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Acta Scientiarum. Education

versión impresa ISSN 2178-5198versión On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.45  Maringá  2023  Epub 02-Ene-2023

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v45i1.55966 

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS

Relatos discentes sobre o letramento acadêmico: uma análise alinhada à perspectiva dos Novos Estudos do Letramento

Informes de estudiantes sobre literacidad académica: un análisis alineado con la perspectiva de los Nuevos Estudios de Literacidad

Maria Emília Almeida da Cruz Tôrres1  * 
http://orcid.org/0000-0002-3399-000X

Carolina de Cássia Araujo1 
http://orcid.org/0000-0002-4553-7157

1Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Alfenas, Rua: Gabriel Monteiro da Silva, 700, 37130-001, Alfenas, Minas Gerais, Brasil.


RESUMO.

Este trabalho se insere na área de Educação, com foco em letramento acadêmico e se alinha aos pressupostos epistemológicos sancionados pelos Novos Estudos do Letramento, que o concebem como fenômeno que se dá nas práticas sociais da escrita, influenciadas pelas crenças, valores e cultura do indivíduo ou grupos sociais em que se inserem. O objetivo maior deste artigo foi analisar, da perspectiva discursiva de Gee (1998, 2004, 2005, 2015), um dos precursores dos Novos Estudos do Letramento, a relação que discentes do Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia, de uma universidade federal do sul de Minas Gerais entretecem com a escrita. A intenção maior foi a de se conhecer alguns dos motivos que levam muitos docentes desse curso a afirmar que os graduandos dessa instituição, de modo geral, ‘escrevem muito mal’. Os dados foram coletados nas declarações de dois discentes, em que se analisou essa relação a partir dos Discursos ali refletidos. Um dos instrumentos metodológicos utilizados para a geração dos dados foi a entrevista semiestruturada (Gil, 2008), em que se solicitou aos graduandos que rememorassem suas histórias de leitura desde a infância até as histórias atuais, pois propiciariam ao pesquisador compreender melhor a relação que estabelecem com as práticas de escrita valorizadas no contexto acadêmico. Seria deveras importante também, se observar se a universidade procura orientá-los a produzir os textos que ali circulam. Os dados revelam que os alunos têm dificuldades em executar as atividades escriturais demandadas pela academia e que esta, por sua vez, não tem um olhar atento no sentido de expor esses alunos aos textos aí valorizados, o que pode ser interpretado como sendo falta de um plano geral de promoção de letramento em todas as áreas de conhecimento de seu alunado.

Palavras-chave: letramento acadêmico; histórias de leitura; discursos sociais

RESUMEN.

Este trabajo se enmarca en el área de Educación, enfocándose en la literacidad académica y está en línea con los supuestos epistemológicos sancionados por los Nuevos Estudios de Literacidad, que lo conciben como un fenómeno que se da en las prácticas sociales de la escritura, influenciado por creencias, valores Y cultura individual o grupos sociales a los que pertenecen. El principal objetivo de este artículo fue analizar, desde la perspectiva discursiva de Gee (1998, 2004, 2005, 2015), uno de los precursores de los Nuevos Estudios de Literacidad, la relación que los estudiantes de la Licenciatura Interdisciplinaria en Ciencia y Tecnología, desde un Universidad Federal del Sur de Minas Gerais se entrelazan con la escritura. La intención principal fue conocer algunas de las razones que llevan a muchos profesores de este curso a afirmar que los egresados de esta institución, en general, ‘escriben muy mal’. Los datos fueron recogidos en las declaraciones de dos estudiantes, en los que se analizó esta relación a partir de los discursos allí reflejados. Uno de los instrumentos metodológicos que se utilizaron para generar los datos fue la entrevista semiestructurada (Gil, 2008), en la que se pedía a los estudiantes que recordaran su lectura de historias desde la infancia hasta historias actuales, ya que permitirían al investigador comprender mejor la relación que establecen con las prácticas de escritura valoradas en el contexto académico. Sería muy importante, también, ver si la universidad busca orientarlos para producir los textos que allí circulan. Los datos revelan que los estudiantes tienen dificultades para realizar las actividades de actividades de escritura que demanda la academia y que, a su vez, no tiene una mirada cercana en el sentido de exponer a estos estudiantes a los textos sancionados por ella, lo que se puede interpretar como la falta de un plan general para promover la literacidad en todas as áreas del conocimiento de sus estudiantes.

Palabras clave: literacidad académica; lectura de cuentos; discursos sociales

ABSTRACT.

Situated in the area of Education, and focusing the academic literacy this work aligns to the epistemological assumptions sanctioned by the New Literacy Studies, which conceive literacy as a phenomenon that occurs in the social practices of writing, influenced by the beliefs, values and culture of the individual or social groups in which they belong. The objective was to analyze the relationship the students of a public university stablish with writing in order to know some of the reasons that lead professors to say the students of the institution ‘write very badly’, by observing the Discourses (Gee, 1998, 2004, 2005, 2015) reflected in the statements of the students interviews. The methodological instrument for collecting data used were semi-structured interviews in which students could recall their reading stories from childhood to the present day. It would enable the researcher to know what these students think about their writing practices in the academic context, as well as whether the university seeks to guide them to produce the texts that circulate in that context. The data revealed that students have difficulties in carrying out the writing activities demanded in the academy, that doesn´t seem to have a real concern to expose the students to the privileged texts in that context, what may be interpreted as a lack of an effective literacy planning promotion in all areas of knowledge.

Keywords: academic literacy; reading stories; social discourses

Introdução

A escrita do estudante universitário tem sido motivo de amplas discussões acadêmicas e transformou-se em campo de interesse de pesquisadores, sobretudo no que diz respeito às práticas de letramento às quais esses estudantes são expostos nas universidades.

Tal interesse se justifica pela crença de que os alunos que ingressam na universidade já devem dominar as práticas de escrita e leitura exigidas nesse contexto, por já terem passado, pelo menos, doze anos na escola. Entretanto, esse pressuposto não se sustenta, quando os docentes se deparam com a realidade em sala de aula (Fiad, 2011).

O surgimento de pesquisas nessa área nasceu do desejo de estudiosos em tentar elucidar as possíveis razões da recorrente lacuna existente entre as habilidades escriturais requeridas pela academia e o resultado das produções escritas apresentadas pelos discentes, como apontam Lea e Street (1998), Street (1984, 2003, 2013, 2014), Gee (1998, 2004, 2005, 2015) e Komesu e Fischer (2014). Os estudos que se debruçam sobre essas questões derivam de concepções teórico-metodológicas alinhadas aos Novos Estudos do Letramento, movimento formado por pesquisadores que consideram a perspectiva social nos estudos da aquisição da escrita o grande divisor de águas nos debates sobre programas de letramento (Lea & Street, 1998; Street, 1984, 2003, 2013, 2014; Gee, 1998, 2004, 2005, 2015; Barton & Hamilton, 2004; Komesu & Fischer, 2014).

Na esteira dessa nova perspectiva, também no Brasil alguns pesquisadores têm-se dedicado a pesquisas na área de Educação e da Linguística Aplicada (Kleiman, 1995; Terzi, 2003; Fiad, 2011, 2015, 2017; Tôrres, 2007, 2009 e Marinho, 2010), em que advogam pela concepção de letramento como fenômeno que vai além da aquisição técnica da escrita, ou seja, concebem-no como fenômeno que se dá nas práticas sociais, com variáveis transculturais como tempo, discurso e espaço. Nessa perspectiva, considera-se que a relação entre sujeito, leitura e escrita compreende tanto o componente cognitivo, como o componente social, o que indicia uma renúncia à ideia de que, para ser considerado um sujeito letrado, basta possuir tão somente as habilidades técnicas de leitura e escrita. Nessa atual vertente epistemológica, passa-se a conceber o letramento como fenômeno de natureza essencialmente social.

Ao se abordar a escrita na esfera acadêmica, considera-se, aprioristicamente, que a universidade seja o espaço privilegiado de aquisição do conhecimento e, portanto, para se qualificar nesse espaço, o sujeito precisa desenvolver novas formas de pensar e de agir em relação à escrita e à leitura que ali se produz. Há de se considerar, porém, que os textos privilegiados na universidade são, via de regra, desconhecidos pelos estudantes, já que nos ciclos formativos anteriores ao Ensino Superior, os graduandos não foram expostos aos textos valorizados nessa esfera educacional, nem ao ineditismo das práticas de letramento ali sancionadas.

Ao ser inserido na realidade sócio histórica e cultural da universidade, o discente é exposto a novas práticas escriturais, próprias do universo acadêmico e que podem ser desconhecidas por eles como “[...] ‘reescrever’, ‘tratar de temas polêmicos’, ‘discutir’, ‘ter espírito crítico’, ‘trabalhar em equipe’[...]”, como assevera Fiad (2011, p. 365, grifo do autor), indo mais além, pode-se afirmar que esse novo contexto exige do ingressante o conhecimento de diferentes formas de abordar o texto escrito, pois são práticas de letramento singulares e específicas das demandas da escrita acadêmica, como a elaboração de relatórios de várias áreas, de resenhas de artigos e capítulos de livro, de resumos para apresentação de trabalhos em eventos de divulgação científica e trabalho de conclusão de curso.

Entretanto, se por um lado o discente é instado a se ver envolvido nas novas práticas de escrita da universidade, esta, por sua vez, deve lhes dar a conhecer como se constroem os textos ali veiculados. E, nessa proposição, é necessário também que se considerem as concepções de escrita que esse estudante já tem internalizadas e que lhes são familiares, além de ser necessário também que se leve em conta que essas concepções, por sua vez, serão sempre permeadas de suas crenças e valores acerca da escrita.

A nosso ver, deve-se considerar, na proposição da expressão escrita do graduando, as histórias de letramento que este traz para a universidade, pois elas sinalizam as práticas de linguagem em que ele se socializou em seu processo formativo. Esse aspecto deve ser seriamente observado, pois as concepções de letramento dos discentes serão sempre permeadas por suas histórias de leitura e escrita experenciadas ao longo da vida, como salienta Tôrres (2009) e que, certamente, vão influenciar seus modos particulares de abordagem à escrita, sobremodo as práticas de prestígio na universidade, como assevera Barton (1998), Barton & Hamilton, 2004).

Em sua Teoria Social do Letramento, Barton (1998, p.35) assevera que todo evento de letramento possui uma história, seja no nível cultural ou pessoal, e compreende o letramento como fenômeno historicamente situado, que vai se modificando ao longo do tempo.

O estudioso cita ainda que nossas histórias de letramento atuais são constituídas pelas práticas de leitura e escrita com que fomos familiarizados ao longo da vida, ou seja, Barton (1998) compreende que nossas histórias de letramento são criadas no passado e influenciam, sobremodo, nossos modos particulares de nos relacionar com as práticas de escrita e leitura em todas as esferas sociais letradas. Para o autor:

Nossas histórias de vida particulares contêm muitos eventos de letramento, desde a infância até os que são construídos nos dias atuais. Nós mudamos e como crianças e adultos estamos constantemente aprendendo novo letramento. Um evento de letramento tem uma história social. As práticas de letramento atuais são criadas pelas práticas do passado (Barton, 1998, p. 35, tradução nossa)1.

Elemento primaz nos Novos Estudos do Letramento, a noção de Discurso (com D maiúsculo) cunhado por Gee (1998, 2004, 2005, 2015), pode ser compreendida como a soma das identidades de um sujeito que norteiam seus modos particulares de agir e falar e, por consequência, de escrever. O Discurso se torna, então, “[...] maneiras de estar no mundo, ou formas de vida que integram palavras, atos, valores, crenças, atitudes e identidades sociais, assim como gestos, olhares, posições corporais e roupas” (Gee, 2015, p.27, tradução nossa)2.

Esse viés epistemológico alinha-se às teorizações de Gee (1998, 2004, 2005, 2015), quando assume que nossas práticas de letramento atuais instanciam os Discursos que ali se manifestam. Para o autor, dependentes que somos dos contextos em que estamos inseridos no momento das trocas comunicativas, assumimos um diferente ‘who’ (quem) para cada interação social, e que é refletido em nosso Discurso, revelando “[...] nossos modos de ser no mundo, nossas formas de vida, sendo, portanto, produtos sociais e históricos”. É por meio deles que “[...] identificamo-nos e somos aceitos ou rejeitados pelos diversos grupos de pertencimento que compõem a sociedade” (Tôrres, 2009, p. 37).

Assim sendo, cada indivíduo se configura como lócus privilegiado de embates e tangenciamentos de Discursos, pois cada vez que o indivíduo lança mão da linguagem, se faz “[...] ponto de reunião de muitos e conflitantes Discursos socialmente e historicamente definidos” (Oliveira, 2011, p. 56). Infere-se, então, que as práticas de letramento instanciadas nos contextos acadêmicos são configuradas por esses Discursos, propiciando o surgimento de novas identidades, que se refletirão nas opções linguístico-discursivas dos discentes.

Ao propor reflexões sobre o letramento, Gee (2005) assevera que se pode afirmar ser o letramento a habilidade de ler (e escrever), e como ler (e escrever) é um verbo transitivo, significa que o letramento tem a ver com estar apto a ler algo e esse algo sempre será um texto de determinado tipo. Na esteira dessa reflexão, o pesquisador adiciona que os textos, sejam eles de natureza diferente ou de diferentes funções, requerem também múltiplos e diversos conhecimentos prévios, ou seja, requerem múltiplas e diversas habilidades para ser lido significativamente, o que vem corroborar nosso entendimento de que a universidade pode promover o letramento dos discentes de forma mais eficaz, auxiliando-os a desenvolver habilidades de escrita que atendam mais adequadamente às demandas textuais da esfera acadêmica.

Ainda segundo Gee (2005), o fenômeno do letramento se refere, certamente, às múltiplas habilidades de ler (e escrever) textos de certos tipos em determinados modos ou em certos níveis. Concluindo seu raciocínio, lança uma pergunta, desafiadora, a respeito dos estudos de letramento na universidade: como um indivíduo passa a apresentar a aptidão em ler um determinado tipo de texto, definido por um determinado modo?

No intuito de responder a essa questão, pesquisadores alinhados à abordagem sociocultural do letramento, como Heath (1983), Teale e Sulzby (1986) e Cazden (1992), assumem que toda a literatura na área de aquisição e desenvolvimento do letramento deixa claro que o modo de se ler um certo tipo de texto somente é adquirido de um modo fluente, como um falante nativo leria, por algum aprendiz que é membro de uma prática social e que compartilha, indubitavelmente, os modos de ser, de pensar e de agir daquele grupo social que têm atitudes e valores sobre eles e, por isso, interagem com eles em um determinado modo e não de outro.

Por assim ser, deve-se observar que as práticas de escrita dos grupos sociais, dentre os quais se inscrevem as universidades, vão além do conhecimento do código escrito per se, pois incidem nessas práticas a “[...] ‘voz’ ou ‘identidade’ (who) das pessoas ‘para falar, escrever, pensar, agir, valorizar e viver dessa maneira’” (Gee, 2005, p. 42, tradução nossa, grifo do autor)3.

Essas reflexões, vêm ao encontro da concepção de letramento defendida por Terzi (2003), ao teorizar que letramento é a relação do indivíduo com a escrita, relação esta que abrange o conhecimento, a valorização, a cultura e as crenças e valores que nela incidem (Terzi apud Tôrres, 2009).

Inserindo-se nesse contexto, este trabalho, recorte de uma pesquisa de mestrado desenvolvida no âmbito de um curso de bacharelado em ciência e tecnologia, de uma universidade federal situada no sul de Minas Gerais, objetivou analisar a relação que discentes entretecem com a escrita, refletida nos Discursos que permeiam as respostas dadas a uma entrevista feita pela pesquisadora. O curso é o primeiro ciclo formativo que leva os seus estudantes à um segundo ciclo formativo na área de engenharia. Esperávamos, em certa medida, compreender algumas das possíveis razões que levam os docentes dessa instituição a afirmar que ‘nossos alunos têm muita dificuldade de escrever’, como observado em uma pesquisa prévia feita por esta pesquisadora, quando estava em fase de elaboração da sua questão e hipótese de pesquisa. O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade sob o nº CAAE 11610019.1.0000.5142.

Ao se observar a relação dos graduandos com a escrita, em que se daria a ver suas potencialidades e fragilidades ao terem de se expressar por escrito, poderíamos também observar se a universidade se ocupava em lhes ensinar a ler e a escrever certos tipos de texto, “[...] de determinados modos [...]” e “[...] em determinados níveis [...]”, como teoriza Gee (2005, p. 41).

Considerando-se que a proposta pedagógica do curso, contida na Resolução n. 12 (Poços de Caldas, 2016) em relação às competências, habilidades e atitudes que deverão compor o perfil do egresso do curso, traz em um de seus pressupostos o item “[...] dominar técnicas de comunicação e escrita para elaborar sínteses, resumos, relatórios, artigos e outras elaborações teóricas específicas da área [...]” (Poços de Caldas, 2016, p. 23), era de nosso interesse observar também se esse item estava sendo devidamente cumprido, por considerarmos deveras importante para a formação desse discente. Em demais palavras, desejava-se saber se as práticas de escrita a que os graduandos desse curso de bacharelado são expostos contribuem para a formação de indivíduos capazes de se comunicar oralmente ou por escrito, visando atender as práticas letradas tanto dentro como fora da esfera acadêmica.

Percorrendo o caminho metodológico

Para que se levasse a termo nosso objetivo, lançou-se mão, como recurso metodológico, das falas dos discentes, obtidas por meio de entrevistas, como instrumento que oportunizaria relacionar os sentimentos expressos nas entrevistas com a teoria dos Discursos de Gee (1998, 2004, 2005, 2015), pormenorizando-se a relação que os discentes do curso estabelecem com a leitura e a escrita, considerando-se suas concepções de escrita anteriores ao ingresso na universidade e as atuais, ou seja, as que são expostos no espaço acadêmico.

Desejava-se, dessa feita, que aos alunos revelassem o que pensam a respeito das práticas de escrita que são desenvolvidas e demandadas pela academia, quais suas maiores dificuldades, a influência dos professores ao longo do curso, além de uma rememoração de alguns eventos e práticas de letramento que marcaram sua vida desde a infância. Também se desejava entender qual a relação dos entrevistados com os materiais escritos da universidade e se estes se refletem nos usos sociais da leitura e da escrita no meio acadêmico.

A pesquisa de onde se originaram os dados utilizados neste artigo se caracterizou como uma pesquisa de natureza qualitativa, observacional e de perfil etnográfico, (Street, 2003; Gil, 2008; André, 2008; Flick, 2009; Hua, 2016; Mattos & Castro, 2011). A pesquisa do tipo etnográfica é caracterizada pelo foco no processo educativo em si, mas que lança mão das técnicas utilizadas na etnografia, tais como a observação participante, a entrevista e a análise de documentos. Cabe ao pesquisador o papel principal na coleta e análise dos dados, permitindo que o mesmo revise ações e orientações durante a pesquisa (André, 2008).

Nesse tipo de pesquisa, “[...] o pesquisador como etnógrafo vai se inserindo mais no campo, vai formulando novas perguntas e adquirindo novas compreensões [...]” (Fiad, 2017, p. 92), sendo, portanto, uma pesquisa passiva de ajustes ao longo da inserção em campo e que possibilita ao pesquisador “[...] descrever a situação, compreendê-la, revelar os seus múltiplos significados, deixando que o leitor decida se as interpretações podem ou não ser generalizáveis” (André, 2008, p. 38).

Street (2003) assevera que a pesquisa etnográfica contribui no sentido de utilizar-se de métodos de trabalhos de campo “[...] sensíveis a formas de descobrir e de observar os usos e os significados das práticas do letramento, de acordo com os pontos de vista das próprias populações locais [...]” (Street, 2003, p. 1), com a intenção de entender o fenômeno como deveras acontece, no lugar de validar o sucesso ou insucesso de uma prática específica.

Apesar do tempo de duração da pesquisa etnográfica e do tempo de duração da pesquisa de perfil etnográfico serem diferentes entre si, a profundidade da condução e os instrumentos de pesquisa são os mesmos, sendo utilizados “[...] entrevistas semiestruturadas com o staff e alunos, observação participante de sessões de grupo e atenção a amostras de escrita dos alunos, feedback escrito sobre o trabalho dos alunos e folhetos sobre redação 'escrita'” (Lea e Street, 1998, p.3, tradução nossa, grifo do autor).4

O principal objeto da pesquisa realizada foi o letramento acadêmico desenvolvido no Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia - BICT, curso de oferta semestral de uma universidade federal do sul de Minas Gerais, em que a coleta de dados e o trabalho de campo foram realizados durante o segundo semestre de 2019.

A finalidade da pesquisa era compreender a relação que docentes e discentes estabeleciam com a escrita, observando as práticas e eventos de letramento sancionados, intentando relacionar essas práticas à teoria dos Letramentos Acadêmicos de Lea e Street (1998) e Komesu e Fischer (2014), visando-se descobrir qual a colaboração dessas práticas para a formação do letramento acadêmico desses indivíduos. Para tanto, a pesquisadora realizou observações participantes em sala de aula, entrevistas semiestruturadas com os docentes e discentes e coleta de material escrito para análise.

Este artigo focaliza a análise das entrevistas semiestruturadas com os dois discentes participantes da pesquisa, solicitados a fazerem uma rememoração de suas histórias de leitura desde a infância até os tempos atuais. Para Lima, Almeida, e Lima (1999, p.133), a entrevista favorece a aquisição de referências por meio da conversa particular, que mostra “[...] condições estruturais, sistema de valores, normas e símbolos e transmite, através de um porta-voz, representações de determinados grupos”. A seleção dos dois discentes se deu de forma orgânica, uma vez que a sala toda foi convidada a participar da pesquisa. Candidataram-se apenas dois discentes, que vieram, então, a se tornar nossos sujeitos de pesquisa.

Essas entrevistas nos propiciariam conduzir as rememorações de acordo com a dinâmica estabelecida pela relação pesquisadora-entrevistado. Sobre esse aspecto fluido, Gil (2008, p. 117) se manifesta afirmando que esse tipo de instrumento é guiado pela “[...] relação de pontos de interesse que o entrevistador vai explorando ao longo de seu curso”. Para Lima et al. (1999), na entrevista semiestruturada, há a possibilidade de o entrevistado discorrer a respeito de suas experiências, com base no tema proposto pelo pesquisador, mas tendo a liberdade de utilizar respostas livres e espontâneas, valorizando o desempenho do entrevistador.

Para tal, elaborou-se um roteiro de assuntos a serem abordados na entrevista, com tópicos sobre a rememoração da importância da leitura e da escrita na vida dos discentes, com a indicação de quem incentivava a leitura em casa, a leitura e escrita nos espaços escolarizados até o Ensino Médio, a existência de biblioteca no percurso do aluno e a frequência de uso desse espaço, a possível existência de um professor incentivador da leitura e escrita em todos os espaços escolarizados, a importância da leitura para a carreira escolhida e o impacto da disciplina de Comunicação e Expressão no currículo de engenharia, as possíveis dificuldades leitoras e escriturais na universidade, diferença entre Ensino Médio e a universidade com relação à escrita, a influência dos professores ao longo do curso, a perspectiva pessoal sobre as práticas de escrita e o papel da universidade na promoção do letramento dos alunos.

A entrevista, de natureza semiestruturada e realizada com dois discentes do curso, possibilitou que, a partir do feedback dos entrevistados, se pudessem tomar rumos diferentes para cada um, o que resultou em um número diferente de perguntas produzidas ao longo das entrevistas. Para o entrevistado A1 foram realizadas 8 perguntas e para o entrevistado A2, 13 perguntas, mesmo tendo-se permanecido dentro do tema e do objetivo da pesquisa.

Após a gravação e a transcrição das entrevistas passou-se à análise dos dados coletados, à luz da teoria dos Discursos de Gee (1998, 2004, 2005, 2015), em que se pretendeu estabelecer ligações entre as rememorações de letramento dos entrevistados e observações das relações estabelecidas com a escrita, de suas percepções sobre o letramento valorizado na academia, além das possíveis consequências nas suas práticas leitoras e escriturais desenvolvidas nesse contexto.

Disjunções e embates sobre a escrita na universidade: rememorações do discente A1

O primeiro entrevistado foi o discente A1, que inicia suas rememorações acerca da leitura e da escrita, ao longo de seu percurso formativo afirmando, com bastante clareza, que dava muita importância à leitura e à escrita desde pequeno, e que seu avô sempre gostou muito de ler, o que o incentivou sobremaneira e tendo sido um exemplo de leitor na família. Também afirma que “[...] lia muito no Ensino Médio, pois estudou em escola particular e a professora dava muitos livros de leitura”. Na questão em que se solicita que nos revele suas impressões sobre o valor da escrita na universidade, e qual a importância da leitura na função do engenheiro, obteve-se como resposta que “[...] leitura é muito importante, porque o engenheiro tem de saber demonstrar no relatório, por exemplo, o que ele verificou de resultado [...] se você não souber explicar detalhado [...] acho que tem essa importância na comunicação”. Inferiu-se, por essas respostas, que o entrevistado valoriza bastante a escrita em suas práticas de escrita diárias.

Sobre sua relação com a escrita e leitura no Ensino Médio, o entrevistado afirma que não teve dificuldades nos estudos de língua materna, e quando questionado sobre como percebe a relação dos colegas com as práticas de escrita da universidade, ele responde que observa que “[...] o pessoal tem muita dificuldade [...]” e que ele “[...] costuma dar respostas mais detalhadas, quando o trabalho requer uma produção textual, enquanto seus colegas “costumam dar respostas curtas [...]”, como acontece em Águas Subterrâneas, disciplina obrigatória da Engenharia Ambiental.

Ao ser indagado se houve algum professor que o influenciou a melhorar sua escrita acadêmica ao longo do curso, obteve-se como resposta que:

Pensando assim, acho que não vem nenhuma figura. O professor que dá essa matéria, de águas subterrâneas, é que enfatiza muito a questão da escrita, ele gosta de resposta completa. Tem uns que gostam de resposta mais elaborada, mas eles incentivam mais leitura técnica, como leitura de artigos (Discente A1).

Suas revelações nos levam a refletir sobre o papel desse curso em relação à valorização da escrita nesse contexto acadêmico, pois nos parece que não há uma orientação dos professores sobre a forma do texto que desejam que seja escrito, em consonância com a função que exercem dentro das práticas letradas da universidade. Apesar de se observar que o discente A1 considera que a escrita é importante para o engenheiro, não se solicita ao aluno que vá além na sua produção escrita já conhecida e familiar, ou seja, ele não é estimulado a produzir textos mais adequados ao contexto, pois basta “[...] responder ao que se pede [...]”, que a resposta se torna satisfatória, como se pode depreender de sua colocação: “Na faculdade eu sinto um pouco de falta da escrita acadêmica”. Entende-se que a relação do entrevistado com a escrita continua sendo a mesma de quando estava no Ensino Médio, ou seja, as práticas escriturais a que está sendo exposto na universidade não exigem o conhecimento de uma escrita mais elaborada, que atenda aos padrões exigidos no Ensino Superior

Entretanto, a resposta dada pelo entrevistado A1, referente à penúltima pergunta da entrevista (Depois desse tempo vivenciado na universidade, em contato com os tipos de textos escritos privilegiados nela, você se sente preparada para escrever o texto acadêmico?) causou-nos uma certa estranheza, pois se num primeiro momento deduzimos que o aluno não apresentou dificuldades com a leitura e a escrita no contexto universitário, por outro, suas afirmações contrariam a ideia inicial. Em suas palavras, ao comentar uma situação vivenciada com colegas “A gente até ‘tava’ conversando no grupo PRT, que para fazer relatório, artigos em geral, o pessoal não sabe, né? Eu senti bastante dificuldade sim, falta no começo da faculdade, um incentivo maior de, talvez, ter uma matéria sobre isso” (Discente A1). Sobre esse aspecto, reportamo-nos a Fiad (2011), quando afirma que o pressuposto de que o ingressante domine as práticas de letramento exigidas na universidade não se sustenta, pois não é essa a realidade com a qual os docentes se deparam.

As afirmações de A1 também corroboram algumas das reflexões feitas por Gee (1998, 2004, 2005, 2015). Primeiramente a evidência de que ele assume diferentes whos para diferentes situações: quando ele se dirige à pesquisadora do lugar de bom estudante no Ensino Médio, diligente com suas atividades leitoras, ele se manifesta sempre positivamente quando indagado sobre a relação que estabelece com a escrita. Entretanto, quando ele se posiciona como aluno universitário, coloca-se junto aos colegas e assume que também sente dificuldade ao escrever nesses contextos, ou seja, ele assume um outro who, o coletivo, e confessa sua fragilidade quando solicitado a produzir diferentes gêneros textuais na universidade.

Infere-se pelos Discursos manifestados na fala do discente que essa fragilidade pode ter raízes na falta de uma maior e mais expressiva exposição aos textos que circulam na universidade, o que reflete o pouco contato dos discentes com as práticas de escrita que modelam os textos que devem ser ali produzidos. A noção que ele tem do que se espera de um texto, ainda está encrustada das experiências que viveu no Ensino Médio, uma vez que, segundo ele, não houve incentivo na universidade para o contato com os textos que são exigidos na esfera acadêmica.

Partilha-se também das reflexões de Gee (2005), ao teorizar que o aprendiz só poderá ser cobrado por uma prática de escrita, se ele tiver sido exposto a ela, ou seja, só somos capazes de ler ou escrever um texto de um determinado modo se formos aprendizes dessa prática nas instituições, como a universidade, que são, em primeira instância, exponenciais agências de letramento.

O estranhamento às práticas letradas da academia: as rememorações do aluno A2

O segundo entrevistado, doravante chamado de A2, inicia suas respostas aos itens da entrevista afirmando que seus primeiros contatos com a leitura se deram de modo fortuito. Em suas rememorações de infância, lembra-se de que sua mãe o levava à biblioteca da cidadezinha em que morava, no final da tarde, mais por falta de que fazer do que pelo interesse pela leitura em si. Na sequência de suas lembranças, ao ser indagado sobre sua ação leitora nos espaços escolarizados, o aluno se recorda de ter tido uma professora no primeiro ano primário que sempre lia para as crianças e que estas tinham de fazer um relato sobre o que leram. Recorda-se também de que na escola não havia biblioteca.

Ao ser indagado se no Ensino Médio teve algum professor que o incentivava a ler, o aluno responde que havia uma professora que incentivava muito os alunos, que era muito boa professora de português e que ele gostava de ouvir as histórias que a professora contava. Essa afirmação sugere que foi exposto a eventos e práticas de letramento que provavelmente lhe propiciaram desenvolver o gosto pela leitura e pela escrita.

Contudo, quando solicitado a falar sobre sua reação, quando soube que no curso de engenharia havia uma disciplina obrigatória dedicada ao ensino de Comunicação e Expressão, o aluno respondeu:

Nossa, eu achei um saco! Porque eu sempre tive muito problema com português. Sempre tive muita dúvida. Quando eu entrei no BCT eu achei: eu não vou ter português! Eu não vou precisar disso! E eu me enganei completamente. Porque quando eu cheguei aqui eu senti falta de escrever, não só pelos relatórios (Discente A2).

Contrariando nossa expectativa, observou-se que o aluno inicia sua resposta com uma negativa enfática, ao afirmar que achou muito ruim saber que teria aula de português. Além disso, o aluno revela que sempre teve muita dificuldade nessa matéria, muitas dúvidas, achando, inclusive, que não esperava ter essa disciplina em seu curso. Entretanto, logo em seguida ele confessa que se enganou completamente, sentindo, inclusive, falta de escrever, ou seja, sentiu falta de saber escrever adequadamente os relatórios e demais textos acadêmicos.

Percebe-se também, nas respostas do respondente A2, o mesmo que aconteceu com o respondente A1, no que se refere à assunção de diferentes whos, de acordo com diferentes whats, ou seja: quando ele está tecendo rememorações de infância, em que ele se encontra em outro contexto temporal, ele se percebe como leitor mesmo sem ter sido muito estimulado a isso quando criança, pois suas idas à biblioteca da pequena cidade onde morava eram apenas para passeios de final de tarde, sem nenhuma pretensão de interação entre leitura e leitor. Considerou-se, de início que ele teve uma relação, pelo menos razoável, com a escrita e com a leitura nos níveis de ensino anteriores ao da universidade, entretanto, sua fala revela uma outra concepção sobre a importância de se saber escrever na universidade:

Eu achei que a gente ia ter contato com matérias de matemática, dessa parte mais aplicada da Engenharia. Então, assim, eu acho que é uma das maiores falhas que a gente tem no BCT. A gente acha que a vida é muito ocupada com os cálculos e todas essas coisas, mas eu acho que a gente precisa aqui saber escrever aqui também, mas é pela informação que ela traz pra gente. É muito importante (Discente A2).

Entende-se que há em sua fala um ‘lócus’ privilegiado de embates e tangenciamentos de Discursos, como teoriza Gee (1998, 2004, 2005, 2015), pois se pode ver que, apesar de o aluno afirmar não ter gostado de saber que teria aulas de português, logo em seguida afirma que “[...] é necessário saber escrever na esfera universitária, pois isso é muito importante”. Observa-se que ele se investe de uma outra identidade, assumindo aqui a de um sujeito cônscio da necessidade de conhecer melhor os usos e construções da língua portuguesa.

De modo muito especial, as asserções do discente A2 chamaram nossa atenção pela ênfase que dava ao afirmar a necessidade que sentiu de estudar mais português, como se observa em sua fala: “[..] na minha cabeça vêm todas as ideias, só que não consigo elaborar as coisas, aí eu não consigo passar a informação do jeito que a professora pede, essa é minha maior dificuldade” (Discente A2).

Entende-se que há aqui o que Gee (1998, 2004, 2005, 2015) argumenta com veemência, que é a questão dos Discursos e dos valores e crenças que subjazem a eles, ou seja, o aluno tem os conhecimentos necessários para responder ao que os professores solicitam, mas não sabe como estruturá-los em um gênero de texto específico que atenda àquela demanda acadêmica. Nesse momento se encontra, com primazia, o pressuposto de que só se sabe uma determinada prática de escrita e leitura se o sujeito é um aprendiz dessa prática, o que significa dizer que ninguém escreve um texto se não tiver sido exposto a ele.

Nessa perspectiva, infere-se que o fato de o aluno não preencher certos requisitos solicitados pela universidade, como a melhor escrita para atender às solicitações docentes, não é uma ‘deficiência’ sua, pois tanto nos anos anteriores à universidade, como na atualidade, em que cursa um Bacharelado em Ciência e Tecnologia, ele não foi exposto a esse aprendizado. Na continuidade de suas respostas, o aluno afirma que tem melhorado muito seu nível de letramento, mas que isso se deu pelo seu próprio esforço de ler trabalhos de conclusão de curso já apresentados e de procurar sempre por novas leituras dentro de sua área de estudo.

Conclui-se pelas respostas do entrevistado A2 que a sua relação com a escrita e leitura foi um processo mais prazeroso no ciclo básico e mais difícil no Ensino Médio, o que se refletiu no Ensino Superior, ao ter de lidar com as dificuldades que encontra para produzir textos na esfera acadêmica, pois essa se configura como uma tarefa bastante árdua para ele.

Conclusão

Os Novos Estudos do Letramento trazem à luz uma nova perspectiva de análise das relações sociais em que a leitura e a escrita são elementos mediadores, e introduzem nesses estudos um outro nível de análise no que diz respeito ao conceito de letramento. Nessa perspectiva, ultrapassa-se a definição de letramento somente como mera aquisição da técnica de escrita e leitura e se passa a concebê-lo como fenômeno essencialmente social.

Infere-se, portanto, que o letramento tem um componente cognitivo individual e outro social, pois considera a influência da cultura, das crenças, valorização e conhecimento da escrita, o que nos leva a compreender ser o letramento a relação que o indivíduo estabelece com a escrita, por considerar que são inúmeros e diferentes os fatores sóciohistóricos que incidem nos modos particulares de se abordar a escrita, como teorizado por Terzi (2003).

Um aspecto fundamental dentre os aportes epistemológicos sancionados pelos Novos Estudos do Letramento é o conceito de Discurso. Para Gee (1998, 2004, 2005, 2015) o Discurso vai além da conversação, da língua falada em si, pois configura uma atividade que envolve valores e maneiras de pensar dos sujeitos. Sendo assim, o Discurso só tem significado dentro e por meio das práticas de um determinado grupo, quando é contextualizado, engajado em uma atividade particular, onde seus aspectos são os reflexos da sociedade em que está sendo utilizado (Gee, 1998, 2004, 2005, 2015).

Para o teórico, um indivíduo pode se fazer valer de várias identidades (who) à medida que essas identidades são demandadas. Esses ‘whos’ são identidades socialmente situadas que contém as características do sujeito que o momento e o local requerem.

Nas falas dos alunos entrevistados, observadas por meio do reconto de suas histórias de leitura e escrita, podemos verificar que foram desvelados vários ‘whos’ de um só sujeito, que ora se intercalam, ora são mostrados de forma independente, à medida em que a entrevista prossegue. Um mesmo aluno, quando solicitado a falar de sua iniciação na escrita em sua família, revela que a mãe o levava à biblioteca da cidade como forma de distração e quando foi demandado falar sobre a importância da escrita na escola afirma que tinha uma relação boa com o tema, mas quando é demandado a falar da escrita na universidade, afirma que achou ‘um saco’ ter uma disciplina voltada à comunicação e expressão.

A relação que os entrevistados estabelecem com a escrita na universidade, diz muito sobre o ‘who’ que eles internalizam nesse contexto. As respostas indicaram que eles identificam uma maneira diferente de se relacionar com a escrita e uma exigência diferente do que eles estavam habituados nas instâncias anteriores ao Ensino Superior, por se tratar de uma identidade nova situada em um contexto social diferente.

Observaram-se nas rememorações dos discentes entrevistados algumas concepções paradoxais: se por um lado afirmam que não tinham problemas com a escrita e leitura no Ensino Médio, por outro, afirmam que ‘o pessoal tem muita dificuldade’, grupo social, no qual, certamente ele se inclui por ser um de seus membros.

De modo muito especial, observou-se que raros são os professores que incentivam a leitura nesse curso, como nos revelam as rememorações do discente A1, ao afirmar que não se lembrava de nenhum professor que efetivamente o influenciou a melhorar sua escrita, como e pôde ver em suas palavras: “Pensando assim [...] acho que não tem nenhuma figura [...]”. Numa avaliação apriorística inicial, essa afirmação nos leva a crer que há bem pouco ou quase nenhum incentivo à leitura e à escrita, nesse curso dessa universidade.

Instigou-nos também a revelação de um dos discentes, ao afirmar que “[...] na faculdade eu sinto um pouco de falta da escrita acadêmica”. Essas afirmações nos levam a refletir sobre o papel que a universidade está desempenhando na promoção do letramento de seus discentes. No caso específico do BICT, apesar de haver no projeto pedagógico do curso uma disciplina obrigatória inteiramente voltada ao trabalho em comunicação e expressão, a percepção dos discentes, inferidas por meio de seus depoimentos, nos revelam que, como um todo, ela não é suficiente para atender às demandas escriturais da universidade, no que diz respeito à escrita e à leitura dos diversos e diferentes gêneros textuais que ali circulam.

Em nosso entendimento, a disciplina oferecida, apesar de importante, não atende aos anseios dos discentes em relação ao seu letramento, pois sentem falta de um maior empenho tanto por parte dos demais docentes, como por parte da própria instituição, no sentido de se propor um plano de promoção de letramento dos discentes que abranja os demais docentes e as demais áreas de conhecimento do curso. O discente A1, ao ser indagado, por exemplo, diz que não há uma figura docente que o influenciou a melhorar sua escrita acadêmica, a não ser um único docente que gosta de “uma resposta mais completa” às suas perguntas.

A nosso ver, o curso deveria trabalhar mais questões de escrita com seus alunos de uma forma a circundar todas as suas áreas de conhecimento, o que nos revelaria, em primeira instância, estar alinhada aos pressupostos dos currículos dos Bacharelados Interdisciplinares, e alinhar-se às premissas elencadas dentre objetivos para o perfil do egresso, em que se observa uma ênfase à habilidade de se comunicar e argumentar com competência.

Não se pode deixar de salientar que o papel social da universidade é formar pessoas aptas a enfrentar o mundo profissional cada vez mais competitivo, em que se valoriza, sobremaneira, a expressão escrita dos candidatos. Entretanto, via de regra, o que se tem podido observar é que a universidade carece ainda de voltar um olhar mais atento a essas questões, pois o não comprometimento da instituição com as práticas letradas de prestígio pode ser um impedimento a que seus egressos tenham acesso ao mundo do trabalho, já tão escasso no Brasil.

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7NOTA: As autoras foram responsáveis pela concepção, análise, interpretação dos dados, redação, revisão crítica do conteúdo e aprovação da versão final a ser publicada

Recebido: 24 de Setembro de 2020; Aceito: 17 de Maio de 2021

* Autor para correspondência: E-mail: almeidadacruz.mariaemilia@gmail.com

Maria Emília Almeida da Cruz Tôrres: Graduada em Letras - português/inglês e suas literaturas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP (2009), na área de ensino de língua materna, com foco em letramento/leitura e formação de professores. Docente do Programa de Pós-graduação em Educação e da área de Português e Metodologia do Trabalho Científico no curso de Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de Alfenas - UNIFAL-MG. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3399-000X E-mail: almeidadacruz.mariaemilia@gmail.com

Carolina de Cássia Araujo: Técnica em Assuntos Educacionais da Universidade Federal de Alfenas, campus de Poços de Caldas. Pedagoga pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) com MBA em Administração e Gestão do Conhecimento pelo Centro Universitário Internacional - UNINTER. Mestre em Educação pela Universidade Federal de Alfenas com pesquisa desenvolvida no Eixo 2: Linguagem, Alfabetização e Letramento da Linha de pesquisa Culturas, Práticas e Processos na Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4553-7157 E-mail: carolina.araujo@unifal-mg.edu.br

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