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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.43  Maringá  2021  Epub 01-Set-2021

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v43i1.51694 

História e Filosofia da Educação

Mundo problemático e os desafios de organização da experiência educativa nos problemas complexos incertos

El mundo problemático y los desafíos de organizar la experiencia educativa en problemas complejos inciertos

Ibrahim Camilo Ede Campos1  * 
http://orcid.org/0000-0002-8292-6071

Walter Matias Lima1 
http://orcid.org/0000-0001-7331-9475

1Centro de Educação, Universidade Federal de Alagoas, Av. Lourival Melo Mota, s/n., 57072-900, Maceió, Alagoas, Brasil.


RESUMO.

O presente artigo objetiva apresentar o modelo de organização da experiência educativa segundo a pedagogia do problema de Michel Fabre (1948-), filósofo francês, com foco na problematização das questões sociais polêmicas. Diante dos desafios de um mundo problemático que interroga os sujeitos educativos em relação ao conteúdo, ao modo e ao tempo das relações ensino-aprendizagem, cabe à Educação fornecer ao aluno e desenvolver junto a ele duas instrumentalidades metafóricas interdependentes que atinem à organização bussolar e cartográfica da experiência. A bússola representa a funcionalidade cognitiva e metodológica que estrutura formalmente o processo de problematização. O suporte cartográfico constitui o substrato material e cultural desse processo, a permitir a localização, a orientação e a discriminação de limites dos itinerários educativos a serem percorridos pelo discente, com o auxílio do docente. Na problematização das questões sociais polêmicas, a associação de múltiplas coordenadas éticas, científicas, políticas, econômicas e culturais aos saberes racionais e estáveis ensinados e reproduzidos na escola altera o conjunto das condições e dos dados mobilizados para a construção ou para a resolução do problema. O tratamento dessas questões complexas enfrenta obstáculos reducionistas contra os quais se propõe uma estratégia educativa metodológica respeitosa da pluralidade de posições argumentadas e divergentes. Em um ethos escolar democrático e avesso a injuntividades normativas, tampouco receptivo a relativismos que impeçam a abertura dialógica da experiência fundada na intersubjetividade, educar para a problematização da vida em sociedade implica o dimensionamento regulatório e prudencial dos fatos e dos valores nela imersos. Esse exercício, a ser realizado conjuntamente pelos sujeitos educativos, propicia ao discente, diferentes possibilidades de percursos e de escolhas conducentes à autoconstituição ética, mister indeclinável neste mundo problemático.

Palavras-chave: filosofia da educação; pedagogia e educação; sistemas pedagógicos; pedagogia do problema

RESUMEN.

Este artículo tiene como objetivo presentar el modelo de organización de la experiencia educativa, de acuerdo con la pedagogía del problema de Michel Fabre (1948-), filósofo francés, centrándose en alguna problematización de temas sociales controvertidos. Frente a los desafíos de un mundo problemático que cuestiona a los profesionales de la educación sobre el contenido, la forma, el momento y las relaciones de enseñanza y de aprendizaje, la responsabilidad de la educación es proporcionar al alumno y desarrollar con él dos instrumentos metafóricos interdependientes que abordan la organización de la brújula y cartográfica de la experiencia. La brújula representa la funcionalidad cognitiva y metodológica que estructura formalmente el proceso de problematización. El soporte cartográfico es el sustrato material y cultural de este proceso, permitiendo la ubicación, la orientación y la discriminación de los límites de los itinerarios educativos que el alumno debe seguir, con la ayuda del profesor. En la problematización de cuestiones sociales controvertidas, la asociación de múltiples coordenadas éticas, científicas, políticas, económicas y culturales con el conocimiento racional y estable enseñado y reproducido en la escuela cambia el conjunto de condiciones y datos movilizados para construir o resolver el problema. El tratamiento de estos problemas complejos enfrenta obstáculos reduccionistas contra los cuales se propone una estrategia educativa metodológica respetuosa de la pluralidad de posiciones discutidas y divergentes. En un ethos escolar democrático que es contrario a los mandatos normativos, tampouco receptivo a los relativismos que hacen imposible la apertura dialógica de la experiencia fundada en la intersubjetividad, educar para la problematización de la vida en la sociedad supone el dimensionamiento regulatorio y prudencial de los hechos y valores inmersos en ella. Este ejercicio, que se realizará conjuntamente por profesionales de la educación, proporciona al estudiante diferentes posibilidades de caminos y opciones que conducen a una autoconstitución ética, que es indeclinable en este mundo problemático.

Palabras-clave: filosofía de la educación; pedagogía y educación; sistemas pedagógicos; pedagogía del problema

ABSTRACT.

This article aims to present the model for organizing the educational experience according to the pedagogy of the problem by Michel Fabre (1948-), a French philosopher, focusing on the problematization of controversial social issues. Faced with the challenges of a problematic world that questions educational subjects concerning the content, mode, and timing of teaching-learning relationships, it is up to Education to provide the student and develop with him or her two interdependent metaphorical instruments that relate to the compass and cartographic organization of experience. The compass represents the cognitive and methodological functionality that formally structures the problematization process. The cartographic support constitutes the material and cultural substrate of this process, allowing the location, orientation, and discrimination of the limits of the educational itineraries to be followed by the student, with the help of the teacher. In the problematization of controversial social issues, the association of multiple ethical, scientific, political, economic, and cultural coordinates to rational and stable knowledge taught and reproduced in school alters the set of conditions and data mobilized for the construction or resolution of the problem. The treatment of these complex issues faces reductionist obstacles against which a methodological educational strategy is proposed, respectful of the plurality of argued and divergent positions. In a democratic school ethos and averse to normative injunctivities, neither receptive to relativisms that prevent the dialogical opening of the experience founded on intersubjectivity, educating for the problematization of life in society implies the regulatory and prudential dimensioning of the facts and values immersed in it. This exercise, to be carried out jointly by the educational subjects, provides the student with different possibilities of paths and choices leading to ethical self-constitution, an indeclinable task in this problematic world.

Keywords: philosophy of education; pedagogy and education; pedagogical systems; pedagogy of the problems

Introdução

‘Inconteste, irrefutável, inegável, inquestionável, absoluto...’ são expressões cada vez menos vistas na produção acadêmica educacional com relação à autoridade docente, aos conteúdos e práticas curriculares, às instituições escolares e à própria Educação, microrreflexos de um mundo problemático.

As certezas fornecidas pela tradição dissolvem-se na provisoriedade, as promessas anunciadas e não realizadas pela modernidade quebrantam-se nas ondas da imediatidade e da volatilidade do tempo presente, intensamente ocupado na vida individual (pessoal e profissional) e coletiva. Deflui dessa contemporaneidade líquida uma perturbação dos referentes axiológicos outrora consolidados, sejam de cariz ético, político ou epistemológico, adentrando problemáticas de maior profundidade, somando-se a isso o fato de não haver, em um primeiro momento, nem mesmo uma ordem ou critério seguro capaz de legitimar determinada orientação em detrimento de outra (Fabre, 2011b).

Tais incertezas levam a Educação a renunciar a um projeto epistemológico referenciado em axiologias monolíticas que prescindam da problematização da experiência. À Educação cabe prover o aluno dos instrumentos metafóricos correspondentes à bússola e ao mapa, aliando, de modo interdependente, a funcionalidade cognitiva e metodológica do primeiro com o substrato cultural e material do segundo, o qual informa, ao menos parcialmente, o conteúdo dos dados e das condições que orientam o processo de problematização.

O presente artigo devota-se a apresentar as linhas estruturantes do processo de problematização da organização da experiência educativa propostas pelo pedagogo e filósofo francês Michel Fabre (1948-), com destaque para tal exercício epistemológico no campo dos problemas complexos incertos (problèmes complexes flous) e das questões socialmente polêmicas a eles correlatas.

Tais problemas ganham pertinência para a Educação à medida que a complexidade da vida é introduzida no âmbito da problematização da experiência educativa, para além, pois, de uma estruturação completa e artificial de dados e de condições do problema, fundados em saberes racionais e estáveis, apresentados sem as implicações éticas, políticas, econômicas ou culturais dos saberes correlatos a esses dois referentes cognitivo-formais.

A elucidação do que está em jogo, de modo a evidenciar a complexidade social do problema e seus diferentes aspectos, assim como a construção do problema por meio da seleção dos dados e das condições que devem entrar no processo de problematização, servem à elaboração de posições argumentadas, exercício conjunto entre o discente e o docente de modo a educar os sujeitos educativos para a problematização (Fabre, 2016b). Para tanto, são mobilizados os suportes instrumentais cartográfico e bussolar, de modo articulado e interdependente, em um processo dialético de dúvidas e de certezas (provisórias) que caracterizam a problematização da experiência.

Como orientar-se nos horizontes epistemológicos da experiência, frente aos desafios de um mundo problemático que interroga os sujeitos educativos em relação ao conteúdo, ao modo e ao tempo nas relações ensino-aprendizagem? Essa pergunta se enriquece e se complexifica ainda mais ao incitar a reflexão e a discussão das questões socialmente polêmicas na problematização e na organização da experiência educativa.

Incertezas e tentativas de organização da experiência educativa em um mundo problemático

Segundo Fabre (2011a), no mundo pós-moderno, as referências rígidas e tradicionais se perderam, a ponto de se qualificá-lo como problemático. O questionamento do cosmos dos antigos, habitado por mitos e deuses, trazido pela filosofia e pela tragédia, bem assim o questionamento da visão de mundo cristã baseada na fé (ambos referentes externos e superiores aos homens), desde a Renascença até os dias atuais traz, de um lado, uma problematização da vida e da cultura, seguida de um aumento do recalcamento das certezas nas ciências modernas (Fabre, 2011a; 2011b).

Neste mundo problemático, não há mais sistemas axiológicos absolutos, sejam eles de natureza secular ou espiritual. A edificação e a prática de valores são sempre passíveis de discussão, de reforma ou de redefinição, sejam elas suaves ou estruturais. Por decorrência disso, o eterno autoquestionamento (Fabre, 2016a) (que não implica, necessariamente, reflexividade ética), em diversos setores da sociedade contemporânea, como na política, no direito, na educação, na ciência, na alimentação, no lazer, na sexualidade, na espiritualidade e na arte, traz consigo a pulverização e a flexibilização das possibilidades de modelos éticos na vida individual e coletiva, carreando incertezas e turbulências na vida individual e social.

Os problemas surgem quando as coisas não mais se explicam por si próprias, quando ocorre uma ruptura da experiência (Fabre, 2016b), ou seja, uma desadaptação em relação à ordinariedade de determinada situação que não tem uma solução pronta e imediatamente disponível.

Nesse contexto, a ‘problemática’, que supera o aspecto subjetivo ou psicológico daquele que se depara com o problema, inscreve-se em uma objetividade que coincide com a cultura e com a historicidade. A problemática, consoante aduz Fabre (2009, p. 29, tradução nossa)1, “[...] define a um só tempo as condições de possibilidade do pensamento ou da ação dos sujeitos e que dá estatuto de problemas a tal ou qual conjunto de elementos ou de acidentes aos quais os sujeitos vão se confrontar [...]”, da qual os problemas de escala individual são ligados e dela constituem projeção.

Referido autor (2011a; 2011b) declina duas ordens de problemáticas objetivas, distintas e inter-relacionadas. Na primeira ordem, os referentes relacionais e institucionais, provindos da tradição, constituem as soluções historicamente construídas, de tal modo que os problemas de adaptação dos sujeitos, a exemplo de insatisfações nas relações familiares, não põem em causa a solução da instituição da família tradicional para o problema da aliança, da filiação, da educação e do patrimônio. A estrutura institucional, nesse sentido, permanece sólida, conferindo suporte às relações e às práticas sociais.

Na problemática de segunda ordem, que coincide com a pós-modernidade, em que ocorre um enfraquecimento do recalcamento problemático, na linguagem meyeriana, são essas próprias estruturas sociais ou institucionais que são postas em causa, trazendo problemas de ordem identitária aos sujeitos: “[...] os papéis sociais, doravante, se revelam flutuantes: quem pode saber hoje, com certeza, exercer seu papel de esposo, de pai, de professor... ou simplesmente de homem ou de mulher? Em um mundo problemático, as próprias relações referenciais são sujeitas a caução” (Fabre, 2011a, p. 101, tradução nossa)2. Nesse sentido, as questões de identidade são evidenciadas, dada a pluralidade de valores convergentes, conflitantes ou antagônicos, sem que haja, nas sociedades ocidentais contemporâneas, uma hierarquia pré-definida que sirva como critério para a melhor solução (Fabre, 2011b).

Nesse sentido, cabe citar as palavras de Bauman (2008), a denotarem a pulverização e a provisoriedade dos modelos éticos na sociedade, os quais exsurgem de fissuras de problematicidade de segunda ordem, levando problemas específicos para os sujeitos que vivenciam essas mudanças:

Sem nenhuma autoridade que ouse e/ou seja suficientemente poderosa para proclamar a universalidade das normas que prefere e deseja promover, e nenhuma capaz de assegurar a força obrigatória das normas por ela preferidas e promovidas, as regras orientadoras da interação humana são atiradas de volta ao caldeirão cultural logo que sugeridas. Cabe agora ao indivíduo, em grande medida, negociar por si mesmo soluções reconhecidamente provisórias e locais para suas discordâncias (Bauman, 2008, p. 182).

Sob o aspecto temporal, as sociedades tradicionais se referenciavam no passado. As modernas, no futuro, e as pós-modernas, no presente, na instantaneidade do aqui e agora (Fabre, 2011b). Essa hiperbolização axiológica do presente, somada à velocidade das relações sociais cada vez mais regidas pela lógica da comunicação instantânea e à distância, contribui para o aumento do hiato entre a projeção temporal de longa duração que caracteriza as instituições e a volatilidade e rapidez com que as representações e as práticas sociais se manifestam.

Somada à multiplicidade de caminhos que faz o viajante, até mesmo com referências ordenadas, hesitar para onde ir, novos ventos vindos dessa pluralidade ética reescrevem e diversificam as paisagens da tradição cultural. A par disso, por influxo de maior conhecimento sobre o mundo, o delineamento dos riscos fica mais fino e mais apurado, tornando mais complexos o nível de compreensão e de análise das situações pensadas pelo indivíduo e pela sociedade. A certeza cede para a probabilidade, a causalidade cede para a multifatorialidade e a segurança só se define enquanto provisoriedade, desmanche de uma sociedade moderna que privilegiava a solidez e a constância em dupla dimensionalidade: situacional, a exemplo das relações conjugais, de amizade ou de trabalho; e espacial, como seja, na fixação de um indivíduo ou de uma instituição em determinada territorialidade, decorrência de vínculo axiológico com elas (Fabre, 2016a).

Aprender a viver sem absolutos, na imanência, sem, todavia, cair em um relativismo nocivo que dissolva qualquer amalgamento de intersubjetividade política, ética e de autocuidado, eis aí uma questão central no campo da educação. Fabre (2016a), apoiando-se no pragmatismo de John Dewey, desvela quatro vias complementares que possibilitam a construção de uma educação baseada em um relativismo controlado.

No âmbito epistemológico, sugere-se uma metodologia centrada em dúvidas e certezas provisórias, ao invés de dogmas, sejam elas científicas ou político-sociais. Na esfera societária, pensar a democracia como organização política primacial no âmbito da realização das potencialidades experienciais individuais e sociais, como a liberdade e a cooperação.

A terceira via concerne ao aspecto ético, no sentido de se trabalhar com uma educação prudencial, na qual a concreção situacional e a contingencialidade a ela inerente devam ser tensionadas com principiologias ou com sistemas de pensamento definidos a priori, de modo que a solução para determinado problema deva ser exercitada por meio de uma combinação do geral e do abstrato com o particular e o concreto. Além disso, é o crescimento moral individual e social a linha ética diretora, sendo esta compreendida como processo e não como fim (Fabre, 2016a).

A quarta via, complementar a todas as demais, busca pensar a vida cotidiana como estética, onde a experiência do belo, ao invés de se distanciar da existência ordinária, a ela se mistura. Assim, consoante aduz Fabre (2016a, p. 44, tradução nossa)3: “[...] ao invés de fazer da experiência estética algo de ascético, deve-se ver nela a encarnação da ideia no sensível, mas um sensível verdadeiro feito de desejos e de emoções [...]”, que possibilitam, por meio dessas experiências emotivas, uma etopoiese edificante ou de conversão, qualificada pelo engrandecimento de si no mundo.

Educar para a problematização: bussolar e cartografar a experiência educativa

O modelo educacional baseado na tradição, de caráter reprodutivo ou mimético em relação ao passado, à contemporaneidade não se ajusta porquanto comporta uma concepção platônica de verdade como essência una, da qual a virtude, subordinada ao Bem, se diferencia das imitações. Ora, como visto acima, a resposta quanto ao homem virtuoso na linha platônica, concernente, por exemplo, ao bom esposo, ao bom pai ou ao bom professor, transforma-se em pergunta aberta, em uma problemática de segunda ordem que interroga, antes de tudo, o próprio referente institucional (Fabre, 2011a).

Sem um único caminho, à Educação cabe fornecer elementos de referência para que o aluno trilhe os caminhos que escolher. A descrença no modelo rousseauniano de educar conforme a natureza e no modelo histórico-teleológico das metanarrativas convidam, na linha fabreana, a volver a atenção para uma filosofia da experiência que coincide com o pragmatismo de Dewey, sendo educativa a experiência que (i) possibilita novas experiências, (ii) fornece lições para a experiência futura; (iii) seja realizada dentro de um contexto democrático e de socialidade (Fabre, 2011a).

Essa concepção minimalista de normatividade educativa, que concebe a experiência como “[...] processo de transformação autorregulada [...]” (Fabre, 2011a, p. 107, tradução nossa)4, não constrói direções únicas a serem tomadas pelo aluno, tampouco o deixa desamparado. Apenas permite a ele se referenciar, aportando-lhe duas instrumentalidades metafóricas que definem o processo de problematização: a bússola e o mapa. Sem bússola nem mapas, o educando pode tornar-se um errante em um mundo incerto (Fabre, 2011b), diminuindo, por falta de orientação, as potencialidades de realização inerentes à liberdade humana. Em que consiste o aparato conceitual e metodológico das instrumentalidades da bússola e do mapa, é do que se passa a tratar.

Organização bussolar da experiência

A bússola metaforiza a abertura e a polarização do espaço de problematização por meio de quatro pontos cardeais, os quais atuam como referentes formais desse processo, assim organizados: posicionamento ou enunciação do problema, pesquisa de dados, identificação das condições e enunciação de hipóteses para solução desse problema.

De modo mais analítico, o posicionamento ou a fixação do problema consiste na delimitação, na demarcação ou no estabelecimento dos contornos da questão. Por sua vez, a construção do problema releva da tensão entre os respectivos dados e condições, ao passo que a solução guarda relação com a emissão e a verificação de hipóteses. Não há uma ordem sequencial obrigatória entre essas três fases. Pode-se, por exemplo, movimentar a problematização do problema para a solução, ou, em sentido inverso, a partir da crítica desta última, por meio da verificação de hipóteses que, afinal, não resolvem o problema, a ensejar a revisitação das condições (as regras) e/ou dos dados (os fatos), de modo articulado (Fabre, 2016b).

Trata-se de um modelo de racionalidade processual e dinâmico, fora do ceticismo e do dogmatismo (Fabre, 2011a). As normas definem as condições do problema e antecipam a forma das soluções, constituindo o quadro da problematização (Fabre, 2011b). Assim, há uma normatividade a ela intrínseca, que pode ser questionada, minimamente alterada, mas não em determinado nível, a fim de propiciar uma base de articulação entre os dados (Houssaye & Fabre, 2005; Fabre, 2011b; 2016b).

As condições podem já estar definidas ao longo do processo de problematização ou serem construídas ao longo dele, sendo a realidade um compósito de vários sistemas normativos (políticos, éticos, técnicos pedagógicos, culturais etc.; Fabre, 2009).

Já os dados, que correspondem ao outro ponto cardeal da bússola, atinem a proposições fáticas ou a constatações, ou seja, a informações selecionadas do contexto (Fabre, 2016b). Os dados são escolhidos de acordo com a pertinência ao problema e apresentados ao início ou acrescentados ao longo do processo de problematização (Fabre, 2009). Em termos comparativos, os dados são contingentes, mudam, ao passo que a condição - naturalmente, pode haver coexistência de condições no mesmo problema - concerne às necessidades que se devem levar em conta no âmbito do problema, porquanto estruturam a base deste (Fabre, 2005; Fabre, 2011b).

As condições para a resolução de um problema podem, no início do processo de problematização, serem conhecidas ou desconhecidas, ou seja, a serem descobertas ao longo dele. Nesse segundo caso, busca-se, com menos instrumentos, testar hipóteses: afastar-se de algumas, aproximar-se de outras, como uma dissertação filosófica na qual as ideias ou os fenômenos têm as suas condições teóricas explicitadas (Fabre, 2016b).

Para utilizar um exemplo simples, em que os todos os dados e as condições são conhecidos, no enunciado do problema em que se pergunta quantas bolas têm, juntos, Paulo, com 13 bolas, e Pedro, com 14, os dados são as pessoas e a quantidade de bolas, sendo que a condição é a relação das bolas juntas, que antecipa a forma somatória do resultado esperado (Fabre, 2016b). Outro exemplo, no qual basta a lógica para resolvê-lo, consiste no problema em saber se o campo de cultivo A produz mais que o campo de cultivo B, mobilizando-se, como dados do problema, as dimensões dos dois retângulos, e, como condição principal, o cálculo das respectivas áreas (Fabre & Musquer, 2009).

Um limite desses dois exemplos é que, neles, o professor apenas enuncia o problema, cabendo ao aluno apenas resolvê-lo, não tendo havido a coconstrução do processo de problematização. Segundo limite a assinalar, propõe-se, em ambos, um problema isolado, o que nem sempre é o caso, notadamente em se tratando de problemas complexos ou polêmicos que envolvem aspectos sociais e éticos.

De todo modo, os elementos da problematização são mobilizados e funcionalizados de acordo com o problema que se enfrenta, o que leva à afirmação de que não há verdadeira problematização sem um tratamento direto e material da situação específica. Dessa feita, é em função de um contexto determinado que se define o que será tido como dado, condição ou solução, a exemplo da construção de uma casa, em que a conclusão da planta surge como solução do problema para o arquiteto, a qual se torna condição (norma) para o pedreiro construir os muros. Por sua vez, os muros devidamente construídos (solução do problema para o pedreiro) constituem-se em dados para o pintor ou para o eletricista, de modo que um problema maior se subdivide em problemas menores (Fabre, 2016b).

Trata-se de um pensamento problemático, a demandar exame ou verificação sem precipitações, que não se realiza de modo imediato ou diretamente consequente, como no pensamento apodítico ou assertórico, tampouco excessivamente hesitante ou reticente, de modo a impedir o processo de problematização. Ademais, nele funciona uma dialética de certezas (pontos de apoio de partida que podem ser provisórios) e de dúvidas, dialética que visa a evitar uma orientação dogmática ou cética na organização problematizante da experiência educativa. Nesse sentido, ambos os pontos cardeais (os dados e as condições) são considerados como pontos provisórios no âmbito da problematização da experiência. Todavia, há elementos que não se questionam, ou porque estão fora do contexto de problematização ou porque, internamente a ela, pertencem aos pressupostos ou aos próprios fundamentos do questionamento (Fabre, 2016b).

Na passagem do problema à resposta, a problematização desempenha uma função heurística, pois o saber inicial nela contido permite regular esse processo e avaliar seu resultado. A problemática revela um saber que ainda não é uma resposta, mas antecipa as respectivas características (Fabre, 2016b).

Desse modo, problematizar é o exame de uma questão por meio da articulação de dúvidas e de certezas, distinguindo e relacionando os dados e as condições do problema em um quadro determinado, por um pensamento autocontrolado e em uma perspectiva heurística e investigativa (Fabre, 2016b).

Problematizar a experiência implica, pois, a orientação do pensamento que abre e polariza o espaço cognitivo, ou seja: posicionamento do problema, busca de dados, identificação de condições e emissão de soluções, ainda que provisórias, não necessariamente nessa ordem. É do mapa que os dados e as condições serão extraídos, ainda que parcialmente, pois a bússola tem importância funcional sob o aspecto formal e geral (Fabre, 2011b).

Sintetizando as considerações anteriores e desenvolvendo teoricamente, em maior amplitude, o processo de problematização, trata-se de um processo multidimensional, envolvendo a posição, a construção do problema com dados e condições e a emissão de hipóteses de resolução, em uma dissociação dialética de fatos e ideias (ou teorias e realidades ou experiências) que são tensionadas de acordo com a questão (Fabre, 2009). Outra dialética é feita entre o conhecido e o desconhecido (certezas e dúvidas), de modo que a problematização se apoia em pontos provisórios, que podem ser revisitados posteriormente (Fabre, 2011b). O questionamento nesse processo parte, assim, da elaboração ou da utilização de pontos de apoio, sem que se exija sejam dotados de certeza definitiva, tampouco se iniba posterior reposicionamento ou desconsideração destes.

Além disso, trata-se de uma esquematização do real (abre-se mão de reproduzir a realidade), orientada por um pensamento autocontrolado, no âmbito da dinâmica da articulação dos dados, das condições, dos problemas e das hipóteses desse processo. Ou seja, não se trata de conceber uma problematização que espelhe a realidade, mas de funcionalizá-la, esquematicamente, mediante ferramentas que sirvam ao pensamento e à ação (Fabre, 2011b).

Por fim, alinhavando o instrumental teórico-formal de que se serve este estudo, o processo de problematização pode estar centrado na resolução do problema ou na construção do problema, permita-se repetir, na articulação entre os dados e as condições. No caso dessa segunda centralidade (construção do problema), pode-me mencionar, a título de exemplo, a atividade avaliativa de um discente sobre uma questão socialmente polêmica, em que a resposta dele para o problema, sem imperativo de coincidir com a do professor, não importa tanto quanto o processo argumentativo por ele tecido (Fabre, 2016b). Nesse sentido, a compreensão das condições sob uma perspectiva teorética ou instrumental, como fim ou como meio, a depender da finalidade da problematização desenvolvida no processo educativo, interfere diretamente na configuração dessa centralidade.

Organização cartográfica da experiência

A outra ferramenta metafórica que se mobiliza no processo de problematização da experiência educativa é o mapa, que fornece, ao menos parcialmente, os conceitos e os dados no âmbito da problematização, de modo a permitir a orientação do sujeito educativo quanto ao ponto de localização e ao ponto aonde se quer chegar.

O mapa traduz a historicidade e a tradição como suporte cultural ao longo do tempo, bem como as experiências do educador e do aluno, conformando as paisagens e os caminhos sobre os quais os antecessores deixaram suas pegadas. Vale dizer, por mais delimitado que seja o caminho, por mais que ele tenha sido ou venha a ser trilhado, individual ou coletivamente, a experiência da travessia é inalienável e indeclinável (Fabre, 2011a).

Com efeito, um problema pode respeitar ao objetivo de um projeto ou a um determinado evento, denotando o aspecto racional ou cognitivo da experiência. No desafio (épreuve), contudo, sobreleva o aspecto existencial do problema em relação à pessoa, uma experiência que cinge ou se dirige igualmente ao campo das emoções, que engrandece pela alegria ou sofrimento ao se aceitar a experiência (Fabre, 2002).

No modelo cartográfico, não há injuntividade quanto aos caminhos a seguir, ganhando-se em autonomia, mas não em certeza. De acordo com Fabre (2011b, p. 80, tradução nossa)5, “[...] se todo mapa pode ser lido como uma problemática, certas problemáticas abrem soluções múltiplas, outras impõem um caminho único, outras enfim permitem elaborar novos mapas”.

O mapa pode servir para representar, discursar a realidade passada, presente ou, projetivamente, futura. Desse modo, a cultura pode pensar o mundo por meio desses três plexos temporais, mas a utilização do mapa (o substrato cultural) pode ser inadequada ao mundo atual. Nesse caso, não se vai utilizá-lo integralmente ou se vai utilizá-lo apontando os riscos e as cautelas a serem tidos em apreço. Às novas gerações, nesse caso, cabe elaborar novos mapas, mas há um suporte ou sustentação material e simbólica que transcende a especificidade histórico-cultural de cada época ou lugar, adentrando invariantes que concernem à própria humanidade. Mesmo a criação, mesmo a revolução não se realizam ex nihilo.

Ao educador cabe escolher seus próprios mapas em função das situações-problema (enigmas, controvérsias, diagnósticos, por exemplo; Fabre, 2011b), valendo-se, igualmente, do referencial cognitivo-formal que é a bússola. Ela identifica as direções (norte, sul, leste ou oeste) sem apontar para qual delas se deva seguir, por isso a importância do mapa, esse construto histórico-cultural que nos serve de base material para edificar e enriquecer as experiências à medida que se trilha e se treina nos caminhos. Daí a importância do mapa, para o processo de problematização bussolar não funcionar no vazio (Fabre, 2011b).

O mesmo se aplica ao inverso: o mapa não supre a falta da bússola, pena de não se saber a localização (Fabre, 2011a). Assim, a bússola é o processo de problematização sob o prisma cognitivo-formal (abertura e polarização do espaço ou da situação-problema), ao passo que “[...] o mapa é lido, assim, como uma problemática sobre a qual são definidas as condições e os dados gerais e genéricos [...]” (Fabre, 2011a, p. 111, tradução nossa)6, os aspectos histórico-culturais, portanto, de modo que, vale frisar, a iniciativa de problematizar um tema não prescinde do conhecimento preciso deste. Isso não implica, contudo, procrastinar a problematização ao argumento de não se ter um conhecimento suficiente sobre o tema (Fabre, 2016b), mesmo porque esse processo funciona por meio da mobilização de pontos de apoio provisórios, em dialética de dúvidas e de certezas.

Deveras, em contextos de problematicidade, o mapa não determina qual caminho seguir, mas apresenta os múltiplos caminhos e os respectivos riscos - risco como parte constituinte de uma etopoiese que não se forja nas heteronormatividades -, fornecendo, destarte, um dimensionamento mais ou menos preciso dos lugares a que levam as rotas, sendo impossível, importa destacar, exaurir e controlar in totum esse processo multifatorial que é a vida.

Fabre propõe referenciais nesse mundo problemático, assimilado pelo autor a um labirinto, em relação ao qual são necessárias referências que impliquem nas funções de localização, de orientação e de discriminação de limites e fronteiras (Fabre, 2011a). No plano educativo, ‘localizar’ implica o nível ou estágio de progressão escolar em que se encontra o aluno. ‘Orientar’ remete ao projeto ou aos objetivos visados, de matriz endógena e exógena, ao passo que a ‘discriminação de limites’ concerne à definição de até onde se pode ir no tocante às atitudes do educando e às relações dele com o professor e os demais, a fim de evitar excessos (Fabre, 2011b).

No campo prático, o que deve ser mantido como resposta ou como questão, como certeza ou dúvida, releva da autoridade docente que calibrará essa dialética. Na atividade de problematização, não se questiona tudo nem se transporta a totalidade do tema para ela. O questionamento deve ser modulado, material e temporalmente, de acordo com os objetivos, além de ser adaptado às finalidades que se quer atingir no processo de problematização, sob pena de perder funcionalidade. Nesse sentido, há graus de problematização, mais ou menos complexos (Fabre, 2016b).

Sob tal vértice, a experiência do educador faz parte de um processo educativo eticamente informado, investido de reflexividade e ausente de petrificação de dogmas que, caso assentados, logo serão lixiviados pela intensidade das mudanças da contemporaneidade (Fabre, 2011b). Além disso, a problematização é aprendizagem dinâmica, pois faz parte do processo de aquisição de conhecimento. Ao educador cabe elaborar seus próprios mapas em função das situações escolhidas (Fabre, 2011b), destacando-se, ademais, que a escolha dos materiais para a elaboração desses mapas influencia no modo pelo qual a realidade é representada.

O mapa constrói, graficamente e socialmente, visões de mundo, em um contexto histórico e cultural determinado, já que produz representações que não são uma cópia da realidade, mas uma linguagem que busca conhecê-la (Fonseca & Oliva, 2013; Joly, 2013). As intencionalidades não podem ser veladas por uma suposta investigação de pureza científica, de objetividade e de imparcialidade. A representação cartográfica, nessa vertente teórica construtivista, é uma linguagem visual, o que aponta para uma desnaturalização dos mapas (Fonseca & Oliva, 2013).

Interpretação gráfica dos espaços, o mapa é um discurso que não equivale a retratos de paisagem disponibilizados por imagens de satélite, os quais não tem a potencialidade exploratória dos aspectos sociais dos mapas, como os temáticos (educação, violência, fluxo relacional de pessoas e bens...), nem a possibilidade de selecionar e de generalizar objetos (como representar um rio por uma linha; Fonseca & Oliva, 2013), hierarquizando fenômenos.

O mapa, portanto, produz significados de acordo com o contexto em que se insere. Não se deve concebê-lo como redução perfeita da realidade, salvo se aquele que enuncia o mapa, retoricamente, obscurece ou hierarquiza fenômenos com a dupla de intenção de dogmatizar a orientação ao impor ao leitor um único caminho hermenêutico e de subverter as regras básicas de precisão, confiança e eficácia inerentes à confecção dos mapas (Joly, 2013).

Com efeito, a imagem de um mapa, que pode ser utilizada como técnica retórica, é uma comunicação instantânea, por meio da qual as informações são selecionadas a fim de proporcionar ao leitor uma apreensão rápida e múltipla delas, além de ser um instrumento que possibilita poder de persuasão crescente e efeito construtivo naturalizado (Fonseca, 2004; Fonseca & Oliva, 2013).

Um mapa pode ser concebido não tanto com o fito de destacar o fenômeno das territorialidades e das respectivas extensões - espelho da visão moderna da cartografia baseada no espaço euclidiano que privilegia contiguidades e continuidades -, mas com o objetivo de representar e de destacar o fenômeno das redes e dos fluxos em plexos de linhas, no qual a dinâmica, a multiplicidade e a miscibilidade de inter-relações - próprias de um mundo problemático - prevalecem sobre a estaticidade, a unidade e a potencialidade tão somente juncional das territorialidades (Fonseca & Oliva, 2013).

À medida que a complexidade da vida é introduzida no âmbito da problematização da experiência, para além, pois, de uma estruturação completa e artificial de dados e de condições do problema, apresentados sem as implicações éticas, políticas, econômicas ou culturais dos saberes correlatos a esses dois referentes cognitivo-formais, à medida que isso ocorre, desvelam-se os problemas complexos incertos (problèmes complexes flous), que encontram forte ressonância no campo das ‘questões socialmente vivas’.

Problemas complexos incertos e questões socialmente vivas

Nos ambientes escolares, em contraposição à predominância de uma concepção de ensino de saberes racionais e estáveis, sem a proeminência ou o acento sobre opiniões e valores éticos, sociais, políticos ou econômicos, prolifera a vertente das ‘educações para’ (meio ambiente, sexualidade, consumo...), que desagua no campo epistemológico dos problemas complexos imprecisos, indeterminados ou controversos, tanto no que se refere aos dados, dos quais não se tem a totalidade, como no atinente às condições, que se revelam insuficientes, ambos a serem procurados e arranjados no processo de problematização, para a construção do enunciado do problema (Fabre, 2014a; 2014b; 2016b).

Outra incerteza ínsita dos problemas complexos incertos concerne à ausência de critério procedimental e decisório (Fabre, 2014a; 2014b; 2016b), não sendo possível obter alto grau de certeza em uma solução, tampouco em múltiplas soluções, dada a ausência de critérios hierárquicos pré-determinados que possam ser coordenados para a resolução do problema. Embora tudo possa ser problematizado, embora não existam absolutos, isso não significa que não haja assimetrias de força no tocante à influência desses valores na realidade, os quais veiculam diferentes concepções de mundo que se disputam na sociedade.

A expressão ‘problemas complexos incertos’ (problèmes complexes flous) decorre de tradução, feita por Toussaint e Lavergne (2005), da expressão inglesa ill structured problems (problemas mal estruturados), termo criado por Herbert A. Simon, em 1973, no campo da inteligência artificial (Xypas, 2014), tendo igualmente projeção na psicologia cognitiva das décadas de 1960 e 1970, relativamente ao tratamento de informações.

Um segundo contexto dos problemas complexos incertos relaciona-se aos desafios sociais, éticos, políticos, econômicos e ambientais do desenvolvimento técnico-científico após a segunda guerra mundial e as três décadas que se lhe seguiram, trazidos como discussão pela sociedade e pela comunidade científica, espelhando, nesse sentido, o campo das questões socialmente vivas (Fabre, 2014b).

Essas questões misturam saberes das ciências formais com valores, rompendo parâmetros epistemológicos que imiscibilizam as ciências exatas, as ciências biológicas e as ciências humanas, além de extrapolarem a órbita teórico-discursiva escolar para adentrarem o complexo domínio da ação na sociedade (Fabre, 2016b).

Na verdade, o que determina a controvérsia em relação às condições e aos dados são os interesses em jogo, bem como as diferentes perspectivas e contextos, eis que a construção argumentativa do problema defendida por cada lado implica uma hierarquização de condições e de dados que não se conciliam. Aspectos políticos, ideológicos, éticos ou econômicos, por exemplo, sobredeterminam o problema, trazendo várias soluções em decorrência dessas escolhas, que mobilizam retoricamente os elementos do problema de acordo com o interesse em questão (Fabre, 2016b).

Percebe-se, desde logo, que os obstáculos ligados ao tratamento das questões socialmente vivas também se relacionam, por afastamento ou por proximidade, com essas implicações axiológicas. O primeiro obstáculo, ligado à tecnocracia, ocorre quando se afasta o viés axiológico do problema e o mesmo é tratado apenas sob uma perspectiva técnico-científica, objetiva e restrita a especialistas, de modo que esses problemas são concebidos apenas como problemas mal estruturados, passíveis de resolução pela ciência (Fabre, 2016b).

Privilegia-se a objetividade no tratamento do problema, engendrando, pois, uma perspectiva aplicacionista que releva antes da racionalidade científica que da prudencialidade. No âmbito escolar, os valores são remetidos a escolhas pessoais ou a escolhas políticas não consideradas pela escola (Fabre, 2016b).

Contrariamente a tal concepção, não se deve sobrepor, a priori, o argumento científico como principal critério decisório ou como argumento de autoridade insuperável para o problema, calando a dimensão da subjetividade dos partícipes da discussão, dimensão vital, aliás, para a compreensão da singularidade e da posição de cada um no mundo. Essa subjetividade guarda, inclusive, forte sinergia com a coconstrução do problema pelo professor e pelos alunos, cabendo ao primeiro incentivar e estimular o avanço de argumentos e de hipóteses por parte dos alunos, sem inibir os erros e as incoerências dos argumentos iniciais (Fabre, 2014a; 2016b).

O outro obstáculo, ligado ao relativismo, consiste, em posição diametralmente oposta ao anterior, em hipertrofiar a dimensão axiológica do problema em desfavor dos aspectos técnicos e científicos que o informam, privilegiando-se posicionamentos opinativos sem a necessária exigência de fundamentação racional. Ignoram-se ou minoram-se as especificidades científicas que informam o problema, bem assim o conhecimento produzido sobre elas, valorando-se, sem distinção, todo e qualquer posicionamento ou opinião, seja ou não argumentada, desde que individual. Na escola, o debate tende a se restringir ao campo das opções pessoais de cada aluno (Fabre, 2016b).

Ora, nada mais errôneo e nocivo ao processo de problematização da experiência do que cada um arrogar a bússola e o mapa para si, resumindo toda a problematização a mera opinião fundamentada, quiçá, na experiência individual que se comunica ao outro como produto e não como possibilidade de troca de experiências, inconclusa e potencialmente geradora de outras experiências.

Cair em um ceticismo que prescinda de qualquer suporte argumentativo e comunicacional na defesa das ideias e das práticas individuais e sociais é desperdiçar as possibilidades de pensar de modo mais rico e ampliado, além de incentivar uma tolerância nociva e preguiçosa que se satisfaz com a palavra curta e que compactua com um individualismo arrogante e uma falsa auto-suficiência que não permite miscibilidades de pensamento nem de encontros nas vivências humanas, dentro e fora dos espaços educativos. Essa maior amplitude da experiência deriva, em parte, das relações tecidas ou travadas com o outro, no consenso ou dissenso, notadamente em se tratando de questões comuns aos envolvidos no debate.

Por fim, o terceiro obstáculo ao tratamento dos problemas imprecisos, próximo da acriticidade do segundo modelo, põe ênfase em práticas politicamente corretas, de modo injuntivo e sem reflexividade crítica. Considera admissíveis somente as premissas que estejam de acordo com os padrões e comportamentos sociais consagrados por heternomatividades, não raro sob a batuta de influxos midiáticos e mercadológicos, distante da malha da problematização, o que leva ao risco de infantilizar o educando (Fabre, 2016b).

Como tratar essas questões fora do relativismo e do absolutismo? Na escola, cabe ao professor levantar argumentos, compará-los, avaliar possíveis consequências e explicitar as intencionalidades dos pontos de vista, sem dimensionar uma única solução, a dele, agindo, outrossim, de modo prudencial. É uma pesquisa na qual os educandos também participam. Para tanto, ao professor não cabe inibir os erros e as tentativas de hipóteses, mas privilegiar a construção do problema em relação à solução ou às soluções (Fabre, 2014a; 2016b).

Fabre propõe uma metodologia prática na qual os alunos, auxiliados pelo professor, buscam o tratamento adequado das questões socialmente polêmicas que não devem ser deixadas de lado pela Educação. Essa proposta implica três etapas, que não guardam relação necessária de sequencialidade entre elas, sendo possível, por exemplo, revisitar os dados e as condições ao criticar determinada solução para um problema. A primeira consistente na explicitação da questão e dos aspectos sociais a ela circunscritas, sem estabilizar excessivamente os saberes ensinados e reproduzidos nos ambientes escolares. Na segunda etapa, é realizada a construção ou o posicionamento do problema, de acordo com as escolhas dos dados e das condições mobilizados no processo de problematização. Na última etapa, são elaboradas posições argumentadas, sem que se busque uma única solução, em um ethos escolar democrático no sentido participativo como respeitoso da alteridade e das posições divergentes que dela possam advir.

Considerações finais

Em um mundo problemático referenciado na imediatidade do presente e marcado pela problemática de segunda ordem, na qual as próprias estruturas sociais ou institucionais são questionadas, problemas de ordem identitária chegam aos sujeitos. Disso decorre a pluralização das possibilidades de modelos éticos, embora a ausência de soluções axiologicamente monolíticas para os problemas de ordem individual e social não implique simetria de forças no tocante à influência desses valores na realidade. Nesse sentido, a ausência de absolutos axiológicos não sugere a ausência de tendências hegemônicas que podem condicionar univocamente o problema e as soluções a ele correlatas, podendo servir a problematização da experiência, inclusive, como crítica de superação de tais tendências.

A experiência educativa é organizada por duas instrumentalidades metafóricas que habilitam os sujeitos educativos a prescindirem de absolutismos e de relativismos. O primeiro instrumento, a bússola, representa a funcionalidade cognitiva e metodológica do processo de problematização, estruturando e polarizando os dados, as condições, o problema e as hipóteses de solução. O segundo instrumento, cartográfico, assinala o substrato material do qual os dados e as condições serão, ao menos parcialmente, fornecidos para o funcionamento do processo de problematização. Trata-se de um modelo dinâmico, estruturado dialeticamente, sem injuntividades e adaptável aos objetivos pedagógicos pretendidos pelo docente, além de imbuído de uma tecnologia prudencial que enriquece as relações concretas entre os sujeitos educativos.

No campo dos problemas complexos incertos, em que a introdução da complexidade da vida social na órbita teórico-discursiva escolar rompe com a possibilidade de se trabalhar com dados e condições exaurientes de modo isolado, sem que haja uma hierarquia pré-determinada entre as segundas, deve-se evitar a problematização da experiência educativa com base em modelos tecnocráticos que exacerbam a dimensão da cientificidade como única forma de conhecimento. Outro modelo a ser evitado é de cariz relativista, que afrouxa o rigor argumentativo necessário às discussões escolares para tornar legítima toda e qualquer opinião pessoal.

De igual modo, deve ser evitado o modelo fundado em posicionamentos acríticos ditados por uma questionável injuntividade de modelos politicamente corretos, neutralizando as tentativas de reflexão e de argumentos críticos e criativos provenientes da subjetividade dos discentes. Afinal, diante de um mundo problemático, a construção e desenvolvimento das subjetividades, no plano ético e performativo, constitui tarefa irrenunciável de uma Educação Escolar voltada a preparar os discentes para os desafios que lhes são e lhes serão apresentados dentro e fora dos ambientes escolares.

Referências

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1No original: “[...] ce qu’on appelle une problématique, c’est précisément cette structure qui définit à la fois les conditions de possibilité de la pensée ou de l’action des sujets et qui donne statut de problèmes à tel ou tel ensemble d’éléments ou d’accidents auxquels les sujets vont se trouver confrontés [...]”.

2No original: “[...] les rôles sociaux s’avèrent désormais fl ottants: qui peut savoir aujourd’hui avec certitude comment jouer son rôle d’époux, de parent, d’enseignant…ou tout simplement d’homme ou de femme? Dans un monde problématique, les relations référentielles sont elles-mêmes sujettes à caution”.

3No original: “[...] au lieu de faire de l’expérience esthétique quelque chose d’ascétique, il faut y voir l’incarnation de l’idée dans le sensible, mais un sensible véritable fait de désirs et d’émotions [...]”.

4No original: “[...] processus de transformation auto-régulée [...]”.

5No original: “[...] si toute carte peut être lue comme une problématique, certaines problématiques ouvrent des solutions multiples, d’autres imposent un chemin unique, d’autres enfin permettent d’élaborer de nouvelles cartes”.

6No original: “[...] la carte se lit ainsi comme une problématique sur laquelle sont définies les conditions et les données générales et génériques [...]”.

NOTA: Os autores foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

Recebido: 03 de Janeiro de 2020; Aceito: 11 de Fevereiro de 2020

*Autor para correspondência. E-mail:icec.campos@gmail.com

Ibrahim Camilo Ede Campos: doutorando em Educação pela Universidade Federal de Alagoas (PPGE/Ufal). Linha de pesquisa: Educação, cultura e currículos. Eixo: Filosofias e Educação: temáticas éticas e epistemológicas. Professor universitário. Bolsista Capes/Fapeal. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8292-6071 E-mail: icec.campos@gmail.com

Walter Matias Lima: Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (1988), Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco (1995) e Doutorado em Educação (Filosofia e Educação) pela Universidade Estadual de Campinas (2003). Fez Estágio Pós-Doutorado na Université Rennes II: Centre de recherche sur l'éducation, les apprentissages et la didactique (Cread). Professor Associado da Universidade Federal de Alagoas, no Centro de Educação. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Filosofia e Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: ensino de filosofia, filosofia francesa contemporânea, culturas e corpo, filosofia e educação, e formação docente. Professor nos seguintes programas de Pós-Graduação: PPGE/Ufal; Ppgau/Ufal e Profil, Núcleo UFPE. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7331-9475 E-mail: waltermatias@gmail.com

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