Introdução
Há um número crescente de produções que tratam da formação de professores e que vem ganhando significativo destaque nas pesquisas em educação. Mesmo contemplando temas e focos diferenciados objetivam contribuir com as discussões que tratam dos limites e possibilidades da formação inicial do professor pedagogo para o sistema educacional brasileiro.
Este texto1, na tentativa de trazer contribuições para a compreensão da formação do professor no curso de Pedagogia, debruça-se, sobre o tema da Arte como conhecimento na formação do pedagogo e, delimita-se como objeto de investigação o estudo do ensino da Arte no processo de formação do professor pedagogo que atuará na área de conhecimento da Arte na Educação Infantil e na primeira fase do Ensino Fundamental.
A respeito de estudos na área de Arte e, em especial, na formação de professores, Barbosa (2012, p. 13), ao tratar sobre a ‘ausência de fontes de informação’ observa que não há “[...] sequer um estudo mais geral sobre o ensino da arte em nível superior no século XX”. Portanto, esse estudo, juntamente com outros2, se mostra importante uma vez que pretende desencadear reflexões acerca da complexidade que envolve o processo de formação docente, em especial, na área de Arte no Curso de Pedagogia.
Nesse sentido, a base empírica do estudo foram os cursos de Pedagogia do Instituto Tocantinense de Educação Superior e Pesquisa Ltda. (ITOP, 2011a, 2011b) e da Universidade Federal do Tocantins (UFT, 2007), Campus de Miracema. Logo, buscou-se articular as abordagens sociopolítica e educacional em nível nacional, com as análises de aspectos específicos desses dois cursos, no que concerne ao ensino da Arte na formação do pedagogo.
Nessa diretriz, parte-se da premissa de que os cursos superiores devem promover a formação do professor de forma que possa compreender os aspectos históricos, sociais, culturais e organizacionais, próprios da sociedade e vinculá-los às diferentes áreas do conhecimento, bem como ao que se refere ao ensino da Arte. Isso é fundamental para que não ocorra a reprodução da alienação e da ideologia da educação como instrumento de adaptação ao modelo de sociedade vigente.
Assim, ao explicitar o tema em estudo, considerando o contexto dos Cursos de Pedagogia em nível nacional e, em especial, os cursos selecionados, em razão da perda sintomática da densidade teórica do conteúdo artístico no currículo dos Cursos de Pedagogia, o problema da pesquisa está em analisar qual a contribuição da disciplina de Arte para o enriquecimento da formação humana e da capacidade criadora e crítica do acadêmico.
É importante indicar que a formação humana refere-se ao conceito de humanização, isto é, o processo de formação das qualidades humanas, da educação, de acordo com a perspectiva histórico-cultural,3, que compreende que o sujeito necessita ser humanizado, visto que os fatores genéticos não são suficientes para tal, e o processo de humanização ocorre fundamentalmente por meio das interações sociais. Eis o que dizem Barbosa, Miller e Mello (2016):
O processo de humanização acontece com a apropriação, pelo homem, da experiência sócio-histórica. Os conhecimentos que são adquiridos durante o desenvolvimento das faculdades e das propriedades humanas vão-se acumulando ao longo do processo histórico vivido pelos homens e são transmitidos de uma geração a outra. Essas aquisições são fixadas em produtos da atividade humana, cristalizam-se como objetivações resultantes da ação do homem sobre a natureza ou algum produto deixado pelas gerações anteriores. Nesse movimento, o homem transforma seu meio e, ao mesmo tempo, transforma a si mesmo (Barbosa, Miller, & Mello, 2016, p. 9).
Ao considerar a Arte como conhecimento do que existiu, do que existe, do reconhecimento do humano e das possibilidades do vir a ser do humano e, portanto, a sua importância na formação do professor pedagogo que atua na Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, o objetivo desse artigo está em desvelar a concepção teórico-prática do ensino da Arte na política curricular de formação do professor-pedagogo dos Cursos em estudo.
Triviños (1987) pondera que o método do materialismo histórico-dialético, em sua abordagem teórico-prática, consiste em uma análise da realidade de forma muito mais complexa, uma vez que, além de se levar em consideração a história, busca-se a apreensão das relações sociais e materiais, o que se constitui em uma possibilidade de análise dos elementos macro e micro sociais. Eis o que o autor diz:
O materialismo histórico é a ciência filosófica do marxismo que estuda as leis sociológicas que caracterizam a vida da sociedade, de sua evolução histórica e da prática social dos homens, no desenvolvimento da humanidade. O materialismo histórico significou uma mudança fundamental na interpretação dos fenômenos sociais que, até o nascimento do marxismo, se apoiava em concepções idealistas da sociedade humana (Triviños, 1987, p. 51).
Desse modo, esse método amplia a possibilidade de compreensão das condições reais de existência e do conhecimento que se constrói, para se chegar ao concreto pensado, apontando para a possibilidade de modificações educacionais e sociais.
Essa pesquisa combinou estudo bibliográfico, documental e de campo com o objetivo de contemplar a temática, o contexto da pesquisa, sua materialidade e percepções dos participantes externos da mesma. A pesquisa bibliográfica no campo da Arte revela os caminhos da construção do seu espaço no currículo de formação escolar. A compreensão da concepção da Arte no processo de formação do professor exigiu o conhecimento dos documentos institucionais, bem como dos próprios Cursos de Pedagogia, dentre outros, que contribuíram com o estudo e a reflexão em torno do sistema de formação, dos dispositivos legais e das diretrizes curriculares. E o trabalho materializou-se na pesquisa de campo, em duas Instituições de Ensino Superior (IESs): uma privada e outra pública.
A necessária formação do professor-pedagogo no campo da Arte
As diferentes metodologias de ensino, somadas aos diversos conteúdos trabalhados pelas instituições de ensino ou pelos professores, também modificam e/ou (des)qualificam o processo de formação docente. Cruz (2011) apresenta a defasagem que há entre a formação dos sujeitos, denominados de ‘pedagogos primordiais’, que cursaram Pedagogia entre as décadas de 1930 a 1960, ao serem comparados aos formados nos cursos de formação que vieram a trabalhar como professores e pesquisadores. Nos relatos dos pedagogos, é perceptível a perda sintomática de densidade teórica ao atuarem como formadores, em comparação ao período em que eram acadêmicos. Cruz (2011) ressalta que, ao longo dos anos, ocorreu a secundarização de estudos dos clássicos da educação e, cada vez mais, os alunos se caracterizaram pelo pouco conhecimento cultural.
Nessa diretriz, há um empobrecimento do processo de formação docente no século XX e no início do século XXI, tendência que tem se intensificado. Isso é perceptível ao observarmos que a formação acadêmica é fundamentada na concepção do professor, como um profissional, ou seja, em uma perspectiva de formação mais prática e menos teórica. Esse é um ideário que se difunde cada vez mais nos últimos anos, a partir da “[...] ideia de que o mais importante a ser adquirido por meio da educação não é o conhecimento, mas sim a capacidade de constante adaptação às mudanças no sistema produtivo” (Duarte, 2004, p. 47).
Adiciona-se ao esvaziamento teórico na formação de professores e na constituição do sujeito social, a perda gradativa da capacidade de criação, nos dizeres de Kosik (2002), ou inventiva, segundo Kastrup (2001). Assim, a aprendizagem encontra-se dissociada da criação ou da invenção. E a partir da compreensão de que a inventividade não é privilégio de artistas e de cientistas, Kastrup (2001) enfatiza o chamamento por um novo tratamento às questões culturais e artísticas da formação escolar e, em especial, à formação docente, que ocorre não de forma isolada, mas envolta e influenciada pelas transformações sociais e educacionais do momento.
Assim, além de possibilitar a realização da condição humana, aqui se compreende Arte como criação humana e que aparece ao longo do tempo em diferentes espaços e em diversas culturas. Considera-se a Arte como uma forma específica de conhecimento produzido pelos sujeitos e que carregam respostas a diversas perguntas por eles elaboradas em algum contexto histórico. Logo, ao tratar da formação cultural humana, a partir da Arte, observa-se que ela possui um propósito, que se modifica na medida em que se modificam os sujeitos historicamente inseridos.
Desse modo, parte-se da concepção de que toda atividade artística está em diálogo com a cultura, seja essa recente ou antiga. A Arte é criada e recriada, e sua compreensão não pode ser dissociada da realidade histórica. Assim, se vemos na Arte uma forma que possibilita refletir o contexto social, é, também, uma interpretação dessa realidade. As produções artísticas são o reflexo da consciência histórica da humanidade, fruto da sensibilidade humana desenvolvida historicamente (Costa, 2001).
Através da Arte os sujeitos podem compreender as condições reais de existência, de uma forma mais crítica, representando-a sensivelmente e trazendo à tona sua verdadeira essência. Nesse sentido, a Arte possibilita a expressão e a criação da realidade, conforme vemos em Konder (2013), a seguir:
Admitido o valor cognoscitivo da arte, seremos forçados a concluir que ela proporciona um conhecimento particular que não pode ser suprido por conhecimentos proporcionados por outros modos diversos de apreensão do real. Se renunciamos ao conhecimento que a arte - e somente a arte - pode nos proporcionar, mutilamos a nossa compreensão da realidade (Konder, 2013, p. 25).
A formação humana ocorre na medida em que mundo das ciências, da filosofia e da Arte integram o cotidiano do ser em formação. Ao considerarmos que a dimensão estética não sobrevém somente do campo da Arte, outras áreas do conhecimento são importantes nos processos formativos. Mas, é no campo artístico, com a poesia, a música, as pinturas e as cenas de um filme, que se oportuniza o despertar da sensibilidade para os fenômenos humanos, seja bela ou trágica, tranquilizadoras ou inquietantes, pois revelam facetas e características próprias de cada ser humano.
A formação ampla, sensível, rigorosa, crítica e principalmente inconclusa deve ser a meta dos espaços próprios de formação. Contudo, as políticas públicas voltadas à área educacional refletem dimensões da superestrutura que projetam, decidem e interferem diretamente nas licenciaturas em Pedagogia, nas políticas de formação docente e no ensino da Arte: “É muito raro que o reformador educacional não queira sempre fazer de sua proposição de reforma uma correção geral de toda sociedade” (Figueira, 1995, p. 11).
O Conselho Nacional de Educação (CNE), em sua Resolução nº 1, de 15 de maio de 2006, instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia - Licenciatura, o que fez com que ocorresse a intensificação da interferência do Estado no ensino e no que concerne à organização curricular dos cursos e, dentre outras inserções, à obrigatoriedade das disciplinas de Arte. Tal Resolução tratou da necessidade de a formação docente estar relacionada às questões estéticas e da formação humana que é fruto das articulações políticas dos arte-educadores. A Arte passou a ser considerado componente curricular obrigatório na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) nº 9.394/96.
As diferentes tendências pedagógicas que caracterizam o ensino nas escolas brasileiras perpassam o ensino da Arte nos séculos XIX e XX. Houve um ensino essencialmente técnico, no qual a Arte do desenho era vista como forma de aprimoramento de técnicas, visando a incipiente industrialização do século XIX. Na terceira década do século seguinte, com características da Escola Nova, a preocupação com a livre expressão e com a criação individual, somadas à ênfase no desenvolvimento e no ‘aprender a aprender’, eram mais importantes do que aprender conteúdo (Iavelberg, 2008).
Atualmente, por meio das reformas educacionais, o ensino prioriza a prática em detrimento da teoria, com ênfase no aprender para instrumentalizar o docente, orientado para um ‘saber fazer’ e ‘um saber ensinar’, vinculado ao mundo produtivo. Os documentos oficiais, como a atual LDB, os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Curso de Pedagogia (PCNs), o Projeto Pedagógico dos Cursos de Pedagogia (PPCs) e as políticas de formação docente indicam quais são os espaços de atuação do pedagogo, traçam as orientações sobre o seu perfil e a organização curricular apresenta os princípios que norteiam as atividades pedagógicas da instituição e revelam as características do pedagogo que a instituição visa formar.
A Arte se constitui em uma área do conhecimento por apresentar conteúdos específicos (História da Arte, Estética, Arte e Política e Produções Artísticas) e a necessidade do seu ensino. Portanto, a Arte está ligada à História da Arte, da Educação e da criança, de acordo com as propostas curriculares contemporâneas.
Assim, tratamos da Arte como conhecimento na formação do pedagogo, por entender que, tanto em termos de preparação na formação do professor-pedagogo que atuará na Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, quanto, na qualidade do conteúdo formativo, a Arte é fundamental posto que intenta contribuir com a construção do conhecimento teórico dada à sua importância para a formação humana e à obrigatoriedade da Arte como área do conhecimento que compõe o currículo dos Cursos de Pedagogia.
Acadêmicos e a percepção artística
Nas instituições selecionadas, para a pesquisa, interessou-se desvelar o ensino da Arte na formação do professor-pedagogo nos Cursos de Licenciatura em Pedagogia. Na pesquisa empírica, com o propósito de coletar dados, foi aplicado um questionário semiestruturado4 acerca do Ensino da Arte no Curso de Pedagogia aos acadêmicos dos cursos em questão5. A escolha por esse instrumento justifica-se por entender que ele possibilita aos participantes manifestarem-se de forma livre e espontânea. A aplicação dos questionários se deve em função de se trazer à tona a compreensão dos participantes a respeito da Arte, com o objetivo de desvelar a concepção teórico-prática do ensino da Arte na formação do professor-pedagogo.
A turma do ITOP contava com 16 (dezesseis) acadêmicos matriculados e, do total, 11 (onze) concordaram em participar da pesquisa. Em Miracema, dos 25 (vinte e cinco) acadêmicos matriculados, 18 (dezoito) participaram da pesquisa, perfazendo um total de 29 acadêmicos. Para não revelar a identidade e não expor os participantes da pesquisa, os acadêmicos foram identificados pelas letras AC, seguidos de um numeral, atribuído após dispô-los em ordem alfabética, durante a sistematização dos dados.
No desenvolvimento e análise dos dados, a partir da dimensão histórica, levou-se em consideração o movimento e as contradições sociais e políticas, as limitações e as possibilidades acerca da complexidade que envolve o processo de formação docente, em especial na área de Arte no Curso de Pedagogia. Com o intento de identificar o grau de interesse pela disciplina de Arte, os dados revelam que é possível considerar que 91% do total de participantes demonstram interesse ou muito interesse pela disciplina de Arte. Nesse sentido, não houve manifestação de total desinteresse, mas de reconhecimento. É importante pontuar que o conhecimento necessário para ser professor é uma dimensão fundamental no processo de formação, em especial na apropriação da cultura produzida historicamente.
Verificou-se que a escola se revela como importante lócus de formação no campo da Arte, uma vez que a maioria dos participantes teve contato e aproximação com a área durante seu processo de escolarização. Nesse sentido, perguntou-se qual compreensão de Arte possuíam, considerando a possibilidade de serem assinaladas até três alternativas. As alternativas foram propositalmente indicadas com o intuito de verificar se as concepções hegemônicas de Arte estão presentes na formação escolar e, portanto, na compreensão dos acadêmicos (Tabela 1).
Tabela 1 Compreensão de Arte.
ALTERNATIVAS | INSTITUIÇÃO | ||
ITOP | UFT | TOTAL | |
% | % | % | |
Forma de impulsionar a imaginação e a criatividade | 73 | 78 | 76 |
Expressão da cultura dos povos nos mais diversos tempos e espaços | 9 | 78 | 52 |
Instrumento de relaxamento e de desinibição | 27 | 11 | 17 |
Manifestação humana sobre a percepção da vida, compreensão de si mesmo e da realidade | 36 | 50 | 45 |
Desenvolvimento de habilidades: desenho, pintura e coordenação motora | 55 | 39 | 45 |
Forma de disciplinamento do corpo e do espírito em busca de harmonia social | 27 | 28 | 28 |
Fonte: Autora.
É importante indicar que o termo ‘criatividade’, presente no questionário, diz respeito a um dos termos utilizados nos documentos institucionais e no cotidiano dos processos formativos e que estão imersos na proposta do ideário neoliberal, que emprega a criatividade na perspectiva da flexibilidade. Cabe indicar que a concepção epistemológica e pedagógica que este estudo adota é a concepção de outra perspectiva: a da Arte como criação e de sua possibilidade de formação e humanização dos sujeitos.
Nesse sentido, Kosik (2002) ressalta que é inerente ao ser humano a capacidade de criação, logo, dentre as diferentes capacidades humanas desenvolvidas historicamente, tal aptidão se constitui fundamental no processo da formação humana. Por meio da Arte é possível desenvolver a imaginação e a capacidade criadora (Barbosa, 2008).
Essa ideia mostrou-se diferente da compreensão que os discentes tiveram acesso durante sua escolarização, isto é, do papel da Arte ser o de impulsionar a imaginação e a criatividade, conforme indica, tanto para os acadêmicos do ITOP, no total de 73%, quanto de Miracema, que somam 78%. Isso atesta a compreensão hegemônica liberal postulada e reproduzida nos processos educativos no país.
Em virtude da possibilidade de indicar até três alternativas, 9% dos alunos do ITOP e 78% dos de Miracema indicam a compreensão da Arte como expressão da cultura dos povos nos mais diversos tempos e espaços. É importante observar que, segundo Maciel, Ramon, e Faustino (2017), não podem ser excluídas as condições materiais de existência dos mais diferentes povos, especialmente os da cultura dos povos originários. Essa percepção dos alunos não difere de mais uma perspectiva hegemônica liberal postulada por meio do discurso do multiculturalismo. Conforme ressalta Malanchen (2014, p. 18)
O discurso da multiculturalidade situa-se, portanto, nesse processo de disseminação de uma visão de mundo que, aparentemente, defende a inclusão social, a democratização, o respeito à diversidade cultural etc., mas que, na realidade, tem como função principal a legitimação ideológica do capitalismo contemporâneo.
Vinte e sete por cento dos alunos do ITOP indicou a concepção de Arte como instrumento de relaxamento e de desinibição, contra apenas 11% de Miracema. Como forma de disciplinamento do corpo e do espírito em busca de harmonia social, 27% dos alunos do ITOP e 28% de Miracema a indicaram. O índice maior, isto é, 55% dos discentes do ITOP e 39% de Miracema a compreendem como desenvolvimento de habilidades: desenho, pintura e coordenação motora. Esses dados revelam que o conhecimento prévio em Arte, especialmente na escola, os levou a compreender que:
[...] as artes têm um caráter utilitário, meramente instrumental. O desenho, por exemplo, serviria para ‘ilustrar os trabalhos de português, ciências e geografia’ e para ‘formar hábitos de limpeza, ordem e atenção’; desenho, música e dança podem desenvolver ‘a coordenação motora’ e ‘a percepção auditiva [...]; a música também é lembrada por seu caráter disciplinador - ‘serve para as crianças ficarem quietas’ - ou para distrair e acalmar os alunos [...] (Almeida, 2010, p. 11-12).
A compreensão de Arte como técnica ainda permanece fortemente arraigada no imaginário escolar e remonta a perspectiva pedagógica tradicional, que a concebe como um conjunto de atividades desenvolvidas para “[...] serem fixadas pela repetição, buscando o aprimoramento e a destreza motora” (Ferraz & Fusari, 2010, p. 27).
Em contrapartida, há um percentual significativo de acadêmicos que compreende a Arte como manifestação humana que propicia a percepção da vida, compreensão de si mesmo e da realidade. Conforme aponta os dados, 36% dos discentes do ITOP e 50% de Miracema coadunam com essa concepção. Esse percentual demonstra que, durante o processo de formação do professor pedagogo, é fundamental que, por meio das disciplinas de Arte, o futuro professor compreenda os sentidos da Arte no processo de formação humana.
Para Luckás (1978), com as obras de arte, os sujeitos rememoram o passado, revivem o presente e o fazem não como fatos exteriores, mas como a essência da própria vida. Se “A arte é um modo particular de totalização dos conhecimentos obtidos na vida [...]” (Konder, 2013, p. 137), os dados explicitados demonstram que, ao menos, metade de um grupo do alunado tem essa percepção. Isso é valioso, se considerarmos que há um percentual que adere à perspectiva pragmática fortemente arraigada nos espaços de formação em que há o ensino da Arte.
Outra questão versou sobre qual a importância da Arte para a formação do sujeito na sociedade brasileira e no processo de escolarização. Ao permitir a indicação de uma alternativa, conforme a Tabela 2, 5% dos discentes de Miracema atribuiu importância da Arte somente à classe artística e outro percentual indicou ser importante, porém com pouca influência na vida dos sujeitos no âmbito social: 18% dos acadêmicos do ITOP e 5% de Miracema.
Tabela 2 Importância da Arte na formação do sujeito para a sociedade e no processo de escolarização.
ALTERNATIVAS | INSTITUIÇÃO | ||
ITOP | UFT | TOTAL | |
% | % | % | |
A Arte é importante, em especial, para a classe artística | 0 | 5 | 3 |
Tem importância, mas pouco influencia na vida dos indivíduos no âmbito social | 18 | 5 | 10 |
É importante, pois contribui para o processo educativo e transformador do indivíduo | 46 | 68 | 59 |
É importante à medida que contribui para o desenvolvimento de habilidades: pintura, desenho, coordenação motora e a socialização | 18 | 17 | 18 |
É fundamental visto ter um caráter disciplinador e de relaxamento | 18 | 5 | 10 |
Fonte: Autora.
Apesar do percentual acima não ser tão expressivo, na medida em que as IESs estiverem atendendo aos anseios sociais emergentes, a partir do quadro teórico que adotam e considerando a finalidade tradicional educacional da universidade, sua função social na produção do saber, pela liberdade de pesquisar, de aprender e de ensinar e pela formação humana, está desalojada e, por isso, precisa ser repensada.
Apesar do desmonte da universidade enquanto espaço de produção do saber e de humanização, no processo de formação do professor nos Cursos de Pedagogia, especialmente nas disciplinas de Arte, é necessária a compreensão dessa área de conhecimento e de seu papel fundamental na vida de todos, na medida em que esse saber interfere em suas vidas. Logo, aos acadêmicos cabe ensinar que a Arte se constitui “[...] como uma dimensão da vida humana, presente em todos os sujeitos na sua capacidade criadora, possibilitando o pensar crítico, uma vez que tem o potencial de iluminar os sonhos dos sujeitos e ajudar a concretizar tais sonhos” (Scherer, 2016, p. 57-58).
Assim, a Arte, na perspectiva da formação do sujeito, deve ser estendida a todos e a cada um. Além disso, ao compreender a Arte como um elemento que opera diretamente sobre o sujeito, é também “[...] o reflexo dos homens sociais em suas relações recíprocas, no seu intercâmbio social com a natureza” (Lukács, 1978, p. 296) e, que age em um movimento de mediação entre o sujeito e a vida social.
Em relação à contribuição da Arte no processo educativo e transformador, observamos que houve um crescimento importante no percentual de acadêmicos que indicam essa alternativa: 46% dos acadêmicos do ITOP e 68% de Miracema. As contribuições da Arte na formação do sujeito, desde a Grécia Antiga, geraram reflexões sobre seu papel social, educativo e de humanização. A Arte como conhecimento precisa ser socializado durante a escolarização e intensificado no processo de formação do professor.
A concepção pedagógica que caminha no sentido da humanização e que melhor responde aos anseios e necessidades de uma formação que contemple a apropriação do conhecimento historicamente produzido está contida na proposta da pedagogia histórico-crítica, elaborada por Saviani (2011). Essa concepção deve nortear o trabalho pedagógico do processo de formação do pedagogo, na atualidade, na medida em que ainda não se cumpriu o papel de formação e humanização das instituições de ensino, da escola básica à universidade.
Essa proposta pedagógica está contida na compreensão do trabalho educativo como “[...] o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (Saviani, 2011, p. 13). Portanto, cabe à escola promover a humanização dos sujeitos, gerando em cada um a humanização historicamente construída, e cabe ao professor fazê-lo “[...] por meio do seu ensino sistemático dos conhecimentos acumulados, como é o caso dos conteúdos e formas necessários para a fruição e produção de obras artísticas” (Assumpção, 2018, p. 25).
No processo de catarse, o momento da efetiva incorporação dos instrumentos culturais e, por consequência, da transformação da consciência dos sujeitos, a instituição escolar, a partir dos conteúdos curriculares do ensino da Arte, com o propósito de contribuir com o desenvolvimento dos sujeitos e da sociedade que se defende, “[...] devem se diferenciar daquilo que já está posto no cotidiano de cada aluno” (Assumpção, 2018, p. 136).
Duarte (2016, p. 27) ressalta que “[...] quanto mais as ações realizadas no interior das escolas se assemelham ao cotidiano da sociedade capitalista, mais alienante se torna a educação escolar”. O ensino deve ser centrado nos clássicos, na teoria que dialoga com a prática e não ser reduzido a uma concepção pragmática acerca dos processos formativos que confere ao cotidiano status de diretriz a ser seguida nos processos de formação dos professores, mesmo porque tal concepção hegemônica não contribui para o repensar e o fazer pedagógico, assim como, para a reflexão que gera mudanças, na forma de pensar as condições reais de existência e do modo de produção vigente.
Por fim, objetivou-se verificar quais as expectativas que os acadêmicos possuem em relação à contribuição da(s) disciplina(s) de Arte para a formação acadêmica, visto que ainda não haviam cursado essas disciplinas. Diante da possibilidade de indicar todas as alternativas, as respostas foram dispostas conforme a Tabela 3.
Tabela 3 Expectativa sobre a contribuição da(s) disciplina(s) de Artes para a formação acadêmica.
ALTERNATIVAS | INSTITUIÇÃO | |
ITOP | UFT | |
% | % | |
Intensificar a criatividade e a imaginação | 73 | 76 |
Contribuir para distrair, acalmar e relaxar | 27 | 47 |
Despertar e intensificar a sensibilidade estética e sensorial | 27 | 47 |
Proporcionar uma formação técnica específica em uma das linguagens: música, teatro, dança e artes visuais | 37 | 71 |
Ampliar a compreensão de mundo, a formação política-cultural e modificar a forma de agir na família, escola e comunidade local | 91 | 65 |
Fonte: Autora.
Os dados mostram que 73% dos acadêmicos do ITOP e 76% de Miracema esperam que as disciplinas de Arte contribuam na formação para impulsionar a imaginação e a criatividade.
Cabe observar que o currículo é o resultado de um processo que reflete os interesses da classe dominante e, portanto, não interessa qual conteúdo é verdadeiro, mas quem o considera verdadeiro (Apple, 2008). Logo, se na perspectiva ideal dos acadêmicos, a Arte, enquanto saber que desperta e intensifica a sensibilidade e a percepção sensorial, é contemplada por menos da metade dos alunos (47%) dos discentes de Pedagogia de Miracema. No caso do ITOP, o índice é ainda menor, com 27% dos alunos.
Esse é um indicativo de que a concepção de Arte tem o caráter de formação mais instrumental do que de formação humana, e essa perspectiva foi identificada na medida em que 37% dos acadêmicos do ITOP e 71% de Miracema concebem que seu ensino pode proporcionar uma formação técnica específica em uma das linguagens a seguir: artes visuais, dança, música e teatro. Porém, postula-se que o ensino deve contemplar a compreensão da Arte enquanto conhecimento e não como técnica, uma vez que se constitui em um componente curricular que tem conteúdo próprio, tem história e é político.
São muitas vozes ressoando no sentido do resgate necessário de ressignificação das práticas curriculares, o que Saviani (2011) denomina de ‘fazer escolar’, a forma clássica de transmissão-assimilação do conhecimento visando à produção da humanidade. A formação dos sujeitos e a práxis humana se direcionaram para a perspectiva de adaptação da formação técnica e comportamental para o modo de produção (Shiroma, Moraes, & Evangelista, 2000).
Para além, acirrou-se um processo de esvaziamento do pensar com a pedagogia do ‘aprender a aprender’ (Duarte, 2004, 2016), se constituindo em um modelo prescritivo (Rossler, 2005). A Arte, sem conteúdo político, deixa de ser o motor que provoca a reflexão crítica acerca dos sujeitos e da sociedade.
A respeito da expectativa acerca da contribuição das disciplinas de Arte na formação acadêmica, 91% dos acadêmicos do ITOP e 65% de Miracema apontaram para a alternativa de ampliar a compreensão de mundo, a formação política-cultural e modificar a forma de agir na família, escola e comunidade local. Esses dados revelam que os alunos desejavam também uma formação emancipatória. Observamos, portanto, uma ambiguidade no desejo dos estudantes.
Heller (2008) afirma que a Arte produz ‘objetivações duradouras’, e que o reflexo artístico rompe com a tendência espontânea do pensamento cotidiano, o que provoca diversas formas de elevação do pensar para além da vida cotidiana. Assim, pode-se assegurar que a Arte, por meio de suas inúmeras formas de expressão, oportuniza ao sujeito o exercício da reflexão e carrega em si a capacidade de pensar sobre a vida, interferindo no modo de agir no meio social.
O que espero que durante possa tirar as dúvidas sobre a arte, que por falta de conhecimento não participa dos eventos culturais que está presente na sociedade (AC3, UFT);
Espero que com a disciplina de Artes conseguir aumentar meus conhecimentos em todos os itens que marquei, por isso marquei o ‘5’ (AC8, UFT);
Para compreensão de vários aspectos que envolvem a área da arte e distinguir algo que pode existir de cada pessoa. (AC4, UFT);
Na construção de conhecimento de caráter emancipatório formando sujeito crítico reflexivo e o estudo arte é importante neste processo de aprendizagem que é para vida (AC10, UFT);
A arte possui um elemento transformador, que faz com que o indivíduo tenha uma evolução através da arte na área educativa (AC12, UFT);
O estudo de artes vai poder me ajudar a ler os meus alunos, entender o mundo dele naquele momento e ou as ‘emoções’. Claro que artes também ajuda na ‘motricidade’ dos alunos (AC10, ITOP - grifo nosso);
Sempre é bom aprender cada vez mais, e as novas matérias sempre são bem-vindas para nosso conhecimento e aprendizado. (AC9, ITOP).
Portanto, a expectativa está em compreender melhor o que seja a Arte; sua contribuição para a formação crítica; na perspectiva da psicologia, ‘ler as emoções dos alunos’; e sua contribuição utilitária no sentido de desenvolver a motricidade. Nesse sentido, cabe enfatizar a análise de Iavelberg (2014) acerca da formação e do papel do pedagogo que ministrará Arte na Educação Infantil e no Ensino Fundamental:
A formação inicial nos cursos de pedagogia, bacharelado e licenciatura em arte deveria preparar os professores nos campos teórico e prático para saber dar aulas, entretanto, depara-se com o fato de que a oportunidade para os estágios é menor do que é necessário [...]. Além disso, hoje é exigido mais da formação do professor de arte porque ele precisa conhecer a história da arte em um recorte não hegemônico, ter experiências de criação nas linguagens com as quais vai trabalhar e conhecer a gênese da arte da criança e do jovem para observar a aprendizagem, foco das orientações contemporâneas, interligando esses conhecimentos ao PPP da escola (Iavelberg, 2014, p. 53).
De acordo com Iavelberg (2014), a preocupação com a qualidade da formação deve estar presente em todos os níveis e esferas das instituições escolares. É vital registrar que a qualidade deve centrar no ensino da Arte, mas também na postura diante das realizações artísticas. A importância da Arte e do seu ensino é defendida por Smith (2005), que postula a necessidade de seu ensino, quando afirma que:
[...] a arte merece estudo como um assunto particular, como um assunto que tem finalidades, conceitos e habilidades específicas. A arte, como uma das realizações humanas, cujo poder tem sido salientado desde a Antiguidade e cuja força é particularmente atestada por sociedades totalitárias em sua determinação de controlá-la, exige seu próprio tempo e espaço dentro do currículo (Smith, 2005, p. 98).
A Arte, como conhecimento, que trata de questões propriamente humanas, é uma disciplina que, nas suas finalidades, possibilita ao acadêmico perceber e compreender os aspectos, subjetivos e coletivos, da vida humana. Pela criação artística, a humanidade revela e registra o conhecimento que trata das impressões, sensações, percepções e sentimentos propriamente humanos. E é essa a principal justificativa do ensino da Arte na formação docente.
Considerações finais
A Arte como conhecimento e como criação se constitui em uma forma de expressão e manifesta a cultura produzida historicamente. Assim, possibilita, ao mesmo tempo, a expressão, a interpretação e recriação da realidade. Eis sua importância na medida em que viabiliza o questionamento de determinados contextos sociais. Consideramos a Arte como forma de mediação para manifestar o pensamento e as ações de um grupo. Se a Arte quer cumprir sua função, como há tempos Fischer (1977) escreveu, ela deve tratar dos problemas essencialmente humanos e indicar caminhos possíveis no aprimoramento da formação e da humanização.
Logo, a Arte, por constituir-se como uma dimensão da vida humana, o seu ensino na graduação deve propiciar o acesso aos bens culturais produzidos historicamente, provocando o pensar que leva à compreensão da realidade, dada a sua importância na formação e na humanização dos sujeitos e, por extensão, na sociedade. Não basta que a Arte seja componente obrigatório nos currículos escolares, deve haver preocupação com o seu ensino, que é “[...] o encontro de várias formas de atividade humana [...]” (Duarte, 2016, p. 59) e, a partir do conhecimento produzido historicamente, o que o educador “[...] produz é o ensino desse conhecimento” (Duarte, 2009, p. 475).
Buscar a concepção de Arte e do ensino da Arte nos registros da história da educação, nas tendências pedagógicas, na Legislação, nos documentos institucionais e nos dados coletados com os participantes dessa pesquisa, revelou que a concepção de Arte e de ensino da Arte ainda pouco contribui para a formação humana. Isso pelo fato de se encontrar esvaziada da sua função, quando considerada como um substrato utilitário, instrumental ou como recurso disciplinador.
De acordo com os dados da pesquisa, a aproximação da Arte se deu principalmente, no ensino da Educação Básica. As instituições de ensino continuam sendo os principais lócus de formação dessa área, uma vez que a maioria dos participantes continua a ter contado e aproximação com a Arte, principalmente, nos processos de escolarização e durante os cursos de graduação.
Na pesquisa de campo, tanto ao questionar as mais diversas formas de acesso e nas vivências para a compreensão da Arte, quanto da sua importância para a formação dos sujeitos, os dados revelam que os acadêmicos compreendem a Arte e a consideram como importante na perspectiva prática e utilitária.
Esse é um indicativo de que a concepção de Arte para o alunado tem o caráter de formação mais instrumental do que de formação humana. Logo, o seu ensino no processo de formação do pedagogo deve contemplar a compreensão da Arte enquanto conhecimento e não como técnica. Visto que, a concepção epistemológica e pedagógica da qual esse estudo adota é a concepção de outra perspectiva: a da Arte como conhecimento e criação e de sua possibilidade de formação e humanização dos sujeitos.
É papel das IES, tanto privadas quanto públicas, oportunizar a construção de conhecimento cultural que leve a compreensão de um sujeito como um ser social e político. A universidade tem a função de promover a ampliação da visão de mundo dos acadêmicos, lançando mão de conteúdos que revelam os aspectos essenciais para uma formação humana integral. Na perspectiva da pedagogia histórico-crítica, os conteúdos que integram os currículos escolares devem ser selecionados de forma a possibilitar a emancipação humana.