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Acta Scientiarum. Education

versión impresa ISSN 2178-5198versión On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.43  Maringá  2021  Epub 01-Sep-2021

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v43i0.49047 

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS

A ausência de reflexão no trabalho com as datas comemorativas na educação infantil: em discussão o ‘Dia da Mulher’

La ausencia de la reflexión al trabajar con fechas conmemorativas en la enseñanza primaria: en discusión el ‘Día de la Mujer’

Aliandra Cristina Mesono Lira1  * 
http://orcid.org/0000-0003-2945-464X

Débora Ribeiro2 
http://orcid.org/0000-0001-9856-555X

Eliane Dominico3 
http://orcid.org/0000-0002-2320-4036

Maristela Aparecida Nunes1 
http://orcid.org/0000-0002-0918-3304

1Universidade Estadual do Centro-Oeste, Rua Salvatore Renna, 875, 85015-430, Guarapuava, Paraná, Brasil.

2Universidade Federal do Paraná, Curitiba, Paraná, Brasil.

3Universidade Estadual de Maringá, Maringá, Paraná, Brasil.


RESUMO.

O objetivo do artigo é problematizar a ausência da reflexão nos encaminhamentos pedagógicos pautados em planejamento assentado nas datas comemorativas nas unidades educativas. Trata-se um texto de cunho teórico e elegemos como foco o ‘Dia da Mulher’, dada a efervescência de várias questões vividas e sofridas pelas mulheres nos diversos setores sociais, para discutirmos a relevância histórica e cultural deste tema para as crianças. O trabalho pedagógico na Educação Infantil tendo como mote as datas comemorativas, a partir das experiências vivenciadas por nós como professoras, tem sido realizado de maneira superficial, fato que culmina com a aceitação passiva e acrítica de discursos e estereótipos que propagam discriminação e violência, nesse caso com a mulher. Pretendemos com a escrita desse texto colaborar para a ressignificação do trabalho pedagógico, fomentando novas perspectivas para focalização de elementos curriculares que considerem a criança como partícipe de um processo educativo reflexivo e crítico. Os momentos de trabalho, nas instituições de Educação Infantil, precisam ter o compromisso de proporcionar experiências agregadoras de conhecimento, identificar elementos da cultura, da sociedade em que as crianças estão inseridas e alargar seu olhar e capacidade de reflexão para levá-las a pensar sobre como as coisas são e como chegaram a ser dessa forma.

Palavras-chave: infância; currículo; datas comemorativas; violência contra a mulher

RESUMEN.

El objetivo del artículo es problematizar la ausencia de la reflexión en los encaminamientos pedagógicos basados en la planificación más específicamente en las fechas conmemorativas en las unidades educativas. Se trata de un texto de cuño teórico, además, elegimos centrarnos en el ‘Día de la Mujer’, dada la efervescencia de varios problemas experimentados y sufridos por las mujeres en diversos sectores sociales, para tratar la relevancia histórica y cultural de este tema con los niños. El trabajo pedagógico en la enseñanza primaria con las fechas conmemorativas como lema, a partir de las experiencias vividas por nosotros como maestros, se ha realizado superficialmente, un hecho que culmina con la aceptación pasiva y acrítica de los discursos y estereotipos que propagan la discriminación y la violencia, en ese caso con la mujer. Con la elaboración de este texto, pretendemos contribuir a la resignificación del trabajo pedagógico, fomentando nuevas perspectivas para centrarse en elementos curriculares que consideren al niño como participante en un proceso educativo crítico y reflexivo. Los momentos de trabajo, en las instituciones de Educación Infantil, deben estar comprometidos con brindar experiencias que agreguen conocimientos, identifiquen elementos de la cultura, sociedad en la que se insertan los niños y niñas y amplíen su perspectiva y capacidad de reflexión para hacerles pensar cómo son las cosas. y cómo llegaron a ser de esa manera.

Palabras clave: niñez; plan de estudios; fechas conmemorativas; violencia contra la mujer

ABSTRACT.

Among the commemorative dates worked in the Early Childhood Education, we choose the 'Women's Day', given the effervescence of various issues experienced and suffered by women in the various social sectors, to discuss the historical and cultural relevance of March 8 th, when celebrates 'International Women's Day'. It is a theoretical text whose objective is to problematize the absence of reflection in the pedagogical referrals within the educational units. Fact that culminates in the passive and uncritical acceptance of discourses and stereotypes that propagate discrimination and violence. We intend with the writing of this text to collaborate for the re-signification of the pedagogical work, fomenting new perspectives to focus on curricular elements that consider the child as participant of the educational process on a critical bias. The moments of work, in Early Childhood Education institutions, need to be committed to providing experiences that aggregate knowledge, identify elements of the culture, society in which children are inserted and broaden their perspective and capacity for reflection to make them think about how things are and how they came to be that way.

Keywords: Childhood; curriculum; commemorative dates; violence against women

Introdução

O currículo escolar que orienta o trabalho educativo pode acabar por encaminhar abordagens prescritivas nas práticas pedagógicas que incluem as datas comemorativas. Dentre os vários temas enaltecidos pelo comércio e adotados pela escola está o ‘Dia da Mulher’, comemorado no dia 8 de março, também presente nas atividades educativas desde Educação Infantil. Esse tema comporta vários pontos que merecem ser debatidos, tais como a concepção de gênero, o preconceito, o feminicídio, dentre outros, que são anunciados pela mídia e pelos noticiários, mas, muitas vezes, não recebem a necessária discussão no âmbito educativo. Como alerta Kramer (2002) a insuficiência no embate acerca desse tema no interior da instituição educativa é resultado, entre outros aspectos, das fragilidades da formação docente fruto de um sistema educativo compartimentalizado e regido por um planejamento engessado. A configuração dos cursos de formação de professores é um fator que incidirá sobre a forma como a temática será ou não trabalhada com as crianças no exercício da docência.

Frente a essas questões, o objetivo desse texto é problematizar o trabalho com as datas comemorativas na Educação Infantil, em especial, refletir sobre como o ‘Dia da Mulher’ tem sido vivenciado pelas crianças e professoras nas instituições educativas. Esse trabalho surgiu a partir da constatação - no decorrer de nossas experiências profissionais nos últimos dez anos em um Centro de Educação Infantil no Município de Guarapuava, no Paraná - da resistência na apropriação de práticas pedagógicas reflexivas no trabalho educativo relacionado às datas comemorativas juntos às crianças. Em linhas gerais, observamos que o cenário educativo imposto por um currículo elaborado pelos gestores municipais e repassado para as instituições configura uma rotina na qual, segundo Micarello (2006), a lógica se resume em realizar práticas com o intuito de prestar conta do trabalho docente aos pais, com ‘trabalhinhos’ e apresentações em datas festivas. Como reflete a autora, comumente as atividades são destituídas de sentido para as crianças que as realizam mecanicamente para cumprir o ‘ritualismo’ pedagógico.

Com base em nossas experiências vivenciadas, identificamos ser corriqueiro o tratamento dessa data de forma romantizada, com propostas de trabalho que exploram o lado afetivo da questão (que não precisa ser desprezado), mas que privilegiam a confecção de cartões, pinturas, cartazes e apresentações artísticas, o que oculta as discussões que desnudam as questões históricas e sociais que originaram a criação da data e as condições reais vividas pelas mulheres na sociedade contemporânea. Práticas como essas nos incomodam e nos inquietam, pois, além de soterrarem a discussão crítica acabam por subjugar as crianças considerando-as como sujeitos incapazes. Essa dinâmica vai de encontro aos estudos contemporâneos da infância que consideram as crianças como atores sociais aptos a interpretar, opinar, criar, aprender e pensar (Pinto & Sarmento, 1997).

Metodologicamente, procedemos a uma análise reflexiva dessa realidade encontrada à luz de um arcabouço teórico constituído por um levantamento bibliográfico pautado em autores como Kramer (2002), Meyer (2010), Paredes (2012), Pinto & Sarmento (1997), dentre outros, que nos possibilitaram um olhar mais aprofundado a respeito do trabalho com as datas comemorativas nas instituições educativas. Consideramos pertinente trazer à tona essa problemática porque ela nos remete a questão estruturais que perpassam o papel da educação e nos levam a questionar se o conhecimento e os aspectos políticos, sociais e culturais são incorporados no sentido de produção de senso crítico ou num viés ideológico.

Lançar um olhar mais crítico sobre a comemoração dessa data no âmbito educacional é uma demanda necessária para que se enfrente a desmistificação de conceitos como patriarcalismo, machismo, violência e preconceito que submetem as mulheres a condições de inferioridade na sociedade. Essa ressignificação pode ser construída desde a Educação Infantil, por meio de conversas e debates com as crianças que incluam o pensar sobre o papel da mulher na sociedade, na vida cotidiana, no trabalho e, em contraposição, o lugar relegado a elas que as coloca e enxerga, muitas vezes, como inferiores aos homens.

O intuito é contribuir para o desenvolvimento de ações pedagógicas embasadas na criticidade e na percepção do papel dos fatos e compreensões históricas na constituição social dos sujeitos. Num primeiro momento, apresentamos, brevemente, aspectos da trajetória histórica vivida pelas mulheres na luta por seus direitos e, na sequência, dados e informações acerca da condição social vivida por elas na contemporaneidade. Posteriormente, problematizamos a forma como o ‘Dia da Mulher’ tem feito parte das práticas na Educação Infantil e ponderamos sobre possibilidades que superem o empobrecimento no trato com as questões relacionadas à temática.

As mulheres em movimento na história

Louro, Felipe e Goellner (2010), ao discutir as questões de gênero, registram que os múltiplos discursos sobre o corpo o conformam e indicam o lugar, as posições dos sujeitos na sociedade e exercitam jogos de poder, os quais precisam ser conhecidos e alvo de reflexão de modo a desencadear enfrentamentos para as condições de submissão que nos atingem.

A palavra gênero, utilizada nos estudos feministas, exige que reconheçamos que os gêneros masculino e feminino são construídos socialmente no âmbito cultural e a eles são atribuídos significados elaborados nos discursos simbólicos. Na prática, essas construções são constituídas por oposições binárias e fixas, em que o sujeito é limitado a uma posição ou outra, sendo que o diferente é marginalizado e vítima de preconceito. A crítica de estudiosas feministas é que uma dessas posições é sempre mais valorizada que a outra e seu lugar reconhecido socialmente está relacionado com questões de gênero. Nas oposições razão/emoção, guerra/paz, dia/noite, cultura/natureza, por exemplo, fica claro que as mulheres são associadas com a emoção, a paz, a noite e a natureza (Woodward, 2014).

Para Scott (1995), gênero se torna uma forma de indicar as construções culturais acerca dos papéis femininos e masculinos, ou seja, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. Para a autora, a definição de gênero repousa na conexão integral de duas proposições: “[...] (1) o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significados às relações de poder”. Nessa compreensão, reconhecemos que são as relações de poder que engendram as visões essencialistas e as oposições binárias. O essencialismo biológico, por exemplo, afirma uma identidade às mulheres originada do útero, de ser mãe, sensível e, portanto, ter que cuidar dos afazeres domésticos. Segundo Meyer (2010), é pelo movimento feminista que se começa a reconhecer que não são as características anatômicas e fisiológicas que justificariam as desigualdades de gênero. Suas argumentações são que:

[...] são os modos pelos quais características femininas e masculinas são representadas como mais ou menos valorizadas, as formas pelas quais se reconhece e se distingue feminino de masculino, aquilo que se torna possível de pensar e dizer sobre mulheres e homens que vai constituir, efetivamente, o que passa a ser definido e vivido como masculinidade e feminilidade, em uma dada cultura, em um determinado momento histórico (Meyer, 2010, p. 14).

Esse conceito inicial de gênero foi ressignificado e complexificado, como ressalta a autora, o que introduz importantes mudanças epistemológicas. Prevalece a compreensão de que é ao longo da vida, por meio das diversas instituições e práticas sociais, que nos constituímos como homens e mulheres, num processo ininterrupto e não linear, pois a depender dos tempos e lugares em que vivemos, haverá muitas e conflitantes formas de definir e viver a feminilidade e a masculinidade (Meyer, 2010).

Meyer (2010), reflete sobre a naturalização e o pouco estranhamento quanto ao lugar destinado à mulher na sociedade, o que geraria uma condição de cegueira com relação ao preconceito e à inferioridade que lhe são conferidos. A autora salienta que “[...] gênero continua sendo uma ferramenta conceitual, política e pedagógica central quando se pretende elaborar e implementar projetos que coloquem em xeque tanto algumas formas de organização social vigentes quanto as hierarquias e desigualdades delas decorrentes” (Meyer, 2010, p. 10-11).

O movimento feminista historicamente luta contra a unilateralidade da ordem patriarcal1. Representa um conjunto de mulheres engajadas nas lutas sociais que buscam defender seus direitos ao promover debates e reflexões sobre a participação da mulher na política, sobre a igualdade de direitos, sobre o aborto, a escolha pelo casamento, maternidade e sobre a divisão das tarefas domésticas, dentre outras. Temáticas que já são debatidas há algumas décadas, mas, dada a realidade social que ainda impera, o legado de luta permanece até os dias atuais.

[...] o movimento feminista não tem como objetivo a luta contra o sexo Patriarcado: sistema social onde homens mantêm o poder sobre os demais membros. masculino, mas sim está direcionado à organização das mulheres, à mobilização daquela metade da população que está inerte para o combate dos preconceitos, independentemente de quem seja o agente deles: homem ou mulher (Schneider, 2017, p. 18).

O dia 8 de março, dedicado ao Dia Internacional das Mulheres, é um dos frutos do movimento feminista e teve marcos em diferentes anos. Em 1910, a alemã e socialista Clara Zetkin propôs a criação de um Dia Internacional da Mulher sem definir uma data precisa. No entanto, como afirma Blay (2001), a data é relacionada, no Brasil e em alguns países da América Latina, ao incêndio histórico que atingiu uma fábrica de tecidos em Nova Iorque no ano de 1911, ou seja, um ano depois da proposta de Clara Zetkin. A corrente das feministas socialistas, da qual participava Clara, surge algum tempo depois da publicação do Manifesto Comunista e se desenvolve em distintos países, como Rússia e Alemanha.

Em 1917, uma marcha histórica das mulheres na Rússia, organizada pela Liga da Igualdade de Direitos das Mulheres, manifestou, entre seus protestos, reivindicações atreladas a questões relacionadas à fome e ao governo provisório. No ano de 1922, o dia 8 de março passou a ser oficialmente comemorado na Rússia como Dia das Mulheres, tendo sido decretado um ano antes na Conferência Internacional da Mulheres Comunistas. Em 1975, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o 8 de março como o Dia Internacional da Mulher. Controvérsias à parte, a data marca o início de uma luta.

O dia 8 de março é dedicado à comemoração do Dia Internacional da Mulher. Atualmente tornou-se uma data um tanto festiva, com flores e bombons para uns. Para outros é relembrada sua origem marcada por fortes movimentos de reivindicação política, trabalhista, greves, passeatas e muita perseguição policial (Blay, 2001, p. 601).

No cenário brasileiro, em meados de 1901, as condições sociais das mulheres trabalhadoras denunciavam uma situação precária e desumana. Segundo Rago (1987), a jornada de trabalho das mulheres variava entre 12 a 14 horas diárias nas fábricas, estendia-se para os afazeres domésticos e para o trabalho como costureiras, o que totalizava em torno de 18 horas. A autora destaca que as condições de trabalho dentro das fábricas eram péssimas, pois as mulheres sofriam com a falta de higiene, não eram remuneradas pelas horas extras trabalhadas e eram vítimas de exploração sexual. Elas se submetiam a essas circunstâncias por inúmeros motivos, dentre eles, o próprio medo de serem demitidas, já que os salários masculinos não eram suficientes para o sustento familiar. Mas para além disso, o receio de retrocederem em suas conquistas, uma vez que estavam a ingressar recentemente no campo de trabalho. Para elas, a perda do posto de trabalho significava também abrir mão da sua independência financeira e dos primórdios da sua autonomia.

No início do século XX, Berta Lutz foi uma grande referência na luta das mulheres brasileiras, especialmente na reivindicação ao direito ao voto feminino. Atitudes de mobilização de caráter político culminaram com a concessão do direito ao voto, em 1933, garantido na Constituição Federal de 1934, mas isso só foi efetivado, em 1945, quando aconteceu a queda da ditadura Vargas (Alves, 1980).

A década de 1960 foi significativa para a união provisória da luta das mulheres brasileiras, até então sob influências distintas, especialmente anarquistas e comunistas. Enquanto as comunistas lutavam pela implantação da ditadura do proletariado, as anarquistas acreditavam que esse sistema reproduziria as relações hierárquicas de poder, sociais e sexuais. A luta das mulheres contra a ditadura de 1964 girava em torno da volta da democracia, de denúncias sobre prisões e desaparecimentos políticos, sendo que o 8 de março era uma data que as unia contra os militares.

O ano de 1975 foi muito significativo, pois houve a criação de organizações feministas como o Centro da Mulher Brasileira. No ano seguinte, Eunice Michilles foi a primeira mulher a ocupar o cargo de senadora, no Brasil. Mais recentemente, em 2010, o campo da política brasileira ganhou uma nova configuração sendo eleita a primeira mulher a ocupar a Presidência da República. Dilma Vana Rousseff assumiu o mandado em 2011, sendo reeleita em 2014 e encerrou suas atividades no ano de 2016, após sofrer um golpe de Estado misógino, compreensão evidenciada numa perspectiva de análise crítica dos fatos históricos e políticos (Mattos, Bessone, & Mamigonian, 2016; Ramos & Frigotto, 2016; Bastos, 2017).

Tome-se, como exemplo, a utilização de um discurso misógino, com figuras que representavam a presidenta de forma desrespeitosa e machista como a apresentação realizada na capa da revista Isto É, em abril de 2016, como uma mulher histérica, sob a manchete ‘As explosões raivosas da presidente’. Conforme Lemos (2017), é muito comum que a imprensa determine o que receberá enfoque e de que forma, abrindo espaço para manipulações de acordo com interesses políticos. Na história recente do país já houve o caso do apoio, posteriormente confessado, da emissora rede Globo ao candidato Fernando Collor, nas eleições de 1989. Com Rousseff o processo foi similar, a oposição articulou-se por meses, com incentivo das redes de televisão, além de rádios e jornais, mobilizando manifestações nas ruas a favor do impeachment:

As mídias intensificaram a campanha de desqualificação da imagem da presidenta [...] com argumentos de gênero sexistas e misóginos. É importante sublinhar que não só a presidenta sofreu esse tipo de representação midiática pejorativa. Geralmente, as mulheres que ocupam cargos públicos são constantemente alvo de comentários machistas e misóginos com o intuito de desqualificá-las para a atuação na esfera pública (Lemos, 2017, p. 6).

Assim, percebe-se que a mídia é utilizada com recorrência para oprimir e subalternizar as mulheres, criando estereótipos e reforçando sua objetificação. Os acontecimentos brevemente relatados buscam evidenciar que o ‘Dia da Mulher’, muito antes de ser uma data divulgada e enaltecida pela mídia e de grande interesse ao comércio, representou um movimento de luta das mulheres por seus direitos e por um lugar digno na sociedade. Embora tenham atuado coletivamente na defesa desses direitos, cotidianamente dezenas de mulheres ainda são vítimas de violência e discriminações, bem como de ausência de condições de trabalho e salários dignos.

As mulheres, a violência e a discriminação

Em 2016, foram assassinadas 4.645 mulheres no Brasil, uma média de 13 mulheres por dia, uma a cada duas horas. O Atlas da Violência divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2018, mostra que os índices de violência contra a mulher subiram 6,4% em dez anos, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, e que as principais vítimas são as mulheres negras. A violência é uma das principais estratégias usadas pelo patriarcado para exercer o poder sobre as mulheres.

O patriarcado é definido por Paredes (2012) como um sistema de opressões, explorações, violências e discriminações que vive toda a humanidade (homens, mulheres e pessoas intersexuais), e a natureza, historicamente construída sobre o corpo sexuado das mulheres, é um sistema de morte.

Foi e é a primeira estrutura de dominação e subordinação da história; sobre essa se funda o sistema de todas as opressões que ainda hoje seguem sendo um sistema básico da dominação, é o mais poderoso e duradouro de desigualdade (Paredes, 2012, p. 102, tradução nossa2).

É composto por regras, costumes, tradições, preconceitos, leis e educação, os quais culminam para a naturalização dos papéis de gênero. Mas quando esse aparato ideológico não é suficiente para manter as subjetividades subordinadas, a violência pune a dissidência das mulheres (Paredes, 2012).

Nove anos após a implementação da Lei Maria da Penha3, no Brasil, foi aprovada a Lei do Feminicídio, em março de 2015. A lei se refere aos crimes contra as mulheres por razões da condição do sexo feminino, ou seja, quando suas mortes estão envolvidas em crimes motivados pelo ódio, repulsa e agressão em razão de serem mulheres. De acordo com Teixeira (2017), denominar esses assassinatos e qualificá-los como feminicídio foi uma grande conquista do movimento feminista, pois ao continuarem sendo denominados como homicídios, esses crimes mantinham as particularidades dos crimes contra mulheres apagadas: “Situar o feminicídio como prática misógina quer dizer que esses crimes são recheados de repulsa, desprezo e ódio às mulheres, demonstrados, muitas vezes, no requinte de crueldade com que são praticados” (Teixeira, 2017, p. 56). Referências nos estudos sobre feminicídio, Russel e Radford (2006, p. 57, tradução nossa4) assim definem o termo:

Feminicídio está no ponto mais extremo do contínuo de terror antifeminino que inclui uma vasta gama de abusos verbais e físicos, tais como estupro, tortura, escravização sexual (particularmente a prostituição), abuso sexual infantil incestuoso e extrafamiliar, espancamento físico e emocional, assédio sexual (ao telefone, na rua, no escritório e na sala de aula), mutilação genital (cliterodectomia, excisão, infibulações), operações ginecológicas desnecessárias, heterossexualidade forçada, esterilização forçada, maternidade forçada (ao criminalizar a contracepção e o aborto), psicocirurgia, privação de comida para mulheres em algumas culturas, cirurgias cosméticas e outras mutilações em nome do embelezamento. Onde quer que estas formas de terrorismo resultem em morte, elas se tornam feminicídios.

A maioria das mulheres enfrenta ou já foi vítima de algum tipo de violência durante sua vida, seja na rua, em casa, no trabalho, em momentos de lazer, com agressões perpetradas comumente por conhecidos e familiares. Contextos políticos e culturais mais conservadores, como temos vivenciado no Brasil nos últimos anos, endurecem e fortalecem os crimes contra as mulheres na medida em que propagam uma sensação de culpabilização das vítimas e desqualificam os discursos que defendem seus direitos. Atualmente, temos um presidente eleito que, em sua campanha, explicitamente utilizou discursos misóginos, racistas, homofóbicos e machistas para convencer os eleitores de que sua marca diferencial seria o fim do politicamente correto. Desde então, têm sido cada vez mais frequentes os ataques abertos às mulheres, negros e negras, gays e lésbicas, seja nas ruas ou na internet.

Um dos aspectos da violência de gênero é sua dimensão de mecanismo político, sendo que seu fim é manter as mulheres em desvantagem e desigualdade no mundo e nas relações com os homens, excluir as mulheres do acesso a bens, recursos e oportunidades, contribuir para desvalorizar e amedrontar as mulheres e reproduzir o domínio patriarcal. A constituição do pensamento moderno ocidental de forma dicotômica entre categorias como homem/mulher, razão/emoção, natureza/cultura, barbárie/civilização explica a brutalidade com que foram tratados indígenas, mulheres e escravizados desde o domínio colonial. Nessas oposições binárias, um termo é sempre mais valorizado, tido como a norma, e o outro como desviante. Esse sistema de pensamento dá suporte para o exercício da possessão e depredação do corpo feminino, ao negar a representação da totalidade da humanidade, e constrói uma figura de um par dicotômico, subordinado e passivo.

Em muitos casos de feminicídio, é comum a impunidade derivada de péssimas investigações e mobilização policial, averiguações malfeitas, juristas coniventes com práticas machistas e governos implicados em manter esse sistema. O feminicídio é um crime de Estado quando o mesmo é parte estrutural do problema por ser patriarcal e por não garantir às mulheres e meninas a segurança que garante suas vidas (Navaz, 2008). Os crimes contra mulheres e meninas se articulam com outras condições sociais e econômicas de extrema marginalização e exclusão social, jurídica e política e, assim, a violência contra as mulheres não atinge a todas igualmente. Os estudos sobre interseccionalidade permitem entender os entrelaçamentos entre gênero, classe e raça.

Para Lugones (2008), é parte da história do Ocidente que somente as mulheres brancas burguesas sejam consideradas como mulheres. Historicamente, as demais não eram apenas suas subordinadas, mas também vistas e tratadas como animais, no sentido profundo de seres sem gênero, fêmeas sem características de feminilidade. “Quando foram generificadas como similares das fêmeas colonizadas receberam o status inferior que acompanha o gênero mulher, mas nenhum dos privilégios que constituíam esse status no caso das mulheres burguesas brancas” (Lugones, 2008, p. 25, tradução nossa5). No Brasil, nos últimos dez anos, a taxa de homicídios para cada 100 mil mulheres negras aumentou 15,4%, enquanto entre as não negras houve uma queda de 8% (Lugones, 2008).

Como Lugones (2008) registra, a indiferença à violência contra a mulher é um desprezo às transformações sociais profundas, o que faz com que nem mesmo os homens que também são vítimas da dominação e exploração reconheçam sua colaboração para manter esse sistema. O momento tem sido de dureza e retrocessos e, como exemplo desse cenário, podemos lembrar que, em 2015, ocorreram ações nas casas legislativas de estados e municípios para a retirada do tema gênero dos planos de educação locais. O movimento teve grande participação de camadas religiosas que entendem o tratamento desse assunto nas escolas como uma apologia ao aborto, à homossexualidade e a comportamentos vistos como imorais. Para esses grupos conservadores, a discussão sobre esses temas deve ser limitada pelas discussões das famílias, as quais teriam o direito de decidir sobre as escolhas dos jovens e crianças.

Para os objetivos deste texto, entender como funciona o tema gênero nos currículos escolares - porque ele opera no ambiente escolar de forma significativa, à diferença de que, sem sua inclusão nos planos de educação, continua a operar como sempre, pela discriminação de gênero, pelo preconceito, pela desinformação, etc - é importante para compreendermos a legitimação e continuidade do sistema patriarcal violento e genocida instaurado e atuante em nossa sociedade. Ao tentar omitir oficialmente a discussão sobre a violência de gênero - os direitos das mulheres, homossexuais, transexuais e lésbicas - continuamos a operar em favor do assassinato de milhares de pessoas. Uma ação irrefletida também pode vir a reboque a depender de quais datas são tidas como comemorativas pelas instituições e como isso é trabalhado.

[...] o que causa inquietação não é a presença dessas datas, pois à instituição escolar não cabe desprezar, impunemente, a memória, a história, o passado, visto que tem como uma das suas funções a educação das novas gerações, levando até elas a herança coletiva e o bem comum das aprendizagens e dos conhecimentos. Mas sim a dimensão que o anuário de festas, eventos, momentos especiais ocupa na organização do trabalho pedagógico (Barroso, 2018, p. 23).

A condição humana, em suas mais diversas formas de ser e existir, deve ser objeto de reflexão nas instituições educativas desde a Educação Infantil, sob pena de que a exclusão ou negação nos currículos, bem como um trabalho superficial e estereotipado com determinados temas, imobilize o enfrentamento e anule a capacidade de indignação frente aos casos de violência.

O ‘Dia da Mulher’: pretexto para atividades ou oportunidade de reflexão?

As experiências vividas no trabalho pedagógico com crianças de 0 a 5 anos de idade têm revelado um cotidiano marcado por ações que são um pretexto para agregar uma gama de atividades no intuito de produzir ‘trabalhinhos’ com as crianças. Ostetto (2012), ao apresentar as formas mais comuns de planejamento encontradas na Educação Infantil, analisa cada uma delas, inclusive aquela baseada em datas comemorativas.

Nessa perspectiva, o planejamento da prática cotidiana é direcionado pelo calendário. A programação é organizada considerando algumas datas tidas como importantes do ponto de vista do adulto. Também aqui são listadas várias atividades, só que estas se referem a uma data específica, a uma comemoração escolhida pelo calendário (Ostetto, 2012, p. 181).

A análise da autora nos ajuda a pensar sobre o critério de escolha das datas a serem trabalhadas e a concepção histórica que perpassa tal seleção, a qual muitas vezes omite ou ignora as diferentes facetas da realidade e apoia-se nas verdades divulgadas pela mídia. Além disso, aponta que quem ganha com tudo isso é o comércio, o qual vende suas mercadorias e faz acreditar que as pessoas ou coisas merecem ser lembradas apenas uma vez por ano com ‘dancinhas, lembrancinhas e trabalhinhos’. O trabalho pedagógico, nesse sentido, fragmenta o conhecimento, menospreza a capacidade de pensamento das crianças e alija o papel da instituição de Educação Infantil de questionar o que circula na sociedade em geral.

Como vimos, os dados nos mostram uma realidade na qual a mulher é vítima de várias formas de violência, o que nos leva a considerar que o termo ‘comemorar’ é questionável e deve ser discutido, ou seja, festejamos o ‘Dia da Mulher’, mas não refletimos sobre os números alarmantes de feminicídios que ocorrem diariamente, sobre o papel da mulher na sociedade, dentre outros aspectos. Tendo em vista a função social das instituições educativas, caso a opção seja tomar o ‘Dia da mulher’ como uma data a ser lembrada, emergem possibilidades de reflexão e diálogo com as crianças que considerem suas experiências, seus pontos de vista e as ajudem a compreender a necessidade de enfrentamento e superação da condição de submissão a que historicamente as mulheres têm estado enredadas.

No que se refere à Educação Infantil, esse olhar é contemplado, por exemplo, nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil que defendem que:

[...] desde muito pequenas, as crianças devem ser mediadas na construção de uma visão de mundo e de conhecimento como elementos plurais, formar atitudes de solidariedade e aprender a identificar e combater preconceitos que incidem sobre as diferentes formas dos seres humanos se constituírem enquanto pessoas [...] (Brasil, 2009, p. 89).

O referido documento, ao respaldar uma concepção de mundo e conhecimento que acolha as diversidades, abre possibilidades para um campo de debate no sentido do desenvolvimento de uma formação pautada no respeito, no diálogo, na compreensão e no reconhecimento das diferenças, a qual será forjada a partir da reflexão sobre as condições sociais e materiais que rodeiam as crianças e no levantamento de formas de enfrentar e combater as injustiças. Mesmo as crianças pequenas podem falar sobre situações que vivenciam ou que acompanham nos meios de comunicação, pois são fatos que as afetam cotidianamente. A compreensão das crianças como protagonistas, produtoras de cultura nas relações travadas com o meio e com seus pares está explicitada no documento das Diretrizes (Brasil, 2009, p. 89).

Em nossa sociedade, nas ações cotidianas, acabamos por marginalizar a mulher ao colocá-la em um lugar secundário com práticas machistas e sexistas quando não incentivamos os meninos a participar na realização dos serviços domésticos ou quando dizemos que determinado pai ‘ajuda’ com as tarefas diárias. É responsabilidade tanto de homens como de mulheres criar filhos, atender suas necessidades diárias, pensar no funcionamento da casa, trabalhar, dentre outras funções. Se nas instituições educativas dividimos as crianças e indicamos que meninos vão brincar com bola e meninas de casinha ou se ‘decoramos’ de rosa os materiais das meninas e de azul os dos meninos, estamos a reforçar estereótipos culturalmente criados que aprofundam a separação entre os gêneros. Estas questões foram problematizadas por Finco (2003) e Cruz e Carvalho (2006) que refletem sobre como as brincadeiras vivenciadas pelas crianças institucionalmente explicitam relações de gênero e conformam comportamentos que precisam ser enfrentadas e combatidos.

Destarte, a preocupação com o trabalho com as datas comemorativas deve fazer parte da gestão das instituições e, caso a opção seja por privilegiar práticas pautadas nessa organização, as atividades a elas associadas precisam ser significativas para as crianças, ampliar seus repertórios de vivências e levar à reflexão sobre situações problemáticas que necessitam ser superadas e combatidas. Para Barroso (2018), as datas comemorativas podem existir no interior das escolas desde que se convertam em estratégias para alimentar memórias, discutir as condições reais de vida associadas ao tema, assim como servir de mecanismo de reiteração identitária.

Contudo, inseridas nas propostas pedagógicas de grande número de instituições, as datas comemorativas comumente são disparadoras de projetos que atendem as determinações e orientações das unidades educativas. Ostetto (2012) lembra, contudo, que a mudança frequente da temática dos projetos pode inviabilizar o vínculo e associação entre o tema que está a ser trabalhado e a data comemorativa em questão. Além disso, essa dinâmica engessa os professores e professoras e os envolve em um conjunto de preparações que lhes toma tempo e energia.

Ousamos advertir que o calendário comemorativo também pode ser nocivo ao profissional da Educação Infantil. Por um lado, esvazia seu potencial intelectual ao propiciar a adoção de rotinas e recorrências destituídas de nexo, de prazer, de desafios. Por outro, suga suas energias físicas e psíquicas, tomado pela premência dos prazos e das numerosas tarefas que estão imbricadas nesse tipo de evento (Barroso, 2018, p. 27).

Consequência dessa situação é o fato de que, se as datas forem abordadas apenas num sentido comemorativo e festivo, com ausência de um trabalho reflexivo, crítico e histórico, usa-se a data como pretexto e desenvolve-se um conjunto de atividades de modo superficial e que se repete ano a ano. Outro ponto preocupante é que a maioria dos encaminhamentos com confecção de cartões e lembrancinhas com flores, pintura de desenhos fotocopiados, danças e poesias decoradas, descaracteriza a participação efetiva das crianças e não configura um processo criativo.

Silenciar as crianças é ignorar sua participação no planejamento. Ocultar suas vozes é deixar de lado o ator principal nesse processo, é centralizar, no professor ou na instituição, a seleção de quais datas e temas são relevantes de ser trabalhados. Temos papel importante, sim, como adultos, mas ouvir os pequenos e contar com sua participação permite que a perspectiva da criança tenha lugar de importância em nossas práticas (Lira, Dominico, & Martins, 2018, p. 148).

Além disso, vale considerar que um planejamento assentado numa visão romantizada não coaduna com a realidade vivida na maioria das famílias, na qual as mulheres desempenham inúmeras atividades e são responsáveis pelo sustento e criação dos filhos, muitas vezes, sozinhas. No campo do trabalho, ainda persistem diferenças salariais entre homens e mulheres num mesmo cargo, o que revela disparidades injustificáveis, uma vez que as mulheres realizam as mesmas tarefas e têm se qualificado cada vez mais. Ou seja, a realidade não é um mar de rosas como sugerem os cartões entregues pelas crianças!

Esta forma de abordar o ‘Dia da Mulher’ nas instituições de Educação Infantil também se ancora na visão divulgada pela mídia e a publicidade que apresenta um cenário idealizado no qual homens, filhos e filhas são convidados a presentear as ‘honrosas mulheres’. Reforçar esse discurso não colabora para refletir sobre as reais condições de vida das mulheres na sociedade e fortalece uma concepção idealizada ao tratar um tema tão importante com encaminhamentos esvaziados de sentido. Meyer (2010, p. 11) lembra que:

[...] caberia a nós, educadoras e educadores, investir em projetos educativos que possibilitem mudar os focos usuais dos processos de ensino aprendizagem vigentes: da busca por respostas prontas para o desenvolvimento da capacidade de elaborar perguntas; das certezas para a dúvida e para a provisoriedade; do caráter prescritivo do conhecimento pedagogizado para um enfoque que estimule a des-naturalização de coisas que aprendemos a tomar como dadas.

Como forma de ressignificar essas práticas, respaldamo-nos no conceito de memória tratado por Nora (1993), o qual permite abordar esse assunto sob a perceptiva da reminiscência das ações femininas na sociedade e suas consequências. O autor destaca que “[...] o que nós chamamos de memória é, de fato, a constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que nos é impossível lembrar, repertório insondável daquilo que poderíamos ter necessidade de nos lembrar” (Nora, 1993, p. 9). Nesse sentido, a finalidade das datas comemorativas seria resgatar a história coletiva para que ela permaneça viva, passar de geração para geração, sendo também pela memória que se estabelecem formas de resistência e lutas. A partir dessa concepção, os movimentos sociais organizados por mulheres, na luta por seus direitos, têm importante papel na rememoração das condições aviltantes a que foram submetidas historicamente e aquelas que ainda estão arraigadas em nosso cotidiano e, por isso, precisam ser conhecidas, debatidas e superadas.

Vale registrar o estudo de Gomes e Monteiro (2016), que ao investigarem a existência do trabalho com as datas comemorativas na rede municipal de uma cidade do estado de Mato Grosso do Sul, destacam que havia diferenças no trato dessa questão, sendo ela mais prevalente em algumas regiões da cidade do que em outras. Essa situação nos ajuda a reconhecer que não há uma uniformização das práticas em torno das datas comemorativas, embora em maior ou menor medida ela se apresente na grande maioria das instituições.

Isso faz sentido uma vez que as práticas são a expressão de um currículo, entremeado por relações hierárquicas de poder, o qual não apenas reproduz conhecimentos, significados, ideias e aspectos culturais, mas efetivamente produz significações e identidades e trabalha na modelagem dos corpos para sujeitá-los a um modelo dominante.

Nas palavras de Silva (2006, p. 27), “[...] o currículo está centralmente envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos. O currículo produz, o currículo nos produz”. Assim, a linguagem não é mero dispositivo de expressão, pois funciona para incluir ou excluir significados, assegurar ou marginalizar certos comportamentos. Nesse sentido, o currículo também ensina muitas condutas com relação ao gênero, sendo um espaço “[...] em que as normas reguladoras do gênero marcam sua presença para ensinar o certo, o errado, o esperado, o adequado, o inadequado, o normal, o anormal, o estranho e o ‘abjeto’ em relação às condutas de gênero” (Paraiso, 2016, p. 208).

Ao deixar de problematizar temas relativos ao gênero como a violência e a desigualdade, os professores e professoras acabam, mesmo que involuntariamente, por operar por meio das representações, mascaram a realidade e contribuem, assim, para que a mesma não seja objeto de transformação. Como discutido anteriormente, as meninas sofrem com situações de violência e discriminação desde a infância e, muitas delas, só poderão compreender tais situações muitos anos depois, sendo que a Educação Infantil poderia contribuir para o entendimento e a superação das relações opressoras de gênero e sexualidade existentes. O silenciamento de temas como esse, no currículo, atua para manter as relações patriarcais e misóginas que fazem parte do modelo de sociedade e do pensamento moderno-ocidental.

Os momentos de trabalho, nas instituições de Educação Infantil, precisam ter o compromisso de proporcionar experiências agregadoras de conhecimento, identificar elementos da cultura, da sociedade em que as crianças estão inseridas e alargar seu olhar e capacidade de reflexão para levá-las a pensar sobre como as coisas são e como chegaram a ser dessa forma. Com esse propósito, poderão colaborar para o desenvolvimento da criticidade e, de posse de maiores elementos, será possível pensar se as datas devem e merecem ser comemoradas e de que forma podem fazer isso. Certamente, as crianças admiram suas mães e outras mulheres que fazem parte cotidianamente de sua vida e festejar esse dia pode ser uma decisão delas, mas desde que feita a partir da consciência dos muitos aspectos e variantes que a intersectam.

Considerações finais

A reflexão acerca do trabalho realizado com o ‘Dia da Mulher’, na Educação Infantil, necessariamente deve vir acompanhada de um olhar atento e cuidadoso sobre as questões históricas e sociais vividas pelas mulheres. A compreensão desses aspectos merece ser replicada para outras datas também, as quais têm sido frequentemente visibilizadas nas instituições que trabalham com crianças pequenas, mas de forma equivocada, como o ‘Dia do Índio’, ‘Dia da Água’, ‘Dia dos Pais e Dia das Mães’, dentre outras. A reflexão aqui apresentada teve como pano de fundo experiências localizadas que não nos permitem afirmar que todo o trabalho com as datas comemorativas na Educação Infantil, em especial o ‘Dia da Mulher’, em outras instituições, segue a linha do comércio e de uma comemoração laudatória sem problematizações. Contudo, a realidade vivida chama nossa atenção para a necessária problematização desses encaminhamentos e das concepções que os sustentam.

É nosso papel aclarar as situações sem ser refém de uma prática instaurada nas instituições que referenda um mero treino de habilidades manuais na confecção de ‘lembrancinhas’ para as mulheres-mães. Como terreno de disputas e conflitos em torno da produção de significados e identidades sociais e culturais, o currículo da Educação Infantil precisa ser pensado a partir dos silenciamentos e, assim, passamos a entender que, em termos de currículo, não podemos alegar ingenuidade ou desconhecimento, pois todo discurso, presente oficialmente ou não, produz e reproduz.

Ao colocar em foco questões como violência e discriminação de gênero, históricas e políticas, contribuímos para a construção de sujeitos comprometidos com a transformação da realidade. Essa postura se assenta na compreensão de que, embora as crianças necessitem dos cuidados dos adultos dada sua faixa etária, elas estão inseridas na sociedade e convivem e interagem com diversas situações, expressam suas percepções e, por isso, precisam ser consideradas como interlocutoras competentes para falar de si, do mundo e dos que com ela convivem.

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1Patriarcado: sistema social onde homens mantêm o poder sobre os demais membros.

2No original: Fue y es la primera estructura de dominación y subordinación de la história; sobre esto se funda el sistema de todas las opresiones que aún hoy sigue siendo un sistema básico de dominación, es la más poderosa y duradera de las desigualdades.

3Lei que entrou em vigor em 2006 e cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

4No original: El feminicidio se encuentra en el punto más extremo en el continuo contra el terror femenino que incluye una amplia gama de abusos verbales y físicos, como violación, tortura, esclavitud sexual (particularmente prostitución), abuso sexual infantil incestuoso y extrafamiliar, golpizas físicas y emocionales, acoso sexual (por teléfono, en la calle, en la oficina y en el aula), mutilación genital (cleterodectomía, escisión, infibulaciones), operaciones ginecológicas innecesarias, heterosexualidad forzada, esterilización forzada, maternidad forzada (al penalizar la anticoncepción y el aborto), psicocirugía, privación de alimentos para mujeres en algunas culturas, cirugía estética y otras mutilaciones en nombre del embellecimiento. Dondequiera que estas formas de terrorismo tengan como resultado la muerte, se convierten en femicidio.

5No original: Cuando fueron clasificadas como similares a las mujeres colonizadas, se les dio el estatus inferior que acompaña al género femenino, pero ninguno de los privilegios que constituían ese estatus en el caso de las mujeres burguesas blancas.

15Nota: As autoras foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão críticas do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

6Patriarchy: social system where men maintain power over other members.

7In the original: Fue y es la primera estructura de dominación y subordinación de la história; sobre esto se funda el sistema de todas las opresiones que aún hoy sigue siendo un sistema básico de dominación, es la más poderosa y duradera de las desigualdades.

8Law that entered into force in 2006 and creates mechanisms to curb domestic and family violence against women.

9In the original: El feminicidio se encuentra en el punto más extremo en el continuo contra el terror femenino que incluye una amplia gama de abusos verbales y físicos, como violación, tortura, esclavitud sexual (particularmente prostitución), abuso sexual infantil incestuoso y extrafamiliar, golpizas físicas y emocionales, acoso sexual (por teléfono, en la calle, en la oficina y en el aula), mutilación genital (cleterodectomía, escisión, infibulaciones), operaciones ginecológicas innecesarias, heterosexualidad forzada, esterilización forzada, maternidad forzada (al penalizar la anticoncepción y el aborto), psicocirugía, privación de alimentos para mujeres en algunas culturas, cirugía estética y otras mutilaciones en nombre del embellecimiento. Dondequiera que estas formas de terrorismo tengan como resultado la muerte, se convierten en femicidio.

10In the original: Cuando fueron clasificadas como similares a las mujeres colonizadas, se les dio el estatus inferior que acompaña al género femenino, pero ninguno de los privilegios que constituían ese estatus en el caso de las mujeres burguesas blancas.

Recebido: 07 de Agosto de 2019; Aceito: 24 de Junho de 2020

* Autor para correspondência. E-mail: aliandralira@gmail.com

Aliandra Cristina Mesomo Lira: Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professora Associada do Departamento de Pedagogia e do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Estadual do Centro-Oeste, em Guarapuava, Paraná. Líder do GEPEDIN/CNPq - Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Infantil da Unicentro. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-2945-464X. E-mail: aliandralira@gmail.com

Débora Ribeiro: Doutoranda em Educação na Universidade Federal do Paraná- UFPR. Integrante do Grupo de Estudos em Trabalho, Educação e História, GETEH da Unicentro. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9856-555X E-mail: deboraribeiromsncom@msn.com

Eliane Dominico: Doutora em Educação na Universidade Estadual de Maringá - UEM. Integrante do GEPEDIN/CNPq- Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Infantil da Unicentro. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2320-4036. E-mail: nane_dominico@hotmail.com

Maristela Aparecida Nunes: Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual do Centro-Oeste- UNICENTRO. Desenvolve pesquisa na área de Educação Infantil e biblioteca escolar. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0918-3304 E-mail: maristelinhanunes@gmail.com

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