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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.43  Maringá  2021  Epub 01-Nov-2020

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v43i1.48661 

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS

Recordações de maus-tratos escolares em alunos universitários

Recuerdos de maltrato escolar en alumnos universitarios

José Leon Crochick1  * 
http://orcid.org/0000-0002-2767-3091

Marian Ávila de Lima Dias1 
http://orcid.org/0000-0003-2343-842X

Horacio Martin Ferber2 
http://orcid.org/0000-0003-3382-2062

1Programa de Pós-graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência, Departamento de Educação, Universidade Federal de São Paulo, R. Sena Madureira, 1500, 04021-001, São Paulo, São Paulo, Brasil.

2Universidad Nacional de Avellaneda, Buenos Aires, Argentina.


RESUMO.

Se um dos objetivos da educação é o de desbarbarizar os indivíduos, este artigo relata pesquisa que investigou se houve: variação no tipo de maus tratos entre diversos níveis de ensino argentinos; manutenção dos papeis pelos alunos nesses maus-tratos, e relação entre esses tipos de papeis. Aplicou-se questionário a 70 universitários, que assinalaram recordações, no ensino primário e secundário, sobre se praticaram, apoiaram, observaram e/ou sofreram 10 tipos de agressão. Resultou que: não houve mudanças dos tipos de agressão do nível primário para o secundário; houve tendência a manter os papeis na agressão, e houve relação entre ser praticante e apoiador da violência, nos dois níveis verificados e entre ser alvo da agressão e observador no nível primário. Assim, dada a frequência de maus-tratos e a manutenção da violência nos dois tipos de nível de ensino examinados, o objetivo de desbarbarização dos indivíduos não está, em boa parte, sendo cumprido pela educação.

Palavras-chave: violência escolar; maus-tratos; cultura da escola; teoria crítica da sociedade

RESUMEN.

Si uno de los objetivos de la educación es el de des-barbarizar a los individuos, este artículo investiga si hubo: variación en el tipo de malos tratos entre diversos niveles de la enseñanza en Argentina; el mantenimiento de los roles de los alumnos en esos malos tratos, y la relación entre estos tipos de roles. Se aplicó un cuestionario a 70 universitarios, que señalaron sus recuerdos, en la enseñanza primaria y secundaria, sobre si practicaron, apoyaron, observaron y / o sufrieron 10 tipos de agresión. No hubo cambios de los tipos de agresión del nivel primario al secundario; hubo una tendencia a mantener los roles en la agresión, y una relación entre ser practicante y apoyador de la violencia, en los dos niveles verificados y entre ser blanco de la agresión y observador en el nivel primario. Así, tiendo en consideración la frecuencia de maltrato y el mantenimiento de la violencia en los dos tipos de nivel de enseñanza examinados, concluimos que el objetivo de des-barbarización de los individuos no está, siendo cumplido por la educación.

Palabras-clave: violencia en la escuela; malos tratos; cultura escolar; teoría crítica de la sociedad

ABSTRACT.

Given that one of the objectives of education is to de-barbarize individuals, this article reports a research that investigated whether there was a variation in the type of maltreatment among different levels of education in Argentina, whether the roles of students in these maltreatments were maintained or not and the relationship between the roles performed. A questionnaire was applied to 70 university students, who marked memories of primary and secondary education of their practice, support, observation and/or undergoing of 10 types of aggression. There were no major changes in the types of aggression from the primary to the secondary level and a tendency to maintain the roles in the aggression. There was a relation between being a practitioner and/or supporter of violence in the two levels verified and between being the target of the aggression and observer at the primary school. Thus, given the frequency of maltreatment and the conservation of violence in both school levels examined, the objective of de-barbarization of individuals is not being entirely fulfilled by education.

Keywords: school violence; maltreatment; school culture; critical theory of society

Introdução

Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade (Freud, 2011, p. 60).

Nessa ação, estariam presentes tanto aspectos sádicos ligados a traços narcísicos (em que os impulsos agressivos se voltam ao exterior sem haver para isso uma discriminação ou delimitação do objeto sobre o qual se projeta a violência) como ao preconceito (em que tal agressividade pode encontrar, via de regra a partir de mecanismos psíquicos, tais como projeção e/ou formação reativa, um objeto definido e delimitado sobre o qual a violência recai) (Crochík et al., 2018).

O ‘narcisismo das pequenas diferenças’ (Freud, 2011) e a citada tendência à agressão podem ser compreendidos como elementos presentes nesse tipo de conduta, uma vez que a violência contra um colega pode significar tanto um aprofundamento do processo de identificação entre pares, a adesão cega (facilitando a coesão entre os membros de um grupo), como uma forma de satisfação da agressividade ao eleger um alvo apropriado para isso, pois nas antipatias com colegas também está presente uma afirmação de si, um amor próprio que pode ser estendido aos colegas que compactuam com a agressão contra um terceiro ao mesmo tempo em que identificam-se entre si.

Uma agressão verbal, ainda que violenta, não é o mesmo que uma agressão física. Contudo, cada situação de violência, seja ela verbal ou física, deixa marcas em todos os envolvidos - mesmo naqueles presentes como observadores - uma vez que pode mutilar tanto a consciência quanto o corpo, que passa a assumir uma forma igualmente propícia ao sadismo e à brutalidade (Adorno, 1995a).

Mas não se trata de buscar as raízes para tais eventos apenas na dinâmica intrapsíquica, como se esta fosse apartada do mundo externo. A violência contra o mais frágil também deve ser examinada à luz da própria escola, seus processos educativos de valorização da competição e da produtividade em relação com a sociedade que a sustenta (Crochík et al., 2018). Ressalta-se aqui o caráter situacional da violência escolar, o que requer a ampliação do olhar para os fatores que causam esta violência na sociedade, colocando em pauta as questões ligadas à economia libidinal e agressiva dos indivíduos com as repressões e permissões sociais para a descarga destes afetos em um ou outro alvo relacionadas às configurações que a vida em sociedade tem assumido em que ressalta-se a exclusão dos indivíduos, a tendência à formação para a adaptação e a naturalização das injustiças (Crochík et al., 2018).

Se a forma pela qual a sociedade contemporânea se organiza, enfatizando a técnica voltada à resolução de tarefas de forma imediata e fragmentada, também tem responsabilidade pela tensão e irracionalidade com que estabelece as regras para os indivíduos se inserirem socialmente (Marcuse, 1973), tal organização tem alguma relação com a violência que se apresenta nas relações entre eles. E, se as instituições sociais têm como uma de suas bases a divisão hierárquica dos indivíduos, classificando-os em posições melhores ou piores de acordo com sua posição social e as chamadas ‘competências’, tal hierarquização pode legitimar a sua submissão, permitindo a violência de uns sobre os outros.

Nesse cenário, é necessário lembrar que a vida escolar desempenha um importante papel na formação e pode contribuir com a reflexão e no combate a essas formas de violência e no estabelecimento de outros destinos para os impulsos agressivos que não o da dominação entre os seres humanos. Um dos objetivos da educação escolar seria aquele ligado ao cultivo do (auto)conhecimento sobre a violência trabalhando para uma sociedade justa e, assim, constituída por indivíduos capazes de refletir a respeito de si mesmos e do mundo (Adorno, 1995b).

Alguma adaptação é necessária para o convívio no mundo e a escola contribui com essa formação. Contudo, o que ocorre atualmente é que tal dimensão parece ter se tornado um fim em si mesma e não parte de um processo rumo à formação de indivíduos capazes de produzir uma consciência verdadeira. Adorno (1995b) considera que tal situação proporciona a identificação com o agressor, o que demandaria da escola um esforço ainda maior de resistência a tais expressões de violência entre pares. Poder expressar a violência é, de fato, uma medida importante e a escola pode se constituir em um espaço para tanto. A formação propiciada pela escola pode apontar outro caminho que não seja o da dominação de uns sobre os outros (Crochík et al., 2018).

Conforme mencionado antes, a sociedade contemporânea tem se organizado a partir de sua divisão hierárquica e tal organização revela-se também na escola. Ali ocorre tanto a valorização dos alunos que se adaptam às regras e respondem adequadamente àquilo que é esperado academicamente, uma hierarquia oficial, como também a admiração daqueles que possuem alta popularidade e força física, no que foi denominado de hierarquia não oficial por Adorno (1995a). Tais hierarquias têm importante papel no estabelecimento das relações grupais, quer nos traços de identificação e união entre os pares - como nos de exclusão e estigmatização presentes nas situações de maus-tratos. Os maus-tratos, retomando a afirmação de Freud que inicia este artigo, podem ser compreendidos como um tipo de conduta que expressa a ambivalência das relações grupais em que amor e ódio são mobilizados. E a escola, ao estabelecer um ranqueamento dos alunos com base em modelos idealizados, impõe uma espécie de modelamento ao aluno de forma heterônoma (Adorno 1995c), em que favorece a discriminação daqueles que não se encaixam ao modelo proposto e leva a um consentimento da violência entre pares por parte da instituição. Certamente, é importante reconhecer o que foi aprendido por alguns e não por outros, mas isso não justifica valorizar uns em detrimento de outros.

Deste modo, no campo da educação escolar, é importante considerar que a racionalidade ali promovida não é facilitadora dos processos psicodinâmicos simbólicos necessários ao estabelecimento de relações fraternas, ao contrário: a racionalidade proposta é a da lógica inclusão/exclusão. Em outras palavras, a linha de raciocínio é de inclusão ou de exclusão: somar cachorros com cachorros e gatos com gatos; todo cachorro é animal, mas nem todo animal é cachorro. O pensamento formal possui muito dessas características, próprias, segundo Horkheimer (2015), à razão subjetiva, que tem incidência em nossa percepção da realidade. Essas matrizes lógicas veem-se refletidas em nossas interpretações em maior ou menor medida. Os aspectos hierárquicos são parte de um esquema cognitivo que nos permite aceder a novas formas lógicas nos marcos educativos. Mas se são propícias ao conhecimento científico, sobretudo nas ciências exatas e biológicas, e à técnica, quando reduzem a realidade a elas, quando em vez de se considerarem produto do desenvolvimento humano, consideram-se como sua gênese, ocultam a própria compreensão do mundo.

Dentro do amplo espectro envolvendo os maus-tratos entre pares, teríamos desde o bullying - forma de violência (física ou não) sistemática em que um indivíduo ou grupo impõe-se pela força colocando o outro em um papel de submissão em que ele se vê impedido de reagir (Olweus, 1993) - até formas de violência assistemática em que estão presentes os revides e a alternância de alvos (Prieto Quezada, Carrillo Navarro, & Lucio López, 2015) passando também pelo racismo e pelo preconceito.

Neste artigo, definimos maus-tratos, como o fizeram o Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor [CEAT] e Fundação Instituto de Administração [FIA] (2010), para designar atos violentos entre os alunos, quer sejam físicos, verbais, psicológicos ou sexuais; diferem da definição de bullying, pois não se voltam a um mesmo alvo durante um tempo prolongado. É importante diferenciar os tipos de violência para melhor podermos descrevê-los, pesquisar suas origens e consequências, ainda que possam ser relacionados e possuir características em comum; no caso do bullying e dos maus-tratos, os papeis exercidos são os mesmos: há aqueles que os praticam e os que os sofrem, pode haver os que os apoiam e os que são observadores, podendo o mesmo indivíduo exercer esses diversos tipos de papeis.

Em estudo que buscou relacionar a posição hierárquica ocupada com os papeis desempenhados no bullying e na violência escolar em geral, Crochík (2015) identifica que os alunos que ocupam o topo da hierarquia não-oficial e a base da hierarquia oficial, tais como delimitadas por Adorno (1995a), tendem a ser agressores enquanto que aqueles que estão na base das duas hierarquias tendem a ser vítimas da violência escolar; já os que tiram boas notas não tendem a ser nem agressores, nem vítimas. A confirmação da existência destas hierarquias na escola e a sua relação com a violência escolar coloca a estrutura da escola no centro da questão, cabendo à instituição refletir e desenvolver medidas sobre o seu papel na reprodução e mesmo criação de determinantes sociais que favorecem a dominação entre os indivíduos.

A intensa presença da instituição escolar na vida de crianças e jovens; o estabelecimento de laços entre os indivíduos ali convivendo; a conformação de grupos entre pares e a transformação nas formas e papeis desempenhados nos grupos adquirem importância fundamental na formação do indivíduo, que deveria ser contrário à violência e voltado à sensibilidade; por isso, o que impede essa formação para a não violência - as expressões de maus-tratos - demandam constantes investigações sobre o tema. Deste modo, como sublinhado, no presente trabalho não nos limitaremos a examinar apenas a violência presente do bullying; partiremos de uma percepção mais ampla referente aos maus-tratos entre pares que podem ou não estar relacionados à intimidação sistemática decorrente de bullying.

Entre os pesquisadores encontramos diferentes designações e mesmo variação na quantidade na descrição dos papeis no bullying, que entendemos também estar presentes nos maus tratos. Em comum na grande parte dos estudos temos a descrição dos papeis de agressor e vítima - por vezes denominada de ‘alvo’; também é frequente a descrição da figura do agressor/vítima. (Fante, 2005; Lopes Neto, 2005; Olweus, 1993). Os papeis mistos, como ‘vítima provocadora’ (Fante, 2005), ‘apoiador aberto’ ou ‘apoiador encoberto’ (Olweus, 1993) são descritos de modo variado de acordo com os autores. É importante notar a diferenciação entre os tipos de observador, uma vez que dependendo da posição adotada, evidencia-se que esta figura pode ter também uma forma indireta de participação na violência.

O aprofundamento da investigação a respeito dos alunos que ocupam o papel do observador também é importante no sentido de ampliar a compreensão do fenômeno dos maus-tratos entre colegas para além da díade agressor/vítima. Afinal, trata-se de um fenômeno de grupo que ocorre a partir de papeis atribuídos na e pela instituição escolar (Melo & Pereira, 2017). Cabe ressaltar também que a categoria de observador/a constitui-se no maior grupo envolvido nas situações de bullying nos mais diversos países (Fante, 2005; Olweus, 1993; Santos & Kienen, 2014; Salmivalli, 2014; Mendoza-González & Maldonado Ramírez, 2017).

A figura do observador - também chamada de ‘espectador’ (Fante, 2005) ou ‘testemunha’ (Olweus, 1993) - apresenta diferentes denominações, o que denota variação quanto à compreensão quanto à sua participação na agressão. Vieira, Torales, Vargas, & Oliveira (2016), em investigação sobre as atitudes dos espectadores do bullying com alunos nos anos finais do ensino fundamental e alunos do ensino médio no Brasil, identificam tanto observadores que não tomam nenhuma atitude diante da agressão (na maior parte dos casos), como também observadores que interferem na agressão em defesa da vítima ou que recorrem a um adulto (em menos ocasiões). Dentre os motivos dos observadores para não tomar nenhuma atitude, identificaram a importância dada ao relacionamento social entre os observadores com o(s) agressor(es), já que esse silêncio denota um apoio velado àquele com quem o observador tem, ou deseja ter, algum tipo de proximidade: o agressor. Os autores também encontraram uma relação entre os motivos dos agressores e as atitudes dos observadores, que variou em função das razões para a agressão ocorrer. Vinganças e reações violentas decorrentes de gozações e provocações foram situações nas quais os observadores tenderam mais a se manter passivos e silenciosos por considerarem que tal agressão era justificada.

Pesquisa com alunos suecos (Thornberg, Pozzoli, Gini, & Hong, 2017) demonstrou que, apesar da maioria dos alunos considerar o bullying uma ação mais grave e errada do que outras formas de transgressão às regras escolares, aqueles que ocupam os papeis de agressor e mesmo de vítima (ainda que em uma frequência diferente da do agressor) têm menor tendência a entender o bullying como uma ação moralmente errada do que aqueles que ocupam o papel de observador. Os primeiros tendem a ter também menor empatia com os colegas e menor comprometimento com as regras de conduta escolar.

O estudo de Melo e Pereira (2017) parte da distinção de tipos de observador do bullying estabelecida por Salmivalli, Voeten, e Poskiparta (2011) que varia desde os assistentes dos agressores até os defensores das vítimas, passando pelos reforçadores da agressão e os observadores passivos. As pesquisadoras portuguesas buscaram compreender as motivações para que observadores ajudem ou não as vítimas de bullying por meio do desenvolvimento de uma escala de avaliação de sensibilidade moral. Os resultados confirmam pesquisas anteriores (Salmivalli et al., 2011) de que haveria ao menos cinco categorias a serem consideradas para a defesa ou não da vítima por parte do observador: o grau de percepção de que a agressão será prejudicial à vítima, as emoções frente à agressão (medo, empatia, excitação), as relações e posições sociais (se o agressor tem ou não prestígio/popularidade entre os pares ou é amigo do observador), a avaliação moral (se considera ou não o bullying como algo errado e se considera ou não que a vítima merece tal agressão) e a auto-eficácia (a crença de que sua ação será efetiva para cessar a agressão).

Já a pesquisa de Trindade e Menezes (2013) descreve diferentes dimensões das agressões entre pares na escola, dentre elas a denominada “no fio da navalha: brincadeiras e violências no grupo de amigos”. Aqui, o papel do observador está fortemente ligado às relações de amizade, formando um tipo de vínculo em que os papeis podem variar rapidamente dentro do grupo: ora vítima, ora observador e ora agressor. O que parece sustentar a ausência de censura frente a esse tipo de maus-tratos entre colegas é o medo da perda da amizade. Assim, os maus-tratos passam a ser encarados como ‘brincadeiras’ em que ninguém tem autorização para se queixar a fim de não perder a amizade com os membros desse grupo. Os pesquisadores também mencionam outras configurações nas quais o observador, embora não tenha vínculos de amizade com o agressor, se mantém em silêncio e tal silêncio é interpretado pelo agressor como um sinal de aprovação. Já o ‘observador não cúmplice’, se inicialmente não se cala diante da agressão, tende a deslocar-se também para o silêncio ao perceber que não tem apoio de mais colegas e que pode se tornar a próxima vítima. Os autores concluem que diante das situações de agressão, os envolvidos têm comprometido o seu senso crítico individual em prol da relação entre os pares e da coesão grupal, que tenta se sustentar naturalizando a ideia de que tais práticas são ‘brincadeiras’.

Com estas investigações, amplia-se a compreensão sobre o papel do observador como uma figura não apenas capaz de reforçar a agressão sistemática, mas também impedi-la, dependendo da posição adotada frente à agressão observada. As pesquisas mencionadas evidenciam também que esse tipo de agressão não se reduz a uma questão pessoal entre os envolvidos e que, como mencionamos no início deste artigo, as configurações grupais e da própria instituição escolar também determinam a ocorrência ou não das agressões.

A pesquisa de Mendoza González e Maldonado Ramírez (2017) com alunos mexicanos da educação básica sobre as habilidades sociais e o papel desempenhado na intimidação contra colegas identifica quatro tipos de participação na intimidação entre colegas: vítima/agressor na violência escolar, vítima de bullying, vítima/agressor de bullying e aqueles que não estão envolvidos em nenhum tipo de maus-tratos. A pesquisa identificou que o estado emocional e as habilidades sociais variam de acordo com o papel desempenhado nas situações de violência. Os que ocupam o papel duplo de vítima e agressor, seja no bullying ou em outra situação de violência escolar, tendem a se mostrar menos dispostos a cooperar com os colegas e ser menos empáticos.

Outro estudo que busca correlacionar problemas emocionais e de conduta com papeis desempenhados em situações de violência entre alunos foi o de Resett (2014), que investigou estudantes de escolas secundárias argentinas. O autor diferencia o bullying de outras formas de assédio entre alunos e identifica três papeis: as vítimas, os agressores e os agressores/vítimas. Conclui que os alunos envolvidos no bullying sofrem de problemas emocionais (as vítimas e os agressores/vítimas) e de conduta (os agressores).

Os dois últimos estudos citados, embora contribuam na descrição dos diferentes papeis presentes na violência entre pares e na sua mensuração, reforçam a compreensão do bullying e de outras formas de violência escolar como algo decorrente de características individuais, o que pode ignorar o papel da sociedade e da escola na origem e consequentemente nas formas de participação no enfrentamento do fenômeno, conforme o entende Adorno (1995b). Também não é possível, neste tipo de abordagem centrada apenas nas figuras agressor/vítima investigar a alternância nos papeis desempenhados (agressor, vítima ou ambos), uma vez que características de personalidade ficam associadas a formas específicas de violência escolar, o que impede a percepção de mudanças nas relações entre os alunos com o passar dos anos.

Quanto ao tipo de agressão praticada, o estudo de Santos e Kienen (2014) sobre a percepção do bullying por parte dos alunos e professores brasileiros identificou que os alunos percebem mais facilmente o bullying quando ocorre uma agressão física como chutes e empurrões e também agressões verbais. As formas de violência indireta como exclusões e fofocas, embora também ocorram, são identificadas como agressão pelos alunos em menor proporção. As autoras concluem que as práticas mais sutis de violência podem ser as que causam danos mais sérios exatamente por não serem identificadas e combatidas pela comunidade escolar.

Quanto à maior ou menor incidência de violência conforme variam os anos de estudo, o maior risco para a ocorrência tem sido identificado no ensino fundamental tanto em pesquisas brasileiras como europeias (Lopes Neto, 2005; Olweus, 1993). O estudo de Mendoza González e Maldonado Ramírez (2017) conclui que os alunos da educação primária teriam maior risco de ser vitimizados, o que corrobora com esta visão. Vieira et al. (2016) identificaram maior incidência de bullying entre os mais jovens (62% entre 13 e 14 anos contra 39% na faixa dos 17-18 anos), mas sem diferença significativa entre os gêneros. Porém, talvez o que ocorra seja muito mais a alteração nas formas de maus-tratos para expressões mais indiretas e sutis do que uma efetiva diminuição na violência contra colegas. Por exemplo, o estudo de Prieto Quezada et al. (2015) em universitários mexicanos identificou significativos índices de maus-tratos naquele nível escolar: a exclusão e o isolamento (mais de 30%), a violência verbal - apelidos e xingamentos (mais de 20%) e o uso de seus pertences sem permissão (mais de 10%). Tais resultados, além de apontar para a continuidade do bullying nos anos mais avançados também indicam, para os autores, um paradoxo, uma vez que seria esperado que um tempo maior de formação escolar resultasse em “[...] uma melhor estratégia para relacionar-se com os pares” (Prieto Quezada et al., 2015, p. 46).

Considerando o que foi apresentado até o momento, são objetivos deste artigo: verificar se houve variação no tipo de agressão entre os níveis de ensino primário e secundário, tal como são definidos na Argentina1; examinar os papeis desempenhados pelos alunos em relação aos maus-tratos a fim de verificar se ocorre ou não a manutenção desses papeis, bem como verificar se há relação entre os tipos de papeis, isto é, se haveria uma tendência ao desempenhar um papel em um dos níveis educacionais e assumir um outro, no outro nível, como por exemplo, ser autor da agressão no ensino primário e apoiador no secundário; ser vítima em um dos níveis e observador no outro.

Método

Dados gerais da amostra

Fizeram parte da amostra 70 estudantes argentinos universitários: 56 do curso de Atividade Física e Esportes, e 14 do curso de Informática de uma universidade pública localizada na Grande Buenos Aires, Argentina. Os estudantes eram 13 do sexo feminino; com idade média de 21,6 anos e desvio padrão de 3,0 anos. Um pouco mais da metade - 40 sujeitos - se declararam religiosos, os demais sem religião; dos que são religiosos, 35 seguem o catolicismo.

Quando essas variáveis foram comparadas em relação ao total de maus tratos existentes, como praticantes, apoiadores, observadores e vítimas, tanto no secundário, quanto no primário, não houve diferença quanto ao curso, religião e idade; apenas em relação ao sexo, houve uma diferença significante, no secundário: os meninos observam mais práticas de bullying do que as meninas. (t = 2,34 ; 68 graus de liberdade; p = 0,02).

Instrumentos

Para verificar os objetivos da pesquisa, além de um instrumento para a obtenção de dados pessoais, pediu-se aos sujeitos que assinalassem se, no período em que cursaram o ensino secundário e o ensino primário, praticaram, apoiaram, observaram ou foram alvos de uma das seguintes ações: insulto, agressão física, ameaça de agressão, apelidos ofensivos, rumores, exclusão, estragar material, pegar dinheiro sem consentimento, acariciar sem permissão e cyberbullying.

O escore para cada participante variou de zero a 10 pontos em cada uma das avaliações em relação ao papel ocupado na agressão e se ocorreu no ensino primário e/ou no ensino secundário.

Procedimentos

Cuidados éticos: para cada participante, foi oferecido um Termo de consentimento livre e esclarecido, explicitando os objetivos da pesquisa, que a participação é voluntária, e que poderia se retirar a qualquer momento dessa participação; o anonimato foi garantido. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da USP e foi aprovado sob o número: 1.218.644.

Coleta de dados: os dados foram coletados nas salas de aula de uma universidade pública argentina, durante o segundo semestre de 2017. Depois de informados sobre a natureza da pesquisa, os estudantes dos cursos de Atividade Física e Esportes e de Informática preencheram individualmente os questionários.

Análise dos dados

Para os cálculos estatísticos, utilizou-se correlações de Pearson, para verificar se as variáveis estudadas têm relação significante entre si, e Análise Fatorial, com o método do principal componente, para verificar se as variáveis se agrupam em dimensões independentes, com a rotação Varimax, que torna os eixos cartesianos ortogonais (Guilford & Fruchter, 1973). Esses cálculos foram feitos por meio do Programa SPSS - 25.

Análise e discussão de resultados

Os resultados e suas respectivas análises serão apresentados na mesma ordem dos objetivos. O primeiro deles se refere à verificação da manutenção das frequências do tipo de violência nos dois níveis de ensino, para os diversos tipos de papeis envolvidos.

Nas próximas tabelas, são apresentadas, por nível de ensino, as frequências e proporções de cada um dos tipos de agressão, com referência aos papéis existentes nessas agressões entre pares.

Conforme os dados da Tabela 1, as lembranças de agressão no ensino secundário são mais frequentes do que no ensino primário, o que contraria as pesquisas de diversos estudos (Lopes Neto, 2005; Olweus, 1993), mas deve-se enfatizar que, no presente estudo, trata-se de lembranças e não de ocorrências, e as recordações mais antigas resistem mais a ser lembradas, conforme nos mostra a psicanálise; assim, os dados aqui obtidos não negam a afirmação desses autores, só ilustram o quanto somos conscientes ou não deles. Por outro lado, o estudo de Prieto Quezada et al. (2015) indica a permanência das agressões mesmo no nível superior.

Tabela 1 Frequência e proporção de ‘prática de agressão’, quanto aos diversos tipos, no Ensino Secundário e no Ensino Primário. 

Tipo de Agressão Primário Secundário
Frequência Proporção Frequência Proporção
Insulto 20 0,3 49 0,7
Ameaça de agressão 11 0,2 19 0,3
Agressão 11 0,2 13 0,2
Rumores 12 0,2 20 0,3
Exclusão 13 0,2 19 0,3
Apelidos 9 0,1 16 0,2
Estragar Material 5 0,1 9 0,1
Dinheiro sem consentimento 3 0,0 6 0,1
Acariciar 2 0,0 5 0,1
Cyberbullying 2 0,0 6 0,1

Pode-se observar na Tabela 1 que o insulto é a mais frequente das agressões lembradas tanto no ensino secundário, como no primário; ameaça de agressão física, rumores e exclusão são as que se seguem com maior frequência. Deve-se salientar que Santos e Kienen (2014) indicam que as agressões mais visíveis são as mais notadas, e, no caso deste estudo, mais recordadas. A correlação obtida entre as frequências de lembranças de agressões nos dois níveis de ensino foi significante (r = 0,92; 8 graus de liberdade; p < 0,01), o que significa que as práticas de agressões mais lembradas em um nível de ensino também o foram no outro, e vice-versa.

Importante acentuar, pelos dados obtidos, que o tipo de mau-trato tende a não se alterar do ensino primário para o secundário, o que seria esperado, pois à medida que a educação escolar avança, os alunos deveriam ser capazes de ter outras formas de expressão de violência: das mais diretas para as mais simbólicas, ainda que essas últimas não deixem de ser violência, podem ser contestadas verbalmente, ao passo que a violência física necessita também de ação mais imediata para ser detida, em outros termos, não se trata de dizer que a violência seria menos grave se mudasse sua forma de expressão, mas que a forma de seu enfrentamento poderia ser outra.

A Tabela 2 apresenta esses dados para o papel do apoiador.

Tabela 2 Frequência e proporção de ‘apoio à agressão’, quanto aos diversos tipos, no Ensino Secundário e no Ensino Primário. 

Tipo de Agressão Primário Secundário
Frequência Proporção Frequência Proporção
Insulto 4 0,1 16 0,2
Ameaça de agressão 4 0,1 9 0,1
Agressão 1 0,0 7 0,1
Rumores 3 0,0 10 0,1
Exclusão 7 0,1 9 0,1
Apelidos 1 0,0 8 0,1
Estragar Material 2 0,0 6 0,1
Dinheiro sem consentimento 0 0,0 5 0,1
Acariciar 0 0,0 1 0,0
Cyberbullying 2 0,0 5 0,1

As recordações ao apoio aos diversos tipos de agressão são bem menos frequentes do que as práticas, mas tal como nessas, há mais lembranças no ensino secundário do que no primário. No ensino secundário, as mais frequentes coincidem com as das práticas, mas chama a atenção que no primário, a lembrança de ter apoiado a exclusão de colegas é a mais frequente. A correlação entre as frequências de lembranças de apoio nos dois níveis de ensino não foi significante (r = 0,62; 8 graus de liberdade; p > 0,05) o que significa que a lembrança do tipo de apoio ora foi mais frequente em um nível de ensino, ora no outro. O fato de a lembrança do apoio ser menos frequente do que a autoria do mau trato pode indicar que tenha tido menos significado para esses alunos do que a primeira; não se trata, nesse caso, de esquecimento, mas de deixar menos marcas no indivíduo.

A Tabela 3 traz os dados da frequência desses tipos de agressão no que tange às observações lembradas.

Tabela 3 Frequência e proporção de ‘observação de agressão’, quanto aos diversos tipos, no Ensino Secundário e No Ensino Primário. 

Tipo de Agressão Primário Secundário
Frequência Proporção Frequência Proporção
Insulto 39 0,6 58 0,8
Ameaça de agressão 29 0,4 48 0,7
Agressão 25 0,4 42 0,6
Rumores 28 0,4 43 0,6
Exclusão 29 0,4 50 0,7
Apelidos 22 0,3 40 0,6
Estragar Material 19 0,3 39 0,6
Dinheiro sem consentimento 9 0,1 20 0,3
Acariciar 4 0,1 14 0,2
Cyberbullying 11 0,2 28 0,4

As recordações das agressões observadas, conforme os dados da Tabela 3, são mais frequentes do que as praticadas ou apoiadas, o que está de acordo com diversos estudos (Fante, 2005; Olweus, 1993; Santos & Kienen, 2014; Salmivalli, 2014; Mendoza-González & Maldonado Ramírez, 2017), e no ensino secundário, as sete primeiras foram observadas por mais da metade da amostra; também são lembradas por vários estudantes com frequência no ensino primário. As frequências das lembranças das observações nos dois níveis de ensino foram significantemente correlacionadas (r = 0,98; 8 graus de liberdade ; p < 0,01), isto é, quanto mais um tipo de agressão foi lembrado em um dos níveis, também o foi no outro.

A Tabela 4 contém esses dados para a agressão sofrida.

Tabela 4 Frequência e proporção de ‘agressão sofrida’, quanto aos diversos tipos, no Ensino Secundário e No Ensino Primário. 

Tipo de Agressão Primário Secundário
Frequência Proporção Frequência Proporção
Insulto 20 0,3 37 0,5
Ameaça de agressão 10 0,1 19 0,3
Agressão 11 0,2 11 0,2
Rumores 12 0,2 15 0,2
Exclusão 13 0,2 15 0,2
Apelidos 8 0,1 9 0,1
Estragar Material 5 0,1 10 0,1
Dinheiro sem consentimento 4 0,1 5 0,1
Acariciar 0 0,0 3 0,0
Cyberbullying 2 0,0 5 0,1

No que se refere à lembrança de sofrer os diversos tipos de agressão, nos dois tipos de ensino, nota-se que os insultos são mais frequentes, mas ameaça de agressão e agressão física, rumores e exclusão também são lembradas. As frequências das lembranças dos maus-tratos sofridos são significantemente correlacionadas (r = 0,91; 8 graus de liberdade; p < 0,01), ou seja, quanto mais se lembra de ter sofrido um tipo de agressão no ensino secundário, mais se lembra da mesma forma de violência no ensino primário.

Em síntese, em relação à frequência de agressões, pode-se considerar que:

- há mais lembranças no ensino secundário do que no primário;

- há mais lembranças sobre observações do que as praticadas, apoiadas e sofridas;

- em todos os casos, insulto é a agressão mais frequentemente lembrada, mas agressão, ameaça de agressão, a exclusão, rumores e apelidos também são muito frequentes;

- há correlações significantes entre as frequências de lembranças nos dois níveis de ensino no que se refere à prática, observação e ser alvo de maus tratos.

Até o momento pode-se concluir que a agressão entre pares é bastante frequente, o que é algo a ser considerado pelos educadores, e que os tipos de violência mais frequentes no nível de ensino primário tendem a se manter no outro nível. Assim, pode-se afirmar que não houve variação do tipo de violência nos dois níveis de ensino, para três dos quatro papeis examinados.

O segundo objetivo deste estudo se refere à manutenção ou não dos papeis nos maus-tratos nos dois níveis de ensino investigados, e o terceiro objetivo, à relação entre os papeis ao longo dos níveis de ensino examinados. As tabelas seguintes trazem dados para se verificar esses objetivos.

A Tabela 5 contém as médias e os desvios padrões, assim como os valores mínimos e máximos obtidos dos participantes quanto aos quatro papeis assumidos nas agressões entre pares, para os ensinos secundário e primário.

Tabela 5 Média e desvio padrão do total de práticas, apoio, observações e alvos da agressão, no Ensino Primário e Ensino Secundário. 

Mínimo Máximo Média Desvio Padrão
Prática Secundário 0,0 10,0 2,3 2,2
Prática Primário 0,0 10,00 1,25 2,1
Apoio Secundário 0,0 9,0 1,0 2,1
Apoio Primário 0,0 8,0 0,3 1,2
Observ. Secundário 0,0 10,0 5,5 3,1
Observ. Primário 0,0 10,0 3,1 3,2
Alvo secundário 0,0 9,0 1,8 2,1
Alvo primário 0,0 9,0 1,2 2,1

Em relação aos dados da Tabela 5, pode-se considerar que em todos os papeis examinados - agressor, apoiador, observador e alvo - houve os que não participaram de nenhum deles e os que atingiram o máximo nas práticas e nas observações; a variabilidade entre os participantes foi apreciável. Também se pode observar que as médias mais elevadas são as de observação quer no ensino secundário, quer no ensino primário, o que corrobora o resultado encontrado em relação ao objetivo anterior, ainda que se deva considerar que não são, em geral, elevadas, mas nem por isso são menos graves; esses dados revelam que há também muitos estudantes que não participam dos maus-tratos em nenhum dos papeis, e outros que se envolvem pouco; desta forma, em parte, ao menos, na escola, não há somente alunos violentos ou que sofrem a violência.

A Tabela 6 traz as correlações entre os diversos tipos de papeis assumidos nos maus-tratos entre pares nos ensinos primário e secundário.

Tabela 6 Correlações entre os diversos tipos de papeis exercidos na agressão no ensino primário e secundário. 

Prat Sec Prat prim Apoio Sec Apoio Prim Obs. Sec, Obs. Prim Alvo sec Alvo prim.
Prat sec 0,69** 0,64** 0,32** 0,36** 0,15 0,20 -0,02
Prat prim 0,69** 0,44** 0,54** 0,07 0,29* 0,13 0,18
Apoio sec 0,64** 0,44** 0,49** 0,37** 0,13 0,19 0,05
Apoio prim 0,32** 0,54** 0,49** 0,13 0,29* 0,29* 0,31*
Obs sec 0,36** 0,07 0,37** 0,13 0,35** 0,41** 0,10
Obs prim 0,15 0,29* 0,13 0,29* 0,35** 0,29* 0,50**
Alvo sec 0,20 0,13 0,19 0,29* 0,41** 0,29* 0,54**
Alvo prim -0,02 0,18 0,05 0,31* 0,10 0,50** 0,54**

*p < 0,01 **p < 0,001.

Considerando apenas as correlações significantes a 0,001, assinaladas na tabela acima, verifica-se que houve relação significante entre as recordações da agressão nos dois níveis de ensino: isso é, quem tende a ser agressor no primário, tende a continuar a ser agressor no secundário, o mesmo pode ser afirmado em relação ao apoio à agressão, à observação de agressão e à agressão sofrida; o que fortalece as considerações anteriores.

Também se pode constatar pelos dados da Tabela 6 que a prática da agressão e o apoio à agressão têm relação significante nos dois níveis de ensino, mas são de menor magnitude do que as correlações obtidas entre os mesmos papeis nos dois níveis, o que implica que se há relação entre ser autor de agressão no nível primário e apoiador no outro (r = 0,44), essa relação é menor do que ser autor de agressão nos dois níveis de ensino (r = 0,69). A recordação da agressão sofrida nos dois níveis tendem a se relacionar com as duas formas de observação, conforme os dados da Tabela 6, mas a lembrança das observações no secundário se relaciona com ser alvo no secundário; e as observações no primário com os sofrimentos no ensino primário, e em menor medida com os sofrimentos no ensino secundário; isto é, ter mais lembranças de observação no primário se correlaciona com ser vítima nesse nível de ensino, mais do que no outro nível, o mesmo ocorrendo em relação às lembranças de observação no ensino secundário, que só obtiveram correlação com ser alvo nesse nível de ensino.

Para confirmar esses dados, calculou-se uma análise fatorial, com o método componente principal, rotação Varimax (KMO: 0,593; X2 = 214,254; 28 graus de liberdade; p < 0,001), envolvendo essas variáveis. As cargas fatoriais obtidas estão na Tabela 7.

Tabela 7 Cargas fatoriais dos tipos de agressão analisados, considerando o nível de ensino. 

Fator 1 Fator 2 Fator 3
Prat. Sec 0,82 -0,06 0,36
Prat. Prim 0,88 0,17 -0,11
Apoio Sec 0,73 -0,02 0,42
Apoio Primário 0,67 0,41 -0,13
Obs. Secundário 0,11 0,23 0,91
Obs. Primário 0,16 0,70 0,19
Alvo Secundário 0,07 0,71 0,37
Alvo Primário 0,04 0,90 -0,10

Pode-se verificar pela Tabela 7, a confirmação da maior parte das observações extraídas das correlações constantes na Tabela 6: 1- houve manutenção de papeis do ensino primário para o secundário, com exceção da observação; 2- quem é apoiador ou agressor no ensino primário tende a ser também no ensino secundário; 3- Quem apoia tende a ser agressor e vice-versa; 4- quem sofre a agressão no ensino primário tende a sofrê-la no secundário; 5-quem mais observou a agressão no ensino primário, tendeu a sofrer mais agressão nos dois níveis; e as observações de agressão no ensino secundário não se associou a nenhuma das outras variáveis.

Em relação aos nossos objetivos, houve a tendência à manutenção dos mesmos papéis nos dois níveis de ensino. Ser apoiador e autor da agressão estão associados, mas o mesmo não se pode dizer da relação entre ser observador e vítima da violência nos dois níveis de ensino, pois essa relação tende a só ocorrer no mesmo nível de ensino.

Considerações finais

Tendo em vista os resultados encontrados, há de se assinalar que a educação escolar não tem atuado de forma plena na diminuição da violência entre pares, nem em sua frequência, nem em sua forma, o que reforça, muito tempo depois, a afirmação de Adorno (1995b) que a educação fracassou, pelo menos parcialmente, em seu objetivo de desbarbarizar os indivíduos. Pior do que isso, se ele, em meados da década de 1960, pode propor uma educação contra a violência, essa ou não vingou ou não foi efetiva. Ao que parece, somente houve o estabelecimento de um clima contrário à barbárie, mas que convive com o clima propicio à violência.

Do que os dados da pesquisa indicam, talvez a formação de grupos que sejam alvos da agressão ocorra para possibilitar a união do próprio grupo, que retrata o narcisismo das mínimas diferenças (Freud, 2011), continua a ser necessária, assim como a intenção de acabar com toda forma de tensão por meio da violência - a pulsão de morte. A manutenção da agressão dos seis aos 18 anos, ainda mais com frequência elevada de violência física, assinala que as possibilidades de relações civilizadas, propícias ao respeito ao outro e a seus direitos, sobretudo o de não ser molestado, permanece. As condições objetivas que levaram a Auschwitz ser sustentado por uma multidão de indivíduos pseudoformados, ao que tudo indica, permanecem. Poder-se-ia dizer que os maus-tratos e a reação a eles fazem parte da ‘vida saudável’, algo natural aos homens, mas isso seria inverter os termos de uma humanidade pacificada, que Kant pode propor em sua Paz Perpétua, e que Freud (2011) pode vislumbrar na crítica aos preceitos religiosos de amar a todos, inclusive e, principalmente, aos inimigos: não se pode amar a todo mundo, mas se os outros nos respeitam, podemos retribuir a eles o mesmo respeito, e isso poderíamos aprender no decorrer de nossa vida escolar.

Como limite desta pesquisa, é importante destacar que pudemos coletar as recordações apenas daqueles que ingressaram no ensino superior; um estudo com jovens que frequentam no momento da pesquisa os níveis primário e secundário poderia trazer dados complementares.

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1No Ensino argentino, são distintos quatro níveis de ensino, entre eles, o primário e o secundário, que são assim definidos: Educación Primaria. Começa a partir dos seis anos de idade e tem a duração de seis a sete anos, dependendo de cada jurisdição. Este nivel é obrigatório; Educación Secundaria. Possui uma duração de cinco ou seis anos, dependendo da jurisdição. Está dividida em dois ciclos: un ciclo básico ‘e um ciclo orientador com distintas’ modalidades segundo os interesses do aluno.

6NOTA: Declaramos que José Leon Crochick, Marian Ávila de Lima Dias e Horacio Martín Ferber foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

Recebido: 08 de Julho de 2019; Aceito: 18 de Novembro de 2019

* Autor para correspondencia. E-mail: jlchna@usp.br

José Leon Crochick: Professor Visitante do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e Adolescência da UNIFESP. Professor Titular aposentado do Instituto de Psicologia da USP. Bolsista em Produtividade em Pesquisa do CNPq. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2767-3091 E-mail: jlchna@usp.br

Marian Ávila de Lima Dias: Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo e Pós-Doutorado na Universidad Nacional Tres de Febrero em Buenos Aires, Argentina. Professora do Departamento de Educação da Unifesp e do Programa de Pós-Graduação em Educação. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2343-842X E-mail: marian.dias@unifesp.br

Horacio Martín Ferber: Doutor em Psicologia Social pela Universidad Argentina J.F. Kennedy. Professor Titular na Universidad Nacional de Avellaneda, professor de Pós-graduação na Universidad de Buenos Aires, na Universidad Nacional de Lomas de Zamora, na Universidad Nacional de Santiago del Estero e na Universidad Nacional de Caaguazu (Paraguay). ORCID https://orcid.org/0000-0003-3382-2062 E-mail: providenciar e-mail

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