. Después de la década de 1990, la investigación en política educativa y gestión privilegia a la escuela como organismo de investigación y la analiza en base a la teoría de la gestión democrática. Este artículo tiene como objetivo defender la rutina escolar como un principio de investigación y analizar tres desafíos principales para los investigadores en el campo: la dirección de la teoría crítica y la crítica misma; la teoría y la práctica de las relaciones; y los significados de la política y la gestión. El primer desafío es concebir la crítica como una actitud de virtud, de servidumbre voluntaria y como una posibilidad de descalificarnos de las formas de producir verdades en la relación entre el sujeto, el poder y la verdad. Tal actitud de virtud presupone, como segundo desafío, el intento de concebir nuevas relaciones entre teoría y práctica, que escapen del normativismo y el modelo prescriptivo. Como tercer desafío, se indica que las reflexiones anteriores permiten cuestionar los significados prácticos que circulan y legitiman una forma de pensar en el área, específicamente, la política y la gestión.

Palabras-clave: teoría crítica; político; política administración de la educación

Introdução

O artigo expõe o contexto político e científico de construção da escola como objeto de estudo e analisa diferentes perspectivas teórico-metodológicas que a adotam como âmbito da pesquisa. O objetivo que propõe é defender a perspectiva dos cotidianos escolares como princípio de pesquisa, assim como analisar as implicações teórico-metodológicas para os pesquisadores que buscam encontrar a história não contada e que está presente em seus próprios personagens e não em quem os narra. Essas implicações são contempladas em forma de três grandes desafios para os pesquisadores na área da Educação, os quais são apresentados abaixo.

Desde meados dos anos 1990, a escola pública, como local de trabalho, é o centro das atenções dos pesquisadores em Política e Administração da Educação. Os estudos de casos e as pesquisas etnográficas proliferaram em dissertações e teses e ganharam respaldo, sobretudo, com o intercâmbio da Associação Nacional de Política e Administração da educação (ANPAE) e com o Fórum Português de Administração Educacional (FPAE), que culminou com a realização de eventos Luso-Brasileiros e lançou, no Brasil, duas publicações significativas para os pesquisadores dos Programas de Pós-graduação em Educação (Nóvoa, 1995; Barroso, 1996).

As publicações em Administração da Educação, até aquele momento, dedicavam-se à construção do conhecimento teórico que possibilitasse configurar a área como campo teórico específico. Autores clássicos como Ribeiro (1952; 1968), Alonso (1976) e Paro (1986) propuseram-se, respectivamente e a partir de seus referenciais específicos, ensaiar uma teoria da Administração Escolar, discutir o papel do diretor na Administração Escolar e introduzir criticamente a Administração Escolar, no momento em que também se criou e se consolidou uma associação específica para congregar professores e profissionais da Administração da Educação (ANPAE). Desse momento histórico participou também Teixeira (1968) que, na mesa de abertura do congresso da ANPAE, discutiu com Ribeiro (1968) posições contrárias quanto à função do administrador escolar.

Várias pesquisas (Hojas, 2011; Nascimento, 2014; Ortega, 2014; Barbosa, 2014) constataram que a construção do conhecimento em Administração da Educação se fez, desde então, de forma binária. A história contada nessas pesquisas é a de que até os anos 1980, apesar de ter existido pensamento contrário (Teixeira, 1968), a base teórica dos estudos foi a teoria administrativa empresarial. No âmbito nacional, a abertura política dos anos 1980 e o processo de (re)democratização da sociedade e, especificamente, a criação dos Programas de Pós-Graduação em Educação consolidaram o referencial crítico nos estudos de educação. Com isso, a Administração da Educação, de um caráter eminentemente técnico, passa a se constituir como ato político a serviço da transformação social por meio da vivência da gestão democrática. As pesquisas passam a validar e almejar, em suas teses, o disposto na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional (Brasil, 1988; 1996).

Além da constatação da binaridade do conhecimento, também conhecida como a existência de dois paradigmas da Administração da Educação (empresarial e da especificidade da escola), vários autores (Russo, 2004; Maia, 2004; Nascimento, 2014) identificaram que, após os anos 1990, as pesquisas privilegiam a escola como instância de pesquisa, mas constatam que elas reproduzem o paradigma da especificidade da Administração Escolar construído com base na teoria da gestão democrática. Sendo assim, apesar de as investigações com o cotidiano escolar lançarem a possibilidade de novos horizontes teórico-metodológicos para as pesquisas em educação, especificamente em Administração da Educação, elas se prendem à dualidade, sendo que “[...] a duas perspectivas estratificam a Administração escolar de maneira que impõem um modo de análise que faz parte da constituição da verdade” (Nascimento, 2014, p. 65).

A disciplina de Administração da Educação nos cursos de Pedagogia tem reproduzido a história contada de forma didática, ou seja, que a Administração da Educação se constituiu de forma binária, e que, dos anos 1990 em diante, as investigações têm a escola como campo empírico. No entanto, percursos de pesquisa têm permitido duvidar da história contada e têm indicado a necessidade de novos horizontes teórico-metodológicos para a análise da multiplicidade presente no conhecimento em Administração da Educação e, sobretudo, no cotidiano escolar.

Parte desse aporte teórico para compreender o cotidiano escolar será desenvolvida neste texto, que, conforme apontado anteriormente, tem como objetivo defender a perspectiva dos cotidianos escolares como princípio e não como instância da pesquisa e, também, analisar as implicações teórico-metodológicas para os pesquisadores que buscam encontrar a história não contada e que está presente em seus próprios personagens e não em quem os narra. Buscar-se-á, dessa forma, “[...] interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade [...]” e, por isso, “[...] a arte da inservidão voluntária, aquela da indocilidade refletida” (Foucault, 1990, p. 5).

Em um primeiro momento, será identificado o movimento do estudo da escola, com alguns dos principais representantes que subsidiaram as pesquisas em educação. Em um segundo momento, será analisada a perspectiva de cotidiano da teoria crítica, contrapondo-a à primeira abordagem para, finalmente, analisar três implicações, nomeadas como desafios, para os pesquisadores que adotam o estudo com o cotidiano como princípio de pesquisa: os rumos da teoria crítica e da própria crítica; as relações teoria e prática; e os sentidos da política e da gestão.

A escola pública e o cotidiano como centro das pesquisas em educação: uma nova instância de pesquisa

Mello (1993), em livro polêmico que discute a articulação entre cidadania e competitividade, fez uma revisão bibliográfica internacional sobre a instituição escolar como identidade em construção. A autora destacou que, no final da década de 1960 e início de 1970, várias pesquisas realizadas em continentes diferentes indicaram que a passagem pela escola não mudava o destino das classes sociais (Baudelot & Establet, 1971), ou que os determinantes do sucesso ou do fracasso da escola pareciam ser provenientes de fatores externos a ela (Coleman, et al., 1966). Os estudos não atribuíram influência dos fatores internos, de funcionamento da escola, ao desempenho dos alunos e, a partir da pergunta lançada - as escolas fazem a diferença? -, foram desencadeados inúmeros estudos que procuraram desvendar a ‘caixa preta’ do funcionamento da escola.

O enfoque das pesquisas, segundo Mello (1993), não refutou os resultados das anteriores, mas indicou novas categorias de análise, dentre elas: a estrutura institucional, a gestão e o processo de tomada de decisão; os processos de mudanças e a forma de operar na escola; condições que favorecem ou dificultam os processos de inovações ou de melhoria de eficácia.

A autora cita inúmeras pesquisas realizadas, sobretudo, nos Estados Unidos da América e no Reino Unido, que contribuíram para a construção do conceito de novo padrão de gestão centrado na escola, o qual valoriza, entre outros aspectos, a escola como centro das decisões. Ela também identifica uma síntese das características que parecem determinar a maior eficácia da escola, a saber: existência de um projeto pedagógico abrangendo formas próprias de organizar as condições de ensino-aprendizagem, o uso e distribuição do tempo e do espaço físico e a alocação dos recursos humanos; formas de gestão que incluam diferentes níveis de participação dos agentes internos da escola e da comunidade; presença de direção com liderança, autoridade e legitimidade; profissionalismo dos docentes e a existência efetiva de trabalho de equipe. Outros autores também trabalharam com o movimento das escolas eficazes com base em relatórios da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e de pesquisas científicas e chegaram a conclusões bastante semelhantes, incluindo a necessidade de um bom clima de trabalho para o desempenho da escola e, portanto, para o desempenho dos estudantes nas avaliações de aprendizagem.

As políticas educacionais, em âmbito internacional, passam a ser reguladas por tais princípios e, sobre elas, há imensa literatura que enfoca nos desdobramentos para a educação brasileira, principalmente para as diretrizes das políticas educacionais e gestão da educação (Silva Jr, 2002; Oliveira, 2005).

Do exposto, é possível afirmar que dois movimentos concomitantes marcam a construção da escola como foco das atenções atuais na educação - o da política educacional e o dos estudos acadêmicos - os quais acabam por impactar direta e indiretamente no cotidiano escolar. No âmbito do primeiro movimento, o Estado se torna mais flexível na definição dos processos e rígido na avaliação da eficiência e eficácia dos resultados, principalmente mediante a realização das avaliações nacionais do ensino em todos os níveis e modalidades. Portanto, focaliza-se a escola como responsável por atingir metas e inserir internacionalmente o país nos rankings. No âmbito teórico, a construção de novo objeto de estudos da Ciência da Educação - a organização escolar -, marcada pela forte influência da produção portuguesa (Nóvoa, 1995; Lima, 1998), privilegia um nível meso de abordagem e identifica que “[...] apesar de conterem visões parcelares da realidade, é evidente que tanto as teorias macroscópicas como os estudos microscópicos produziram um conhecimento útil e pertinente do ponto de vista do pensamento e da acção pedagógica” (Nóvoa, 1995, p. 20).

Os pesquisadores adotam uma perspectiva centrada na organização escolar e preocupam-se em olhar para as organizações escolares, analisar, explicar, compreender o que elas fazem em seu cotidiano e como constroem o processo educacional. Russo (2004) denominou este processo de ‘mudança paradigmática na Administração Escolar’. Maia (2004), em pesquisa realizada sobre as publicações da ANPAE, também identificou o percurso semelhante que culminou com a mudança de abordagem em Administração Escolar na Revista Brasileira de Política e Administração da Educação (RBPAE). Segundo a autora, o olhar para a escola é marcado pelo apontamento, por diversos pesquisadores, da necessidade de se pensar a prática da Administração a partir do concreto e das necessidades dos dirigidos, considerando também a construção coletiva do projeto político-pedagógico da escola, a importância de se estudar as relações interpessoais nas escolas e a necessidade de se investigar a cultura da organização escolar através de estudos de caso.

Nesse sentido, os diferentes autores dos artigos publicados na RBPAE foram desenvolvendo um paradigma alternativo para a Administração da Educação que considerou as realidades multipolarizadas e multidimensionais que são as instituições escolares. Na mesma lógica, Barroso (1996) organizou um livro contendo palestras realizadas durante o Simpósio em Portugal em meados dos anos 1990 que abordou especificamente a construção da escola como objeto de estudos. Neste material, encontram-se referências de diversos países europeus que compartilham do que aqui foi exposto.

Apesar de caminharem para o mesmo destino - a focalização da escola - os dois posicionamentos diferenciam-se sobremaneira. Silva Jr. (2002, p. 202), ao analisar os aspectos principais que para ele marcam as discussões sobre Administração Escolar no início do século, afirma que “[...] prevalece a lógica econômico-empresarial como critério de avaliação da gestão escolar [...]” e o que vale, nesta perspectiva, é a “[...] criatividade gerencial inata ou construída de um bom gestor de escolar”.

Somam-se ao autor, diferentes pesquisadores que defendem a especificidade da escola e a necessidade de substituir critérios econômicos por critérios pedagógicos e políticos. A política educacional, com seus critérios predominantemente economicistas, e os pesquisadores, preocupados em estabelecer a crítica e investigar o modo de vida na escola, explicitaram inúmeros desafios para a compreensão do cotidiano e a ida às escolas. Interessam, nesse momento, os aportes teóricos que embasam a análise do cotidiano escolar para que as pesquisas não caiam em um empirismo vazio.

A teoria crítica predominante na educação - a mesma que embasou a adesão da Teoria da Administração Empresarial pelos teóricos da Administração da Educação - possibilita o encontro com o livro de Duarte (2007), que segue com seu projeto de construir uma teoria mediadora entre os fundamentos da educação e o âmbito da prática pedagógica, para o que diferencia as esferas da vida cotidiana e não-cotidiana. Para o autor, na vida cotidiana, têm-se a reprodução dos indivíduos singulares e a necessidade de sobrevivência ou satisfação das necessidades do homem, que são características da formação do indivíduo em-si; na vida não-cotidiana, a reprodução adquire um sentido mais amplo ao agregar necessidades além da individualidade da vida cotidiana, as quais se referem a atividades que visam à reprodução da sociedade e da realidade produzida historicamente, cuja reprodução está ligada à formação do indivíduo para-si.

Para Duarte (2007, p. 57), a prática escolar deve-se voltar à formação da individualidade para-si, no sentido de produzir “[...] necessidades de tipo superior, que não surgem espontaneamente [...]”, de modo a inserir esse indivíduo “[...] numa prática social, na construção de um determinado tipo de sociedade”. Portanto, para ele, no bojo da Pedagogia Histórico-Crítica e da Psicologia Histórico-Cultural, estudar o cotidiano escolar não é estudar o dia-a-dia da escola ou a aproximação dos saberes da escola com a comunidade, mas, sobretudo, pesquisar em que medida e de que modo a escola pode e tem conseguido formar a individualidade para-si por meio de atividades não-cotidianas, que criam carecimentos superiores e possibilitam a homogeneização com a ciência.

Seguindo esse aporte teórico e atendendo convite feito por Lima (1998), Silva Jr. e Ferretti (2004) evidenciam as marcas históricas da face institucional da escola e apontam como sua organização se dispõe para alcançar o objetivo posto historicamente para ela: a manutenção do pacto social burguês. No entanto, os autores reconhecem que as diretrizes políticas não se reproduzem tal qual elas são formuladas e indicam a possibilidade de a escola se organizar de forma diferente para o alcance da emancipação social. Tais autores, que historicamente estão embebidos na perspectiva crítica marxista da educação, aceitaram dialogar com autores reconhecidamente multiculturalistas e/ou pós-estruturalistas durante o processo de produção do livro, e, por essa razão, receberam críticas no prefácio da obra, escrito por Duarte (2007), e também em resenha produzida por Saviani (2005).

No entanto, diferentemente de Duarte (2007), Silva Jr e Ferretti (2004) vão a campo, ou seja, entendem a necessidade de construir referencial teórico-metodológico que possibilite compreender a escola em sua cotidianidade o que, ao contrário de Duarte (2007), aqui, é sinônimo de dia-a-dia. Sendo assim, os autores reconhecem a importância de se estudar o que e como faz a escola, mesmo seguindo a perspectiva crítica que se preocupa em classificá-la como prática que pode emancipar ou alienar o indivíduo. Apesar de se subsidiarem em referenciais diferentes, Lima (1998) e Silva Jr e Ferretti (2004) apresentam semelhanças e podem ser complementares porque

[...] ambas conservam a dualidade na aproximação com a escola: na primeira, há, entre outras oposições, o plano de ação e a ação, a fidelidade e a infidelidade dos atores; na segunda, há a prática alienada que forma o sujeito em si e a prática que forma o sujeito para si, com carecimentos superiores (Abdian & Nascimento, 2017, p. 301).

Sendo assim, a escola pode ser potente, em ambas, “[...] se não seguir à risca as diretrizes da política [neoliberal], mas, contraditoriamente, ela deve seguir as diretrizes teóricas de quem tece críticas a ambas (à escola e à política)” (Abdian & Nascimento, 2017, p. 301). No limite, ela pode ser potente se seguir as conquistas da gestão democrática inscritas na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Essa dissonância já se encontrava explícita em contribuição de Rockwell e Ezpeleta (2007), que adotam a escola como instância de pesquisa no sentido de concebê-la como ‘processo inacabado de construção’ e/ou como ‘construção social da escola’ em que esta é compreendida como

[...] uma trama em permanente construção que articula histórias locais - pessoais e coletivas -, diante das quais a vontade estatal abstrata pode ser assumida ou ignorada, mascarada ou recriada, em particular abrindo espaços variáveis a uma maior ou menor possibilidade hegemônica. Uma trama, finalmente, que é preciso conhecer, porque constitui, simultaneamente, o ponto de partida e o conteúdo real de novas alternativas tanto pedagógicas quanto políticas (Rockwell & Ezpeleta, 2007, p. 4).

Também com referencial marxista, mas questionando seus percursos acadêmicos e a fragilidade teórica diante da complexidade do cotidiano, as autoras permitem interrogar: “Como integrar na teoria o caráter inevitavelmente heterogêneo do cotidiano? Como construir categorias que liguem a historicidade do cotidiano com a história do movimento social?” (Rockwell & Ezpeleta, 2007, p. 4). Diante da complexidade e do movimento do real - o cotidiano escolar - é preciso o ‘confronto com o manejo das grandes categorias sociais’ (Estado, sociedade civil, classe) e não sua transferência direta porque estas foram elaboradas e desenvolvidas em estudos de outro nível empírico. Portanto, o trabalho teórico com o cotidiano exige “[...] o uso peculiar daquelas categorias como a construção de novas categorias pertinentes ao nível com que nos ocupamos” e, dessa forma, “[...] transformar os conceitos e práticas vigentes na educação requer ainda muita construção teórica” (Rockwell & Ezpeleta, 2007, p. 3-5).

Em política educacional, o método analítico de Ball (2011), intitulado ‘ciclo de políticas’, e divulgado principalmente por Mainardes (2006), vai ao encontro das considerações anteriores ao retirar do centro dessas análises o âmbito macro estatal e considerar imprescindível a presença da política em um ciclo contínuo de contextos em que se identificam: influências na política; produção de texto; prática na escola; efeitos das políticas e estratégias dos pesquisadores e das políticas. Recentemente, Ball, Maguire, e Braun (2016) prosseguem com o entendimento da escola como um contexto de ‘atuação política’ em que se encenam personagens e se criam práticas e resoluções para os problemas colocados pelos textos e discursos políticos. Para os autores, a política é texto, discurso, representação, negociação e se efetiva em todos os contextos em que se dão as relações sociais, sendo a prática da escola - o seu cotidiano - um dos contextos mais importantes.

Apesar de subsídios teóricos diferentes, os autores e perspectivas expostas indicam que houve uma mudança na agenda das pesquisas em educação que colocou a escola como ‘nível’ empírico de análise e como nova instância de pesquisa para a compreensão dos diversos temas, com destaque para: currículo, política, avaliação e gestão da educação. Em ambas as perspectivas, guardadas suas especificidades, fica evidente a binaridade: conservação-transformação; indivíduo em-si-indivíduo para-si; fidelidade-infidelidade; política-escola; fora (Estado)-dentro (cotidiano); centro (influência)-periferia (escola).

O cotidiano como princípio de pesquisa

O percurso teórico realizado, que buscou solidificar referencial teórico-metodológico que possibilitasse apreender o cotidiano escolar, evidenciou um modo de pesquisar caracterizado por considerar o cotidiano como nova instância ou nível/local empírico. Concorda-se com Canário (1996), quando ele afirma que isso se efetivou como algo construído e não ‘dado’, pois a escola não ‘emergiu’ ou foi ‘descoberta’ como objeto científico, mas, sim, foi ‘construída’ social e teoricamente como objeto científico. No entanto, pode-se ter corrido o risco de retirar a ênfase de uma instância (política) e a ter colocado em outra instância (cotidiano) e não ter abandonado a prática de pesquisar com duas instâncias, em que uma seja desvalorizada para a outra se construir (Abdian & Nascimento, 2017).

Com Gallo e Figueiredo (2015, p. 38), entende-se que a ênfase se constitui como um modo maior de fazer pesquisa e funciona “[...] como estado de poder e de dominação [...]”, pois “[...] luta pra ser modelo e para manter-se modelo”. Por outro lado, o cotidiano como princípio de pesquisa está associado a um modo menor de fazer pesquisa, porque “[...] é a potência de criação, que se contrapõe a um estabelecido que já não pode criar” (Gallo & Figueiredo, 2015, p. 39). O cotidiano como princípio de pesquisa coloca o problema de o poder resistir ao modelo e, principalmente, criar novos modos de se fazer pesquisa e se relacionar com o cotidiano da escola.

O maior e o menor não se distinguem pelo tamanho ou pela importância, eles “[...] não são proposições contrárias e opostas, mas co-funcionantes, ou seja, cada um se move em função de suas preocupações diferenciadas que são realizáveis, no mais das vezes, em consonância transversal” (Gallo & Figueiredo, 2015, p. 26). Portanto, não é por meio da imposição de um modelo e desvalorização do outro que se pode pensar com o cotidiano, mas sim permitindo a convivência dos vários modos de pensar, pois mesmo o modelo que impõe precisa do seu oposto para impor. No caso do cotidiano, ele precisa do seu oposto para resistir e criar.

Retomando as questões colocadas por Rockwell e Ezpeleta (2007), e dialogando com as considerações sobre maior e menor de Gallo e Figueiredo (2015), destaca-se que ao invés de ir à escola dizer o que ela faz de errado ou o que ela deveria fazer de acordo com um modelo possível ou uma teoria pronta, podem-se buscar nas falas, nos costumes, nos gestos dos alunos, professores, pais, diretores e funcionários elementos que mostrem os limites do conhecimento e suas possíveis falhas. Por sua vez, o cotidiano escolar poderia utilizar os resultados de pesquisa para aprimorar suas práticas e construir novas formas de se fazer a educação e entender suas possíveis falhas e limites. Se o cotidiano escolar for considerado como princípio de pesquisa, inúmeros desafios são postos aos pesquisadores e poucas respostas e modelos de condutas serão explicitados. Caminhando nesse sentido, destacam-se três desafios que são assuntos de debate e construção coletiva de respostas e experiências de pesquisa.

Os rumos da teoria crítica, a relação teoria e prática e os sentidos da política e da gestão nas pesquisas com o cotidiano

Quando teve como objetivo discutir os problemas colocados no final do século XX para as Ciências Sociais, Sousa Santos (1999) já perguntou ‘Por que é tão difícil construir teoria crítica?’. É de se concordar quando o autor diz que do final do século XX aos dias atuais não é tão fácil produzir teoria crítica como antes porque muitos dos conceitos ou categorias analíticas que a constituíram deixaram de ter centralidade e, também, a pergunta que servia de base para seu desenvolvimento teórico - de que lado nós estamos (reprodução ou emancipação) - tornou-se ‘irrespondível’ pela “[...] dificuldade, aparentemente cada vez maior, de identificar as posições alternativas em relação às quais haveria que tomar partido” (Sousa Santos, 1999, p. 200).

Para o autor, dentre as causas da dificuldade de construir a teoria crítica está a ausência de autocrítica da própria teoria em perceber que tanto ela, quanto a sociologia funcionalista produziram um conhecimento totalizante da ‘ordem sobre o caos’, guardadas as especificidades de uma pretender a regulação social e a outra pretender a ordem da emancipação social. Sendo assim, “[...] não há um princípio único de transformação social [...]”; “[...] não há agentes históricos únicos nem uma forma única de dominação [...]”, pois “[...] são múltiplas as resistências e os agentes que as protagonizam” (Sousa Santos, 1999, p. 202).

Assim, ao fazermos uma transposição da questão posta pelo autor para área da Educação, especificamente, para a Política e Gestão da Educação, questiona-se o que a teoria crítica produziu em termos de conquistas e avanços, mais especificamente, o que a teoria crítica produziu para respaldar nossa compreensão sobre o cotidiano escolar.

A perspectiva crítica ganhou força na educação no momento em que, internacionalmente, a Nova Sociologia da Educação produzia categorias analíticas que permitiam desvendar as relações causais entre reprodução da sociedade capitalista desigual e a função da educação escolar. Sob diferentes respaldos teóricos, uns mais reprodutivistas dessas relações, outros mais otimistas de a escola contribuir com a emancipação do indivíduo e da sociedade, a teoria crítica fez a crítica necessária ao outro: às teorias que as precederam; ao sistema capitalista de produção; ao sistema escolar; à hierarquia; ao poder estatal etc.

Na Administração Educacional, no momento em que o Brasil saía do regime militar e conquistava a nova Constituição Federal, que cunhou a gestão democrática como princípio da educação escolar pública, a teoria crítica reproduziu exatamente tais críticas e anunciou um ‘por vir’ não vingado (Souza, 2006). Por quê? Nesse momento, a epígrafe deste texto ganha sentido especial porque “[...] nenhum de nós permanece imune aos incentivos e às disciplinas da nova economia moral [...]” (Ball, 2011) e que, por isso, subsiste-se, muitas vezes, com o olhar para o outro e não para nós mesmos.

Buscando coerência com a noção de cotidiano escolar como princípio de pesquisa, encontram-se novos horizontes para a ‘crítica’ sem que se abdique do lugar já conquistado. Isso porque os dados de pesquisas têm indicado que existem elementos constitutivos da teoria crítica que a impedem de voltar-se para si, em um processo autocrítico.

Trabalha-se com a ‘atitude crítica como virtude em geral’ que reconhece o governo e a ‘multiplicação da arte de governar’ não apenas a escola (por parte do Estado), mas também a produção do conhecimento - a verdade - por parte de um modo de funcionamento da produção do conhecimento nas pesquisas. Dessa forma, a atitude crítica estaria na “[...] arte de não ser governado ou ainda na arte de não ser governado assim e a esse preço” (Foucault, 1990, p. 3-4). O foco da atitude crítica está implicado nas relações poder - verdade - sujeito, tendo como “[...] função o desassujeitamento no jogo do que se poderia chamar, em uma palavra, a política da verdade” (Foucault, 1990, p. 5).

Sendo assim, como um dos desafios, entende-se que é possível ter uma perspectiva crítica para analisar o cotidiano, mas ela seria subsidiada por outros princípios porque conceberia como principal deles o cotidiano como um modo menor de fazer pesquisa. Entende-se que a “[...] razão que critica não pode ser a mesma que pensa, constrói e legitima aquilo que é criticável [...]” (Sousa Santos, 1999, p. 204) e que, portanto, deve-se iniciar pela própria crítica do conhecimento. Ao pesquisador é permitido, portanto, não entrar no cotidiano com categorias prontas e fixas, mas colocar problemas advindos da multiplicidade ali presente para os quais ainda não se têm resposta.

Um segundo desafio está em delimitar as relações entre teoria e prática nas pesquisas em educação que têm o cotidiano escolar como princípio, no sentido de fugir, como diz Canário (2006), da tentação normativa e prescritiva tão comum na área.

Gallo (2010) identifica que teoria e prática foram trabalhadas no pensamento ocidental no âmbito da filosofia da representação, que delineou três perspectivas: 1. Idealista - totalização da teoria sobre a prática em que a filosofia, por exemplo, fundamentava a educação; 2. Materialista - totalização da prática sobre a teoria, cujo pressuposto é o de que a teoria apenas pode se construir com a vivência prática da realidade (no caso, escolar); 3. Dialética - a qual perspectiva uma interação entre teoria e prática.

Apesar de embasamentos distintos, Gallo (2010, p. 59) destaca que todas estão

[...] delineadas no contexto de uma filosofia da representação, que toma a teoria como representação do real. O que fazem é propor distintas maneiras de pensar a relação da teoria com a prática, isto é, do ideal com o real, mas sem interferir na noção do ideal como representação do real.

Ao contrário da tradição ocidental, ele se embasa em alguns autores da filosofia da diferença (Foucault, 1982; Deleuze, 1998; 2006), que investem na produção de diferenças e centram-se, também, na problemática da multiplicidade; nela, as relações teoria e prática já não fazem sentido, mas, sim, o “[...] primado da ação: ação de teoria, ação de prática em relações de revezamento” (Deleuze, 2006 apud Gallo, 2010, p. 54). Isto porque nesta perspectiva filosófica as relações teoria e prática são consideradas parciais e fragmentadas, porque se opõem à concepção de prática como aplicação da teoria ou daquela como inspiração para esta, pois, ambas, são totalizadoras.

O papel do intelectual também é revisto uma vez que “[...] já não se pode separar o intelectual, produtor de teorias, de um lado, e o militante, o ativista da prática, de outro. Ambos são a mesma pessoa, revezando-se nas diversas atividades” (Gallo, 2010, p. 57-58). Nesta perspectiva, o pesquisador é aquele que produz teoria (‘ferramentas’) que podem ou não ser utilizadas e/ou entrar em revezamento com as práticas e o “[...] o intelectual é aquele que está usando as ferramentas teóricas que cria, atuando na prática social” (Gallo, 2010, p. 57-58).

O terceiro desafio, decorrente da (re)significação da teoria crítica e de novas possibilidades de relações entre teoria e prática, seriam os sentidos a serem atribuídos à política e à gestão nas pesquisas com o cotidiano. De forma recorrente, têm-se registros já legitimados pela área que assumem a política como o governo em ação e a gestão, como a ‘utilização racional dos recursos para a realização de fins determinados’ (Paro, 1986), é a materialização da ação do governo. As atividades principais da gestão são relacionadas, portanto, à concretização de objetivos postos fora e acima da escola. Ou seja, a política como idealização dos objetivos de governo e a gestão como operacionalização deles (Vieira, 2006). É preciso destacar uma diferença entre as teorias classificadas como conservadoras e as teorias críticas: para as primeiras, a gestão é eficaz quando executa o prescrito pela lei e, para as segundas, a gestão precisa executar o que prescreve a teoria, já que esta apreende a totalidade do real, a contradição do real e perspectiva uma totalidade transformada por meio da racionalidade da gestão (escolar, no caso).

Com esses conceitos, o objetivo das pesquisas está em analisar os discursos proferidos no âmbito das políticas no sentido de desvendar suas reais intenções e, por isso, suas conclusões são próximas.

As pesquisas na perspectiva críticas apresentam subsídios importantes para o desenvolvimento da gestão escolar, porém, têm subestimado a gestão escolar, colocando-a como meio para os efeitos da política. A divisão entre política e gestão escolar tem enfraquecido seu desenvolvimento teórico e metodológico, pois binariza o campo ao pensar os sentidos das políticas como produções governamentais, de modo a apontar o governo como aquele que não consegue propor uma forma de gestão democrática para a transformação social ou a analisar como a organização escolar e o cotidiano operam com as políticas.

Caminhando em companhia dos desafios anteriores, pode-se dizer que é frágil compreender os estudos da gestão como um braço da política, pois se desconsidera a potencialidade da produção de política pela própria escola. Portanto, o desafio está em analisar e pensar a produção de política de gestão a partir dos estudos de Mouffe (2011).

Para esta autora, a distinção entre ‘o político’ e ‘a política’ pode trazer novos caminhos para se pensar a ação das pessoas no campo de constituição de políticas, uma vez que há uma multiplicidade de espaços de produção de política. O político diz respeito à “[...] dimensão do antagonismo a qual [é] constitutiva das sociedades humanas [...]”; a política significa “[...] uma série de práticas e instituições através das quais uma ordem é criada, organizando a coexistência humana no contexto de conflitualidade provido pelo político” (Mouffe, 2011, p. 16).

A política de gestão, assumida pelo sentido político dos atores sociais, transforma-se em uma arena de configuração de múltiplos projetos de gestão escolar, uma esfera de produção de identidades coletivas em torno de uma hegemonização provisória (Laclau & Mouffe, 2015). A gestão da escola não está dada, pronta e acabada fazendo novas negociações com as políticas vindas de outras esferas ou as encenando; ela constrói a sua própria política de gestão, assim como qualquer governo.

Conclusão

Reconhecendo a mudança de agenda das pesquisas em política e gestão da educação que, a partir dos anos 1990, e sob a influência do contexto internacional do neoliberalismo, por um lado, e da teoria crítica em educação, por outro, passou a privilegiar a escola (e sua gestão) como centro das atenções, neste texto, percorreu-se caminho cronológico de estudos, apontando fragilidades encontradas para a realização de pesquisas sobre essa temática e caminhos trilhados no sentido de superá-las. O objetivo foi defender o cotidiano escolar como princípio de pesquisa, ao contrário do que comumente tem sido enfatizado nas pesquisas que o concebem como instância de pesquisa ou nível empírico.

Como princípio de pesquisa, o cotidiano escolar pressupõe um modo menor de fazer pesquisa, que resiste ao modelo - modo maior -, que acaba funcionando “[...] como estado de poder e de dominação” (Gallo & Figueiredo, 2015, p. 38). Sendo assim, “[...] o que está em jogo no cotidiano como princípio de pesquisa é poder resistir ao modelo e, principalmente, criar novos modos de se fazer pesquisa e se relacionar com o cotidiano da escola” (Abdian & Nascimento, 2017, p. 303).

Para que o cotidiano escolar se constitua como modo menor e princípio de pesquisa, foram destacados três desafios: os rumos da teoria crítica (o que se entende por crítica); as relações teoria e prática na pesquisa e os sentidos de política e gestão. Do exposto sobre tais desafios, é possível dizer que a teoria crítica produziu quantitativa e qualitativamente explicações sobre a realidade em sua totalidade e também desenhou novos horizontes totais para a escola e para a sociedade, sendo a primeira uma das responsáveis pela efetivação da segunda em outros patamares, mais emancipados.

A crítica, nessa vasta produção, foi direcionada ao outro que poderia, no caso, se configurar como a outra teoria, a outra escola, a outra sociedade... Pouco restou de autocrítica no sentido de compreender as razões que a levaram, por exemplo, a se efetivar como um por vir não vingado. Tem-se como primeiro desafio conceber a crítica como atitude de virtude, de inservidão voluntária, como disse Foucault (1990), e como possibilidade de nos desassujeitarmos dos modos de produzir verdades na relação entre o sujeito, o poder e a verdade.

Essa atitude de virtude pressupõe como segundo desafio a tentativa de conceber novas relações teoria e prática que escapem do normativismo e do modelo prescritivo. Assim, não se tem uma relação de subordinação, mas ações: ação de teoria, ação de prática em revezamentos que possibilitem a revisão tanto de um, quanto do outro. O cotidiano seria, portanto, princípio de pesquisa, porque possibilitaria, com seus sujeitos, a interação entre conhecimentos e ações (teoria e prática) em quem ambos sairiam de formas diferentes das que entraram.

Como terceiro desafio, indica-se que as reflexões precedentes possibilitam questionamento dos sentidos práticos que circulam e legitimam uma forma de pensar na área, especificamente, as de Política e Gestão. Seguindo a lógica do pensamento moderno, os sentidos hegemonizados transportam a subordinação de relação entre teoria e prática para Política e Gestão, sendo a primeira tida como ‘o pensar’ (governo em ação, planejando) e a segunda como ‘o operacionalizar’ (racionalidade no interior da escola ou dos diferentes sistemas). Com os subsídios teóricos construídos no texto, é possível desafiar os pesquisadores a encontrarem novos sentidos, em que o político esteja e seja inerente às relações sociais, e em que a política se efetive por meio dos conflitos e multiplicidade de negociações. Com isso, a gestão não tem o sentido de operacionalização, mas de fazer políticas - políticas de gestão.

Por fim, cabe indicar que o arcabouço teórico em parte explicitado neste texto precisa continuar sendo submetido à experimentação, para que se possa dar continuidade à operacionalização do revezamento teoria e prática e, consequentemente, à reconstituição do que aqui foi dito.

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2NOTA: A autora foi responsável pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e, ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

Recebido: 04 de Abril de 2019; Aceito: 14 de Outubro de 2019

*E-mail: graziela.abdian@unesp.br

Graziela Zambão Abdian: Bolsista Produtividade em Pesquisa CNPq. Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1995), mestrado e doutorado em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2000; 2004) e pós-doutorado, pelo Programa PDJ do CNPq, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2010). Professora assistente doutora do Departamento de Administração e Supervisão Escolar e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Marília/SP). Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Educação da UNESP/Marilia (gestão 2017-2020). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Administração de Sistemas Educacionais, atuando principalmente nos seguintes temas: administração da educação, política educacional, administração escolar, cotidiano escolar, formação e função do administrador escolar. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5698-000X E-mail: graziela.abdian@unesp.br

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