SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.43Profesionalización docente en el Ecuador: una experiencia de justicia e inclusión socialEficiencia pedagógica y el proyecto de desarrollo brasileño: fundamentos de una ‘neodocencia’ en la educación secundaria índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Acta Scientiarum. Education

versión impresa ISSN 2178-5198versión On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.43  Maringá  2021  Epub 01-Ago-2021

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v43i1.47274 

História e Filosofia da Educação

O Direito Civil em ‘Rosaura, a enjeitada’1 de Bernardo Guimarães: “[...] problema eterno e insolúvel [...]”

El Derecho Civil en ‘Rosaura, a enjeitada’ de Bernardo Guimarães: “[…] problema eterno e insoluble [...]”

Ilka Miglio de Mesquita1  * 
http://orcid.org/0000-0002-5071-2415

Luzinete Rosa dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0002-8699-7723

Gustavo dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0002-6748-2126

1Universidade Tiradentes, Av. Murilo Dantas, 300, 49032-971, Aracaju, Sergipe, Brasil.


RESUMO.

O objetivo central deste artigo é compreender como Bernardo Guimarães, na obra ‘Rosaura, a enjeitada’, apresentou aspectos do Direito Civil no Brasil do século XIX. Para tanto levaremos em conta a trama dos personagens e a formação jurídica do autor, na Faculdade de Direito de São Paulo. Neste sentido, indagamos: Por que o Direito Civil é tramado como ‘um problema eterno e insolúvel’ em relação à escravidão do século XIX no Brasil? Como o autor apresenta seus argumentos para defender tal tese? A problemática central circunscreve em torno do entendimento de que os estudantes ocupavam um lugar social que possibilitava a produção de diversos escritos (memórias, teses, jornais acadêmicos, romances, poesias, entre outros), que versavam sobre temas pertencentes ao Brasil imperial, especialmente a escravidão. Para alcançar o objetivo proposto, operamos como metodologia de pesquisa histórica de análise da obra literária interrogando e problematizando o documento. Neste artigo, para mobilizar o objeto recorremos ao conceito de repertório, nos termos de Alonso (2002). Esse conceito serviu como uma lupa para a análise da obra em foco. Por fim, evidenciamos que o literato usou do artifício da escrava nascida livre para tratar da escravidão e do Direito Civil, mostrando como a personagem ‘Rosaura’, vítima do sistema escravista, poderia ser restituída ao lugar de livre, das mazelas da escravidão que sofrera desde o nascimento. O autor mobilizou repertórios de cultura jurídica adquiridos no lócus intelectual da Faculdade de Direito de São Paulo. Assim, dentro de uma análise geral da narrativa, as expressões do direito aparecem como elementos sociais e jurídicos, usados não apenas como uma mera elucidação. Certamente, havia seletividade e intencionalidade para noticiar os conteúdos das leis no Brasil.

Palavras-chave: direito civil; escravidão; Bernardo Guimarães

RESUMEN.

El objetivo central de este artículo es comprender cómo Bernardo Guimarães, en su obra ‘Rosaura, a enjeitada’, ha presentado aspectos del Derecho Civil en el Brasil del siglo XIX. Para tanto tendremos en cuenta la trama de los personajes y la formación jurídica del autor, en la Facultad de Derecho de São Paulo. En este sentido, preguntamos: ¿Por qué el derecho civil se considera un ‘problema eterno e insoluble’ en relación con la esclavitud del siglo XIX en Brasil? ¿Cómo presenta el autor sus argumentos para defender tal tesis? La problemática central circunscribe en torno al entendimiento de que los estudiantes ocupaban un lugar social que posibilitaba la producción de diversos escritos (memorias, tesis, diarios académicos, romances, poesías, entre otros), que versaban sobre temas pertenecientes al Brasil imperial, especialmente la esclavitud. Para alcanzar el objetivo propuesto, operamos como metodología de pesquisa histórica de análisis de la obra literaria cuestionando y problematizando el documento. En este artículo, para movilizar el objeto recurrimos al concepto de repertorio, en los términos de Alonso (2002). Tal concepto sirvió como una lupa para el análisis de la obra en foco. Por último, evidenciamos que el literato ha utilizado del artificio de la esclava nacida libre para tratar de la esclavitud y del Derecho Civil, mostrando cómo el personaje ‘Rosaura’, víctima del sistema esclavista, podría ser devuelta al lugar de libre, de los males de la esclavitud que sufrió desde el nacimiento. El autor movilizó repertorios de cultura jurídica de los medios intelectuales de la Facultad de Derecho paulista. El autor movilizó repertorios de cultura jurídica adquiridos en el locus intelectual de la Facultad de Derecho de São Paulo. Así, dentro de un análisis general de la narrativa, las expresiones del derecho aparecen como elementos sociales y jurídicos, usados no sólo como una mera elucidación. Ciertamente, había selectividad e intencionalidad para noticiar los contenidos de las leyes en Brasil.

Palabras-clave: derecho civil; esclavitud; Bernardo Guimarães

ABSTRACT.

The main objective of this article is to understand how Bernardo Guimarães, in the work ‘Rosaura, the foundling’, presented aspects of Civil Law in Brazil in the 19th century. To do so, we will take into account the plot of the characters and the author's legal background at the São Paulo Law School. In this sense, we ask: Why is Civil Law plotted as 'an eternal and insoluble problem' in relation to nineteenth-century slavery in Brazil? How does the author present his arguments to defend this thesis? The central issue circumscribes around the understanding that students occupied a social place that enabled the production of various writings (memoirs, theses, academic journals, novels, poetry, among others), which dealt with themes belonging to imperial Brazil, especially the slavery. To achieve the proposed objective, we operate as a historical research methodology for analyzing the literary work, questioning and questioning the document. In this article, to mobilize the object, we use the concept of repertoire, in terms of Alonso (2002). This concept served as a magnifying glass for the analysis of the work in focus. Finally, we show that the man of letters used the artifice of the free-born slave to deal with slavery and Civil Law, showing how the character 'Rosaura', victim of the slave system, could be restored to the place of free, from the ills of slavery that he had suffered since birth. The author mobilized repertoires of legal culture acquired at the intellectual locus of the São Paulo Law School. Thus, within a general analysis of the narrative, the expressions of law appear as social and legal elements, used not just as a mere elucidation. Certainly, there was selectivity and intention to announce the contents of the laws in Brazil.

Keywords: civil law; slavery; Bernardo Guimarães

Introdução

Este artigo tem como objetivo compreender como Bernardo Guimarães, na obra ‘Rosaura, a enjeitada’2, apresentou aspectos do Direito Civil no Brasil do século XIX. Para tanto, levaremos em conta a trama dos personagens e a formação jurídica do autor, na Faculdade de Direito de São Paulo. A problemática central circunscreve em torno do entendimento de que os estudantes ocupavam um lugar social que possibilitava a produção de diversos escritos (memórias, teses, jornais acadêmicos, romances, poesias, entre outros), que versavam sobre temas pertencentes ao Brasil imperial, especialmente a escravidão. Assim, indagamos: Por que o Direito Civil é tramado como ‘um problema eterno e insolúvel’ em relação à escravidão do século XIX no Brasil? Como o autor apresenta seus argumentos para defender tal tese?

Para alcançar o objetivo3 proposto, operou-se como metodologia da pesquisa histórica de análise de fontes a partir das orientações de Le Goff (1994). Para este autor, todo documento é “[...] produto da sociedade que fabricou segundo as relações de forças que a detinham” (Le Goff, 1994, p. 545). Assim, levamos em consideração as conjunturas históricas em que o documento foi produzido, investigando o passado e estabelecendo tensões. Pois, no diálogo com Foucault, Le Goff (1994) oportuniza-nos a compreensão de que os documentos trazem relações de poder. Assim, travamos o diálogo entre a obra literária, a teoria estudada e o contexto histórico do século XIX, em relação aos problemas da escravidão. Para tanto, foi preciso compreender o documento além do que está posto na obra, desmistificando seus sentidos e significados aparentes.

O trabalho com obras literárias tem se tornado recurso constante e ganhado espaço aos poucos no terreno das pesquisas históricas, em especial na área de História da Educação. Partimos do pressuposto de que: “[...] a obra literária não reflete a realidade: a fração do real que ela revela é resultado de uma interpretação e reelaboração” (Galvão & Lopes, 2010, p. 73). E não seria a produção histórica, também, resultado de interpretação e reelaboração? No procedimento histórico de análise da obra, elencada como fonte para esta narrativa, é possível descobrir não só respostas para perguntas como ‘o que o documento é capaz de dizer?’, mas também o que está ‘por trás’ do que ele é capaz de dizer.

O referencial teórico está pautado em Alonso (2002), trazendo o conceito de repertório como “[...] um conjunto de recursos intelectuais disponível numa dada sociedade em certo tempo: padrões analíticos; noções; argumentos; conceitos; teorias; esquemas explicativos; formas estilísticas; figuras de linguagens; conceitos e metáforas” (Alonso, 2002, p. 46). Assim, a definição de repertório é associada a um conjunto de formas de ação, que se configura nas estratégias utilizadas pelos agentes, ante os grupos, podendo ser representadas de diversas maneiras como em textos, diálogos, embates.

Nesta direção, buscamos entender o repertório de cultura jurídica mobilizado por Bernardo Guimarães, ao tratar da problemática do Direito Civil trazida na primeira página do romance e consequentemente traduzida no desenrolar da trama. O repertório de cultura jurídica configura-se em apropriações feitas pelo autor nas discussões presentes no romance, que envolvem as temáticas racial e jurídica. Composto por conhecimentos jurídicos, presentes na elaboração de pensamentos sobre a constituição das ciências do Direito brasileiro, tal repertório consiste em recursos mobilizados, como discursos, conceitos, termos e argumentos referentes ao Direito, para divulgar ideias por meio das produções que estavam atreladas aos estudos jurídicos.

‘No emaranhado de uma noite, nasceu uma enjeitada’: os pressupostos sobre os princípios de propriedade

Que bonito-exclamou a preta, deitado olhos curiosos para fora janela. - se sinhazinha pudesse ver como está bonita a noite!...está tudo tão sossegado!...o céu tão limpo!... Meu deus que noite tão clara, tão serena e tão cheirosa!... e esta cantiga?... não esta ouvindo sinhazinha?.... é um céu aberto tudo isso quer dizer fortuna para a menina que nasceu (Guimarães, n.d., v. 1, p. 134).

É apreciando a descrição da cena sobre a beleza da noite do nascimento de ‘Rosaura’ que queremos elucidar sobre os desígnios do seu destino. Na narrativa, temos visto o questionamento de sua mãe ‘Adelaide’ à ‘Lucinda’: “Pode ser feliz quem nasce nestas circunstâncias, e nunca talvez terá de conhecer pai nem mãe? Pobrezinha! - suspirou a moça, apertando ao seio a criancinha e banhando-a de lágrimas” (Guimarães, n.d., v. 1, p. 134). As palavras da personagem nos conduzem a entender os enigmas que cercavam o nascimento da “[...] linda menina, que no mistério de uma noite plácida e silenciosa vinha respirar a aura da vida debaixo de tão tristes auspícios” (Guimarães, n.d., v. 1, p. 133).

No emaranhado de histórias contidas em volta de ‘Rosaura’, Bernardo Guimarães transmitiu sua concepção de direito civil, além dos princípios apreendidos sobre a liberdade. O autor tematizou a escravidão e o direito civil e, para além disso, encontrou, neste veículo de comunicação, a oportunidade de transmitir os pressupostos sobre os princípios de propriedade. Dentro daquele período, “[...] segundo o pensamento liberal, os direitos civis existem como forma de defesa do indivíduo contra o poder coercitivo do estado [...]” (Adorno, 1988, p. 197).

Certamente, isso explica muitos elementos, identificados na obra, que são interligados ao conteúdo da formação acadêmica e aos pensamentos que percorriam as salas de aulas e arcadas, infiltrados em ‘Rosaura, a enjeitada’, dentre os quais, o conteúdo da cadeira de direito civil que era ensinado. Adorno identificou que no ensino jurídico da cadeira em direito civil as aulas limitavam-se “[...] ao comentário das leis [...]” (Adorno, 1988, p. 101). Temos partido do entendimento de que o direito civil, no Império brasileiro, estava proposto para reger relações familiares, patrimoniais e obrigacionais que se constituem pelos sujeitos ditos como membros da sociedade. Tratava-se de um grupo de leis, conjunto de normas e princípios que regulamentam os indivíduos, sua vida, família e o patrimônio.

Ao descrever o drama da menina “[...] que nasceu livre [...]” (Guimarães, n.d., v. 2, p. 24), ‘Conrado’, seu pai, na tentativa de salvá-la da condição de escrava, declara:

Rosaura é minha filha, e como pai tenho direito de reclamá-la. Se nem assim quiser cedê-la, lhe direi que nasceu de mãe livre, o que tratarei de provar perante os tribunais ainda que para isso seja preciso perder tudo quanto possuo (Guimarães, n.d., v. 2, p. 42).

O autor buscou introduzir na obra diálogos que fazem referência ao direito civil do século XIX. No Brasil, após a independência de Portugal, em 1822, a lei que regia o direito civil era a Constituição Política do Império, de 25 de março de 1824. A vida dos escravos era ordenada pelas normas infraconstitucionais, reguladas pela legislação civil. Ao tratar desta temática, o literato narrou o episódio em que, por ocasião do destino, a menina foi batizada como escrava na capela de Santa Ifigênia, e na pia batismal recebeu o nome de ‘Rosaura’. Vejamos o diálogo entre ‘Nhá Tuca’ e ‘Conrado’:

- Diga, diga tudo, senhora! - instou Conrado. - É preciso que não oculte nada descargo de sua consciência e para se poder remediar o mal que fêz.

- É eu fiz batizar a enjeitada como filha da escrava e fiz constar que a enjeitada é que tinha morrido.

- E que nome deu à menina?

- Rosaura.

- E depois vendeu-a, não é assim?

- É verdade, meu senhor.

- E a quem vendeu-a?

- A um senhor Basílio, morador na rua do Tabatingueira (Guimarães, n.d., v. 2, p. 63).

‘Rosaura’ foi batizada ainda criança, pois era recomendado o sacramento para recém-nascidos. A Igreja pregava que, caso houvesse óbito, a criança já teria sido consagrada pelos atos religiosos. Acreditamos que era uma forma de o catolicismo angariar fiéis e manter-se como uma única religião, e ainda oficial. O batismo, sacramento responsável pela purificação do pecado, consagração dada pela Igreja Católica, era com a certidão de nascimento. Neste sentido, “[...] para os proprietários de escravos, o registro de batismo de criança desempenhava, entre outros, a função de definir e deixar em prova a posse do menor” (Vasconcellos, 2006, p. 153). Certamente, ao batizar ‘Rosaura’, a velha buscou afirmar seu direito de propriedade sobre ela. Além destes significados, o batismo oficializava a relação com a Igreja por meio dos sacramentos.

A continuidade da união entre a Igreja e o Estado Imperial e o reconhecimento do catolicismo como religião oficial dispensariam por quase todo o século a adoção do registro civil como forma de identificação legal do brasileiro e, dessa maneira, manteve-se a prática de livros eclesiásticos que, desde o período colonial serviam como documentos oficiais relacionando: nascimentos, casamentos e óbitos, tanto das pessoas livres, quanto de cativos. Desta forma desobrigava o Estado de legislar para um grupo indesejável. Assim verificamos que a Igreja Católica [...] estabeleceu o controle sobre a vida de escravos, de forros e de livres. A Igreja queria adquirir mais membros para comungar os seus princípios religiosos e via nos africanos ou nos crioulos novos membros da cultura cristã (Nascimento, Damasceno, & Bernardo, 2012, p. 4).

O registro de batismo era o documento oficial e ficava junto às cartas de alforria. Buscamos entender a relação entre a Igreja, como ofertório do sacramento, e o Estado, como legitimador das leis, com o fito de problematizar a respeito da intervenção do catolicismo na sociedade imperial. Neste sentido, Alonso (2002, p. 64) asseverou que:

[...] o catolicismo era também religião de Estado. A separação entre as esferas pública e religiosa não se fizera, de modo que as instituições políticas não eram laicas. A Igreja dava auxílio vital ao Estado no controle social, especialmente onde braços estatais eram curtos.

À Igreja Católica cabia a organização social das populações junto ao Estado, ou seja, “[...] era o braço avançado do Estado na sociedade” (Alonso, 2002, p. 112). Ainda sobre o catolicismo e a prática do batismo no Brasil imperial, Chalhoub (2012) alerta que na sociedade escravocrata ocorria a prática de batizar pessoas livres como seus escravos, exemplificada no episódio em que ‘Nhá Tuca’ batizou ‘Rosaura’, mesmo sabendo da sua real origem genealógica, aproveitando-se do “[...] fato de ter nascido uma criança escrava, no mesmo dia e na mesma casa em que morria uma enjeitada” (Guimarães, n.d., v. 2, p. 52). Deste modo, Bernardo Guimarães, ao trabalhar em sua literatura com histórias de personagens presos ao sistema escravista, demonstra interesse aos destinos da população escrava.

‘Rosaura’ não era ‘filha da senzala’, porém, era necessário provar sua origem para se libertar das sentenças do escravismo, que legitimava a ideia de que o ventre de escravo seria também escravo. Bernardo Guimarães, ao discorrer sobre esta temática, fez referência aos costumes introduzidos na legislação portuguesa, sobre “[...] o princípio regulador [...] partus sequitur ventrem4 [...] Por forma que o filho da escrava nasce escravo pouco importando que o pai seja livre ou escravo” (Malheiros, 1866, p. 56). Assim, as relações escravocratas, no Brasil, baseavam-se neste regulamento.

Na obra, encontramos o autor discutindo este tema na voz do personagem ‘Morais’, quando, ao defender o seu direito de propriedade sobre sua escrava, afirmou a ‘Conrado’: “Quanto ao pai pouco nos importa saber quem [...] êle foi, porque como V.S.ª de certo não ignora ‘partus sequitur ventrem’, a cria segue a condição da mãe” (Guimarães, n.d., v. 2, p. 51, grifo do autor). Ou seja, não importava quem era o pai da menina, era necessário provar que sua mãe era uma mulher livre de nascimento, “[...] a maternidade é o que importa neste caso, e enquanto V. S.ª não provar que Rosaura é filha de mãe livre [...]” (Guimarães, n.d., v. 2, p. 97) ela continuaria na condição de cativa. Este princípio antecedeu o contexto histórico da aprovação da Lei do Ventre Livre, no ano 1871, que tratava de dar liberdade aos filhos livres de mulheres escravas. Junto a este fato, acreditamos ser sua obra uma ação carregada de pensamento social, que ele buscou expressar para problematizar questões de sua época, interferindo assim nas ideias sociais e nas preocupações que o cercavam.

É no cenário desta discussão em torno do direito civil, legitimado pela Constituição do Império no Art. 179, que versava sobre “[...] a inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, e tinha por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade garantida [...]” (Brasil, 1824, s/p.), que o romancista situa a trama e o processo de liberdade da escrava. ‘Conrado’, depois de saber que ‘Adelaide’ “[...] tinha sua filha em casa [...] como escrava, como propriedade, como um móvel, [...]” (Guimarães, n.d., v. 2, p. 26), buscou empreender formas de libertá-la.

Oh meu Deus! Meu Deus! [...] exclamou [...] êle, [...] minha filha escrava, escrava!... e por fim vendida à sua própria mãe!... ah maldito major! Tu só és responsável, perante Deus e por tudo e a humanidade, de tão estranha desventura! Fôste [...] tu, e mais ninguém, que reduziste tua neta à condição de escrava. Mas [...] Eu juro por Deus e por tudo quanto há de sagrado: minha filha, a filha e Adelaide, em que poucos dias será reconhecida livre, como nasceram, e não como liberta, custe o que custar, dinheiro lágrimas, sangue mesmo, se [...] fôr preciso! Lucinda, tu vês, Deus nos favorece, e tu tens sido em tudo um instrumento da providência (Guimarães, n.d., v. 2, p. 41).

Na fala do personagem temos uma discussão em torno das condições para a libertação de escravos, perante as leis vigentes. A narrativa demonstra que o fato de ‘Rosaura’ porventura conseguir a liberdade não a tiraria da condição de escrava liberta, esta seria, então, a questão central para que “Rosaura seja livre, por nascimento, como filha de mulher livre, merece ser livre [...]” (Guimarães, n.d., v. 2, p. 3) e seja restituída ao seu lugar social de nascida livre. Com este desejo, ‘Conrado’ empreendeu modos de libertar ‘Rosaura’ por meios religiosos, junto à Igreja Católica; ao saber que ‘Nhá Tuca’ estava às portas da morte, procurou a Igreja onde:

Estava hospedado um Frade Carmelita, por nome Frei João de Santa Clara, distinto por suas virtudes e seu grande saber. Pregador exímio e teólogo profundo, este não tinha passado seus vegetando em piedoso ócio e pisando mansamente os santos ladrilhos com o breviário na mão à sombra severa abobas no claustro. Tinha percorrido quase todas as províncias do Brasil missionado, já entre populações civilizadas já entre aldeias de indígenas em serviço da catequese. Era também por vezes encarregado, pelo geral da ordem, de árduas e importantes comissões, e era em virtude de uma destas que se achava em S. Paulo (Guimarães, n.d., v. 2, p. 66).

‘Frei João’ era um sacerdote que vivia a serviço da Igreja Católica, personagem a quem Bernardo Guimarães dedicou o capítulo XII, do segundo volume da obra, para sua apresentação. Foi o sacerdote que ‘Conrado’ levou até a cabana onde vivia a velha ‘Nhá Tuca’, para ouvir sua confissão junto a duas testemunhas. Após recolhido o relato, esse foi colocado em um documento registrado pela presença da Igreja, que “[...] funcionava como um departamento administrativo” (Holanda, 2015, p. 118). Esse documento traria a possibilidade de restituir o lugar social de ‘Rosaura’ e revelar sua verdadeira origem genealógica, deste modo a Igreja auxiliava nas relações entre Estado e sociedade. “A religião do Estado era veículo de controle social” (Alonso, 2002, p. 64).

Mediante análise da narrativa, a Igreja Católica era, então, a única forma que ‘Conrado’ teria para retirá-la das garras da escravidão. Assim sendo, o pai de ‘Rosaura’ afirmou a ‘Nhá Tuca’ que traria o Padre, sendo “[...] absoluta necessidade que a senhora repita diante das testemunhas a confissão para conseguir a liberdade da menina, que ela, mediante o sacramento na pia batismal, condenou à escravidão” (Guimarães, n.d., v. 2, p. 64). Pois a confissão registrada junto à Igreja daria à escrava não apenas a condição de liberta, mas de livre de nascimento, motivo que levou ‘Conrado’ a enfrentar a família proprietária da escrava, exclamando: “Entregue essa menina sobre a qual tenho direito sagrado” (Guimarães, n.d., v. 2, p. 97). Esse direito é dado por meio do documento ao qual ‘Frei João’ se refere no excerto abaixo:

O meu amigo possui um documento incontestável, que há pouco acabamos de ouvir ler, e que jamais, quer em juízo como fora dele, poderá ser infirmado. Além disso, alega um direito sagrado: a paternidade; o Sr. Conrado é pai de Rosaura. Por fim, oferece-se para indenizá-los do valor por que compraram a menina, e está pronto a dar mais ainda, se o exigirem. Por cúmulo de generosidade o meu amigo quer evitar os meios judiciários para arredar um escândalo, cujo peso tem de recair todo sobre quem o quer provocar. A justiça, a humanidade, a religião e a honra exigem que vossas senhorias entreguem a menina ao Sr. Conrado, restituam a filha a seu pai (Guimarães, n.d., v. 2, p. 100).

Diante das palavras do sacerdote, o documento apresentado aos senhores de ‘Rosaura’ tinha respaldo religioso, jurídico e moral, assim representando a Igreja, o Estado e a sociedade, respectivamente. ‘Conrado’, sob esta circunstância, dizia: “[...] creio que neste negócio poderei prescindir dos meios judiciários” (Guimarães, n.d., v. 2, p. 98). O posicionamento do personagem, perante a não aceitação da libertação da escrava, nos traz a confirmação de que o documento estava respaldado não apenas no catolicismo, mas também juridicamente, deste modo, encontramos mais uma vez a relação entre Estado e Igreja. Vale ressaltar que tratar de dar liberdade ao escravo não seria uma questão harmoniosa, uma vez que “[...] um dos pilares da política de controle social da escravidão era o fato de que o ato de alforriar se constituía numa prerrogativa exclusiva dos senhores” (Chalhoub, 2012, p. 122). Ainda para Chalhoub (2012, p. 121):

Discutir a liberdade de escravos significava interferir no palco liberal da defesa da propriedade privada e, além disso, era a própria organização das relações de trabalho que parecia estar em jogo, ou seja, o assunto era delicado porque nele cintilava o perigo de desavenças ou rachas mais sérios no interior da própria classe proprietária e governantes.

Libertar escravos seria transgredir o sistema escravocrata brasileiro, visto que a escravidão era responsável pelo desenvolvimento da economia do país e os escravos eram propriedades valiosas. Além disso, a libertação de escravos poderia enfraquecer o domínio senhorial, coberto pela legislação vigente. Existia uma dualidade dentro do sistema escravista acerca da libertação de escravos, posto que quem legitimava a condição de escravo era, também, quem libertava. Assim, o poder legislativo decidia ‘os limites ao direito à propriedade privada’, determinando em quais casos ela poderia acontecer.

‘[...] infecto e lodacento abismo da escravidão’: debates jurídicos entre estudantes de São Paulo

O romancista, em ‘Rosaura, a enjeitada’, nos permite perceber quais ideias poderiam povoar os debates jurídicos no Brasil imperial, considerando que as leis não ignoravam as estruturas escravistas da sociedade brasileira. Foi naquele ambiente de desejos de libertação de ‘Rosaura’ e da presença das determinações jurídicas que Bernardo Guimarães situou sua narrativa, discorrendo sobre a problemática do direito civil, uma vez que na obra localizamos fatos que nos permitem pensar a temática quanto à questão central para a liberdade da escrava. Nas primeiras páginas da obra encontramos o diálogo entre os estudantes de São Paulo, ‘Aurélio’ e ‘Belmiro’:

- Que fazes aí, Aurélio, que estás a bocejar como quem está a morrer de sono? ... Quando todos aqui estão a tagarelar como um bando de maritacas, ficas amuado a um canto, tu que de ordinários a garrulice em pessoa?

- Na verdade, Aurélio!... Estás tão calado, que até já me esquecia de que estás aí. Anda lá chupa mais um cálice de cognac, e diverte-nos com algumas de tuas costumadas asneiras.

- Asneiras!... cala-te daí Belmiro... só peço que não se embaracem comigo; conversem e deixe-me em paz.

- Já está bêbado, decerto, nesse caso vai-te deitar.

- Bêbado eu!... oh quem dera!... estou meditando, e neste momento procuro resolver um dos mais graves e árduos problema que se têm suscitado ante o espírito humano...

- Oh! Oh! um problema de geometria, ou de álgebra?...

- Nada disso; um espírito sério não se ocupa com frivolidades.

- A quadratura do círculo?

- Não; coisa melhor, ou pior ainda.

- Aposto que não é de direito civil.

- Por certo o direito civil é um ‘problema eterno e insolúvel’ (Guimarães, n.d., v. 1, p. 1, grifo do autor).

Bernardo Guimarães iniciou sua trama tratando do direito civil enquanto “[...] problema eterno e insolúvel [...] de cuja solução me ocupo, é dos males momentoso e grave, o mais cheio de corolários importantes, que se pode suscitar na presente fase de nossa vida escolástica.” (Guimarães, n.d., v. 1, p. 3). Olhando para esse episódio, nasce a seguinte inquietação: para o autor, o direito civil seria a problemática central da escravidão brasileira? Acreditamos na possibilidade de que o romance condensa as memórias das vivências durante os anos de Academia. Sendo assim, desde as reuniões aos diálogos, bem como suas discussões acerca do direito, o autor mobiliza repertórios da cultura jurídica, disseminando ideias nas redes em que estava envolvido. Identificamos, na narrativa, argumentos, termos e conceitos que fazem referência a estas ideias jurídicas.

Neste sentido, a fala de ‘Carlos’, em conversa com ‘Frederico’, ambos estudantes da Academia paulista, transparece o sentimento de repúdio à sociedade, à legislação e ao governo por legitimar e fomentar ‘tão vergonhoso e execrando tráfico’, referindo-se ao tráfico de escravos, representado como ‘infecto e ladacento abismo da escravidão’. Além disso, critica a formatação da lei por não conceder o direito à ‘Rosaura’ de livrar-se da herança da escravidão, mesmo depois de liberta pelo casamento.

Ah! maldita sociedade! maldita lei! povo e governo mil vezes maldito, que tolera e fomenta tão vergonhoso e execrando tráfico! Oh! se eu fora rico, iria por essas estradas, acompanhado de uma escolta de bons capangas, no encalce do ladrão, havia de descobrir-lhe a pista, e, por vontade ou por força, o infame havia de largar mão da presa. Ah! pobreza! pobreza!... Tu resumes em ti todos os infortúnios... Pobre menina! lírio cândido e sem mancha atirado no infecto e lodacento abismo da escravidão! (Guimarães, n.d., v. 2, p. 129).

Mediante tal excerto, para o personagem ‘Carlos’, o direito estudado e praticado não tinha validade, posto que as leis versavam contra a sua vontade de ter para si sua amada, a quem a ‘maldita’ lei colocava na condição de cativa. Tais pensamentos estiveram presentes na academia, uma vez que a cultura jurídica e política foi parte importante para a vida nacional. Os elementos identificados na obra são interligados aos conteúdos adquiridos em sua formação e os pensamentos que percorriam as salas de aulas e arcadas, infiltrados em ‘Rosaura, a enjeitada’, entre esses o conteúdo da cadeira de direito civil que era ensinado. Adorno identificou que no ensino jurídico da cadeira em direito civil, as aulas limitavam-se “[...] ao comentário das leis” (Adorno, 1988, p. 101).

Mesquita (2015), em seus estudos sobre a Academia de Direito de São Paulo, ao analisar as teses defendidas pelos bacharéis, alerta que “[...] a formação jurídica estava atrelada ao poder imperial, pois cabe a este regulamentar o currículo, bem como a escolha dos compêndios para serem usados pelos estudantes” (Mesquita, 2015, p. 87). Deste modo, as leis estudadas pelos acadêmicos também eram parte de uma cultura jurídica brasileira que, por sua vez, apresentava-se em vias de consolidação.

A composição da cultura jurídica gerava, também, certa insatisfação, que pode ser compreendida a partir de ‘Carlos’, quando questionava as leis, os livros estudados e os códigos, condenando-os “[...] como pura irrisão aos direitos da humanidade, que a sociedade pesa em uma balança corrupta.” (Guimarães, n.d., v. 2, p. 131). O estudante faz referência às ciências jurídicas e suas composições que tratavam sobre o direito civil, cogitando abandonar os estudos na Academia, afirmando que: “Em novembro irei, pela última vez, a casa de meu correspondente para ir-me embora” (Guimarães, n.d., v. 2, p. 130). ‘Carlos’ nos faz pensar nas insatisfações dos estudantes em relação à formatação da Academia, ou seja, a estrutura acadêmica que estava atrelada às leis, uma vez que:

É comum encontrar nas leituras das memórias desagrado dos estudantes com a metodologia utilizada pelos lentes ao lecionar. Porém, notamos que as lições eram feitas por meio de memorização e também da oralidade. Logo, essas virtudes consistiam como essenciais para quem desejasse seguir carreira jurídica ou mesmo carreira política. As sabatinas eram constantes nas aulas e auxiliavam no processo de ensino-aprendizagem desse estudante de direito. As sabatinas eram feitas de diversas formas: entre alunos ou do lente para o aluno (Santos, 2015, p. 62-63).

Pela análise das memórias, também encontramos traços do conhecimento adquirido pelos alunos, a partir dos relatos sobre os exercícios de retórica, das sabatinas, que eram parte das atividades, nas quais os estudantes teriam que fazer simulações das ações, utilizando os conteúdos da legislação brasileira. Na obra ‘Rosaura, a enjeitada’, temos identificado os acadêmicos se referindo à ‘vida escolástica’ de forma descontente, exemplificada, também, na voz do personagem ‘Morais’, quando disse: “[...] adeus Academia, adeus enfadonhos e empoados livros de direito!” (Guimarães, n.d., v. 2, p. 55). Ainda sobre as particularidades da formação acadêmica dos estudantes, Mesquita (2015, p. 95) destaca:

O conhecimento dos juristas brasileiros do século XIX pode ser também compreendido pelos saberes de retórica que culminavam na obtenção de grau de doutor. O controle pedagógico, entendido como avaliação dos argumentos mobilizados pela defesa, na construção de teses e dissertações revelou que não se poderia ir contra a codificação das leis e a conduta das doutrinas das jurídicas.

Supomos que esta condição, dentro da formação acadêmica, era um dos fatores que influenciavam os questionamentos de ‘Carlos’ sobre as leis que embasavam seus estudos, e, por fim, na ideia de desistir da formação jurídica, uma vez que na faculdade os estudantes teriam que aprender os saberes impostos pela academia, e precisavam apropriar-se dos conteúdos, para, no final do curso, defender uma tese e receber o grau de doutor. Para tanto, era necessário treino retórico e embasamento teórico das leis. Assim, “[...] as seções de defesa de teses constituíam-se como exercício de retórica e de construção do conhecimento jurídico, pois o bacharel deveria defender seu posicionamento acerca do tema escolhido previamente pela congregação” (Santos, 2015, p. 60). Identificamos, nas memórias, traços da organização da cultura jurídica brasileira e estruturação curricular das academias, além de relatos da formação recebida pelos acadêmicos. Acreditamos que, no Brasil, discutir sobre o ensino de ciências jurídicas é falar sobre a história da cultura jurídica.

Sobre a criação dos cursos jurídicos nos quais esses estudantes estavam matriculados, Mota (2006, p. 135) ressalta que “[...] a questão cruciante daquele momento era formar elites para manter em funcionamento o novo Estado, e não propriamente para articular e mobilizar a sociedade civil”. O objetivo da formação não estava atrelado ao sentido de mediar estas espécies de conflitos. Acreditamos que as indagações de ‘Carlos’ estiveram associadas a esta ideia, uma sociedade regida pelo Estado e suas leis, porém, os desejos deste jovem eram impedidos pela formatação jurídica das leis que ele estudava na Academia de Direito. Mota (2006, p. 143) segue afirmando que “[...] a criação dos cursos jurídicos se confunde com a formação do estado nacional”. É importante entender como esses conflitos sociais apresentavam-se perante as ideias de desenvolvimento da nação.

Em meio às paixões que cercavam o universo do romance, e envolvem ‘Rosaura’, Bernardo Guimarães narrou a história do amor impossível vivido por seus pais, ‘Adelaide’ e ‘Conrado’, ambos de famílias distintas. Os mancebos vivenciaram os dramas de uma paixão, no cenário social de um país ainda preso ao patriarcalismo e às imposições das classes dominantes. No desenrolar das intrigas familiares e amorosas, o autor fez uma descrição sobre as relações sociais no Império. Neste enredo, envolvendo os dois apaixonados, o romancista deixou evidências da mobilização de discursos de cultura jurídica em sua narrativa. Vejamos a conversa entre o ‘Major’ e ‘Conrado’:

- Perdão, senhor Major; há de escutar-me ainda por alguns instantes - disse firmemente. Conrado, colocando-se em frente do Major, que se levantava como querendo retirar-se. Visto que sabe que há lei e justiça no país, não deve ignorar também que sua filha já completou dezessete anos e o que o código disponha a esse respeito.

- Ah! - Disse o Major, recuando um passo e cruzando os braços. Não sabia que estava tão adiantado a respeito de idade e do que diz a lei! E é isso que lhe dá tamanha audácia! Está enganado!... Em primeiro lugar, não quero que minha filha tenha ainda dezessete anos; e depois, vamos que tenha; quer tira-la por justiça?

-Sem dúvida, já que não tenho outro recurso e estou no meu direito (Guimarães, n.d., v. 1, p. 125).

Por mais de uma vez, na obra, o autor tratou das composições jurídicas, ao elaborar a fala dos personagens, que se reportam ao direito, na discussão sobre as leis imperiais. O ‘enamorado’, ‘Conrado’, induzido pelo sentimento, questiona o que diz a lei sobre a idade da sua amada e os crimes contra a segurança da sua honra, fazendo referência às disposições do ‘Código Criminal do Império do Brasil’, no Art. 224, que assegura ser crime “[...] seduzir mulher honesta, menor de dezessete anos, e ter com ela copula carnal” (Brasil, 1830, s/p.).

Segundo o artigo 219, era considerada transgressão “[...] deflorar mulher virgem, menor de dezessete anos [...]”, com imposição de pena ao indivíduo que praticasse tal ato (Brasil, 1830, s/p.). Foi, portanto, respaldado pela lei que o ‘moço apaixonado’ declarou que sua ‘amada’ já completara 17 anos, apropriando-se da justiça para enfrentar seu pai, na cena descrita pelo narrador:

- Pois bem! - disse o major dando dois largos passos para um lado e empunhado duas pistolas, que estavam sobre a mesa. Sobressaltado com este movimento, Conrado levou a mão ao seio e apertou o cabo de uma faca, que trazia presa á cava do colete.

- Pois bem! - continuou o Major, com a voz trêmula e sinistra. - vá; traga os seus agentes da justiça para tirar-me a filha, em vez dela, hão de levar-me a mim salvo se quiserem levar o cadáver (Guimarães, n.d., v. 1, p. 125).

A forma como o autor narrou os dramas dos personagens foi também uma estratégia para tratar de assuntos que percorriam a tradição imperial. As disputas familiares e amorosas são carregadas de um significado social, apresentadas na obra como fatores de desordem na sociedade oitocentista. As expressões do direito aparecem como configurações sociais e jurídicas, utilizadas pelo autor não apenas como uma mera ilustração, certamente existia uma intencionalidade de divulgar os conteúdos das leis no Brasil.

Na trama, em volta da personagem ‘Rosaura’, o autor mobilizou repertórios da cultura jurídica que se constituíam nos meios intelectuais da Academia de Direito paulista, nos Oitocentos. Ao tratar do direito civil e da escravidão, o poeta certamente não provou do silêncio, à medida que, pelas páginas do romance, nos levou ao passeio pelas arcadas e salas de aula, descrevendo este lugar de educação como um espaço de formação do pensamento jurídico, político e social. Ouvir o literato, a partir do seu escrito, possibilitou compreender o contexto social do Brasil escravocrata e as composições jurídicas do país.

Bernardo Guimarães, ao trabalhar em sua literatura com personagens escravos, não narrava apenas histórias de vida, mas buscava deixar um testemunho de seu pensamento sobre o destino da população escrava. Deste modo, entendemos a obra como palco de um discurso jurídico, considerando o momento em que intelectuais de diversas áreas buscavam formular concepções que construíam um imaginário social brasileiro.

Considerações finais

Nos ares da pauliceia, do Império brasileiro, despontou ‘Rosaura, a enjeitada’, o repertório de Bernardo Guimarães. Nas páginas amareladas do romance, o autor traz vestígios da sua experiência educacional que resistem à ação do tempo e configuram o testemunho de sua formação, memórias eternizadas em papéis que imprimem, também, a visão do autor.

O romancista soube utilizar o impresso para eternizar seus ideários. Usou do artifício da escrava nascida livre para tratar da escravidão e do Direito Civil. Bernardo Guimarães mostrou como a personagem ‘Rosaura’, vítima do sistema escravista, poderia ser restituída ao lugar de livre, das mazelas da escravidão que sofrera desde o nascimento, das disparidades sociais e raciais daquela instituição. Assim, pela obra o autor demostrou como poderia ocorrer, dentro das normas do direito à propriedade, o processo de libertação de um cativo. Além disso, evidenciou, também, o papel de mediador da Igreja, na relação Estado e sociedade.

Desta maneira, perpassando pela vida acadêmica de Bernardo Guimarães, construímos uma narrativa que relata como ‘Rosaura, a enjeitada’ nos concede particularidades que são interpretadas por meio dos personagens e nos permitiram entender e desenvolver este artigo. Neste sentido, a ficção nos forneceu as possibilidades de acessarmos um lugar e um tempo, vividos pelo autor quando encontramos, na obra, diálogos entre ‘Carlos’ e ‘Frederico’, ambos estudantes da Academia de Direito de São Paulo, que fazem referência à legislação civil do século XIX, ao discutir sobre o princípio regulador: ‘a cria segue a condição da mãe’. Tais indicações remetem às configurações da organização da cultura jurídica brasileira e da formação acadêmica.

Concluímos que Bernardo Guimarães imbuiu seu posicionamento sobre a escravidão e o Direito Civil quando escolheu contar um enredo sobre os enigmas de um casal apaixonado, com histórias de vida distintas, que enfrentou dificuldades para a concretização do casamento. A pesquisa sobre a escravidão, utilizando a literatura, nos auxiliou a entender as concepções cunhadas naquele período sobre o país.

Assim, dentro de uma análise geral da narrativa, as expressões do direito aparecem como elementos sociais e jurídicos, usados não apenas como uma mera elucidação. Certamente, havia seletividade e intencionalidade para noticiar os conteúdos das leis no Brasil. A obra é um discurso social e jurídico, no período em que intelectuais de diferentes áreas procuravam ordenar percepções que edificavam um imaginário social brasileiro. O autor mobilizou repertórios de cultura jurídica por meio da Faculdade de Direito paulista. Assim, o Brasil escravocrata e as composições jurídicas do país foram interpretados em ‘Rosaura, a enjeitada’.

Referências

Adorno, S. (1988). Os aprendizes do poder. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra. [ Links ]

Alonso, A. (2002). Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo, SP: Paz e Terra. [ Links ]

Brasil. (1830). Lei de 16 de dezembro de Código criminal do império do Brazil. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-16-12-1830.htm. [ Links ]

Chalhoub, S. (2012). A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista (2a. ed.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. [ Links ]

Galvão, A. M. O, & Lopes, E. M. T. (2010). Território plural: a pesquisa em história da Educação. São Paulo, SP: Ática. [ Links ]

Guimarães, J. B. (n.d.). Rosaura, a enjeitada (v. 1). [S.l.]: Coleção Saraiva. [ Links ]

Guimarães, J. B. (n.d.). Rosaura, a enjeitada (v. 2). [S.l.]: Coleção Saraiva. [ Links ]

Holanda, S. B. (2015). Raízes do Brasil. São Paulo, SP: Companhia das Letras. [ Links ]

Le Goff, J. (1994). Documento/Monumento. In J. Le Goff (Ed.), História e memória (3a. ed., p. 525-541). Campinas, SP: Unicamp. [ Links ]

Malheiros, A. M. P. (1866). A escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social (Vol. 1). Rio de Janeiro, RJ: Centro Edelstein. [ Links ]

Mesquita, I. M. (2015). Presenças e ausências de referências sobre escravismo e educação nas teses e dissertações da Academia de Direito de São Paulo (1830-1880). In V. L. Nogueira (Org.), População negra, escravismo e educação no Brasil: séculos XIX e XX (p. 69-98). Belo Horizonte, MG: Mazza. [ Links ]

Mota, C. G. (2006). Os juristas na formação do estado-nação brasileiro: século XVI a 1850. São Paulo, SP: Quartier Latin. [ Links ]

Nascimento, D. C., Damasceno, F. G., & Bernardo, M. S. (2012). Batismo e o compadrio de escravos: os diversos laços de compadrio na freguesia de Nossa Senhora do Rosário de Mambucaba, 1850-1871. In Anais do XV Encontro Regional de História - ANPUH-Rio Ofício do Historiador: Ensino e Pesquisa (p. 1-7). Rio de Janeiro, RJ. [ Links ]

Santos, G. (2015). Academia de Direito de São Paulo: cultura jurídica e política na formação dos bacharéis (1850-1870) (Dissertação de Mestrado). Universidade Tiradentes, Aracaju. [ Links ]

Vasconcellos, M. C. R. (2006). Famílias escravas em Angra dos Reis, 1801-1888 (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo. [ Links ]

1Os títulos foram retirados de excertos e subtítulos da obra ‘Rosaura, a enjeitada’.

2Obra de ficção publicada em 1883 pela editora Saraiva, de autoria de Bernardo Guimarães (1825 - 1884), estudante da Academia de Direito de São Paulo, romancista e poeta do Romantismo brasileiro.

3Vale ressaltar que este texto é fruto de pesquisa vinculada ao Programa de Pesquisa ‘A educação nos projetos de Brasil: espaço público, modernização e pensamento histórico e social brasileiro nos séculos XIX e XX’ e no Grupo de Pesquisa ‘História, Memória, Educação e Identidade’ (GPHMEI), sobretudo, da dissertação de mestrado intitulada ‘Escravidão e direito civil no romance’ ‘Rosaura, a enjeitada’ de Bernardo Guimarães, apresentada em 2018, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Tiradentes (PPED/Unit).

4Expressão extraída da obra ‘A escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social’, de Perdigão Malheiros (1866), que significa o parto segue o ventre.

11NOTA: Os autores foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e, ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

Recebido: 01 de Abril de 2019; Aceito: 19 de Março de 2020

*Autora para correspondência: E-mail: ilkamiglio@gmail.com

Ilka Miglio de Mesquita: Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Tiradentes (Unit/SE); Graduada em História pela PUC/MG; Mestra em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia; Doutora em Educação pela Unicamp; Pós-Doutorado em História da Educação pela UFMG. É líder do Grupo de pesquisa História, Memória, Educação e Identidade (GPHMEI ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5071-2415 E-mail: ilkamiglio@gmail.com

Luzinete Rosa dos Santos: Doutoranda em Educação pela Universidade Tiradentes (Unit/SE); Mestra em Educação pela Universidade Tiradentes (Unit/SE); Graduada em Serviço Social. É membro do Grupo de pesquisa História, Memória, Educação e Identidade (GPHMEI). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8699-7723 E-mail: jadyrosas@hotmail.com

Gustavo dos Santos : Doutor em Educação pela da Universidade Tiradentes (Unit/SE); Mestre em Educação e Graduado em História pela da Universidade (Unit/SE). É membro do Grupo de pesquisa História, Memória, Educação e Identidade (GPHMEI). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6748-2126 E-mail: profgustavo91@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons