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Acta Scientiarum. Education

versión impresa ISSN 2178-5198versión On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.44  Maringá  2022  Epub 10-Ago-2022

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v44i1.64291 

Entrevista

Educação, escola e esfera pública em Jürgen Oelkers

Education, school and the public sphere in Jürgen Oelkers

Educación, escuela y esfera pública en Jürgen Oelkers

1Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil.

2 Universidade Federal da Fronteira Sul, Av. Fernando Machado, 108E, 89802-112, Chapecó, Santa Catarina, Brasil.


RESUMO.

O texto que segue divide-se em duas partes, possuindo como núcleo central a entrevista com o prof. Jürgen Oelkers, pedagogo alemão e professor emérito da Universidade de Zurique, Suíça. Com o intuito de contextualizar o leitor, a primeira parte descortina visão panorâmica resumida do cenário educacional mundial, destacando o neoconservadorismo autoritário e obscurantista que constitui fonte de preocupação da cultura, ciência e educação e, precisamente por isso, tornando-se objeto da pesquisa educacional crítica. Também busca inserir brevemente a o pensamento pedagógico de Oelkers neste contexto. A segunda parte apresenta em detalhes a entrevista concedida pelo referido professor, mostrando o núcleo temático de suas pesquisas educacionais, seu diálogo permanente com autores clássicos como Jean-Jacques Rousseau e John Dewey e sua firme defesa a favor do papel da educação pública no fortalecimento democrático da esfera pública. Ao reatualizar o nexo estreito entre educação e democracia pensado por John Dewey no século passado, procurando vertê-lo contra formas dogmáticas e autoritárias da educação e da política, Jürgen Oelkers oferece ferramentas conceituais importantes para pensar o autoritarismo obscurantista que toma conta do cenário político e educacional brasileiro. Por fim, o texto como um todo deixa a entender o quanto a reconstrução crítica da tradição educacional democrática é indispensável à formação cultural ampliada das novas gerações

Palavras-chave: educação pública; democracia; esfera pública; formação humana

ABSTRACT.

The following text is divided into two parts, with the interview with Prof. Jürgen Oelkers, German pedagogue and professor emeritus at the University of Zurich, Switzerland, as its central nucleus. With the purpose of contextualizing the reader, the first part unveils a summarized panoramic view of the world educational scenario, highlighting the authoritarian and obscurantist neoconservatism that constitutes a source of concern for culture, science, and education and, precisely for this reason, has become the object of critical educational research. It also seeks to briefly insert Oelkers' pedagogical thought in this context. The second part presents in detail the interview granted by the mentioned professor, showing the thematic core of his educational research, his permanent dialogue with classical authors such as Jean-Jacques Rousseau and John Dewey, and his firm defense in favor of the role of public education in the democratic strengthening of the public sphere. By reactualizing the close nexus between education and democracy thought by John Dewey in the last century, seeking to pour it against dogmatic and authoritarian forms of education and politics, Jürgen Oelkers offers important conceptual tools to think about the obscurantist authoritarianism that takes over the Brazilian political and educational scenario. Finally, the text as a whole makes it clear how indispensable the critical reconstruction of the democratic educational tradition is to the expanded cultural formation of the new generations.

Keywords: public education; democracy; public sphere; human formation

RESUMEN

RESUMEN. El siguiente texto se divide en dos partes, teniendo como núcleo central la entrevista con el Prof. Jürgen Oelkers, pedagogo alemán y profesor emérito de la Universidad de Zúrich, Suiza. Para contextualizar al lector, la primera parte desvela una panorámica resumida del escenario educativo mundial, destacando el neoconservadurismo autoritario y oscurantista que constituye una fuente de preocupación para la cultura, la ciencia y la educación y, precisamente por ello, se está convirtiendo en objeto de investigación educativa crítica. También pretende insertar brevemente el pensamiento pedagógico de Oelkers en este contexto. La segunda parte presenta con detalle la entrevista concedida por el citado profesor, mostrando el núcleo temático de su investigación educativa, su permanente diálogo con autores clásicos como Jean-Jacques Rousseau y John Dewey y su firme defensa a favor del papel de la educación pública en el fortalecimiento democrático de la esfera pública. Al reactualizar el estrecho nexo entre educación y democracia pensado por John Dewey en el siglo pasado, buscando verterlo contra las formas dogmáticas y autoritarias de la educación y la política, Jürgen Oelkers ofrece importantes herramientas conceptuales para pensar el autoritarismo oscurantista que se apodera del escenario político y educativo brasileño. Por último, el texto en su conjunto deja claro hasta qué punto la reconstrucción crítica de la tradición educativa democrática es indispensable para la formación cultural ampliada de las nuevas generaciones.

Palabras-clave: educación pública; democracia; esfera pública; formación humana

Contextualização do entrevistado e da temática

O texto que segue tem como núcleo a entrevista feita com o prof. Jürgen Oelkers, pedagogo alemão e professor emérito da Universidade de Zurique, Suíça. Nosso contato vem de longa data e tem-se materializado em diálogo profícuo como sua imensa produção científica, publicada na forma de livros, ensaios e conferências. Seus interesses investigativos são amplos e diversificados, com foco concentrado na atualização de grandes clássicos do pensamento pedagógico ocidental, como Jean-Jacques Rousseau (1712-17780 e John Dewey (1859-1952). Seu interesse por tais autores deve-se a razões intelectuais, políticas e educacionais bem definidas, entre outras, pela sua defesa do papel da educação pública e da formação geral (Allgemeine Bildung) das novas gerações como forma consequente de fortalecimento democrático da esfera pública. Desse modo, a convicção de que a formação social democrática da vontade na esfera pública é o melhor antídoto contra a barbárie cultural e política mostra-se para a educação brasileira de uma atualidade intelectual impressionante, considerando todos os esforços político-governamentais que vão na direção contrária, ou seja, do fechamento obscurantista da esfera pública. Portanto, investigar teorias educacionais críticas para melhor compreender o que está acontecendo à nossa volta e com nós mesmos torna-se uma tarefa urgente do tempo presente e que tem visíveis implicações para a práxis pedagógica.

Desde a antiguidade, a educação foi vista como um dos principais recursos culturais para compreender os problemas humanos e sociais e buscar solucioná-los. Significou, desde sua origem, na tradição filosófico-pedagógica ocidental, o exercício espiritual privilegiado de cultivo do ser humano, auxiliando-o a se defrontar com seus próprios limites e capacidades. Associada ao Logos discursivo, a educação torna-se práxis reflexiva visando à preparação do ser humano para o enfrentamento consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Como forma de interação dialógica, ela propicia a aprendizagem recíproca dos envolvidos no processo formativo. A capacidade humana de escutar e de colocar perguntas provocadoras torna-se força movente da interação formativa, permitindo a reciprocidade nos atos de ensinar e de aprender. A escola (Skholé) nasce como lugar e espaço da formação livre e múltipla de todas as capacidades humanas, focando, sobretudo, no ensino da leitura e da escrita das novas gerações. O modelo clássico da concepção ampliada de educação, que compreende a formação de todas as capacidades humanas, ainda continua sendo a República, de Platão (428/427-348/347), considerada por muitos autores, entre eles Jean-Jacques Rousseau, o melhor tratado educacional já produzido pela humanidade. Tem-se, na República, o modelo filosófico-formativo da Paideia que projetará fortes luzes para os grandes projetos educacionais subsequentes, alicerçados na formação das capacidades humanas.

Na Modernidade, o projeto de educação ampla e integral ganha forma, especialmente, nas figuras de Jean-Jacques Rousseau e de Immanuel Kant (1724-1804). Rousseau (1992) esboça no Emílio -sem dúvida, o maior “tratado” educacional moderno -, os contornos gerais do processo formativo humano que se alicerça na concepção aberta de condição humana, justificada filosoficamente como perfectibilidade. Esse estatuto do ser humano em constante mudança e aperfeiçoamento abre alas para a teorização inovadora da educação infantil, depositando na formação da criança importância decisiva como preparação inicial para o exercício da cidadania livre e democrática no espaço público da República de iguais entre iguais. Seguindo de perto os impulsos da educação natural de Rousseau, Immanuel Kant também vê a educação da criança como importante ao convívio moral e democrático na sociedade adulta. Desse modo, deixa claro em suas aulas Sobre Pedagogia (Kant, 2002), ministradas durante vários semestres na Universidade Albertina de Königsberg (antiga Prússia Oriental), que o cultivo ‘bem regrado’ da liberdade individual torna-se condição indispensável para o convívio moral adulto, ou seja, para que cada ser humano possa tomar sempre a humanidade como fim e nunca como meio.

A ideia de formação geral (Allgemeine Bildung) que começa a se esboçar no pensamento de Kant por influência de Rousseau ganha contornos cada vez mais precisos, na história da filosofia educacional alemã, em vários autores, cuja síntese mais bem elaborada é oferecida por Johann Friedrich Herbart (1776-1841), em seu clássico Pedagogia geral (Allgemeine Pädagogik), certamente uma das principais obras pedagógicas do século XIX. Herbart revolucionou a pedagogia com suas ideias do governo amoroso do adulto em relação à criança, da ênfase à dimensão formativa do ensino, da multiplicidade do interesse tanto do educador como do educando e, por fim, do sentido moral da disciplina como núcleo do fortalecimento do caráter humano. Muito longe de ser tão somente uma forma de docilização dos corpos infantis, a disciplina significa, para Herbart, um dispositivo formativo importante para o cultivo espiritual do educando, auxiliando-o, desse modo, na busca interminável pelo seu próprio autogoverno, condição indispensável do bom governo dos outros.1

Esta longa tradição pedagógica deságua criticamente, já no século XX, na monumental obra Democracia e Educação (1993-2010), de John Dewey (1859-1952). Esforçando-se para reter o que há de mais avançado nessa tradição, Dewey reatualiza a defesa da educação pública, reinterpretando de maneira original e bem contextualizada a participação democrática na esfera pública. De modo mais acentuado do que Rousseau e Kant, ele vê como indispensável o nexo entre teorias da educação e teorias da democracia, mostrado que a cooriginariedade entre ambas é vital para assegurar a participação democrática na esfera pública. Sua atribuição formativo-moral à democracia permite-o concebê-la primeiramente como forma de vida e não simplesmente como forma de organização político-governamental. É com base nisso, então, que Dewey justifica a importância de experiências formativas locais, quer seja no âmbito de instituições educacionais formais, cujo exemplo paradigmático é a escola, quer seja em espaços não formais, pois são tais experiências que permitem o cultivo livre e autônomo do espírito, preparando-o progressivamente para a deliberação participativa na esfera pública.

Um estudo mais exaustivo poderia mostrar o quanto essa longa tradição intelectual se autoconstitui de maneira crítica, na medida em que um determinado autor, ao dialogar com a herança passada, busca atualizá-la conforme suas próprias perspectivas teóricas e às novas exigências de seu tempo. De qualquer forma, é no contexto dessa longa tradição intelectual e, sobretudo, encorajada por experiências formativas concretas, que a educação pública se torna impulso decisivo para a construção de sociedades democráticas, visando à ampliação dos direitos individuais e sociais. Ora, é precisamente desse solo que brota a firme convicção sobre a educação pública como poderosa força promotora de liberdade individual e de justiça social.

Contudo, a longa e plural tradição da educação pública democrática começa a sofrer fortes ataques mundiais já no final do século XX, acentuando-se ainda mais nestas duas primeiras décadas do século XXI. Considerando que várias são as razões de tal ataque, gostaríamos de nos reportar especialmente a duas, cuja combinação assume, no caso brasileiro atual, enorme destrutividade social, cultural e, por conseguinte, também humana. A primeira razão refere-se à economicização crescente dos bens culturais, especialmente, da educação, provocada pela versão agressiva do neoliberalismo contemporâneo. Liderado pelo sistema financeiro, a versão tupiniquim do neoliberalismo avança vorazmente na Instituição do Estado, buscando destituí-la de suas funções sociais básicas, ao mesmo tempo em que abre as portas para colocá-la inescrupulosamente a serviço dos interesses privados do grande capital. A segunda razão diz respeito à ascensão ao poder do neoconservadorismo em sua versão autoritária e anti-intelectualista, caracterizando-se pelo descaso à coisa pública e pela indiferença em relação aos grandes e graves problemas sociais e educacionais brasileiros. Ora, a combinação esdruxula e perigosa entre neoliberalismo selvagem e neoconservadorismo autoritário é a maior responsável pelo ataque, jamais visto nessas proporções, à cultura, à ciência e à educação.2

Contrapor-se a esta grande correnteza que parece arrastar tudo o que encontra pela frente, embora não seja tarefa fácil, é indispensável. Há várias maneiras de fazer diante do negacionismo obscurantista3 que toma conta do atual cenário cultural, político e educacional. A primeira e mais importante repousa nas diferentes formas de resistência que se constroem diariamente no interior das próprias instituições educacionais, por meio de experiências formativas concretas entre os educadores e educandos. O crédito dado a estas experiências assenta-se na convicção de que não se ensina democracia, mas se a vive nas relações humanas e sociais cotidianas, assumindo-a como hábito de conduta que medeia o processo interativo. Certamente, é isso que John Dewey tem em mente quando concebe a democracia principalmente como forma de vida e não só como forma institucional de governo (Dalbosco & Mendonça, 2020). Nessa ideia há um sentido originário de assegurar a espontaneidade (liberdade) da ação humana como núcleo irrecusável do próprio autogoverno ético-político, individual e social. Apesar do cenário pessimista em que nos encontramos, existem experiências democráticas no interior da escola brasileira que se colocam acertadamente na contramão da grande contracorrente destrutiva instaurada. São experiências construídas diariamente na relação pedagógica entre professor e aluno, no esforço de planejar, de executar e de avaliar de modo participativo o currículo escolar, na busca pela gestão escolar dialógica, entre outros. Também tem ocorrido movimentos político-formativos importantes que auxiliam na construção da formação educacional democrática no interior da escola, como é caso paradigmático da ocupação de escolas no Estado de São Paulo (Tavolari, Lessa, Medeiros, Melo & Januário, 2018; Silveira, 2020). Todas estas experiências sinalizam para outra maneira de pensar e vivenciar a escola que vão muito além da tentativa neoliberal de transformá-la numa grande empresa gerenciada pelos princípios da concorrência, eficiência e lucratividade (Dalbosco, 2019, 2020).

As experiências formativo-democráticas no interior da escola pública ganham ainda maior força quando alicerçadas na investigação aprofundada dos problemas educacionais, de sua origem, tecitura sociopolítica e de suas possíveis consequências humano-sociais. Uma das formas de dar solidez à tal investigação, embora não seja obviamente a única, é o diálogo crítico com grandes tradições intelectuais passadas e atuais. No caso de tradições passadas, dialogar com autores clássicos, independentemente da polêmica acerca do que é um clássico e de quem são os clássicos, coloca-nos em um patamar mais exigente, menos apressado e imediatista e mais cuidadoso e aprofundado, de exame crítico da atualidade e de nós mesmos como sujeitos que buscamos compreender o momento que vivemos. A leitura pacienciosa de um clássico auxilia na formação - e esta é apenas uma das razões para lê-lo - da capacidade imaginativa, uma vez que a potência de seu pensamento capacita a imaginar outros mundos possíveis. Ora, é precisamente a capacidade da imaginação humana que conduz ao romper do obscurantismo embrutecedor que se apresenta, entre outras formas, na administração economicista crescente das relações humanas e institucionais, que destrói a livre espontaneidade da ação humana, e no fechamento crescente do espaço público democrático por iniciativas governamentais autoritárias.

Foi justamente as questões expostas acima que nos motivaram a fazer a entrevista com o professor Jürgen Oelkers. Portador de longa e bem-sucedida experiência docente no ensino superior e profundamente engajado na investigação de problemas educacionais, Oelkers possui vasta produção intelectual, sob a forma de livros e artigos que o tornam um teórico expoente da educação europeia e mundial. Nascido na Alemanha, em 1947, estudou Ciências da Educação, Germanística e História na Universidade de Hamburg, onde também fez seu doutorado. Depois da passagem como professor em várias universidades alemãs, assumiu, em 1999, a cátedra de Pedagogia Geral (Allgemeine Pädagogik), na cobiçada Universidade de Zurique, Suíça. Em 2012, aposentou-se da docência, continuando intensamente com suas atividades de pesquisa e com suas publicações.

A entrevista chama a atenção para muitas questões educacionais, sobre as quais cada leitor poderá tirar suas próprias conclusões. De nossa parte, gostaríamos de destacar e comentar brevemente três aspectos: o diálogo com os clássicos, a reflexão sobre a educação pública, especialmente sobre escola pública e, por último, a defesa da democracia e da comunicação na esfera pública como núcleo indispensável da sociedade republicana. Pensamos que esses três aspectos dão tonalidade crítica ao pensamento pedagógico de Oelkers, permitindo vertê-lo contra todos os tipos de autoritarismo obscurantista que queiram reavivar, inaceitavelmente, formas passadas de servidão humana, pois a defesa da comunicação democrática da esfera pública continua, hoje, como também o fora ontem, uma das principais formas críticas contra a barbarização da cultura e seu respectivo cerceamento das maneiras livres de pensar e de agir.

Jürgen Oelkers é integrante de uma geração de intelectuais alemães - este é o primeiro aspecto - que vê no estudo dos clássicos um instrumento indispensável à formação humana e profissional. Inseriu-se, ainda como estudante, em uma atmosfera acadêmica que valorizava o estudo dos grandes autores da cultura humana, aliado à própria investigação de situações e experiências educacionais atuais e concretas. Condições mínimas de estudo e o acesso a boas bibliotecas oportunizam aos estudantes o trabalho paciencioso com o que há de mais rico e de mais profundo produzido culturalmente pela humanidade, mas esse mergulho nos clássicos não deve ser feito, como o próprio Oelkers reconhece, nesta entrevista, de maneira ingênua, repetitiva ou dogmática4. Talvez esse seja, precisamente, um dos maiores problemas que temos a enfrentar atualmente na formação de novas gerações: o pavor ou a aceitação dogmática dos clássicos é proporcional ao crescente distanciamento e desconhecimento que se tem em relação a eles; ou seja, são aceitos ou rejeitados com a mesma intensidade com que não são lidos. A educação contemporânea distancia-se do estudo dos clássicos na medida em que se deixa orientar cada vez mais pelas exigências mercadológicas e pelo consumismo imediatista que dela resulta. A leitura das obras de Oelkers, principalmente sua interpretação de Jean-Jacques Rousseau e de John Dewey, ensina-nos a valorizar criticamente os clássicos em nossa formação, desautorizando-nos, porém, devido à sua postura crítica, a tomá-los como se fossem nossa tábua de salvação. Em síntese, a enorme exigência que significa a leitura de um clássico nos torna tendencialmente mais exigentes conosco mesmos, provocando um tipo de cultivo autocrítico que não o teríamos sem o contato com seu texto.

A defesa da educação pública, segundo aspecto, repousa na convicção republicana moderna de que a educação é um direito de todos (Bildung für alle), sendo dever do Estado mediar com justa distribuição as condições financeiras, administrativas e pedagógicas mínimas. Obviamente, a educação pública envolve um emaranhado de problemas, a começar pela pluralidade divergente de concepções que a constituem. Oelkers insere-se na tradição intelectual que defende alguns princípios básicos, entre os quais, a liberdade individual, a igualdade de oportunidades e o sentido democrático (dialógico-participativo) de educação. De acordo com a concepção habermasiana, da qual o próprio Oelkers é um simpatizante crítico, a liberdade individual ganha maior sentido e legitimidade quando confrontada com a própria liberdade social, a qual depende que o próprio Estado garanta oportunidades iguais para todos. Por fim, neste contexto, a educação pública democrática - e essa é uma crença republicana fundamental - reúne poder intelectual e político capaz de formar para o exercício da liberdade individual baseada na cooperação solidária entre cidadãos e cidadãs. Contudo, isso só se torna possível com o cultivo comunicativo e transparente de espíritos com visão cosmopolita e com posturas democráticas de participação na esfera pública.

O autoritarismo obscurantista procura justamente destruir a esfera pública, atacando principalmente a Constituição e as instituições democráticas, como temos observado cotidianamente, na atual situação brasileira. Oelkers ressalta, como principal mecanismo da esfera pública - esse é o terceiro aspecto -, a livre participação comunicativa dos indivíduos, assumindo como cidadãos seus direitos e deveres uns para com os outros e em relação às instituições e ao próprio Estado. É nesse contexto que a liberdade individual ganha sentido preciso, não significando, obviamente, fazer o que bem entender a qualquer hora e lugar, pois isso coincidiria com a liberdade egoísta destrutiva, mas sim com a liberdade ‘bem regrada’ formulada ainda por Rousseau e aprofundada, na sequência, por outros autores. É o sentido de ‘bem regrada’ que assegura o respeito pelo outro e, com isso, sua dimensão social indispensável para que todos tenham oportunidades iguais. Este núcleo de educação moral que precisa iniciar ainda na infância de cada ser humano possui alcance público inestimável, uma vez que a noção de respeito recíproco, cooperação solidária e simpatia cooperante contrapõem-se obviamente à privatização egoísta do bem público. Desse modo, a defesa da educação pública torna-se importante porque, colocada a serviço do fortalecimento da esfera pública democrática, possibilita um nível de questionamento aprofundado sobre os desafios que o viver junto em sociedade representam. É precisamente nesse sentido que se torna atual revistar os diferentes autores que fazem a defesa democrática da escola pública, justificando seu papel formativo para a constituição e fortalecimento da esfera pública democrática. Mas, Oelkers não se ilude quanto aos obstáculos atuais que bloqueiam ou que impedem o exercício democrático na esfera pública, indicando, entre eles, em ensaio recente (Oelkers, 2017), o efeito destrutivo da cultura digital e do mau uso de redes sociais digitalizadas.

A obra do pedagogo alemão Jürgen Oelkers nos insere em temas educacionais atuais, gerando um leque de possibilidades conceituais para pensá-los, abrindo com isso clareiras para novos modos de ação. Nesse sentido, a entrevista abaixo apresenta-se como pequeno aperitivo de acesso a suas ideias pedagógicas e à crítica que elas representam a toda e a qualquer tentativa de fechamento obscurantista da esfera pública democrática.

Entrevista

1. Professor Jürgen Oelkers, poderia nos falar sobre alguns aspectos de sua biografia: sobre sua infância e seus primeiros estudos? Por que o senhor escolheu a pedagogia e a filosofia da educação? Quais foram suas influências intelectuais mais importantes?

Desde 1987, trabalho e vivo na Suíça com minha família e, dentre os quais, com dois netos (menina e menino). Cresci na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, em uma pequena cidade perto de Hamburgo, na parte ocidental do país. Devo meus primeiros estímulos intelectuais ao meu professor da escola primária. Estudei em Hamburgo, primeiro, História, Língua e Literatura alemã; depois, também Ciências Educacionais, onde experimentei a tensão entre teoria e prática. Isso me atraiu e sobre esse tema escrevi também minha tese de doutorado. Eu já lia filosofia na escola e meu primeiro livro foi Os Principais Problemas de Filosofia, de Georg Simmel (1858-1918). Ainda tenho esse livro na minha biblioteca. Durante meus estudos, fui influenciado na filosofia por Jürgen Habermas (1929- ), Niklas Luhmann (1927-1998) e Imre Lakatos (1922-1974); na educação, por Harm Prior (1927- ) e, em história, por Imanuel Geiss (1931-2012). Durante meu tempo como assistente, foram Richard Peters (1919-2011) e Paul Hirst (1946-2003).

2. Um de seus múltiplos e amplos caminhos intelectuais foi sempre a relação entre filosofia e educação em uma perspectiva clássica. Nesse contexto, o senhor se ocupou com diferentes autores.

2.1 O que o senhor teria a considerar sobre o papel do clássico na formação das novas gerações?

Os clássicos são a pedra de toque da educação, mas não em sentido normativo como a fixação do pensamento por tradições poderosas, mas como um desafio. Durante muito tempo, os ‘clássicos da educação’ foram tão sacrossantos quanto não lidos. Hoje, eles oferecem um modo de acesso aos problemas e, acima de tudo, põem um nível elevado de exigência. Nos clássicos sustenta-se o pensamento pedagógico, mas eles não oferecem a garantia do que é correto. Além disso, há sempre a questão de quem é contado como clássico e quem não o é. Mas, é exatamente isso que o torna emocionante, afinal, temos mais de três mil anos de reflexão educacional documentada em muitas variantes e em todos os idiomas.

2.2 Como o senhor considera a clássica filosofia da educação alemã? O que ainda podem nos dizer autores com Wilhelm von Humboldt (1767-1835) e Johann Friedrich Herbart?

O filósofo clássico alemão da educação é Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Ele pensa a partir de sistemas, poder-se-ia dizer hoje, e isso é desafiador, mas também inesgotável. ‘Dialética’ significa apenas, tão somente, que não se pode chegar a uma solução real porque o oposto também pode ser verdadeiro. Os ‘Fragmentos’ de Humboldt não são uma teoria da educação, a qual seja mais provável de ser encontrada em sua História e Filosofia da Linguagem. A pedagogia de Herbart deve ser entendida no contexto de suas obras completas, em particular, de sua metafísica, o que permite analogias surpreendentes com a teoria dos sistemas contemporâneos. Sua ética é a de Cícero e continua sendo digna de menção. Sua psicologia das representações, por outro lado, está ultrapassada, no sentido de que ninguém mais a utiliza. Mas, também tenho um coração pendido para os Herbartianos, sem os quais não haveria pedagogia nas universidades. E deve-se sempre prestar atenção àqueles que são ignorados, forasteiros como Friedrich Eduard Beneke (1798-1854), oponente de Herbart, ou Johann Georg Hamann (1730-1788), instigador e oponente de Kant. Finalmente, a filosofia alemã da educação não seria nada sem o confronto com John Locke (1632-1704) ou Jean-Jacques Rousseau. O Iluminismo se alimenta dos Antigos, sendo de suma importância sua relação com a teologia cristã.

3. O senhor ocupou-se intensivamente com John Dewey e escreveu um livro muito importante sobre este pensador, intitulado John Dewey e a Pedagogia (John Dewey und die Pädagogik).

3.1 Poderia dizer onde repousa seu interesse por Dewey?

A tradução alemã de Democracia e Educação foi escrita por Erich Hylla (1887-1976) e publicada em 1930. Houve mais duas edições até 1964 e, depois, não ocorreu mais nenhuma. Então, cuidei de uma nova edição, em 1993, ou seja, após trinta anos, e formulei neste contexto a seguinte pergunta: por que há tão pouco interesse em Dewey na Alemanha? Na época, isto também era verdade para a filosofia. Contudo, estava caindo de maduro a importância de se interessar por este autor. Não havia teoria sobre a relação entre democracia e educação na Alemanha, onde ‘democracia’ era entendida na maioria das vezes só como forma de governo e não como forma de vida, e a ‘educação’, por sua vez, definida prioritariamente de maneira normativa. Porém, Dewey fora muito pouco lido, geralmente recortado e separado do conjunto e amplitude de suas obras.

3.2 O que o senhor considera como central na filosofia da educação e no conceito de escola de Dewey?

Dewey não pensa em ‘education’ na linha da filosofia da educação (Bildungsphilosophie) alemã, ou seja, não ao menos na relação de ‘sujeito e objeto’ (Subjekt und Objekt) ou de ‘indivíduo e sociedade’ (Individuum und Gessellschaft). A sociedade não é oposta ao indivíduo; a ‘educação’ se baseia muito mais na reciprocidade social e deve ser entendida como processo contínuo de aprendizagem cognitivo-emocional. Pensar e agir pressupõem hábitos, mas estes podem mudar ou perdurar à luz da experiência, dependendo do problema e do resultado do aprendizado. A educação no sentido alemão pressupõe sempre a autonomia do espírito. Em Dewey, pensar e aprender são primordiais. A escola de Dewey em Chicago foi uma experiência em uma escola primária com ensino de matérias metodicamente diferentes. Mas é errado tomar Dewey isoladamente na pedagogia e apenas por meio de sua escola; o desafio é sua filosofia e seu núcleo democrático.

3.3 O que é importante em seus conceitos de democracia e esfera pública e o que deles ainda seria atual?

A disputa de Dewey com Walter Lippmann (1889-1974) sobre a mudança estrutural da esfera pública dificilmente foi notada na pedagogia alemã ou europeia, nem sua disputa com Robert Maynard Hutchins (1899-1977) sobre a primazia acadêmica da grande tradição educacional. As linhas de argumentação poderiam ter sido lidas desde cedo no trabalho de Hannah Arendt (1906-1975), mas a recepção não se concretizou. Hoje, mostra-se que a esfera pública política é o coração comunicativo da democracia, não apenas como campo de ação dos ‘eruditos’ (‘especialistas’) mas para coordenação das ações de todos os cidadãos e, portanto, como resolução das controvérsias que afetam a todos. A democracia como ação comunicativa remonta a Dewey.

4. O senhor também pesquisa intensivamente problemas educacionais da escola, universidade e formação de professores.

4.1 O que o senhor considera como problemático em relação a sempre mais progressiva economicização mundial da educação?

Quem compreende as escolas como empresas e quer maximizar os lucros (veja o Chile), com certeza impele o sistema educacional à ruína. O próprio sistema educacional criou ‘padrões’, sendo a ‘eficiência’ um requisito básico da administração educacional. Isso John Dewey já criticava em The School and Society (Escola e sociedade).

4.2 O que o senhor considera como grande problema atual da escola e universidade e quais seriam suas principais tarefas?

O maior problema é a preservação da formação em meio aos ambientes hostis à educação. As ‘mídias sociais’ são sistemas behavioristas de estímulo e recompensa que proporcionam participação imediata, mas sem exigir qualquer tipo de formação. O que quer que se entenda por ‘formação’, ela possibilita distância reflexiva, cautela, coragem e, principalmente, certa vontade de ‘dizer não’.

4.3 O que seria decisivo para a formação de professores? Ainda é possível defender uma orientação crítica? O que significaria crítica neste contexto?

A formação de professores diz respeito à educação profissional, no sentido de que se aprende a pensar e agir com profissionalismo. Sem crítica não haveria profissão e nem práxis, porém não no sentido de filosofia aplicada, mas sim no de busca por melhores soluções. Pode ser difícil ser um bom filósofo, mas sempre achei mais difícil ainda ser um bom pedagogo porque se deve fazer justiça a diferentes lados, à disciplina, à prática e à esfera pública. Não se trata apenas de teoria, mas de realidades externas ou problemas que não são postos só pela ciência.

5. Quanto às suas publicações científicas:

5.1 O senhor produziu uma quantidade inacreditável de trabalhos sobre a pedagogia da reforma em comparação internacional. Para citar apenas dois: Eros e Dominação: O Lado Escuro da Pedagogia da reformae Pedagogia da reforma: Uma História Crítica do Dogma. O senhor também proferiu muitas palestras e escreveu vários ensaios sobre o tema. Em que sentido a Pedagogia da reforma é um conceito educacional importante? O que pensa sobre os efeitos do Acordo de Bolonha para a escola e universidade europeia?

O que chamamos de ‘Pedagogia da reforma’ é antes de tudo uma construção historiográfica, na qual se fala da ‘nova educação’ e da qual deveria ter surgido desde o final do século XIX uma nova época, ‘centrada na criança’. Isto não resiste aos fatos históricos, embora permaneça um ponto de referência inevitável à identidade histórica da pedagogia. Interessei-me desde cedo em saber porque isto é assim e porque certos autores como Alexander S. Neill (1883-1973) ou Maria Montessori (1870-1952) deveriam ter este significado. Se casos de abuso sexual ou o uso de outras formas de violência podem ser comprovados em certos autores, como em Gustav Wyneken (1875-1964) ou Gerold Becker (1936-2010) e em certas instituições da Pedagogia da reforma (como a Escola alemã de Odenwald), então não é mais possível falar de uma época exemplar.

Se foi de fato uma época, isso pode ser discutido, porque conceitos centrais como ‘criança ativa’ ou ‘escola de autoatividade’ são mais antigos ainda. Por outro lado, o desenvolvimento escolar é uma tarefa contínua na qual a histórica Pedagogia da reforma dificilmente desempenha um papel. Ela vive do protesto e da ilusão de ‘algo completamente diferente’. Mas, ‘reforma’ na educação nunca é sinônimo imediato de ruptura radical. Somente uma ‘teoria’ pode sugerir isso e, ao mesmo tempo, fazer esquecer de que se trata só de uma ambição desejosa. Também, a reforma escolar consegue fazer apenas limitadamente a crítica escolar.

A Declaração de Bolonha é uma espécie de ‘escolarização’ do estudo. Isto não era novidade para muitas faculdades, mas o que é novo é a modularização e os rígidos controles de desempenho associados a ela. No entanto, não havia ‘estudo livre’ nas ciências naturais e nem na medicina ou economia. O behaviorismo por trás da Reforma de Bologna não levou à promoção de alunos melhores, mas tão somente à formalização de diplomas. Contudo, as culturas históricas das faculdades permanecem mantidas.

5.2 O senhor publicou junto com DietrichBenner o famoso Dicionário Histórico de Pedagogia (Benner & Oelkers, 2004), no qual também escreveu pessoalmente vários verbetes, entre eles o próprio verbete de ‘Educação’. Poderia nos falar sobre este grande e extenso trabalho e, especificamente, sobre seu verbete sobre educação?

A ideia básica do Dicionário era a apresentação e apreciação da longa história do pensamento educacional e mais precisamente do pensamento educacional ocidental desde a antiguidade grega. Trabalhamos por cerca de dez anos com conceitos diferentes para o Dicionário, visando apresentá-lo ao público em 2004, em Zurique. Vinte anos depois, acentuar-se-iam bem mais os aspectos ‘pós-coloniais’ da história, porém, ao mesmo tempo, tem-se sempre mais pela frente, diante de si, uma longa série histórica de reflexões educacionais que ainda ressoa e nos molda. Isso diz respeito também às categorias. Estou trabalhando em um livro sobre a história do conhecimento educacional que tenta mostrar isso.

5.3 O que senhor gostaria de comentar sobre seu livro Introdução à Teoria da Educação? Por que a pedagogia e a democracia precisam de uma teoria da educação?

No espaço público democrático estão sempre concorrendo diferentes teorias educacionais. Uma tarefa consiste em desenvolver critérios sobre que teorias são mais adequadas à democracia e que outras correspondem precariamente ou não correspondem em nada à democracia.

5.4 Consideramos o livro John Dewey e a Pedagogia como uma de suas obras mais importantes. No quinto capítulo o senhor trata dos ‘Três grandes debates sobre escola e educação’, dos quais tomam parte a ‘Mudança estrutural da esfera pública’ e ‘A educação liberal’. O senhor pode comentar brevemente sobre estes dois temas?

‘Educação liberal’ é a designação inglesa para o primado ou lugar de autoridade da tradição filosófico-cultural na formação humana. Isto está hoje mais frequentemente associado à Verdade e Método de Hans-Georg Gadamer (1900-2002). John Dewey debateu este tema 25 anos antes com Robert Maynard Hutchins, o presidente de sua antiga universidade. O principal argumento contra Hutchins é que as ‘tradições’ mudam e são sempre pontos de vista seletivos e, portanto, não têm um status atemporal. Além disso, um currículo contemporâneo não pode partir primeiramente de tradições. Isto não exclui experiências de aprendizagem com textos desafiadores e estrangeiros. A tese de Walter Lippmann sobre a mudança da esfera pública com o advento dos meios de comunicação de massa é respondida por Dewey com esforços crescentes de formação em geral (Allgemeine Bildung). A questão é se isto ainda toca o mundo das mídias sociais atuais5.

5.5 Finalmente, o senhor é professor há muito tempo em uma universidade localizada no país natal de Rousseau e escreveu um livro que leva o título deste pensador, intitulado Jean-Jacques Rousseau. Que papel Rousseau desempenha no contexto da educação moderna e da teoria educacional? Até que ponto ele é relevante atualmente, se ainda o é?

Jean-Jacques Rousseau sempre se descreveu em seus escritos como um ‘cidadão de Genebra’ (‘citoyen de Genève’), um orgulhoso cidadão da República livre de Genebra. A Suíça, como a conhecemos hoje, não existia em seu tempo. Rousseau ainda hoje é provocante, ao contrário de Johann H. Pestalozzi (1746-1827), por exemplo, que era cidadão de Zurique. Uma razão é que Rousseau pensa na forma de paradoxos e de modo inteiramente moderno. Ele não é o fundador da educação ‘conforme a natureza’, pois foram os pediatras antes dele que a instituíram. Ele também não é o primeiro crítico da disciplina religiosa. Porém, ele pensa paradoxalmente a educação e desencadeia provocações; sabia também o que significava dar este passo no âmbito da educação. A frase de Emílio: ‘O melhor hábito é não ter nenhum’, tem desafiado a pedagogia desde Plutarco e possui o objetivo de indicar os próprios limites do saber pedagógico. Rousseau foi condenado desde o início, mas sobreviveu a todos os seus críticos, precisamente porque não é o fundador da Pedagogia da reforma. Ele vivia erraticamente e era um mestre da autoencenação, tornando-se precisamente por isso um autor moderno6. Muito de seu pensamento está, entretanto, condicionado ao seu próprio tempo, como o retrato de gêneros ou suas fases da educação, que estão em dívida com a Histoire Naturelle do conde de Buffon (1707-1788). No entanto, Rousseau também pertence ao grupo daqueles autores que merecem ser lidos.

6. Observa-se, de maneira preocupante, a ascensão crescente do conservadorismo autoritário e do obscurantismo no mundo todo.

6.1 Como o senhor compreende este fenômeno e por que ele está acontecendo?

Primeiramente: ‘Conservador’ é aquele que preserva o que vale a pena preservar e não cede a cada mudança. ‘Autoritários’ são aqueles que acreditam estar na posse de uma verdade superior. E ‘obscuros’ são aqueles que associam poderes mágicos à verdade. Qualquer tipo de fascismo opera, por um lado, com conspirações e, por outro lado, com a Providência, para finalmente incluir nisso tudo uma dissimulação arquitetada das coisas. Se as pessoas acreditam, então, isso parece ocorrer realmente. Tais tipos obscuros não deveriam nem chegar perto do poder. Os republicanos americanos podem dizer desde Newt Gingrich (1943- )7 como se faz isso; portanto, a que grupos-alvo e com quais frases deve-se reagir.

6.2 O senhor teria algo a dizer sobre isso especialmente em relação a situação brasileira?

Um de meus filhos e sua esposa têm uma experiência de vida mais longa no Brasil e falam a língua, por isso eu também tenho certo conhecimento das condições deste país. Do meu ponto de vista, os problemas têm a ver também com o poder das igrejas ou seitas e sua influência sobre as crenças públicas, com promessas políticas, nas quais se acredita, embora não sejam cumpridas e, por último, mas não menos importante, com o grande fosso entre ricos e pobres. Então, acredita-se facilmente no ‘salvador’ e as elites políticas se adaptam rapidamente a isso, sobretudo quando sabem que podem tirar proveito.

6.3 Qual seria o papel da educação pública e da filosofia da educação contra isso?

Os filósofos devem se manifestar publicamente e se opor a isso. Eles devem lutar pela independência das universidades e contra a politização. As escolas precisam ser protegidas contra a infiltração dos evangélicos ou outros grupos radicais, o que só é possível se o problema também for claramente identificado. Não são as religiões, mas sim a crença cega nas Escrituras e o fanatismo daí resultante que são os inimigos da educação pública liberal. Com eles não é possível construir acordo racional.

7. Diagnóstico de época

7.1 Como o senhor avalia os grandes problemas mundiais atuais como Covid-19, pobreza, miséria, fome, problemas ambientais e, entre outros, a crescente injustiça social?

A democracia é uma promessa de justiça, mas também de prosperidade. É por isso que o crescimento econômico é inevitável, mesmo que muitos não queiram ouvi-lo. Acredito que o crescimento é compatível com a proteção ambiental, mas somente se a política não for corrupta e se não for contadas mentiras à população. A pandemia mostra os limites da sociedade digital e nos ensina que a natureza não pode ser controlada por truques artificiais. Mas, mostra também o modo irresponsável como os negacionistas e depreciadores estão agindo. Trump e Bolsonaro fizeram muitas vítimas.

7.2 Que papel desempenham neste contexto a democracia e a educação pública?

Em princípio, a educação pública serve à democracia, se ninguém for excluído das oportunidades e se todos puderem delas se beneficiar. A alfabetização, assim como a matemática, é uma tarefa permanente; as línguas ordenam a experiência; as ciências naturais ensinam sobre fatos; o movimento no esporte serve ao corpo; e a educação ambiental pode aguçar o sentido contra o desperdício de recursos.

8. Para finalizar, o que o senhor recomendaria aos professores e alunos em relação à formação humana no contexto desta diagnose de época?

A educação geral (Allgemeine Bildung) baseada na escola não se torna supérflua pelo avanço da cultura digital; os problemas devem parecer solucionáveis para que possam ser resolvidos e qualquer um que esteja desanimado não deve se tornar professor. Finalmente, cinismo não é obviamente constitutivo da postura pedagógica.

Referências

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1Para uma recepção atualizada do pensamento de Herbart, veja o dossiê publicado recentemente na Revista Espaço Pedagógico, organizado por Dalbosco e Neitzel (2022).

2Sobre a crise da democracia brasileira, ver o livro recente de Marcos Nobre (2022).

3Para uma análise crítica do negacionismo adotado pelo governo de Jair Bolsonaro como negação da política e como forma própria de fazer política, consultar, entre outros, Duarte e César (2020) e Nobre (2020). Para uma crítica à comunidade moral bolsonarista ver Dalbosco, Cenci, e Rossetto (2020).

4Oelkers mostra de maneira muito ilustrativa, em ensaio traduzido para o português e publicado pela Revista Espaço Pedagógico (PPGEDU/UPF/RS), com o título ‘John Dewey e a refutação do pensamento educacional clássico’, o modo como se apropria criticamente da tradição pedagógica para pensar o nexo indispensável entre democracia e educação. O ensaio deixa claro o quanto a teorias democráticas modernas da educação dependem da apropriação crítica da pedagogia clássica (Oelkers, 2018).

5Sobre este tema, ver o ensaio recente já citado de Jürgen Oelkers (2020). (NT).

6Oelker desenvolve com mais detalhes em seu livro Jean-Jacques Rousseau o que apenas menciona aqui sobre o mestre da autoencenação. Umas das tarefas principais que Rousseau atribui ao preceptor no Emílio é sua capacidade de criar cenários pedagógicos envolvendo problemas para que seu aluno fictício pode descobri-los e buscar solucioná-los. No entanto, para que possa criar cenários, o preceptor precisa se autocriar; ora, exatamente por isso que a encenação exige a própria autoencenação (NT).

7Trata-se de Newton Leroy ‘Newt’ Gingrich, professor universitário, historiador, escritor e político americano e ex-membro da Câmera dos Representantes (NT).

10Nota: para artigos com mais de um autor deve-se informar a contribuição de cada autor na produção do artigo.

Recebido: 08 de Julho de 2022; Aceito: 03 de Agosto de 2022

*Autor para correspondência. E-mail: odair.neitzel@uffs.edu.br

Claudio Almir Dalbosco: Doutor em Filosofia; Professor do PPGEDU/UPF; Bolsista Produtividade do CNPQ. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3408-2975 E-mail: vcdalbosco@hotmail.com

Odair Neitzel: Doutor em Educação pela UPF com estágio na UNIKassel - Alemanha; Docente do Magistério Superior na UFFS - Campus Chapecó - SC; Lider do Grupo de Pesquisa em Educação, Filosofia e Sociedade - GPEFS. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8121-1149 E-mail: odair.neitzel@uffs.edu.br

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