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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.43  Maringá  2021  Epub 01-Set-2021

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v43i0.55177 

HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

O desafio de significar o passado: o ensino da história medieval no Brasil

El desafío de denotar el pasado: la enseñanza de la historia medieval en Brasil

Mário Jorge da Motta Bastos1  * 
http://orcid.org/0000-0002-6048-8824

1Universidade Federal Fluminense, Rua Miguel de Frias, 9, 24220-900, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.


RESUMO.

Os profissionais que lecionam História, em qualquer nível em que seu magistério se exerça, estão cada vez mais ameaçados em sua atividade e desafiados numa sua condição de exercício essencial - a mobilização do público - por um crescente sentimento de desprezo pelo passado, em especial os mais remotos, no quadro de sociedades capitalistas que só se reconhecem em projeções para o futuro. A esse dedicamos, cada vez mais, o nosso maior sentimento de empatia! O ‘desmanche cotidiano no ar de toda e qualquer expressão de solidez histórica’ nos livra da sensação do peso do tempo sobre nossas costas, acelerando a história num presente que é vivido como mudança constante que só nos vincula ao futuro, só nos projeta à frente, ao vir a ser. A historicidade parece cada vez mais residir na ficção científica, e o tempo pretérito nos romances que celebram um mundo perdido ou que talvez nem tenha existido! Tendo em vista este cenário, impõe-se aos historiadores em geral, e aos medievalistas (e antiquistas!) em particular, refletir sobre as condições, perspectivas, práticas e sentidos do estudo e da docência de nossas ‘fatias de duração do tempo’ em todos os níveis do ensino no Brasil. Como é o presente e qual será o futuro deste passado na formação intelectual dos brasileiros?

Palavras-chave: história medieval; medievalística brasileira; consciência histórica; apropriações do passado; ensino

RESUMEN.

Los profesionales que enseñan Historia, en cualquier nivel en el que se ejerza su docencia, se ven cada vez más amenazados en su actividad y desafiados en su condición esencial de ejercicio - la movilización del público - por un creciente sentimiento de desprecio por el pasado, especialmente el más remoto, en el marco de sociedades capitalistas que solo se reconocen en proyecciones hacia el futuro. ¡A eso dedicamos, cada vez más, nuestro mayor sentimiento de empatía! El ‘desmantelamiento cotidiano en el aire de todas y cada una de las expresiones de solidez histórica’ nos libera de la sensación del peso del tiempo sobre nuestras espaldas, acelerando la historia en un presente que se vive como un cambio constante que solo nos vincula al futuro, solo nos proyecta hacia adelante. La historicidad parece residir cada vez más en la ficción científica, y el tiempo pasado en las novelas que celebran un mundo perdido o que puede que ni siquiera haya existido. Ante este escenario, los historiadores en general, y los medievalistas (¡y los anticuarios!) en particular, necesitan reflexionar sobre las condiciones, perspectivas, prácticas y significados del estudio y la enseñanza de nuestras ‘franjas de duración del tiempo’ en todos los niveles de educación en Brasil. ¿Cómo es el presente y cuál será el futuro de este pasado en la formación intelectual de los brasileños?

Palabras-clave: historia medieval; medievalística brasileña; conciencia histórica; apropiaciones del pasado; enseñanza

ABSTRACT.

The professionals who teachs History, at any level in which their teaching is exercised, are increasingly threatened in their activity and challenged in their essential condition of exercise - the mobilization of the public - by a growing sense of contempt for the past, especially the more remote, within the framework of capitalist societies that are only recognized in projections for the future. To this we dedicate, more and more, our greatest feeling of empathy! The ‘daily dismantling in the air of any and all expressions of historical solidity’ frees us from the f

eeling of the weight of time on our backs, accelerating history in a present that is experienced as a constant change that only links us to the future, only projects us ahead. Historicity increasingly seems to reside in science fiction, and past tense in novels that celebrate a lost world or that may not have even existed! In view of this scenario, historians in general, and medievalists (and antiquists!) in particular, need to reflect on the conditions, perspectives, practices and meanings of the study and teaching of our ‘time slices’ in all levels of education in Brazil. How is the present and what will be the future of this past in the intellectual formation of Brazilians?

Keywords: medieval history; brazilian medievalistic; historical consciousness; appropriations of the past; education

Introdução

Parecem hoje muito evidentes as exigências diversas e seguidas que são impostas aos profissionais das Ciências Humanas de se manifestaram em prol da afirmação da legitimidade e da necessidade de preservação dos campos de conhecimento que alimentam com suas pesquisas. Se o conhecimento sistemático e acadêmico em geral está sob ataque, as Ciências Humanas, e no seu âmbito a História, e ao nível dessa a história das ‘sociedades remotas’ têm merecido condenação particular redobrada. Reuni em artigo publicado recentemente (Bastos, 2017) algumas das notícias dessas investidas, que nos vêm da América Latina, da Ásia e da Grã-Bretanha, onde, por exemplo, o equivalente local de nosso ministro da Educação pronunciou-se contrariamente à aplicação de recursos públicos no pagamento dos salários dos professores universitários dedicados à História Medieval (que no caso deles é aterradoramente concebida como História-Pátria, a do passado medieval da Grã-Bretanha).

Se há algo de positivo em todo este movimento - num esforço extremo de otimismo - ele reside na demanda que nos cria por refletir acerca da nossa prática, da composição e atuação do nosso campo, dos argumentos de sua legitimação e valorização, enfim. No caso do estudo das ‘sociedades remotas’ como as que nos compete, impõe-se, ademais, o esforço ainda maior de promoção de sua atualização, de sua significação no presente em curso. Creio que os profissionais que lecionam História, em qualquer nível em que seu magistério se exerça, estão cada vez mais ameaçados em sua atividade e desafiados numa sua condição de exercício essencial - a mobilização do público - por um crescente sentimento de desprezo histórico pelo passado, em especial os mais remotos, no quadro de sociedades capitalistas que, cada vez com maior intensidade, só se reconhecem em projeções para o futuro.

Ao futuro dedicamos, cada vez mais, o nosso maior sentimento de empatia! O ‘desmanche cotidiano no ar de toda e qualquer expressão de solidez histórica’ parece nos livrar da sensação do peso do tempo sobre nossas costas, acelerando a história num presente que é vivido como mudança constante que só nos vincula ao futuro, só nos projeta à frente, ao vir a ser. A historicidade parece cada vez mais residir na ficção científica, e o tempo pretérito nos romances e nas mídias que celebram um mundo perdido ou que talvez nem tenha existido, vivido por seres ‘meio-humanos-meio-bestiais’ talvez mais estranhos que os extraterrestres! Nossa sensação de ruptura com o passado é quase cotidiana! Tendo em vista este cenário, impõe-se aos historiadores em geral, e aos medievalistas (e antiquistas!) em particular, refletir sobre as condições, perspectivas, práticas e sentidos do estudo e da docência de nossas ‘fatias de duração do tempo’ em todos os níveis do ensino no Brasil.

Para a promoção deste esforço de manter viva e pulsante no presente a História importa, em primeiro lugar, reafirmar o caráter estritamente social do exercício da função do historiador. Todo historiador, por mais recluso e autônomo que pretenda permanecer em seu gabinete de trabalho, é uma caixa de ressonância das demandas e anseios que lhe são impostos pela sociedade em que se situa. A ‘questão ambiental’ nos aflige em face do receio da destruição do planeta? O historiador lhe dá dimensão temporal, considerando as possibilidades, os níveis e os limites historicamente inerentes à condição básica da existência de nossa espécie, a relação transformadora com a natureza desenvolvida por todas as sociedades humanas inscritas na História. Constitui-se a História Ambiental, e esta linha de raciocínio poderia ser aplicada a muitas outras frentes.

Dispor, situar no tempo, esta é a nossa ‘habilidade’ fundamental. Todo historiador é, fundamentalmente, um ‘perspectivador’ do presente, que só assume especificidade histórica e só é compreensível pela sua retroprojeção temporal. O conhecimento histórico é sempre o desvelamento de um contexto, o que só atingimos plenamente pelo contraste (com outros contextos). Toda História é sempre, ainda que quase nunca se assuma como tal, comparativa, e é realizada em benefício do presente, visando a um futuro.

A nossa disciplina constitui - o que é testemunhado inclusive pela diversidade de perspectivas que a caracteriza hoje - uma arena de conflitos entre projetos opostos de síntese de passado e presente, e de desejo de futuro. Afirmo que nossa mais essencial responsabilidade reside em denunciar com veemência qualquer suposta ‘inevitabilidade do presente’, de que esse se tornou tal como é dada à falta absoluta de alternativas e da unilateralidade que caracterizariam o processo histórico. Mas, como promover a denúncia? Desvelando em cada passado as suas diversas alternativas de futuro, as possibilidades de devir que continham e que foram vencidas e superadas pela corrente dominante que se impôs à História. Todo e qualquer ‘ponto fixo’ que se considere no fluxo temporal embute em si futuros diversos possíveis - no plural e em aberto -, em disputa, e, portanto, nenhum devir é inevitável. O conhecimento histórico não é apenas o resultado ‘técnico’ e ‘frio’ da síntese entre um corpus documental e o instrumental teórico-metodológico que o historiador mobiliza para abordá-lo, mas de uma política aberta em direção ao futuro, um terreno de luta pela objetividade no qual também o passado é objeto de disputas e de apropriações (Frosini, 2013).

Recentemente, uma certa história da Idade Média vem servindo de base de apoio por excelência a grupos de extrema direita no mundo e no Brasil, como suposto e decantado período de formação dos valores judaico-cristãos ocidentais e de predomínio do white-power na luta contra os infiéis e hereges. O lema cruzadístico ‘Deus vult - Deus assim o quer’, foi emitido diversas vezes nos últimos anos, inclusive por autoridades do governo brasileiro (Pachá, 2019). Tendo que enfrentar, desde os primórdios da constituição do campo, as muitas ‘lendas’ deformadoras elaboradas acerca da Idade Média - tanto a obscurantista quanto a romantizada -, permito-me supor que os medievalistas estejam, por (de)formação, especialmente capacitados à frequentação cotidiana da verdadeira liça onde se travam os torneios de apropriações do passado, prontos para o confronto com os extemporâneos ‘cruzados’ de hoje.

Assim, aquilo a que de maneira muito genérica nos permitimos referir como ‘passado’ é objeto de uma intensa disputa em cada ‘presente’, que dele pretende se apropriar em prol da afirmação do seu próprio sentido. E essa disputa não se dá num vácuo qualquer, mas no próprio campo da historiografia, fomentando revisionismos diversos e sistemáticos de diferentes matizes. Tendo em vista esse cenário, se nos impõe refletir sobre as condições, perspectivas, práticas e sentidos do estudo e da docência de nossas ‘fatias de duração do tempo’ em todos os níveis do ensino no Brasil. Como estará apetrechada a medievalística nacional para as disputas que somos, talvez como nunca dantes, chamados a travar?

O que vou lhes propor, na sequência, configuram proposições iniciais muito gerais em busca de interlocutores que me favoreçam o seu aperfeiçoamento, ou até mesmo, é claro, o seu abandono por insustentáveis. Antes do mais, o que aqui se objetiva é o diálogo, que se faz profundo com a polêmica. Começo por considerar as bases potenciais do vigor de certas perspectivas ainda predominantes na (nossa) medievalística, e que me parecem demandar revisão. Acima de tudo, considero aí manifesto o peso das autoridades que se impuseram em nossa constituição, cujas referências parecemos querer perpetuar a todo custo mesmo quando vários dos seus parâmetros foram submetidos a críticas, a revisões e mesmo ao abandono nos seus centros de origem e difusão.

Tendências dominantes

Do nosso contexto de ‘fundação institucional’ - que, sem negar o trabalho dos pioneiros, situo na segunda metade da década de 1980 - decorrem certas perspectivas de abordagem dominantes que foram decisivas para despertar a ‘paixão pela Idade Média’ que nos mobilizou e pôs em marcha um verdadeiro ‘exército de Brancaleones’. Suspeito, ademais, que o enorme poder de sedução da medievalidade àquela altura - o que nos mobilizou ao seu estudo - tenha decorrido menos da ‘Idade Média em si’, como contexto específico, e mais das fulgurantes inovações historiográficas que tiveram lugar em especial na França com a chamada terceira geração dos Annales, capitaneada, por ‘sorte do medievo’, por medievalistas como Jacques Le Goff e Georges Duby, entre outros (Bastos, 2016).

As sementes plenas de fertilidade anteriormente cultivadas por gigantes como Marc Bloch vivificaram e os frutos de sua colheita, tornados abundantes, atravessariam oceanos para aportar, inclusive, no Brasil. Foi a renovação historiográfica então promovida que, tendo em grau elevado a fatia de duração que se convencionou chamar por Idade Média como seu laboratório preferencial, reconfigurou o campo, redirecionou o interesse dos historiadores, levou-os a valorizar dimensões do real até então pouco consideradas, desvelando expressões daquelas sociedades que revolucionaram o conhecimento do período. A medievalística jamais seria a mesma, mas...

O tempo passou e, segundo parecem reconhecer os próprios franceses, a História Medieval que promoveram deixou de ser, há muito, o ‘carro-chefe da disciplina’ (Franco Júnior, 1986), tanto da História, em geral, como da Medieval, em particular. E não sou eu, um medievalista da periferia do mundo acadêmico quem o afirma. Já o reconhecia Alain Guerreau (2001) no início deste milênio, e desde então foram várias as manifestações no mesmo sentido, algumas explicitamente nostálgicas do fim de uma época em que um livro como Montaillou, Village Occitan de 1294 a 1324, de Emmanuel Le Roy Ladurie (1975), alcançava a condição de best-seller vendido na França em bancas de jornais. Ainda nas últimas décadas do século passado, as críticas a certas perspectivas da Nouvelle Histoire se avolumaram, com algumas das fragilidades teóricas de que padecia assinaladas (Dosse, 1992), assim como certos desvirtuamentos e opções preferenciais de abordagem que teriam capturado a Idade Média por certos ângulos específicos, superestimados em detrimento de muitos outros...

De todo esse potencial debate o que aqui me importa, em essencial, é a hipótese de que muitas das perspectivas dominantes então seguem, pelo peso e função original que tiveram em nossa constituição, determinando nossas vias prioritárias de promoção das medievalidades. Talvez derive da autoridade reconhecida aos ‘pais fundadores’ boa parte de sua resiliência, o que demanda reflexão se almejamos uma tomada de posição crítica em relação à promoção da História Medieval em nosso país. Preciso destacar, desde já, dois aspectos: não se trata de apontar erros e circunscrever suas razões, mas de prospectar tendências e tentar considerar o que elas representam e ao que induzem; ademais, ao tratar de ensino de História, suponho a produção de conhecimento histórico em todos os níveis em que tal ensino seja promovido, guardadas obviamente as devidas especificidades. Vou me concentrar em três propensões básicas, e lamento fazê-lo de forma mais esquemática do que gostaria e deveria, para considerar seus desdobramentos.

Em primeiro lugar, a do predomínio, nas abordagens do medievo, de uma perspectiva êmica (Kottak, 2006; Xia, 2011) que, insistindo na radical alteridade constitutiva das sociedades medievais em relação às de seus estudiosos (as nossas, no caso), investe no seu escrutínio ‘a partir de dentro’. Assume-se ou privilegia-se, assim, o(s) ponto(s) de vista dos ‘nativos’, operando-se com esquemas de compreensão intrínsecos à própria sociedade estudada pela mobilização das categorias da sua própria cultura e visão de mundo. Essa posição é assumida em detrimento de uma perspectiva identificada como ‘ética’, isto é, em que as abordagens são orientadas pela promoção de uma espécie de ‘tradução’ dos elementos da ‘cultura’ analisada às categorias e conceitos que informam o contexto do pesquisador. Esse abordaria o objeto sobre o qual se debruça a partir de seus próprios esquemas de análise e interpretação, ou seja, ‘de fora’ (como outsider que é) da sociedade em questão.

É francês o medievalista a quem cabe a defesa mais enfática da orientação predominante que acabo de assinalar. Refiro-me a Alain Guerreau e à sua tese, apresentada em obras diversas (Guerreau, 1980; 2001), da ‘dupla fratura conceitual’ que, ao operar-se no século XVIII, teria posto em xeque a nossa capacidade de percepção do passado medieval. O advento da sociedade burguesa, com as transformações que desde então tiveram lugar, teria rompido os nexos com aquele passado, privando-nos das suas categorias de apreensão do mundo e da capacidade de dialogar com ele: as realidades foram cindidas, suas instituições desfiguradas, promovendo-se ruptura tão brutal e extrema que a interlocução teria passado a promover, no máximo, diálogos de surdos. Nós e os medievais não partilharíamos sistemas de pensamento e nem sequer falamos línguas mutuamente compreensíveis!

Assim, a imposição à Idade Média de categorias e esquemas de interpretação estranhos ao próprio contexto configuraria um erro primário que levaria à deformação incontornável das representações que fazemos daquelas sociedades. Em um texto célebre (Guerreau, 2001), o autor chega a insinuar que a tradução das expressões latinas de época às nossas línguas correntes promoveria uma completa perda de significado e, com ela, a incompreensão da potência das palavras. Lamentando ser breve na minha crítica, digo-lhes que a postura em questão constitui, a meu juízo, um equívoco enorme, promotor de vários contrassensos e limitações.

Antes de mais, deriva dela, em grande parte, uma mística ou fetiche da documentação manifesto em muitas das proposições correntes de retorno às fontes, à sua exegese hermenêutica que reina em nossa medievalística. Ora, as fontes não são fragmentos de verdade, registros fiéis e efetivos de um passado pleno em relação ao qual devemos nos vergar maravilhados, boquiabertos e emudecidos. São enunciações parciais, tanto reveladoras quanto sublimadoras das porções do real a que se referem, tanto promotoras quanto limitadoras do conhecimento da sociedade de que emanam. Seus discursos divulgam a aparência superficial das relações sociais tal como se apresentavam para os indivíduos que nelas estavam imersos, e confundem tal aparência com a essência que estruturava aquela mesma sociedade em suas relações sociais estruturantes.

Se admito, com Guerreau, as profundas transformações que marcaram o advento da sociedade burguesa industrial, não creio que dele resulte um ‘prejuízo epistemológico’ que teria deprimido a nossa capacidade de apreensão da sociedade medieval. Ao contrário, a possibilidade da História profissional decorre justamente desse processo! Foi tal ‘fratura’ que nos inscreveu numa ‘economia política’ (Fontana, 1998) 1 estranha às mistificações da ordem feudal e nos possibilitou abordá-la com condições de percepção e instrumentais verdadeiramente críticos. Nosso ‘ponto de disposição’ no devir do tempo e nossas potencialidades de ‘projeção temporal’ são uma condição da História que fazemos, e são uma vantagem. Nossa função é traduzir o passado em bases compreensíveis para a assimilação do próprio presente, o que decorre dos contrastes e das assimilações entre ambos, assim como a tarefa da antropologia clássica não é explicar as sociedades primitivas para os primitivos, mas para as sociedades nas quais atuam os antropólogos. Trata-se sempre de um conhecimento produzido em prol do outro que somos nós, e do presente em curso visando elucidá-lo.

Ademais, a radicalização da perspectiva da ‘fratura conceitual e epistemológica’ pode nos levar a um prejuízo maior - aqui reside, em meu juízo, o ponto essencial -, o de suprimir o sentido da articulação temporal na longa duração histórica. Quando insistimos na ‘fraturada’ alteridade do medievo abdicamos da percepção do trânsito temporal, e o pior resultado dessa perspectiva não é tanto a deformação do passado, mas a impossibilidade de apreensão da constituição do presente como resultado do processo histórico, reduzindo-o a mera contingência! As sociedades medievais são uma radical especificidade que se constituem, no entanto, como realização histórica específica de elementos estruturantes fundamentais da sociabilidade humana em todos os quadrantes espaço-temporais de nossa existência.

Ali, homens e mulheres reproduziram sociedades, se organizaram para produzir, foram submetidos à exploração, desenvolveram formas de luta e resistência, enfim amaram, sofreram, viveram, morreram, dando ensejo a manifestações específicas de experiências constitutivas de nossa humanidade. A abordagem de qualquer fatia de duração temporal deve superar as perspectivas êmica e ética em prol da dialética (Rosa & Orey, 2012), que retenha à partida as representações produzidas no âmbito daquela sociedade - afinal, é o que as fontes primárias nos revelam, sua(s) ‘autoimagem(ns)’ - submetendo-as a uma rigorosa crítica interpretativa que mobilize os referenciais teóricos e os instrumentos de análise que seguimos aperfeiçoando na prática da nossa disciplina. Alheios a tal perspectiva, seremos incapazes de disputar a consciência histórica no presente, incapazes de falar de História com aqueles cuja audição é factível por serem capazes de nos ouvir. Do contrário, seguiremos tentando dialogar com os mortos.

Em segundo lugar, ‘denuncio’ o predomínio de análises preferencialmente devotadas ao campo das ‘mentalidades’, ou às manifestações sobretudo ideais que constituem o real social. Essa é uma tendência em que talvez mais se faça sentir o vigor das perspectivas dominantes no contexto de nossa fundação. Assim, ainda que um dos expoentes da terceira geração dos Annales, Georges Duby (1971), propusesse explicitamente a construção de uma História Social que operasse pela promoção da articulação entre os fenômenos de ordem material e aqueles inscritos no nível das mentalidades, a geração em questão se notabilizou muito mais pela promoção dessa última. E, ao fazê-lo, se não a tratou como uma estrutura autônoma ou até ‘desencarnada’ da materialidade da existência, dedicou-se muito pouco à tarefa de estabelecer os links, as relações e as determinações operativas entre aquelas dimensões do real. Seria essa ainda uma perspectiva corrente entre nós? A Idade Média onírica que nos apaixonou à partida era um mundo sobretudo manifesto nos sonhos, nos imaginários, nas crenças e expressões das religiosidades, um universo aparentemente alheio aos e desinteressado pelos processos mais materiais e fundantes da reprodução humana.

O teor preponderante dos registros medievais alimenta, não resta dúvida, a perspectiva. Ou seja, a documentação medieval é comparativamente mais pobre em referências que nos remetam mais diretamente às suas expressões materiais - em especial, ao mundo da produção - em comparação com os vestígios em que se expressam fenômenos da ordem genérica dos ‘imaginários’. Decorrerá daí um reforço suplementar determinante do foco principal das nossas abordagens? Da nossa distância dos principais acervos documentais derivará também o manuseio tendencialmente predominante entre nós de fontes impressas e, em sentido lato, literárias, mais uma vez particularmente afeitas àquelas expressões? É inegável o seu poder de atração. Não é essa a face que segue empolgando o público e promovendo a riqueza de autores, editoras, criadores de jogos eletrônicos e produtores de cinema, que divulgam uma Idade Média plena de dragões e guerreiros e alheias à presença - no máximo apresentada como parte da paisagem - das suas massas servis?

Mobilizam-me, sinceramente, todas as imagens que me chegam de professores e entusiastas diversos que dedicam seus esforços à construção de réplicas custosas dos armamentos medievais, por exemplo. Porém, com a incidência preponderante dessas vias de ressignificação do medievo não estaremos, essencialmente, reforçando sobretudo estereótipos? Ou sobrará tempo, em celebrações como essas, em especial quando regadas a hidromel, para discutirmos a fundo as razões fundamentais da violência estrutural característica da sociedade medieval? Faremos sempre a sua crítica, ou sobretudo reproduziremos imagens apaziguadoras de luzidios cavaleiros que lutariam por sua honra e em prol dos desprotegidos que eles mesmos, contudo, se encarregavam sistematicamente de depauperar e destroçar? Por essa via talvez possamos, nós medievalistas, partilhar migalhas do sucesso experimentado pelas celebridades do medievo virtual, mas, a que custo? Será esse o caminho da medievalística, disputar a consciência histórica de um público ávido por distração? A sobrevivência da disciplina dependerá de sua transformação em instrumento de evasão?

Em terceiro e último lugar, abordo o que talvez seja tomado como uma verdadeira heresia. Com todos os equívocos, problemas e deformações que caracterizaram as propostas da Base Nacional Comum Curricular [BNCC] (Associação Nacional de História [ANPUH], 2020). que confrontamos nos últimos anos, elas fazem uma denúncia precisa que, como tal, nos faz empalidecer. A nossa História Medieval é decididamente eurocêntrica! Antecipo-me em afirmar que ela não precisa e não deve ser, mas reconheçamos que o é. Talvez até mesmo francófila, mas essa é uma suposição cuja validade depende ainda de verificação. A se confirmar, suspeito que nossa origem cumpra, mais uma vez aqui, um papel essencial, afinal o ‘ocidente medieval’ dos franceses de então englobava essencialmente as regiões francas do mundo carolíngio, isto é, a própria Gália, o ocidente da Germânia e o norte da Itália. No curso de graduação em História da Universidade Federal Fluminense, por exemplo, onde leciono há 28 anos, a ementa da disciplina básica de História Medieval segue referenciado por aquele ‘conceito’ e tendo o mundo franco por referência, cabendo atualmente a algumas disciplinas optativas o deslocamento do foco, por exemplo, para a Península Ibérica.

A questão é: que medievo, enfim, nos diz respeito? Em países como o Brasil e tantos outros que experimentaram o sistema colonial moderno na condição de colônias, os respectivos medievos europeus costumam ser requisitados como parte de uma história projetada sobre a colonização (Bastos, 2017). Aqueles dentre nós que são ‘jovens há mais tempo’ hão de se lembrar dos debates acerca do caráter feudal de nossa colonização, perspectiva que foi ademais há poucos anos retomada em novas bases - com pouquíssimo debate entre nós, diga-se de passagem - pelo francês Jérôme Baschet (2006). Se estiver predominantemente dedicada à História Medieval francesa, como suponho, a nossa medievalística brasileira, inclusive nas salas de aula, tal predomínio será natural e legítimo? Mas, em que bases se fundamenta? Na atribuição ao ‘mundo franco’ de uma condição de centralidade na história daquele período? A concepção é inadequada em meu juízo. Deveríamos, por outro lado, requisitar como ‘herança nossa’ o medievo ibérico, especialmente o português? Registro, de início, que, para a medievalista portuguesa Maria de Lurdes Rosa e André Bertoli (2010), o medievo português não é e nem deveria ser a nossa referência, afinal os autores, em artigo relativamente recente, celebram o fato de que não tenhamos tomado a Idade Média portuguesa como ‘passado mais remoto’ do Brasil!

Mas, no caso de, contrariando as expectativas de nossa colega, requisitarmos o medievo português como parte de nossa trajetória histórica de constituição, seria essencial considerarmos que suas ‘tradições’ aportam em nossas costas no contexto da montagem de um sistema colonial violento e rapineiro, ele próprio inscrito num mais amplo processo de formação do capitalismo que virá a nos inscrever numa posição subalterna e dependente na ordem global então em formação. Não haveria, pois, o que romantizar nesse processo e na assunção dessa herança potencial.

Superação do eurocentrismo

De minha parte presumo, contudo, que por qualquer dessas vias a História Medieval manterá uma orientação incontornavelmente eurocêntrica que precisa ser superada. De fato, a Idade Média é concebida, por tradições historiográficas diversas, seja como um período histórico, seja como uma etapa civilizacional, e até mesmo como um conceito sociológico-histórico fundamentalmente europeu-ocidental. Isso porque o mito da Idade Média serviu antes de mais como parâmetro negativo para a construção da Modernidade. E o mito precisa ser, creio, definitivamente superado, denunciado o seu marcado eurocentrismo. Por que vias?

Inspirados, por exemplo, por nossos colegas antiquistas, seria possível assumir uma perspectiva mais crítica e consciente acerca do papel integrador do Mediterrâneo na Idade Média, eixo de articulação entre as cristandades ocidental, oriental e o mundo islâmico. Não se trata de retomar a ‘velha e forçada’ perspectiva da ‘Idade Média Oriental’, decompondo às civilizações em questão no seu estudo, mas de trabalhar essencialmente nas suas interseções. Seria mesmo possível apoiar-se numa notação explicitamente interna a nosso próprio contexto, manifesta nas famosas versões medievais dos mapas-mundi ou ‘mapas T e O’ que, inspirados nas Etimologias de Isidoro de Sevilha (Reta & Casquero, 1982), de princípios do século VII, representaram por toda a Idade Média a articulação dos três continentes, perspectiva predominante até fins do século XV.

Essa via já nos remeteria à História Global, que ademais promoveria um efeito colateral positivo, ajudando a reverter o predomínio em nossa disciplina da configuração em escala ‘micro’ dos seus objetos de estudo. Se, para alguns ela constitui mais um campo recente de estudos, parece-me que a História Global (Conrad, 2019) se configura muito mais como uma perspectiva de escala, abordando fenômenos, eventos e processos históricos sob o prisma de sua inserção em contextos macros ou globais. Ela se volta, pois, para os processos de conexão e interação entre as comunidades humanas, investindo na perspectiva de que as histórias locais, regionais e ‘nacionais’ se conectam em muitos níveis. A perspectiva vem se dinamizando especialmente desde fins do século XX, em meio aos debates sobre a globalização e as críticas acadêmicas ao caráter predominantemente fechado das histórias nacionais - se não nacionalistas - e ao eurocentrismo muitas vezes preponderante na historiografia. O estabelecimento do campo se deu com primazia da Inglaterra, Estados Unidos da América e da própria França, guardando íntima relação com os chamados estudos subalternos e pós-coloniais.

E talvez seja possível até projetar uma perspectiva ainda mais ampla e radical, a de uma História Medieval Global (Frankopan, 2019) - ou, neste caso, mundial, como propõem alguns - promovida sob escala que superaria as interações civilizacionais diretas efetivas correntes no período para abordar, em escala ainda mais ampla, a simultaneidade da vigência histórica de civilizações distintas que partilham entre si uma ‘cronologia bruta’ que permitiria identificar-lhes em suas similitudes e especificidades. Por tal via, o historiador assumiria como sua matriz e matéria-prima essencial de referência o tempo, a temporalidade simultânea das existências das civilizações, abrindo ao máximo o seu foco para, definidos seus parâmetros de análise, considerar, numa fatia de duração genérica estabelecida nos parâmetros da Arqueologia - anos antes do presente -, as linhas de força constitutivas dessas mesmas civilizações dispostas nas durações de suas vigências. Uma equipe de historiadores articulada pela Grã-Bretanha vem trabalhando sob tal orientação desde 2013, reunindo estudiosos das sociedades europeias, africanas, asiáticas e americanas no recorte cronológico do Medievo para a realização de estudos comparados de largo espectro (Holmes & Standen, 2018).

As possibilidades são, pois, várias. E se as incertezas acerca do passado medieval devem continuar a nos mobilizar em nossos estudos, acima delas se nos impõem as incertezas relativas às potencialidades do nosso próprio futuro como espécie. Mas, o futuro está em aberto, e se pavimenta nas disputas travadas no presente em curso, demandando nossa mobilização e ação política organizada visando construí-lo contra o capital e em prol da plena e livre realização de nossa humanidade.

As disputas sistemáticas travadas - e recentemente radicalizadas em nosso país em torno do conteúdo e da forma do ensino, em todos os seus níveis, especialmente na área de Ciências Humanas, com acusações sobre a sua ideologização esquerdista e a mobilização do infame Escola Sem Partido, bem como as reações ao mesmo -, são indícios efetivos da enorme relevância de disciplinas formais do conhecimento que se pretende negar, desautorizar e desabilitar. E não poderia ser de outra forma, tendo em vista a demanda ontológica, essencial e orgânica da espécie humana, por exemplo, pela História. Uma citação recorrente de Karl Marx nos ajuda a endereçar a questão:

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestados os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar a nova cena da história do mundo nesse disfarce tradicional e nessa linguagem emprestada (Marx, 1961, p. 58).

Conto com a permissão do meu leitor para proferir mais uma longa citação, ao menos plena de poesia.

O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? [...] Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. [...] Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. [...] Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (Benjamin, 1987, p. 222-223).

As passagens citadas se abrem a considerações diversas, mas nesta altura gostaria de lhes destacar um aspecto em especial: a realização de nossa espécie suscita a nossa ação cotidiana sobre o mundo, o que nos caracteriza como sujeitos da História, fazendo com que as nossas experiências acumuladas - o ‘passado’ e suas projeções de futuro -, sirvam de referência e parâmetro a toda e qualquer ato humano de criação. “A criação, e mesmo a reprodução, só são possíveis como recriação do que já existiu, e o totalmente novo, o que se livra de todas as amarras do tempo, permanece como um sonho inatingível” (Cerri, 2001, p. 94).

Será a História, pois, uma necessidade essencial, uma exigência intrínseca à nossa condição de ser social? Na articulação temporal em que se realiza a nossa existência, quanto haverá de passado em nosso presente e em nosso futuro? Em que medida o futuro já estará comprometido pelas condições dadas no passado e pelas ações realizadas no presente? Não será o presente a dimensão temporal mais vazia de conteúdo específico para as coletividades, em termos históricos, tendo em vista que é constituído por ‘porções sempre desigualmente combinadas’ de elementos carreados do passado que sobre ele se projetam, e por elementos em formação que apontam para o futuro em processo de constituição? Nas últimas décadas vem sendo realizado um efetivo esforço - ainda que assistemático, descontínuo e geograficamente desigual -, de enfrentamento dessas questões por meio do instrumental conceitual intitulado por ‘consciência histórica’.

Acerca da consciência histórica

Comecemos por destacar que são diversas as perspectivas em relação ao tema, que referirei com a brevidade com que é possível fazê-lo aqui. Esquematicamente, talvez devamos começar pela polêmica em torno ao caráter ‘inato’ ou ‘adquirido’ da consciência histórica. Trata-se de um fenômeno inerente à existência humana, um componente da espécie ou, ao contrário, uma dotação específica adquirida por certos indivíduos ou grupos sociais, uma meta ou estado que pode e deve vir a ser alcançado, generalizado? Trata-se de um elemento constitutivo da própria consciência geral, da autoconsciência intrínseca ao existir humano? Ou de um nível específico de saber não imediatamente acessível a todos os indivíduos e, portanto, uma capacidade adquirida como tomada de consciência? Nesse último caso, pode se supor a ocorrência de uma inconsciência ou alienação que se contrapõe à consciência histórica?

Essa última perspectiva parece ser a adotada por Hans-Georg Gadamer (1998) e partilhada, ainda que por vias distintas, por Phillipe Ariès (1989), para os quais a consciência histórica é um saber qualitativamente superior que flui das instituições socialmente destinadas à produção do conhecimento histórico àquelas dedicadas ao ensino e à divulgação. Alcança, então, um certo número de indivíduos ‘leigos’ ou ‘não-especialistas’, permitindo-lhes galgar - em dimensões variáveis - níveis de percepção ou apreensão do real superiores em termos de complexidade. A consciência histórica é concebida assim como um estágio que pode ser atingido graças, principalmente, a um processo de modernização dos mais variados âmbitos da vida humana.

Uma outra vertente se expressa nos trabalhos de dois teóricos razoavelmente distantes entre si em termos de formação e de atividade intelectual: Agnes Heller (1993) e Jörn Rüsen (2001). Para ambos, contudo, a consciência histórica não é uma meta a ser atingida, mas uma das condições da existência do pensamento: não se limita, em sua manifestação, a um qualquer período específico da História, a regiões determinadas do planeta, a classes sociais ou a indivíduos mais ou menos preparados para a reflexão histórica ou social. Para Heller (1993), a consciência histórica é inerente ao ser social - tendo por base a percepção da historicidade de si mesmo - e se manifesta em diferentes estágios da sua estruturação social. Quanto a esses, cobrem desde o momento em que um dado grupo cria normas de convivência, substituindo com elas os instintos, passando pela fase em que um dado grupo toma consciência de que faz parte da humanidade e de que essa é histórica, isto é, uma construção humana, podendo relativizar assim a sua própria cultura a partir de outras, até a tomada de consciência de que a história não marcha indelevelmente para o progresso e de que o futuro é missão de cada um e de todos.

Mobilizar a própria consciência histórica não constituiria, então, uma alternativa ou possibilidade, mas uma necessidade inexorável de atribuir sentido a todo fluxo de tempo sobre o qual não se tem controle: a vida é transformação. Ainda que se possa imaginar a possibilidade de ‘apenas testemunhar a passagem do tempo sem lhe atribuir qualquer sentido’, parece ser impossível agir no mundo sem essa atribuição. Para Rüsen (2001), a ação humana no mundo é fundamentalmente intencional, e só é possível se baseada na interpretação humana do próprio mundo e de si mesmo de acordo com as intenções da ação; só se consegue agir (incluindo a possibilidade passiva de ser objeto da ação de outrem) sob a orientação de intenções que dependem da interpretação de mundo que as embasa. György Lukács (2003) estabelece, na sua mais célebre obra, o caráter teleológico essencial da categoria fundante do ser social, o trabalho, um conjunto de ações que se realizam no presente, mobilizando o passado e visando a resultados que se materializam no futuro. Toda ação decorre, enfim, de uma síntese pluridimensional que articula irremediavelmente o passado, o presente e o futuro. Não é difícil dimensionar o que representa, para a existência individual, o apagamento da memória. Mas, seremos plenamente capazes de cogitar o que significaria, para a existência de uma comunidade humana, o apagamento da história?

Heller (1993) e Rüsen (2001) concordam em que seja inerente à condição humana a mobilização da história no pensamento e na vida cotidiana. Se isso for verdade, é possível inferir que a reflexão histórica que se realiza profissionalmente como prática acadêmica, como conhecimento científico sistemático, não é uma forma distinta em termos qualitativos e em sua natureza daquela realizada pelo conjunto dos membros da espécie. Trata-se, a historiografia, portanto, de um procedimento comparativamente mais especializado e complexo de uma atitude que, na origem, é cotidiana e que está inseparavelmente ligada ao fato humano de ‘estar no mundo’. A base do pensamento histórico, assim, é menos cultural e opcional do que natural e social, além de intrínseca à condição humana: nascimento, vida, morte, juventude, velhice são os balizamentos básicos que informam os seres humanos da ação do tempo e de sua passagem. Segundo Rüsen:

A consciência histórica não é algo que os homens podem ter ou não - ela é algo universalmente humano, dada necessariamente junto com a intencionalidade da vida prática dos homens. A consciência histórica enraiza-se, pois, na historicidade intrínseca à própria vida humana prática. Essa historicidade consiste no fato de que os homens, no diálogo com a natureza, com os demais homens e consigo mesmos, acerca do que sejam eles próprios e seu mundo, têm metas que vão além [de sua existência imediata] (Rüsen, 2001, p. 78).

Variam, contudo, obviamente, as formas de apreensão desta historicidade, ou, nos termos do autor, as perspectivas de atribuição de sentido à experiência temporal. Assim, a consciência história é um fenômeno do mundo vital, imediatamente ligada à prática, podendo ser entendida como “[...] a suma das operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo” (Rüsen, 2001, p. 57).

Se é própria à condição humana a consciência histórica, a sua produção e reprodução mobiliza meios e mecanismos diversos. Dentre esses, o saber formal produzido pelos historiadores e veiculados em ambientes de formação escolar constitui apenas um dos seus expedientes, e talvez o de menor potência relativa. Aliás, um grau considerável da distopia atualmente vivida em escala extrema no Brasil, sem dúvida, mas fenômeno geral verificado um pouco por todo o mundo - em países centrais e periféricos - consiste justamente em alavancar o senso comum à forma superior de apreensão e representação da realidade, em aberto conflito com o conhecimento científico, tendência manifesta de forma desesperadora, por exemplo, no sucesso que atinge o movimento global dos ‘terraplanistas’. É claro que os cientistas em geral têm - e começam a assumi-la - a sua cota de responsabilidade na tendência que se verifica, mas o meu objeto aqui por excelência somos nós historiadores, sistematicamente fustigados e desacreditados em tudo o que se refere à nossa suposta autoridade de guardiões das chaves de interpretação do curso da História.

Considerações finais

O fato é que a História que fazem os historiadores passou décadas, séculos, milênios negando a homens e mulheres cotidianos o seu caráter de sujeitos da História, fazendo-nos descrer da potência de nossas vidas e ações não só como sujeitos, mas, o que também não deixa de ser grave, como objetos da História. O que os ecos quase inaudíveis, perdidos na noite dos tempos, dos sujeitos históricos referidos por Benjamin nos revelam não é o tom prosaico de estranhos eventos vividos por um ‘outro’ no qual, por tão longínquo, não conseguimos nos reconhecer. O seu grito abafado releva a amplitude temporal e a riqueza da experiência humana vivenciada em condições de opressão e da luta contra ela, além dos efeitos de movimento e transformação que essa luta produz. É em prol desta perspectiva que se nos impõe realçar a historicidade do presente fustigando desrespeitosamente o passado para subverter o devir que carreia as possibilidades de futuro, e vice-versa. Toda História precisa ser, em última análise, contemporânea, porque ela pode e deve ser um dos elementos das lutas do presente, travadas por minorias diversas e, em especial, pelas maiorias oprimidas. Mas ela só o poderá ser, e o será de forma mais eficiente, quando sua militância em tal sentido não se dê ao custo e em detrimento da seriedade e da qualidade do trabalho profissional do historiador.

Partilho com colegas vários, próximos e distantes, as perspectivas gerais acerca das funções sociais da nossa disciplina e me oponho radicalmente àqueles e àquelas que julgam possível negá-la em qualquer nível de manifestação. Como negar à História a sua condição, por excelência, de promotora da cidadania? Como negar à História das sociedades remotas a sua importância no desvelamento da alteridade radical que caracteriza as sociedades humanas em sua diversidade espaço-temporal? Não é pequena a lista corrente dos aprendizados enriquecedores do ser e da existência derivados do conhecimento da História. Porém, há mais, e em muitos níveis. A começar pelo fato de que à alteridade radical das sociedades de hoje e de ontem conjuga-se uma vigorosa identidade de fundo que articula a globalidade da história humana no planeta em muitos e variadíssimos elementos estruturantes seus. Mas isso, lamentavelmente, a História feita pelos historiadores recusa-se sistematicamente a considerar, dada a miopia e estreiteza de visão dominantes e decorrentes da escala reduzida em que a disciplina insiste em operar. Oxalá a História Global, que vem conquistando terreno, chegue a pôr termo a tal tibieza travestida de rigorismo.

Ademais, se a consciência histórica intrínseca ao nosso processo cotidiano de humanização como seres sociais é instrumento essencial à nossa ação no mundo, é imperioso radicalizá-la e orientá-la no sentido da promoção das transformações necessárias a uma existência superior para todos nós. Receio que já não haja muito tempo para indolência e constrangimentos neste sentido. Alguém duvida de que seja a barbárie o que já se vislumbra no horizonte? Que o que está em jogo não é a discussão sobre sistemas político-econômicos mais ou menos adequados ou desenvolvidos, mas a imperiosa supressão do processo voraz de destruição do planeta e da vida humana que são impossíveis de reverter no quadro do sistema vigente e sob as demandas da reprodução ampliada do capital? Compreendo que seja mais fácil acreditar na colonização de novos mundos do que na superação deste sistema, mas em toda a ficção científica imaginada e projetada é o próprio sistema a promover a colonização para seguir se reproduzindo. Sob o mesmo, já praticamente não há presente e de certo não haverá futuro para a humanidade.

Assim, a disputa pela promoção da consciência histórica requer um conhecimento histórico sistemático e sistematizado que, como propôs o nosso já citado Walter Benjamim, seja elaborado a contrapelo, não só no contrafluxo do sentido tradicionalmente dominante do tempo para que possamos fazer da História, enfim, não o estudo do passado, mas o da historicidade do presente, ademais fazendo aflorar de suas entranhas as lutas, conflitos e contradições que sempre pautaram o curso e a direção da História. E todo o esforço precisa, além disso, transcender as suas vias tradicionais para ampliar o escopo da promoção da consciência histórica em muitíssimos outros espaços em que, além da escola, ela é necessária e desejada.

No Brasil, ademais, é o próprio futuro da universidade, como a conhecemos hoje, que depende do fortalecimento de suas bases sociais, dentre elas aquela derivada dos setores organizados da sociedade civil e dos movimentos sociais. Em face de todos os ataques, sem o apoio dos movimentos sociais antissistêmicos a defesa de um lugar estratégico para a universidade pública, crítica e autônoma no projeto de nação permanecerá débil e, possivelmente, inviável. A articulação dos setores críticos da universidade com as lutas dos movimentos sociais contribui para que esses adquiram conhecimentos mais sistemáticos e fundamentados para muitos problemas, fortalecendo as lutas sociais; ao mesmo tempo, a interação dos movimentos com a universidade, exigindo maior atenção aos problemas sociais, fortalece os setores críticos no espaço acadêmico, favorecendo a luta pela autonomia universitária em face dos dispositivos de poder (Leher, 2015). O estreitamento das relações entre a História acadêmica e os movimentos sociais é fundamental.

Mas a tribo dos historiadores (a dos medievalistas, em especial?) parece estar orientada por um tom cerimonial outro que a faz, muito mais frequentemente, vergar-se respeitosamente diante dos mitos e visões de mundo hegemônicas das elites de ontem e de hoje, fazendo da História, estranhamente, muito mais um manifesto de alheamento em face dos horrores cotidianos - e, assim, um ingrediente de preservação do status quo - do que de sua superação. Quanto a mim, historiador de uma sociedade remota num país periférico, afirmo-lhes ser, muito mais do que tributário de uma visão do passado, o portador de um desejo do futuro (Bernardo, 2006). O que está em disputa, leitores, tendo em vista a escalada de misérias cotidianas e globais promovidas por um sistema que potencializa, em velocidade ímpar e historicamente incomparável, a degradação humana e a do meio ambiente, não é nada mais nada menos do que a própria sobrevivência da nossa espécie!

Referências

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1“Uma explicação do sistema de relações que existem entre os homens, que serve para justificá-las e racionalizá-las - e, com elas, os elementos de desigualdade e exploração que incluem -, apresentando-as como uma forma de divisão social de trabalhos e funções, que não só aparece agora como resultado do progresso histórico, senão como a forma de organização que maximiza o bem comum” (Fontana, 1998, p. 7)

2“An explanation of the system of relationships that exist between men, which serves to justify and rationalize them — and, with them, the elements of inequality and exploitation that they include —, presenting them as a form of social division of labor and functions, which not only appears now as a result of historical progress but as the form of organization that maximizes the common good” (Fontana, 1998, p. 7).

Recebido: 10 de Agosto de 2020; Aceito: 01 de Fevereiro de 2021

*E-mail: velhomario@gmail.com

Mário Jorge da Motta Bastos: Professor Associado do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense, onde atua, há muitos anos, nos cursos de graduação e de pós-graduação em História. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, é autor de vários artigos e livros. Integra o Translatio Studii e coordena o Centro Ciro Cardoso de Pesquisa do Pré-Capitalismo (CCCP-Prék), grupos de pesquisa sediados na UFF. É bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6048-8824 E-mail: velhomario@gmail.com

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