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Acta Scientiarum. Education

Print version ISSN 2178-5198On-line version ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.45  Maringá  2023  Epub Oct 01, 2022

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v45i1.54836 

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS

Inteligência e moralidade nas altas habilidades/superdotação: perspectivas piagetianas

Inteligencia y moralidade em altas capacidades/superdotación: perspectivas piagetianas

Bernadete de Fatima Bastos Valentim1 
http://orcid.org/0000-0002-2521-6540

Carla Luciane Blum Vestena1 
http://orcid.org/0000-0002-8655-7840

Cristina Costa-Lobo2 

Carla Maria de Schipper3 
http://orcid.org/0000-0002-4805-840X

1Universidade Estadual do Centro-Oeste, Rua Salvatori Rena, 875, 85015-430, Guarapuava, Paraná, Brasil.

2Instituto de Estudos Superiores de Fafe, Medelo, Portugal.

3Uniguairacá Centro Universitário, Guarapuava, Paraná, Brasil.


RESUMO.

Pessoas com altas habilidades/superdotação têm características específicas tais como, habilidades acima da média, criatividade e envolvimento com a tarefa. Essas características devem ser reconhecidas no meio educacional e social, inclusive no que se refere ao desenvolvimento moral. O artigo tem por objetivo discutir aspectos relacionados à construção da inteligência e da moralidade em pessoas com altas habilidades/superdotação na perspectiva da epistemologia genética, destacando a sua importância para o contexto educacional. A metodologia utilizada consistiu em pesquisa bibliográfica por método de revisão sistemática na base Scielo. Trata-se de pesquisa exploratória sobre os constructos: inteligência e moralidade na visão de Piaget. Na busca realizada, foram encontrados trinta e quatro artigos. Trinta e um foram excluídos por não tratar do tema. A síntese dos resultados aponta para falta de evidência de estudos pois, foram encontrados na última década apenas três artigos. Foi necessário expandir a busca junto a revista Schème - Revista Eletrônica de Psicologia e Epistemologia Genéticas. As pesquisas analisadas evidenciam que na superdotação existe uma complexidade na formação das estruturas do pensamento, ocorre antecipação dos estádios de desenvolvimento da inteligência, aguçado senso de moralidade e características peculiares como reversibilidade e tomada de consciência. Sugere-se, portanto, que um ensino que pressuponha tais características proporcione desafios adequados ao desenvolvimento inteligência e da moral considerando as especificidades dos sujeitos superdotados, que nem sempre estarão alinhados a sua faixa etária. Assim, sugere-se que sejam realizadas outras pesquisas que busquem elucidar a lacuna encontrada para o aprofundamento da questão.

Palavras-chave: altas habilidades/superdotação; inteligência; moralidade; epistemologia genética

RESUMEN.

Las personas con altas habilidades/superdotación tienen características específicas como habilidades por encima del promedio, creatividad e implicación en la tarea. Tales características deben ser reconocidas en el entorno educativo y social, incluso en lo que respecta al desarrollo moral. Este artículo tiene como objetivo discutir aspectos relacionados con la construcción de inteligencia y moralidad en personas con altas habilidades/superdotación en la perspectiva de la epistemología genética, destacando su importancia para el contexto educativo. La metodología utilizada consistió en la investigación bibliográfica mediante un método de revisión sistemática basado en la base Scielo. Se trata de una investigación exploratoria sobre los constructos: inteligencia y moralidad en la visión de Piaget. En la búsqueda se encontraron treinta y cuatro artículos. Se excluyeron 31 por no abordar el tema. La síntesis de los resultados apunta a una falta de evidencia de los estudios porque solo se encontraron tres artículos en la última década. Fue necesario ampliar la búsqueda con la revista Schème - Revista Electrónica de Psicología y Epistemología Genética. Las investigaciones analizadas muestran que en la superdotación hay una complejidad en la formación de estructuras de pensamiento, hay una anticipación de las etapas del desarrollo de la inteligencia, un agudo sentido de la moralidad y características peculiares como la reversibilidad y la tomada de conciencia. Se sugiere, por lo tanto, que una enseñanza que presupone tales características brinda desafíos apropiados al desarrollo de la inteligencia y la moral considerando las especificidades de los sujetos superdotados, quienes no siempre estarán alineados con su grupo de edad. Por lo tanto, se sugiere que se realicen más investigaciones que busquen dilucidar la brecha encontrada para profundizar el tema.

Palabras claves: dotización; inteligencia; moralidad; epistemología genética

ABSTRACT.

People with giftedness have specific characteristics such as, above average skills, creativity and involvement with the task. Such characteristics must be recognized in the educational and social environment, including with regard to moral development. This article aims to discuss aspects related to the construction of intelligence and morality in people with giftedness from the perspective of genetic epistemology, highlighting its importance for the educational context. The methodology used consisted of bibliographic research using a systematic review method on the date of Scielo. This is exploratory research on the constructs: intelligence and morality in Piaget's view. In the search, thirty-four articles were found. Thirty-one were excluded for not addressing the topic. The synthesis of the results points to a lack of evidence from studies because only three articles were found in the last decade. It was necessary to expand the search with the magazine Schème - Electronic Journal of Psychology and Genetic Epistemology. The researches analyzed show that in giftedness there is a complexity in the formation of thought structures, there is an anticipation of the stages of intelligence development, a keen sense of morality and peculiar characteristics such as reversibility and consciousness. It is suggested, therefore, that a teaching that presupposes such characteristics provides appropriate challenges to the development of intelligence and morals considering the specificities of gifted subjects, who will not always be aligned with their age group. Therefore, it is suggested that further research be carried out in order to elucidate the gap found to deepen the issue.

Keywords: Gifted/high ability; intelligence; morality; genetic epistemology

Introdução

Apesar dos minuciosos estudos sobre a epistemologia realizados por Piaget durante a sua trajetória, sabe-se que ele não discutiu a questão das Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD). No entanto, não há como ignorar sua contribuição de natureza genética e interdisciplinar para que professores conheçam e compreendam como seus estudantes constroem o conhecimento uma vez que, “[...] embora se interessasse pelos problemas educacionais, seus estudos tinham objetivo epistemológico, sua obra teve maior repercussão entre especialistas da educação” (Fabril & Calsa, 2009, p. 246; Luz, 1994).

Especialmente no que tange a aprendizagem em superdotados, Almeida, Costa-Lobo, Almeida, Rocha, e Piske, (2017) comentam que sobre esses sujeitos é preciso considerar: pró atividade, autorregulação de sua atitude para obter mais conhecimento, rapidez de absorção de informações, e capacidade de colocar essas informações em ação. Também podem simular possíveis soluções e ideias para um determinado problema, têm elevada capacidade de atenção e memória, antecipação no aprendizado quando comparada sua faixa etária, vocabulário avançado, hábito de leitura independente, ampla generalização de conhecimento, fácil apreensão de significado, perfeccionismo na execução de tarefas, elevado sentido de humor e criatividade.

Indagar sobre o modo com que esses sujeitos desenvolvem tais estruturas do pensamento, direciona o fazer pedagógico a fim de encaminhar conflitos educacionais e utilizar os métodos mais adequados as necessidades educacionais de cada um (Luz, 1994). Nesse intuito, buscou-se sob princípios da teoria piagetiana identificar elementos relacionados as características do pensamento inteligente e moralidade presentes nas AH/SD na perspectiva da epistemologia genética, tendo em vista que só é possível conhecer um fenômeno embasado em uma teoria consistente e evidências científicas que se apresentem.

Parte-se para isso, da lacuna indicada por Garcia (2012), quando constatou a partir de análise dos trabalhos apresentados em 20 anos na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, Região Sul (AnpedSul) o esvaziamento da teoria com forte tendência a uma perspectiva pragmática nas pesquisas em educação especial.

Considera-se que ao analisar em ensaio teórico a superdotação na perspectiva da epistemologia genética, identificando elementos que favorecem a compreensão da inteligência e da moralidade nas altas habilidades/superdotação, parte-se para o entendimento sobre a construção dessas no desenvolvimento humano. Igualmente, abre-se discussão científica importante e considerada em conjuntura atual pois, a superdotação aparece como tema de interesse da ciência, ao mesmo tempo que poucas pesquisas se apresentem sob esta perspectiva.

Assim como Luz (1994, p. 25), considera-se que na pesquisa é preciso “[...] certezas teóricas e metodológicas interdependentes que permitem a seleção, a avaliação e a crítica [...]”, sem sua dissociação da evolução histórica. Para tanto, aqui propõe-se de forma síncrona, relacionar moralidade e inteligência, pois,

As sucessivas compensações com que a acção humana, desde as reações mais elementares, às de natureza mais elaborada, responde às perturbações constantes a que está sujeita traduzem-se num processo de equilibrações, com reflexos na redefinição dos modelos de referência que os sujeitos dispõem e com base nos quais organizam o funcionamento das próprias condutas (Da Luz, 1994, p. 46).

Valentim e Vestena (2019), mencionam a relevância das relações interindividuais e a tomada de consciência de si e dos outros construídas no campo social, entretanto, para que isso aconteça torna-se fundamental autoconhecimento e consciência ambiental e relacional.

A esse propósito, este estudo oferece percepções importantes relativas as pesquisas e ao sujeito superdotado em coexistência social/educacional, sua necessidade de ser compreendido e incluído no processo de ensino e aprendizagem, além do respeito a sua identidade.

Para mais além, oferece-se com os resultados aqui encontrados subsídios importantes na construção de políticas públicas que contribuam com a diversidade escolar e a necessidade de se pensar a sala como ambiente múltiplo/individual e coletivo.

Metodologia

Parte-se de ensaio teórico, por meio de pesquisa bibliográfica, com análise qualitativa que busca analisar dados sejam eles empíricos ou epistemológicos, sendo igualmente pesquisa exploratória, pois, pretende suscitar novas discussões em relação ao tema principal (Silveira & Córdova, 2009).

Adotou-se método revisão sistemática de artigos publicados junto a base de dados Scielo, com strings de pesquisa ‘superdotação and Piaget’; ‘superdotação and moral’; ‘superdotação and inteligência’; ‘altas habilidades and moral’; ‘altas habilidades and inteligência’. A revisão sistemática foi utilizada para dar ênfase à lacuna de pesquisa em relação ao tema proposto, porém, não se configura como objetivo central deste trabalho.

Entende-se revisão sistemática como Berg, Vestena, e Costa-Lobo (2020), que mesclam métodos em concepção de protocolo próprio, previamente aferido, demonstrando-se ferramenta rigorosa na seleção de pesquisas. Nesse sentido, estabelece “[...] processo de coletar, conhecer, entender, analisar, resumir e avaliar um conjunto de estudos científicos destinados a criar o estado da arte em tópico particular [...]’ de forma sistematizada (Levy & Ellis, 2006, p. 185).

Quando da coleta, foram encontrados um total de trinta e quatro estudos. A partir da análise dos resumos excluíram-se trinta e um estudos por não abordarem a temática relativa à perspectiva piagetiana, ou por se repetirem entre as buscas quando das buscas junto as strings. Ao final do levantamento foram encontrados artigos em três revistas: Revista Brasileira de Educação Especial de Santa Maria, Revista Brasileira de Educação Especial de Marília e Revista de Psicologia, como demostra a Tabela 1.

Tabela 1 Primeira busca - nome das revistas em quais os trabalhos foram encontrados. 

Revista Referência
Revista Brasileira de Educação Especial - Marília/SP Bahiense & Rossetti (2014)
Revista de Psicologia Salles & Alencar (2018)
Revista Brasileira de Educação Especial - Santa Maria/RS Valentim & Vestena (2019)

Fonte: Elaborada pelas autoras.

Em função do número reduzido de pesquisas localizadas optou-se pela busca junto a revista Schème - Revista Eletrônica de Psicologia e Epistemologia Genéticas que concentra estudos relativos a pesquisas com fundamentação teórica relacionada a obra de Piaget. A Tabela 2 demonstra que neste periódico foram encontrados dois estudos.

Tabela 2 Segunda busca - trabalhos encontrados na Revista Schème. 

Revista Referência
Schème - Revista Eletrônica de Psicologia e Epistemologia Genética Piske & Stoltz (2012)
Schème - Revista Eletrônica de Psicologia e Epistemologia Genética Piske, Stoltz, & Bahia (2015)

Fonte: Elaborada pelas autoras.

As cinco pesquisas encontradas evidenciam a falta de análises sob perspectiva piagetiana e demonstram lacunas para futuros estudos. Igualmente demonstram que o Paraná por meio dos Programas de Pós-graduação em Educação e Psicologia de suas universidades públicas, tanto a Federal do Paraná (UFPR), como a Estadual do Centro-Oeste (Unicentro) se demonstram polos científicos importantes nessa temática podendo ser considerados referência quando há concepção sistêmica de constructos interrelacionados, pois, dos cinco estudos finais dois são UFPR e um da Unicentro. A discussão dos resultados se demonstra incorporada nos relatos teóricos abaixo, confirmando ou refutando a teoria piagetiana no que tange as AH/SD, o que faz deste estudo, documento teórico inédito e importante quando da fundamentação de pesquisas futuras.

Discussão dos resultados

A epistemologia genética de Piaget investiga a construção do conhecimento compreendido não como algo estático, mas como processo que evolui em níveis. Em outras palavras, a inteligência se desenvolve por meio de constante processo de organização e adaptação do sujeito ao interagir com o meio.

Dolle (1987, p. 45) explica que a epistemologia genética se volta às origens do conhecimento “[...] logo apreender a gênese do conhecimento na perspectiva em que não há conhecimento predeterminado, nem nas estruturas do sujeito, posto que elas são o resultado de uma construção efetiva e contínua”.

Em acordo com Luz (1994), para Piaget o desenvolvimento humano envolve tensão e desequilíbrio no existir em atuação. Assim, supõe que haja mecanismo que permite o reajustamento contínuo ao cotidiano vivido, conflitos e problemas. Entretanto, tal dinâmica síncrona e assíncrona, são de natureza complexa, pois, ao mesmo tempo que apreende as informações do meio o sujeito participa de “[...] um conjunto de escolhas e acções no meio, que organiza as trocas de um modo óptimo” (Luz, 1994, p. 77).

Tal mecanismo advém do que Luz (1994, p. 176) considera como sendo “Modelo orgânico do desenvolvimento cognitivo [...]”, onde por meio de processo de criatividade ou criação de conhecimento e/ou do julgamento moral há “[...] mudança orgânica e cognitiva [...]” em que três fatores convergem: o modo de funcionamento, o conjunto de perturbações impostos pelo meio e mecanismos de respostas a essas perturbações.

São constantes os processos de assimilação e acomodação comum a todos os seres humanos em desenvolvimento, que nas pessoas com AH/SD diferem na velocidade que acontecem. Assim, considera-se que qualquer conhecimento novo é uma abstração ou reorganização de esquemas disponíveis que orientam interpretações e decisões pelo sujeito.

Tais evidências, dentre outras, indicam claramente que é necessário cuidado e estudo refletido sobre como pensam, sentem, criam e julgam os sujeitos com AH/SD mas, principalmente, estabelece a urgência na compreensão de como acontece seu processo de desenvolvimento intelectual e moral sob os princípios da epistemologia genética.

Inteligência piagetiana e superdotação

Ao investigar o nascimento da inteligência na criança, Piaget (1975) concluiu que o conhecimento começa a ser construído nos primeiros meses de vida, que denominou de período sensório-motor; isso ocorre por meio de sua própria ação, inicialmente no plano prático e depois no plano mental.

Vestena (2009, p. 122) destaca que, “[...] as representações mentais vêm da imitação para a imagem e são esquemas que originam esquemas verbais”. Ou seja, à medida que o sujeito age e interage com o meio ambiente, ele elabora e coordena, de forma mais complexa, seu conhecimento acerca dos objetos.

Desse modo, a inteligência não é uma faculdade estável, determinada geneticamente ou observável quantitativamente, ao contrário, constitui-se em equilíbrio constante “[...] para a qual tendem todas as estruturas, cuja formação deve ser procurada através da percepção, do hábito e dos mecanismos senso-motores elementares” (Piaget, 1961, p. 27). Pode-se dizer que a inteligência não está pré-determinada no sujeito, mas ocorre de modo contínuo, como um processo (Piaget, 1975).

Assim, o sujeito epistêmico se desenvolve por meio da ação, em interação com o meio desde os primeiros anos. Nesse sentido, Vestena, Dias, e Colombo (2012, p. 216) apontam que esse, sujeito é ativo “[...] na medida em que ele se constitui como tal; e se constitui como tal pela assimilação e acomodação combinadas”.

Assim, não se reconhece os atos inteligentes por sua constituição genética nem pela ação isolada do meio, mas pela interação entre eles. Na perspectiva de construção da inteligência, “[...] o desenvolvimento cognitivo é organizado e dirigido por estruturas mentais compostas de esquemas de ação e operações de caráter lógico-matemático” (Vestena et al., 2012, p. 217).

O desenvolvimento ocorre por sucessivos esquemas desde os mais simples na primeira infância, até os mais complexos próprios do pensamento hipotético-dedutivo. Sobre esse aspecto, Dolle (1987, p. 109) salienta que o conceito de esquema pode ser compreendido como “[...] o conjunto das propriedades comuns às situações semelhantes”. Por exemplo, a ação de manipular objetos, reconhecê-lo, descrevê-lo e explicá-lo, são esquemas que serão desenvolvidos pelo sujeito, progressivamente. Ainda pontua Dolle (1987, p. 58) que “[...] toda ação comportará, portanto, os dois polos da atividade inteligente: assimilação e acomodação”.

Todo processo de conhecimento envolve uma assimilação, ou seja, o “[...] funcionamento do organismo não destrói, mas conserva o ciclo de organização e coordena os dados do meio de modo a incorporá-los nesse ciclo” (Piaget, 1975, p. 17). Observa-se que o primeiro passo para conhecer está relacionado com a assimilação para posteriormente progredir para a acomodação que diz respeito ao “[...] resultado das pressões exercidas pelo meio” (Piaget, 1975, p. 17). Portanto, modificações são feitas no objeto assimilado e o desenvolvimento da inteligência acontece pela adaptação intelectual, sendo que esta implica no equilíbrio desses dois processos.

Isso remete à função da organização - ponto de vista interno - e adaptação - ponto de vista externo, pois “[...] esses dois aspectos do pensamento são indissociáveis: é adaptando-se as coisas que o pensamento se organiza e é organizando-se que estrutura as coisas” (Piaget, 1975, p. 19). Essa relação entre a assimilação e acomodação, adaptação e organização resulta na equilibração das estruturas.

Desse modo, a inteligência se desenvolve num processo de elaboração de esquemas coordenados pelas ações com as quais estabelece relações globais que originam novas estruturas, fazendo desse movimento um ciclo infinito, que pode ser compreendido por meio da abstração reflexiva (Dolle, 1987).

Desde os primeiros anos de vida, é possível observar indicativos de AH/SD naquela criança que parece estar à frente de seu tempo em quesitos como desenvolvimento motor, da linguagem e do raciocínio lógico, por exemplo. São aquelas comparações feitas pelos pais e pelos professores suspeitando de uma habilidade acima da média e as diferenças na velocidade com que os progressos vão surgindo. Essas observações despertam os olhares e devem ser consideradas para um possível encaminhamento para a identificação e avaliação de AH/SD, se for o caso.

Estruturalmente pode-se dizer que o processo de desenvolvimento é o mesmo para todas os sujeitos, no entanto, difere no funcionamento. Enquanto alguns estudantes precisam de tempo maior para compreender determinados conteúdos escolares, outros tem maior agilidade alcançando o pensamento reversível em menos tempo. É o que ocorre com os estudantes com AH/SD quando alcançam os níveis de desenvolvimento cognitivo antes das idades previstas por Piaget e em comparação com seus pares.

Segundo Becker e Marques (2012), a pessoa altamente habilidosa é aquela que constrói e esquematiza de forma completa os conhecimentos, interligando tudo a novos conteúdos. Assim, essas generalizações dos conteúdos permitirão “[...] proporcionar novas estruturas, que poderão assimilar conteúdos mais complexos sobre os quais o sujeito poderá realizar ações e coordená-las entre si formando novas estruturas” (Becker & Marques, 2012, p. 166).

A pesquisa realizada por Machado e Stoltz (2014) revelou que um estudante AH/SD matematicamente talentoso atingiu precocemente o estádio operatório formal, visto que conseguiu elaborar hipóteses na ausência do objeto fazendo proposições e estabelecendo relações complexas. Comprovou ainda, que o caminho percorrido por esses estudantes difere dos demais não só pela antecipação do estádio, mas pela agilidade no pensamento e criatividade para resolver problemas.

A capacidade refinada em relação a ações como estabelecer conexões, produzir novidades, problematizar e encontrar soluções relaciona-se com a abstração reflexionante. Assim, o sujeito epistêmico transpõe os conceitos assimilados a diferentes planos do conhecimento, sendo que isso possibilita o pensar sobre o pensar. Isso ocorre no período hipotético-dedutivo, pois permite “[...] compreender metáforas e analogias, pensar em termos de lógica e abstrações, apresentar pensamento flexível, lidar com hipóteses” (Machado, 2013, p. 50).

Nessa perspectiva, as relações entre diferentes pontos de vista são compreendidas pelo sujeito no plano das reflexões e das hipóteses. No entanto, apesar desse desenvolvimento ser comum a todos, nas pessoas com AH/SD essa capacidade de generalizar e abstrair ocorre de modo acelerado e mais complexo, ou seja, as diferenças no funcionamento ficam evidentes. Além disso, essas pessoas também usam diversos caminhos na resolução de problemas antecipando as respostas de forma verbal como demonstrado por Machado (2013).

O constante processo de equilibração, desequilíbrio e reequilibração geram modificações importantes no campo do pensamento, porque passam de uma ação para uma conceituação. Dito de outro modo, “A interiorização das ações, do ponto de vista epistemológico, encontra-se na origem das estruturas operatórias” (Piaget, 1977a, p. 11). Esse é um processo infinito que se constitui de conquistas sucessivas e quanto mais interações com o meio e ações interiorizadas, mais elaborado será o conhecimento. Nesse caso, ocorre a tomada de consciência que depende dessas regulações ativas. O mesmo processo acontece em todas as pessoas, porém, naquelas que têm AH/SD é mais acelerado.

Para Piaget (1977a), a tomada de consciência é a passagem da assimilação prática para a assimilação por meio de conceitos, que parte da periferia para o centro. Isso significa dizer que os objetivos e os resultados impulsionam esse processo para mecanismos centrais. Desse modo, as ações do sujeito são interiorizadas e compreendidas, o que caracteriza o pensamento hipotético-dedutivo.

A tomada de consciência implica inicialmente em conceituações e representações que resultam em novas reconstruções, (re) fazendo-se sempre por meio dos esquemas de ação, polarizando-se nos dois tipos de abstrações: a abstração empírica e a abstração refletida (Piaget, 1977a). A primeira relacionada com as características materiais da ação e a segunda com a coordenação da ação à qual permite a interpretação, a relação lógica e a operação de suposições, ou seja, uma reflexão do próprio pensamento que são características próprias do pensamento reversível.

A tomada de consciência nos estudantes com AH/SD, é favorecida quando os conflitos que acontecem na escola e no seu entorno, são valorizados. Isso significa dizer que as situações aparentemente caracterizadas como problemas, precisam ser discutidas no coletivo. A interação social e o conflito, promovem a tomada de consciência pois, permitem o exercício de ir e vir em relação ao ponto de vista de seus pares (Valentim, 2020).

Nesse sentido, a flexibilidade do pensamento pressupõe uma descentração progressiva e ágil, um sistema complexo e equilibrado característico da reversibilidade - trata-se de uma forma de representação da ação no sentido invertido (Piaget & Inhelder, 2012). Isso significa dizer que há “[...] possibilidade permanente de retorno ao ponto de partida” (Dolle, 1987, p. 173). A reversibilidade é característica do pensamento formal e possibilita as operações lógicas. Ela se manifesta na escola quando os estudantes demonstram o nível de compreensão dos conteúdos.

Essa capacidade foi analisada por Sabatella (2012) em pessoas com AH/SD. A autora infere que elas encontram soluções ou alternativas para determinadas questões, sem necessitar de muitas explicações. Muitas vezes antecipam as respostas e demonstram impaciência quando precisam esperar para falar, principalmente quando têm um conhecimento maior a respeito do assunto que está sendo discutido. Verificamos neste ponto a importância do convívio social favorável ao desenvolvimento da afetividade das relações. É importante que o professor saiba valorizar estes conhecimentos e ao mesmo tempo orientar os estudantes com altas habilidades/superdotação em sala de aula para que exista um equilíbrio das relações: que os seus conhecimentos não suplantem o dos outros colegas e ao mesmo tempo sejam ampliados.

A inteligência de pessoas com AH/SD é influenciada pelo meio social por meio da linguagem, valores e regras construídas nas trocas sociais de modo que essas relações implicam em interação entre os sujeitos, portanto, deve-se considerar que a afetividade está presente. Mas, o que realmente move o conhecimento?

Do ponto de vista de Piaget (2005, p. 8) “[...] a afetividade é o motor, a primeira causa do ato de conhecer, é o mecanismo que origina a ação e o pensamento, implica em afirmar que todo ato de desejo é um ato de conhecimento e vice-versa”. Assim, se o sujeito epistêmico deseja conhecer algo, nisso emprega certa quantidade de energia. Dito de outro modo, quando há interesse em uma atividade ou conteúdo seja escolar ou não, há investimento de tempo na busca de soluções para conflitos, há gasto de energia física e intelectual, há estabelecimento de prioridades.

Isso ocorre igualmente com estudantes com AH/SD, pois além da habilidade acima da média e a criatividade, o envolvimento com a tarefa também compõe os três anéis que caracterizam a superdotação (Renzulli, 2014). O ‘anel’ da superdotação está relacionado com o comprometimento e de acordo com Valentim (2020, p. 21) “Cabe ressaltar que o mesmo autor refere ainda que essa característica da pessoa com AH/SD reflete outros traços, como dedicação, persistência, perseverança, foco e determinação”. Isso também se aplica no que se refere a tarefa de engajar-se com as pessoas com as quais convivem.

A afetividade move o interesse pelo conhecimento e a vontade de construir e fortalecer relações interindividuais. Isso é fundamental para que os estudantes com AH/SD incluam em seus projetos inovadores ações que promovam seu bem estar e o bem estar dos outros.

Moralidade piagetiana e superdotação

O desenvolvimento moral é uma construção na qual o respeito mútuo, as regras morais e a cooperação são fundamentais. A moral é tema de pesquisas na Psicologia da Moralidade que é definida como a “[...] ciência preocupada em desvendar por quais processos mentais uma pessoa chega a intimamente legitimar, ou não, regras, princípios e valores morais” (La Taille, 2006, p. 9 -; Salles & Alencar, 2018).

Piaget (1994), ao analisar o desenvolvimento da inteligência da criança, considerou também relevante a forma como o julgamento moral também evolui. Essa relação intrínseca e fundamental entre a moral e inteligência tem gênese no processo de maturação do desenvolvimento infantil, sendo possível a todos os indivíduos. Ela depende de fatores como um crescimento orientado, um processo de construção operacional equilibrado e adequado à faixa etária deste sujeito, e principalmente da interação com o meio e tudo que nele habita (Berg & Vestena, 2014).

Em relação as regras que a criança vai aprendendo ao longo da infância, segundo Piaget, “[...] lhes são transmitidas pela maioria dos adultos, isto é, ela as recebe já elaboradas, e, quase sempre, elaboradas, nunca na medida de suas necessidades e de seu interesse, mas de uma vez só e pela sucessão ininterrupta das gerações adultas anteriores” (Piaget, 1994, p. 23).

Nesse sentido, as regras morais advêm do respeito que as crianças têm pelo conteúdo das regras e pelo respeito que têm pelos adultos que as repassam, sendo que seu modo de sentir interferirá diretamente na construção de um ser humano capaz de compreender e agir moralmente.

O respeito surge, portanto, como noção fundamental para o desenvolvimento moral podendo compreender: aquele unilateral, que implica numa relação de desigualdade, do que tem mais conhecimento para o que não tem, ou do que tem mais experiências de vida para o que ainda não tem; e o respeito mútuo, que prevê uma relação de cooperação onde os indivíduos se respeitam reciprocamente. Nessa etapa do desenvolvimento do juízo moral a criança inicia um exercício de justiça contrariando o respeito unilateral exteriorizado imposto pela regra do certo e errado. Surgem os conflitos, as dúvidas, os questionamentos e os confrontos, principalmente com a autoridade adulta.

A forma como os conflitos são tratados pode reforçar a heteronomia ou favorecer a autonomia. Contestar, criticar, duvidar, questionar faz parte do repertório de comportamentos de estudantes com AH/SD e o fazem assim pois, são curiosos e ávidos pelo conhecimento. Negar essa realidade é como calar a sua voz. Se a voz de autoridade é a que vale e se os conflitos forem ignorados a moral heterônoma é reforçada. Do contrário, oportunizar o pensar sobre o pensar sobre seus próprios conflitos e do seu entorno, a moral autônoma será exercida.

Para Piaget (1994),

A moral da autoridade, que é a moral do dever e da obediência, conduz, no campo da justiça, à confusão do que é justo como o conteúdo da lei estabelecida e aceitação da sanção expiatória. A moral do respeito mútuo, que é a do bem (por oposição ao dever) e da autonomia, conduz, no campo da justiça, ao desenvolvimento da igualdade, noção constitutiva da justiça distributiva, e da reciprocidade (Piaget, 1994, p. 243).

Há reciprocidade nas ações com estudantes que têm AH/SD, uma vez que eles analisam e comparam a forma como são tratados e como seus colegas são tratados. Eles sentem a injustiça, sofrem e são solidários quando percebem tratamentos desiguais (Valentim & Vestena, 2019).

Portanto, segundo Piaget a solidariedade é resultado do exercício da moral entre iguais como, “[...] a origem de um conjunto de noções morais complementares e coerentes, que caracterizam a mentalidade racional” (Piaget, 1994, p. 243).

Existem três fases do desenvolvimento da moral definidas por Piaget (1994): a anomia, que se define como a ausência total de regras, o que nos leva a pensar que a moral não é inata; a heteronomia desenvolvida por uma relação de coação é relacionada ao respeito unilateral e as regras; e a autonomia que é caracterizada pelo respeito mútuo, pela cooperação nas relações, construída num processo de interação da criança com o meio ou seja, interiorizada.

Piaget (1994) menciona que,

[...] o equilíbrio moral, constituído pelas noções complementares do dever heterônomo e da sanção propriamente dita, é um equilíbrio instável, pelo fato de que a personalidade não encontra nele seu desenvolvimento completo. À medida que a criança cresce, a submissão de sua consciência à consciência adulta parece-lhe menos legítima, e, salvo os casos de desvios morais propriamente ditos, que são constituídos pela submissão interior definitiva (os adultos que continuam crianças toda sua vida) ou pela revolta durável, o respeito unilateral tende, por si mesmo, ao respeito mútuo e à relação de cooperação, a qual constitui o equilíbrio normal (Piaget, 1994, p. 243).

Assim, no campo da moral, Piaget (1977) afirma que a fase correspondente à autonomia é caracterizada “[...] por seu pensamento descentrado, o adolescente tem condições de cooperar, isto é, coordenar com outros as ações em plano mental” (Tognetta, 2009, p. 62).

Percebemos a importância para o adolescente pertencer a um grupo que tenha interesses e projetos afins pois, isso contribui para a formação da identidade. Tognetta (2009, p. 87) comprovou que “[...] uma ação moral depende de sua integração à identidade do sujeito, ao seu sistema de valores, ao que valoriza, ao que se envergonha, ao que admira”. Sendo assim, é importante criar na escola espaços e situações que oportunizem ações como promover o autoconhecimento e valorização de si para poder reconhecer o ponto de vista do outro e consequentemente a formação de uma personalidade ética. A noção de pertencimento e identificação com um grupo é muito importante para estudantes com AH/SD, pois podem desenvolver seus projetos tendo em vista benefícios próprios e do grupo.

Berg e Vestena (2014) confirmam Tognetta (2009), quando estudaram a moralidade piagetiana em meninas quilombolas, sujeitos de identidade e valores bem marcados, assim como de moralidade. A opressão constante a que as meninas eram submetidas tiveram seus valores e identidade ameaçados, fazendo com que a noção de pertencimento e identidade ficassem comprometidas.

Nesse sentido, considera-se que na escola é fundamental desenvolver ações que favoreçam relações afetivas, fortaleçam o autoconhecimento, empoderem identidade e autoconfiança. Em relação as pessoas com altas habilidades/superdotação é evidente a necessidade de educadores saberem lidar com este aspecto; salientam ainda que a afetividade influencia no desenvolvimento humano, em especial nos estudantes superdotados, pois, suas inteligências pessoais necessitam de trabalho e investimento para que esses jovens “[...] saibam lidar com os seus estados de ânimo, seus temperamentos e emoções” (Piske & Stoltz, 2012, p. 161). O envolvimento afetivo de estudantes com AH/SD, fornece energia e interesse para que construam relações interindividuais saudáveis. Ao mesmo tempo em que tomam consciência de si, de seus valores e de seu lugar no mundo.

Em consonância com estas pesquisas está o estudo de Valentim, Neumann, e Vestena (2014) realizado com uma estudante com AH/SD. O estudo analisa a importância de desenvolver nos estudantes com altas habilidades/superdotação os estímulos afetivos pois, do contrário, pode haver prejuízos à formação da identidade repercutindo na vida adulta, interferindo diretamente na vida social desses sujeitos. Essa pesquisa apontou que existe a possibilidade de se desenvolver a autossuficiência e a falsa sensação de que pessoas superdotadas não precisam do ‘outro’. Se de fato, essa sensação se perpetuar nas pessoas com AH/SD, de que forma e para quê utilizariam sua inteligência e potencial criativo? Qual a moral predominaria, a heterônoma ou a autônoma?

Na pesquisa realizada percebeu-se que as “[...] dificuldades afetivas e sociais da vida adulta tiveram a supervalorização de aspectos cognitivos e a carência de estímulos para o desenvolvimento de sua vida afetiva na infância e adolescência” (Valentim et al., 2014, p. 720).

Estas questões repercutiram em nível emocional do estudante a ponto de precisar fazer tratamento psicológico para encontrar sua própria identidade enquanto pessoa com AH/SD. Assim a autonomia que se espera da pessoa com AH/SD veio com ajuda terapêutica, por isso Valentim et al. (2014, p. 720) ressaltam que “[...] não significa que por serem autônomas e independentes, sempre conseguirão resolver por si mesmas as suas dificuldades”.

Outro destaque neste estudo apontou para a importância de os professores terem conhecimento para saber identificar quem são estes estudantes assim como compreender que as salas de aula não são homogêneas. Convém destacar que a diversidade está presente e é preciso promover ações pedagógicas que contemplem as diferentes formas de ser e de aprender de cada um dos estudantes.

Nessa linha de pensamento, corrobora-se Piaget (1961) em relação à afirmação de que a inteligência e a afetividade estão intimamente ligadas, para isso, destacamos a importância das trocas sociais no desenvolvimento dos dois aspectos para que haja reciprocidade e coordenação dos pontos de vista cognitivo e social. Assim, “A coordenação é uma cooperação de pontos de vista ou de ações que emanam respectivamente, de diferentes indivíduos” (Piaget, 1961, p. 214).

Piske e Stoltz (2012) ainda observaram que alguns estudantes com AH/SD demonstraram dificuldades no relacionamento com professores, pois consideraram as aulas cansativas e desinteressantes. Com isso, identificou-se a importância do meio, já que o estudante se adapta modificando-o na medida em que estabelece relação com seus pares. Porém, o meio deve oferecer oportunidades para que esse processo ocorra pois, do contrário haverá o afastamento do grupo e a indiferença com ele.

No plano social, as relações de cooperação, de respeito mútuo e de trocas sociais são partes importantes do meio para que o estudante com AH/SD resolva os seus conflitos, inclusive com professores e colegas da turma. A cooperação é importante nesse aspecto, ela é um exercício de reversibilidade: pensar em mim, pensar no outro, pensar nos dois e tomar uma decisão. Vale destacar as palavras de Yves de La Taille no prefácio da edição brasileira de O juízo moral da criança (Piaget, 1994).

É importante acrescentar que, no que tange à moralidade, as relações sociais vigentes em nosso mundo raramente são baseadas na cooperação; por conseguinte, grande número de pessoas permanece a vida toda moralmente heterônoma, procurando inspirar suas ações em ‘verdades reveladas’ por deuses variados ou por ‘doutores” considerados a priori como competentes e ‘acima de qualquer suspeita’. (Piaget, 1994, p. 19).

Nessa perspectiva, faz-se o destaque sobre a importância de as ações do estudante com AH/SD estarem firmadas na moral autônoma. A cooperação como um tipo de relação social a ser construída, requer a coordenação de pontos de vista e supõe um raciocínio moral, mas ele não é suficiente se não for seguido também de uma ação moral.

Ação inteligente supõe interesse, esforço e valores ao que Piaget (1961, p. 27) esclarece: “Reciprocamente, os elementos perceptíveis ou intelectuais, que se encontram em todas as manifestações emocionais, interessam à vida cognitiva, como qualquer outra reação perceptiva ou inteligente”.

Isso acontece pelo observado por Valentim e Vestena (2019, p. 18) que afirmam haver “[...] predominância de uma noção refinada de justiça [...]”, assim como, “[...] moral autônoma [...]” pois, os sujeitos da pesquisa empreendida pelas autoras analisaram as situações da vida considerando o ponto de vista dos envolvidos e tomaram decisões prezando pelo bem da coletividade. Os estudantes superdotados usaram o raciocínio para analisar dilemas morais e prezaram muito por atitudes corretas, considerando infração grave contrariar regras elaboradas no coletivo. Eles entenderam que a sala de aula espelha a sociedade como um todo e que as injustiças entre pares repercutem no global - noção sistêmica de mundo conectado.

Estudos de Piske e Stoltz (2012) e Valentim et al. (2014) detectaram que crianças superdotadas podem apresentar problemas no relacionamento familiar entre colegas de sala de aula e seus professores impulsionado pelo aspecto afetivo, que segundo as autoras exercem influência no desenvolvimento humano.

Piske et al. (2015) buscaram o aprofundamento do tema, considerando o processo de construção do conhecimento durante o ensino-aprendizagem de alunos superdotados a partir da percepção de seus familiares. Os resultados indicaram prevalência de “[...] processo dialético nas variáveis afetivas que desempenham um papel determinante na aprendizagem, na satisfação e no bem-estar das crianças” (Piske et al., 2015, p. 92).

Tanto a pesquisa, como intervenções nesse sentido são raras, faltando principalmente enfoque psicológico junto aos pais de superdotados. Costa-Lobo et al. (2019) mencionam que a paternidade positiva pode angariar resultados positivos no desenvolvimento da intelectualidade, moralidade e afetividade nestas famílias, uma vez que estratégias para o bem-estar podem ser treinadas e resultam em qualidade de vida. Foi o que constataram quando de intervenção realizada junto a trinta familiares de altamente habilidosos em Portugal.

A importância do social para o desenvolvimento é indiscutível e analisada por Piaget (1980) na obra Para onde vai a educação? na qual discorre sobre o direito à educação pontuando a importância de influências externas, do meio social e educacional.

Assim, considerou importante a contribuição que o ambiente exerce sobre o desenvolvimento humano, por isso, convém aos professores analisar qual tem sido a sua participação no incentivo (ou falta dele) para a construção de conhecimentos mais elaborados em seus estudantes com altas habilidades/superdotação. Para os familiares torna-se fundamental ‘salvaguardar as condições propícias em um ambiente que favoreça o desenvolvimento de potencialidades e talentos’ que preservem as peculiaridades dos alunos altamente habilidosos, assim como o componente afetivo (Piske & Stoltz, 2012; Valentim et al., 2014; Piske et al., 2015).

Considerações finais

O pensamento do estudante com AH/SD caracteriza-se por uma complexidade no funcionamento, na qual as influências no meio escolar favorecerão ou não a sua construção.

Os esquemas de ação formados por estes estudantes tendem a aparecer com maior evidência e rapidez, sendo necessário considerar sua tendência a autocentrar no percurso de seu desenvolvimento que se assemelha aos demais sujeitos. Por isso, a importância de planejamento das aulas de modo que sejam estimulados o desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral, assim como sejam implementadas tarefas de auto estudo ao aluno superdotado em concordância com as características intelectuais que lhe são peculiares.

Nesse sentido, defende-se que a sala de aula precisa ser interessante para que o estudante possa desenvolver seu potencial de aprendizagem pois, o professor tem função primordial para propor atividades problematizadoras que não desprezem a forma que encontram para solucionar os desafios dos conteúdos escolares.

Quanto ao modo de encontrar soluções para as atividades propostas nos conteúdos curriculares, conclui-se que os AH/SD demonstram pensamento sincrético e reversível, sendo que assim, relacionam os assuntos que estudam nas disciplinas para além delas.

Sugere-se que, se os estudantes com AH/SD não se expressam de acordo com o que os professores desejam, é importante questioná-lo para que se possa conhecer sua lógica de pensamento que as vezes foge do convencional, dada sua estrutura do pensamento complexa, guiada pela abstração reflexionante, assim como, é importante que essa lógica faça sentido tanto para ele quanto para os demais num exercício de aprendizado que considere a diversidade como parte do pensamento.

Essa compreensão é fundamental para que seja valorizado o conhecimento dos estudantes com AH/SD sobre o que possuem, também dos demais no que diz respeito ao pensar e flexionar ideias. O modo como o altamente habilidoso se expressa não deve ser entendido como afronta ao conhecimento do professor e sim, como a sua forma de demonstrar que sabem, que pesquisam, que tem condições de aprofundar os conteúdos e pesquisar além do currículo formal prescrito.

Com áreas de interesse específicas, os superdotados merecem ter potencializadas suas aptidões, assim como desenvolvidas suas limitações pois, não sendo eficientes e conhecedores na totalidade do universo do conhecimento, como igualmente em profundidade e maturidade no que fazem, julgam ou sentem, necessitam de professores conhecedores de suas peculiaridades e que estejam dispostos a estimulá-los, motivá-los e que não limitem suas capacidades pelo desconhecimento das suas diferenças cognitivas.

No aspecto da moralidade, pode considerar-se que essa é desenvolvida em níveis como determinado por Piaget, mas com precocidade, o que determina alerta no que tange aspectos relativos à afetividade, muitas vezes desconsiderada pelos educadores.

As oscilações emocionais no superdotado são resultado de um sentir e perceber seu ambiente e pessoas que tendem a amplificar sentimentos que resultam em hipersensibilidade afetiva (Sabatella, 2005; Valentim et al., 2014).

Nesse sentido, demonstram que suas emoções tendem a intensidade e durabilidade maiores que seus sentimentos, persistindo no tempo do desenvolvimento moral, até sua autonomia (Valentim et al., 2014).

Nesse sentido, Valentim et al. (2014) confirmam estudos de Piaget (2005) que destaca a reciprocidade e cooperação como formas para descentralização afetiva no intuito de construir sentimentos morais ajustados à noção de respeito mútuo, principalmente na adolescência.

Há no jovem altamente habilidoso, portanto, urgência contínua em evitar o isolamento advindo da falta de identificação com grupos e de seus pares pois, tal fenômeno pode resultar em dificuldades nos mais vários âmbitos.

Portanto, ao professor é fundamental, além do conhecimento pedagógico, a profissionalização e estudo dirigidos ao campo psicológico e sensibilidade humana como competências e habilidade necessárias para o atuar na diversidade de personalidades, constructos e sentimentos que residem em sala de aula. E à escola, enquanto espaço de conhecimento e de relações sociais, é dada a missão de ser ambiente saudável de convivência e desenvolvimento.

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5NOTA: Os autores foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

Recebido: 17 de Julho de 2020; Aceito: 03 de Fevereiro de 2021

* Autora para correspondência. E-mail: bfbvalentim@gmail.com

Bernadete de Fatima Bastos Valentim: Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestra em Educação pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Pesquisadora do Grupo Interdisciplinar de Desenvolvimento Humano e Educação (GIEDH/UNICENTRO). Professora do Departamento de Pedagogia/UNICENTRO. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2521-6540 E-mail: bfbvalentim@gmail.com

Carla Luciane Blum Vestena: Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-Marília-SP). Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e graduação em Psicologia pelas Faculdades Integradas Guairacá. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8655-7840 E-mail: cvestena@unicentro.br

Cristina Costa-Lobo: Doutora pela Universidade do Minho. Pós-Doutora pela UFPR. Docente do Ensino Superior português. Investigadora da Cátedra UNESCO de Juventude, Educação e Sociedade. Investigadora do Centro de Investigação Científica e Desenvolvimento do ISPB, Benguela, Angola. Consultora do Externato de Santa Clara/Academia Beatriz Ribeiro, Porto, Portugal. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4459-8676 E-mail: ccostalobo@gmail.com

Carla Maria de Schipper: Doutora em Educação pelo UFPR. Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Mestra em Educação pela UNICENTRO. Pesquisadora do GIEDH/UNICENTRO. Docente da UNIGUAIRACÁ. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4805-840X E-mail: carlaschipper@gmail.com

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