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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.43  Maringá  2021  Epub 01-Abr-2021

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v43i1.49068 

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS

Narrativas sobre uma formação docente com/para as tecnologias: implicações nas práticas dos professores

Narrativas sobre la formación docente con / para tecnologías: implicaciones para las prácticas docentes

Miriam Brum Arguelho1  * 
http://orcid.org/0000-0002-8631-4961

Maria Cristina Lima Paniago2 
http://orcid.org/0000-0003-4722-483X

1Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil.

2Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil.


RESUMO.

O artigo é recorte de uma pesquisa de doutorado e tem como objetivo evidenciar algumas implicações de uma formação continuada intitulada ‘Programando e Aprendendo com o Scratch’ nas práticas dos professores. Trata-se de uma pesquisa do tipo Pesquisa-formação, na qual analisamos narrativas produzidas por 11 professores gerenciadores de tecnologias educacionais e recursos midiáticos (Progetec’s), ligados ao Núcleo de Tecnologia Educacional, da Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso do Sul. A partir das dinâmicas propostas, os professores/Progetec’s foram provocados a refletir e narrar sobre a formação e seus desdobramentos em suas práticas. Para realizar o estudo das narrativas, produzimos uma nuvem de palavras utilizando a interface de análises qualitativas Iramuteq, a qual destacou dois papéis recorrentes no contexto de formação: o do professor e o do aluno, não como dicotômicos, hierarquizados, mas sob uma perspectiva de colaboração, de parceria e de soma, ora se misturando, ora se complementando, ora se confundindo. Os professores/Progetec’s se reconhecem em movimento no processo inventivo de ensinar e aprender, com estratégias ambíguas e por isso positivas de rupturas e continuidades. Também apontam que os alunos passam a ter mais protagonismo e espaço de voz e participação no contexto das práticas com tecnologias. As considerações nos permitiram visualizar fissuras e avanços na prática dos professores no exercício de aprender e ensinar com as tecnologias, especificamente com a linguagem de programação Scratch.

Palavras-chave: formação de professores; tecnologias; práticas docentes; linguagem de programação scratch; narrativas

RESUMEN.

El artículo es parte de una investigación doctoral y tiene como objetivo analizar algunas implicaciones de una educación continua titulada ‘Programación y aprendizaje con scratch’ en las prácticas de los docentes. Esta es una investigación y capacitación, en la que analizamos las narrativas producidas por 11 maestros que administran tecnologías educativas y recursos de medios (Progetec), vinculados al Centro de Tecnología Educativa, del Departamento de Educación del Estado de Mato Grosso do Sul. A partir de las dinámicas propuestas, los maestros/Progetec fueron provocados a reflexionar y narrar sobre la formación y sus implicaciones y consecuencias en sus prácticas. Para realizar el análisis narrativo, creamos una nube de palabras utilizando la interfaz de análisis cualitativo de Iramuteq, que destacó dos roles recurrentes en el contexto de la capacitación: el del profesor y el del alumno, no tan dicotómico, jerárquico, sino desde una perspectiva de colaboración, asociación y suma, a veces mezclado, a veces complementario, a veces confuso. Los profesores/Progetec se reconocen en movimiento en el proceso inventivo de enseñanza y aprendizaje, con estrategias ambiguas y por lo tanto positivas de rupturas y continuidades. También señalan que los estudiantes ahora tienen más protagonismo y espacio de voz y participación en el contexto de las prácticas tecnológicas. Las consideraciones nos permitieron visualizar grietas y avances en la práctica de los maestros en el aprendizaje y la enseñanza con tecnologías, específicamente con el lenguaje de programación Scratch.

Palabras-clave: formación de profesores; tecnologías; prácticas de enseñanza; lenguaje de programación scratch; narrativas

ABSTRACT.

The article is part of doctoral research and aims to analyze some implications of a continuing training entitled ‘Programming and Learning with Scratch in teachers’ practices. It is a ‘research-training’ perspective, in which we analyze narratives produced by 11 teachers managing educational technologies and media resources (Progetec’s), linked to the Educational Technology Center of the Education State Department from Mato Grosso do Sul. From the proposed dynamics, the teachers/Progetec’s were provoked to reflect and narrate about the formation and its implications and consequences in their practices. To perform narrative analysis, we produced a word cloud using the Iramuteq qualitative analysis interface, which highlighted two recurring roles in the training context: the teacher’s and the student’s, not as dichotomous, hierarchical, but from a perspective of collaboration, partnership, and sum, sometimes mixing, sometimes complementing, sometimes confusing. The teachers/Progetec’s recognize themselves in movement in the inventive process of teaching and learning, with ambiguous and therefore positive strategies of ruptures and continuities. They also point out that students now have more protagonism and voice space and participation in the context of technology practices. The considerations allowed us to visualize discontinuities and advances in teachers’ practice in learning and teaching with technologies, specifically with the ‘Scratch’ programming language.

Keywords: teacher training; technologies; teaching practices; ‘scratch’ programming language; narratives

Introdução

Este artigo, recorte de uma pesquisa de doutorado concluída no ano de 2018, no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Católica Dom Bosco, com projeto de pesquisa aprovado pelo Comitê de Ética, na plataforma Brasil em 08/09/2016 (protocolo nº 57899616.9.0000.5162), tem como objetivo analisar as implicações de uma formação com/para as tecnologias na prática de professores, por meio de suas narrativas. A tecnologia em questão é o Scratch, uma linguagem de programação desenvolvido pelo Lifelong Kindergarten Group, do Massachusetts Institute of Technology - Media Lab, disponibilizado gratuitamente e que possibilita a criação de histórias interativas, animações, jogos, música e arte.

A formação continuada de professores aqui abordada decorreu nos meses de maio a dezembro de 2016, com um grupo de 30 Professores Gerenciadores de Tecnologias Educacionais e Recursos Midiáticos (Progetec’s), do Núcleo de Tecnologia Educacional (NTE - Regional), vinculado à Secretaria Estadual de Educação de Mato Grosso do Sul (SED).

O NTE-Regional, núcleo responsável pela disseminação do uso de tecnologias e mídias nas escolas jurisdicionadas e pela formação continuada dos professores a elas vinculadas, localiza-se em Campo Grande - MS e atende escolas públicas de Ensino Fundamental e Médio, dividindo-se em 24 escolas e 06 extensões, distribuídas em 10 municípios do entorno da capital. Dentre essas escolas, 17 são urbanas (uma delas de atendimento em tempo integral) e 13 rurais (uma delas de atendimento em tempo integral), uma é quilombola e outra é escola indígena.

Em meio a essa diversidade de contextos, decorreu a formação continuada intitulada ‘Programando e Aprendendo com o Scratch’, que teve como lócus dois encontros presenciais (oficina de introdução ao Scratch e Seminário do NTE - Regional) e oito meses de mediação da formação online, decorrida em um grupo, na rede social Facebook, criado para esse fim.

A metodologia adotada foi a pesquisa-formação, um tipo de pesquisa-ação que possibilita levar a cabo o planejamento, execução e análise de uma formação, bem como tomar em conta o estudo de todos os aspectos da formação: seu desenho, contextos e desdobramentos; os sujeitos envolvidos, suas histórias, identidades, subjetividades e reflexões; e a prática pedagógica, suas implicações, avanços e possibilidades.

De acordo com Rebolo e Brostolin (2015), a pesquisa-formação envolve os sujeitos em uma dinâmica em que, ao participar do processo formativo, os professores investigam os elementos que emergem e se debruçam sobre eles, por meio de um exercício reflexivo.

Assim, a pesquisa-formação é formativa e investigativa, pois ao mesmo tempo em que gera dados, já os analisa e os submete ao grupo e, desta forma, as reflexões e questões que vão surgindo são ajustadas ao longo do trabalho e não só no final dele [...] (Rebolo & Brostolin, 2015, p. 2).

Para Diniz-Pereira e Zeichner (2011, p. 12), a pesquisa-ação tem como principais características “[...] seu caráter participativo, seu impulso democrático e sua contribuição para as ciências sociais e a transformação da sociedade simultaneamente”.

No recorte que fizemos para a escrita deste artigo optamos por selecionar uma atividade realizada com os atores da pesquisa. Os critérios estabelecidos para a escolha dos participantes foram: professores/Progetec’s da educação básica, de áreas distintas (Artes Visuais, Ciências Biológicas, Educação Física, Filosofia, Geografia, História, Letras, Matemática, Pedagogia e Química) que tivessem participado das discussões nas atividades em que utilizamos a metodologia de reunião em espaço aberto (Open Space Technology - OST).

Dentre as atividades desenvolvidas durante essa etapa da formação, destacamos as dinâmicas de produção de narrativas por meio da metodologia de reunião em OST, organizadas em três temas, em que os professores/Progetec’s foram provocados a se organizar em grupos e por meio de interações e diálogos, produzirem materiais mediados por tecnologias digitais (animações, jogos, vídeos, áudios) e narrativas digitais a respeito das seguintes temáticas: 1) Apropriação e Produção com o Scratch; 2) Traduções e Ressignificações dos projetos com o Scratch; 3) Reflexão e Diálogo: Que continuidades e descontinuidades podemos traçar.

Para a produção das narrativas digitais, os professores foram convidados a descrever individualmente e a partir do diálogo em grupo, sobre como essa atividade formativa implicou em suas práticas e os desdobramentos dessas dinâmicas em seus cotidianos. Assim, eles foram provocados a narrar sobre: como foi aprender e ensinar nos contextos dessa formação, considerando seus cotidianos, os conteúdos, as interações e as participações; bem como sobre seus desdobramentos em suas práticas?

A produção das narrativas era voluntária e não obrigatória, respeitando a liberdade de escolha pela participação ou não nas atividades, como parte da metodologia da nossa pesquisa. Dos 30 participantes da formação, todos produziram narrativas, ainda que, não em todos os temas da atividade.

As narrativas digitais produzidas a partir das atividades desenvolvidas na formação, que tinham como tema ‘Reflexão e Diálogo: Que continuidades e descontinuidades podemos traçar?’, foram objeto de análise neste artigo e contaram com a participação de 11 professores/Progetec’s.

Entendendo que cada ator da pesquisa é único e especial e teve particular valor e lugar na sua construção e atendendo aos requisitos de identidades preservadas, utilizamos nomes de pedras preciosas brasileiras para identificar cada um deles.

O artigo segue a seguinte organização: no primeiro momento apresentamos conceitos sobre narrativas no sentido de justificar seu uso no desenvolvimento da pesquisa; em seguida, trazemos a nuvem de palavras produzida pelo Iramutec e as narrativas produzidas pelos professores, optando por entrelaçar a teoria e os dados em uma mesma sessão, sob uma perspectiva de uma metodologia pós-crítica; e, por fim, fazemos algumas considerações que não são finais, mas contextuais e movediças.

Narrar histórias de si em contexto de formação continuada de professores

O exercício de narrar histórias e experiências vividas em contexto de formação é uma prática que segundo Josso (2007) nos permite aprender mais de nós, do outro, reinventar e transformar-se a partir de uma perspectiva de desenvolvimento pessoal, cultural e de formação profissional. As formas e sentidos revelados nas narrativas expressam a existencialidade singular e, na perspectiva do trabalho colaborativo, também plural, criativa e inventiva do pensar do agir, do viver e do trabalhar juntos.

Josso (2007) trata do tema da transformação de si a partir da narração de histórias de vida e apresenta a formação continuada como potencializadora de formas criativas e inventivas de pensar a partir de expressões e sentidos múltiplos de existencialidade singular-plural.

É assim que nossos fragmentos de memória individual e coletiva se transmutam em recursos, em fertilizantes, em inspiração para que nosso imaginário de nós-mesmos possa inventar essa indispensável continuidade entre o presente e o futuro, graças a um olhar retrospectivo sobre nós-mesmos (Josso, 2007, p. 435).

Utilizamos as narrativas na pesquisa como instrumento de produção de dados, entendendo que o exercício de acessar memórias para lembrar as trajetórias e experiências prévias nos ajudam a compor nossa subjetividade e organizar os conhecimentos, ao mesmo tempo que potencializam a aprendizagem e (re)significação de saberes.

Buscamos fazer, a partir das narrativas do cotidiano, conforme nos provoca Alves (2010, p. 1), “[...] uma análise dos processos subjetivos de memória, bem como, das múltiplas relações entre memória, narrativa e identidade”.

Nesse sentido, estávamos igualmente interessados nos relatos das experiências vividas por cada professor, no afloramento das suas memórias, na conexão dessas memórias com o novo conhecimento, na natureza dos processos de materialização dos conhecimentos na prática de cada um, entendo o exercício de narrar como forma de aprender, de ensinar, de organizar o conhecimento e (re)construir as suas identidades e subjetividades.

De acordo com Larrosa Bondía (2004, p. 12) “[...] o ser humano é um ser que interpreta e, para essa autointerpretação, utiliza fundamentalmente formas narrativas”. Nesse sentido, temos o narrar entendido como exercício de acessar a memória para compreendê-la e (re)significá-la por meio e a partir do discurso, a partir das palavras, sentimentos, emoções.

Consideramos os relatos narrativos como instrumentos potencializadores de mudanças internas e externas e de transformação. De acordo com Carmela e Haguenauer (2012),

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão - no campo, no mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida tirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso (Benjamin, 1994, p. 205 apud Carmela & Haguenauer, 2012, p. 57, grifos do autor).

Ao analisar a experiência vivida de cada um, os seus olhares para dentro, com olhos de ver e de sentir, de criticar e de avançar em direção a diferentes possibilidades, a produção de narrativas nos parecem uma estratégia importante na formação continuada de professores com e para as tecnologias.

Aquela ‘forma artesanal de criação’, mencionada por Benjamin, parece ter-se transformado num laboratório virtual de experimentação narrativa irrestrita, ou seja, não há apenas o narrador viajante que repassa suas experiências, ou aquele que tem o dom de relatar suas experiências cotidianas, todos se configuram como narradores em potencial, sendo o receptor também cocriador, apontando para a possibilidade de surgimento dos símbolos da atual sociedade (Carmela & Haguenauer, 2012, p. 64, grifos do autor).

As tecnologias possibilitam o exercício criativo de narrar em contextos midiáticos, flexíveis, dialógicos, muitas vezes atravessando diferentes dispositivos tecnológicos, numa dinâmica que as autoras chamam de “[...] laboratório virtual de experimentação narrativa irrestrita” (Carmela & Haguenauer, 2012, p. 64). Entendemos que o espaço de mediação estabelecido democraticamente no grupo do Facebook e as interação daí decorrente, inclusive em outras redes sociais, possibilitou essa experimentação.

Nessa perspectiva, toda pessoa é um narrador em potencial e o receptor participa no processo narrativo também como cocriador. Os meios virtuais que possibilitam essa interação modificam-se e adaptam-se constantemente levando o processo discursivo das narrativas, também, a uma frequente adaptação.

O diálogo é, portanto, o indispensável caminho, diz Jaspers, não somente nas questões vitais para nossa ordenação política, mas em todos os sentidos do nosso ser. Somente pela virtude da crença, contudo, tem o diálogo estímulo e significação: pela crença no homem e nas suas possibilidades, pela crença de que somente chego a ser eu mesmo quando os demais também chegam a ser eles mesmos (Freire, 1975, p. 108).

Ao reconhecermos o potencial de igualdade entre as pessoas, presente em condições de igualdade de circunstâncias, nas situações de sermos nós, com todo o crescimento emancipador que essa dinâmica possibilita, sem considerarmos uns aos outros superiores ou inferiores, criamos condições de reciprocidade e passamos a construir um mundo que é nosso, de inclusão, de diálogo, de partilha, um mundo feito por ‘nós’ e não por ‘eus’ (Costa, 2017), um mundo onde professoras e professores, alunas e alunos podemos, mediados pelas TDIC, nos tornar mais humanos, mais autônomos e mais democráticos. As narrativas nos possibilitam a desejada tomada de consciência e exercício criativo de protagonizar nossas histórias, no exercício reflexivo subjacente ao ato de narrar.

Nesse sentido a narração de si é considera aqui como uma possibilidade de emancipação, de ruptura, de aprendizagem e de transformação. Para auxiliar-nos no estudo das narrativas produzidas em contexto de formação tratamos os dados por meio da interface de análise qualitativa Iramuteq, especificamente na produção de nuvem de palavra, conforme passamos apresentamos a seguir.

Nuvem de palavras e narrativas: alguns entrelaçamentos

De acordo com estudos de Paula, Viali, e Lima (2017), o uso de software como recurso para tratamento de dados em pesquisas qualitativas tem se tornado uma possibilidade nas ciências humanas, particularmente no campo da educação.

Stake (2011) argumenta que há um campo de tensão sobre a decisão de utilizar software de análise em pesquisa qualitativa considerando seu caráter subjetivo e pessoal. As contribuições desses estudos vão sendo notadas, lentamente, ainda que não sem resistência. Neste caso, a opção pela utilização do software, não dispensou a sistematização cuidadosa e criteriosa, como requisito prévio à sua utilização.

Optamos por utilizar uma interface disponível para pesquisas qualitativas em Ciências Humanas, Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires), desenvolvido originalmente na língua francesa por Pierre Ratinaud, e que conta com tradução para vários idiomas, inclusive o português.

O Iramutec, com suas múltiplas funcionalidades, nos possibilitou escolher uma delas, a nuvem de palavras, a qual julgamos ter somado na organização das narrativas produzidas durante a formação.

Com foco na análise textual, a partir da expressão do pensamento transcrito por meio de narrativas digitais, produzidos no contexto de formação continuada de professores, buscamos identificar as opiniões, pensamentos e crenças dos professores/Progetec sobre: as implicações da formação de professores com/para as tecnologias nas práticas docentes, considerando seus contextos, conteúdos, interações e participações.

Entendemos o desafio de se ter dados subjetivos e de se trabalhar com eles. Porém, acreditamos como Cope (2014), que um dos desafios para o pesquisador qualitativo está em considerar a subjetividade dos dados produzidos, dentro do grande volume textual de algumas pesquisas, o que presume maior rigor metodológico na fase de organização, sistematização e estudo dos achados da pesquisa.

Concordamos com Deleuze (2012), quando afirma que o sujeito se define a partir de um fluxo, como um movimento, com o propósito e tendo como consequência desenvolver-se a si mesmo: “O que se desenvolve é sujeito. Aí está o único conteúdo que se pode dar à ideia de subjetividade: a mediação, a transcendência”. (Deleuze, 2012, p. 76 ).

No exercício de buscar enxergar esse movimento de mediação e transcendência no processo de construção de subjetividade dos professores/Progetec’s, apresentamos a nuvem de palavras a partir de suas narrativas.

Para gerar um texto no formato compatível com os critérios do Iramuteq, reunimos as narrativas de 11 Progetec’s. Os textos foram compilados em um único arquivo e resultou em uma nuvem de palavras em que as cinco mais recorrentes foram: aluno (55 vezes), professor (44 vezes), escola (27 vezes), tecnologia (26 vezes) e ano (22 vezes).

Desse texto foram filtrados pronomes, numerais, artigos, dentre outros que não se apresentavam como elementos textuais importantes para a compreensão das narrativas.

As análises foram previamente feitas pelas autoras, considerando os excertos em sua totalidade e complexidade, levando em consideração os contextos e os momentos da experiência de cada um na formação continuada.

Na Figura 1, Nuvem de palavras - Narrativas sobre: Reflexão e Diálogo: Que continuidades e descontinuidades podemos traçar? destacamos as palavras recorrentes e os excertos das narrativas em que elas foram mencionadas e buscamos traçar núcleos de sentido para, a partir daí, compreender as conexões com o texto e o significado que se pretendeu expressar nessas narrativas.

Figura 1 Nuvem de palavras - Narrativas sobre: ‘Reflexão e Diálogo: Que continuidades e descontinuidades podemos traçar? 

Buscamos aproximar essa análise ao contexto de atuação dos Progetec e as relações com a prática docente, mais especificamente em relação às questões pertinentes à apropriação das tecnologias, como dispositivos para pensar sobre o processo de desenvolver-se a si mesmo a partir de uma formação continuada mediada pelas tecnologias.

Como neste artigo o foco é analisar as narrativas voltadas para as implicações da formação docente na prática dos professores, optamos em centrá-las em duas temáticas, as mais recorrentes de acordo com a nuvem de palavras: o professor e o aluno, não como dicotômicos, hierarquizados, mas sob uma perspectiva de colaboração, de parceria e de soma, ora se misturando, ora se complementando, ora se confundindo.

Algumas narrativas: professores e alunos em teias de relações

Com foco nas narrativas dos 11 professores participantes, enxergamos sinais que nos indicaram possibilidade de partilha e colaboração, de mudança que foram sendo construídas coletivamente a partir das vivências da/na formação e tentamos entender se esses indicadores sinalizavam formas de continuidades e rupturas relacionadas à prática desses professores e/ou sinalizavam outros modos de pensar e fazer educação.

A princípio os projetos no Scratch causaram uma certa angústia aos envolvidos de minha escola, mas com o passar do tempo e das criações irem tomando forma todos passaram a apreciar os trabalhos. Fomos fazendo trocas durante todo o processo, entre o NTE, com os Progetec’s de outras escolas, e dentro da própria escola. Essas trocas possibilitaram a aprendizagem de todos os envolvidos, mudanças significativas (professora/Progetec Rosa do Deserto, 2016).

A construção de atividades de ensino e aprendizagem a partir da linguagem de programação Scratch proporcionou trocas relevantes de saberes entre professores e alunos, que foram percorrendo um caminho juntos, em um processo dinâmico de apropriação e produção do conhecimento (professora/Progetec Lápis Lazuli, 2016).

Neste sentido, podemos articular à partilha e colaboração, a mediação, a qual, a partir dos escritos de Guazzelli (2015, p. 57), que ao tratar das mediações professor x aluno x objeto defende que a responsabilidade do professor [...] é a de mediar o educando, o computador, a rede e a mídia, gerenciando democraticamente a complexa rede proporcionada pelas telecomunicações, pesquisando [...] problematizando junto aos educandos, o conteúdo que os mediatiza.

Em uma dinâmica de apropriação de uma nova tecnologia, pudemos perceber professores/Progetec elaborando dispositivos que os permitissem ultrapassar as fissuras do processo de formação inicial e buscar linhas de fuga de um padrão pré-estabelecido.

A partir das perspectivas de Deleuze e Guattari (1995), Cassiano e Furlan (2013, p. 374) afirmam que as linhas de fuga são:

[...] em essência, movimentos de ruptura que promovem rompimentos e mudanças bruscas que, por vezes, são imperceptíveis. Essas mudanças desfazem o eu com suas relações estabelecidas, permitindo a experimentação do devir, ainda que, momentaneamente. As linhas de fuga não são sobrecodificadas pelas linhas duras ou pelas linhas maleáveis. ‘São linhas muito ativas, imprevisíveis, que em grande parte das vezes precisam ser inventadas, sem modelo de orientação’.

Neste sentido, as linhas de fuga possibilitam aos professores superarem o medo e sinalizarem espaços para outras aprendizagens. Suas narrativas evidenciam tal movimento:

Aprender programar, não é uma tarefa muito fácil, mas também não é impossível. E o que me deixou muito admirada foi o interesse dos alunos participantes em programar. Com certeza, dificuldades e obstáculos foram encontrados, mas pela dedicação e interesse foram todos superados. E durante o desenvolvimento, percebi que muitos professores ficaram ‘curiosos’ em saber mais sobre a ferramenta (professora/Progetec Hematita, 2016, grifo do autor).

Esse ‘saber mais sobre a ferramenta’ não fica centrado na técnica, mas nos papéis dos atores. Esta perspectiva vai ao encontro do que defende Valente (1997) sobre o uso do computador para além da informatização da educação. Ele pode ‘catalisar e auxiliar a transformação da escola’, aproveitando os desafios de modernização e de modificação das estruturas e dos contextos das aulas. De acordo com o autor, tirar partido das potencialidades do pensamento computacional, das linguagens de programação e do pensamento lógico pode ser mais inteligente e transformador do que simplesmente usar o computador para informatizar o ensino.

As narrativas, também, nos mostram uma dinâmica de respeito pelo outro, ouvindo o que o outro tem a dizer, em contraponto às verdades únicas. Essas interações são significativas e nos remetem a procedimentos e estratégias de pesquisa que sinalizam fluxos e movimentos no pensar e no agir.

Nesses movimentos, os professores entendem que os alunos passam a demonstrar mais interesse em participar da proposta de uso da linguagem de programação Scratch, inclusive assumindo um papel de protagonismo no processo, partícipes envolvidos no desenvolvimento da prática educativa, avançando na aprendizagem e envolvendo os outros.

Esse tipo de estudo possibilitou perceber como foi aprender e ensinar no contexto dessa formação, considerando os conteúdos, as interações e as participações, nos permitindo inferir que a experiência formativa com os alunos avançou, que houve avanços no envolvimento do grupo.

À luz das reflexões expressas nas narrativas, os professores indicam algumas rupturas e continuidades em relação às suas práticas com as tecnologias e com o fazer docente em seus cotidianos. Afirmações como ‘criar novas estratégias pedagógicas’, ou ‘aceitação das tecnologias pelos professores’ ou ainda ‘novas metodologias e maneiras de atrair seus alunos’, sinalizam potencial de mudança a partir da formação e das interações. A curiosidade e o interesse também aparecem nas narrativas dos professores, expressando a vontade de aprender mais sobre Scratch, inclusive em desenvolver trabalhos interdisciplinares.

Percebemos fissuras e rachaduras que possibilitam ventilar as práticas cotidianas no espaço escolar, por meio de uma nova linguagem, a do Scratch, para inventar e criar, a partir da ação dos alunos, em conjunto com os professores, numa relação participativa e colaborativa de trabalho no aprender e ensinar juntos.

Entendemos que os movimentos dos professores não são como processos em vias de mão única. Ao contrário, os professores tentam extrapolar as dualidades aluno - professor, educação tecnicista - educação crítica, aprender - ensinar, entrecruzando experiências, saberes e práticas.

A carga que a tecnologia, às vezes carrega, junto à necessidade de inovar, gera angústia a alguns professores. Entretanto,

[...] inovar não é criar do nada, dizia Paulo Freire, mas ter a sabedoria de revistar o velho. Revistar sua prática para pensar se a informática na escola é coerente com o sonho de fazer uma escola de qualidade para uma cidadania crítica (Guazzelli, 2015, p. 67).

O fator tempo apareceu como algo que merece ser refletido e problematizado no sentido de desconfigurar a lógica de hora/aula. Segundo o professor/Progetec Berilo (2016),

[...] a grande dificuldade, não querendo ser redundante, foi a falta de tempo de se trabalhar mais com os alunos e também com os professores. Uma aula, ou até mesmo duas aulas por semana para se trabalhar o Scratch é muito pouco.

Segundo Kenski (1998, p. 69-70), é necessário que o professor “[...] tenha tempo e oportunidades de familiarização com as novas tecnologias educativas, suas possibilidades e limites para que, na prática, faça escolhas conscientes sobre o uso das formas mais adequadas ao ensino”.

Considerações finais

Ao narrar suas experiências de formação, materializadas na prática pedagógica, as professoras e professores foram contando os seus possíveis, que muitas vezes esbarraram e fizeram fronteira com as limitações de seus contextos e com os esforços de superação.

As narrativas dos professores/Progetec’s estavam cheias de desejo de mudança. No reconhecimento das limitações das suas condições de trabalho, mas também no reconhecimento das suas incompletudes, da necessidade permanente de ensinar e aprender, no potencial criativo de cada um. As narrativas transbordaram de esperança em um devir na relação contraditória entre o fazer docente na contemporaneidade e as possibilidades de concretização de um desejo por uma educação de qualidade para todos.

A linguagem de programação Scratch se mostrou, nesse sentido, como uma possibilidade de mudança para os professores/Progetec, quando utilizado a partir do contexto e do interesse dos alunos e professores, no sentido de fomentar a problematização das questões da própria tecnologia, das suas limitações, da realidade material das escolas e do potencial criativo a partir do trabalho coletivo e do contexto de cada grupo.

Possibilitou, ainda, o contato com outros saberes e fazeres importantes para professores e alunos das escolas públicas do interior do estado do Mato Grosso do Sul, para rompermos com uma realidade cheia de ausências, de carências e de escassez.

O que nos pareceu evidenciado nesse exercício reflexivo, a partir das narrativas dos professores /Progetec’s, foi que esse processo formativo se deu por meio de fluxos que se alternam e se retroalimentam. Tudo ao mesmo tempo, numa espécie de emaranhado de linhas, desenhando aquilo que Deleuze e Guattari (1995) denominam de rizomas.

Ao fazerem parte de uma estrutura devidamente organizada com hierarquias e procedimentos bem definidos, os professores/Progetec’s puderam transgredir alguns preceitos como a alternância do papel professor aluno. Identificamos ainda as fissuras e rachaduras no sistema, que permitiram cumprir o currículo, mas ousar na prática, adotando uma tecnologia nova para o grupo, o Scratch. Como linhas de fuga observamos nas narrativas, o exercício de revisitar as suas práticas, rever modos de fazer, de ressignificar a ação pedagógica através da superação do medo, da aceitação de desafios e do trabalho colaborativo.

Assim, acreditamos que a formação continuada contribuiu para o exercício reflexivo dos professores/Progetec’s, no sentido de se reconhecerem em movimento no processo inventivo de ensinar e aprender, com práticas ambíguas e por isso mesmo positivas de rupturas, mas também de continuidades.

Referências

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3NOTA: Os autores foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

Recebido: 08 de Agosto de 2019; Aceito: 26 de Setembro de 2019

* Autor para correspondência. E-mail: miriam.arguelho@ufms.br

Miriam Brum Arguelho: Doutora em Educação, pela Universidade Católica Dom Bosco (2018); mestrado em Educação pela Universidade do Minho-UM (2003), pós-graduação em Técnicas e Contextos de e-Learning, pela Universidade de Coimbra (2005); graduação em Pedagogia, pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (1999). Atualmente é professora adjunta na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8631-4961 E-mail: miriam.arguelho@ufms.br

Maria Cristina Lima Paniago: Graduação em Letras; mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000) e doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2005). Pesquisadora visitante da Universidade de Manitoba, Canadá (Estágio Pós-Doutoral) Department of Family Social Science - Faculty of Human Ecology. Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação Mestrado e Doutorado na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4722-483X E-mail: cristina@ucdb.br

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