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Acta Scientiarum. Education

Print version ISSN 2178-5198On-line version ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.45  Maringá  2023  Epub Jan 02, 2023

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v45i1.56231 

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS

A constituição do ser professora: novos desafios diante de um cenário de pandemia

La constitución del ser docente: nuevos retos ante un escenario pandémico

Ana Paula Gestoso de Souza1  * 
http://orcid.org/0000-0002-2015-0829

Aline Maria de Medeiros Rodrigues Reali1 
http://orcid.org/0000-0003-4915-8127

1Universidade Federal de São Carlos, Rod. Washington Luiz, s/n, 13565-905, São Carlos, São Paulo, Brasil.


RESUMO.

Analisa-se a constituição do ser professor no contexto de pandemia da Covid-19, buscando: i. caracterizar os elementos presentes no processo de ressignificação da identidade profissional docente no contexto de pandemia; ii. identificar os desafios vividos na atuação profissional como docente no ensino remoto. Trata-se de um estudo descritivo-analítico, de caráter exploratório, relacionado a uma pesquisa-intervenção mais ampla, que tem como marcador temporal o ano de 2020. Este artigo enfoca a vivência de oito professoras experientes no ensino remoto que atuavam como mentoras na referida pesquisa-intervenção. Analisaram-se narrativas escritas registradas em diário reflexivos, relatórios de atividades e comunicação pelo WhatsApp. Como fonte complementar, foram considerados depoimentos das professoras experientes registrados em reuniões síncronas online. A partir disso, foi possível identificar/compreender: i. tons de angústia e desamparo diante dos efeitos profissionais ocasionados pela pandemia, ii. sentido de esvaziamento da própria identidade profissional e iii. desafios na projeção da docência no ensino remoto. Observou-se que, diante do novo cenário ocasionado pela pandemia, as professoras/mentoras passaram por processos similares aos das iniciantes que acompanhavam na mentoria, vivenciando tensões como: receio e incertezas diante do futuro (incluindo o retorno das atividades escolares presenciais), ansiedade, angústia, sentimento de incapacidade, dúvidas na reorganização das atividades escolares (de forma remota), dificuldades no diálogo com os familiares, preocupação com as crianças e seus familiares, ausência de informações e diálogo nas escolas e redes de ensino, revolta diante das ações governamentais, entre outras. Contudo, também foi observado que novos significados foram atribuídos ao processo de se constituir um professor. Verificou-se o desequilíbrio da constituição da identidade profissional como um dos primeiros efeitos da pandemia. Entretanto, tal desequilíbrio deu lugar ao empoderamento da própria identidade docente, ocasionando também ampliação do repertório de conhecimentos profissionais.

Palavras-chave: formação de professores; identidade profissional; professores de educação básica

RESUMEN.

Se analiza la constitución del ser docente en la pandemia de Covid-19, buscando: i. caracterizar los elementos presentes en el proceso de resignificación de la identidad profesional docente en el contexto de pandemia; ii. identificar los desafíos vividos en la actuación profesional como docente en la enseñanza remota. Se trata de un estudio descriptivo-analítico, de carácter exploratorio, relacionado con una investigación-intervención más amplia, que tiene como marcador temporal el año 2020. Este artículo enfoca ocho maestras experimentadas en la enseñanza remota que actuaban como mentoras en dicha investigación-intervención. Se analizan narrativas escritas registradas en diario reflexivos, informes de actividades y comunicación por WhatsApp. Como fuente complementaria, se consideró los testimonios de las profesoras registrados en reuniones síncronas online. Fue posible identificar/comprender: i. tonos de angustia y desamparo ante los efectos profesionales ocasionados por la pandemia, ii. sentido de vaciamiento de la propia identidad profesional y iii. desafíos en la proyección de la docencia en la enseñanza remota. Se observó que, ante el nuevo escenario ocasionado por la pandemia, las maestras/mentoras están pasando por procesos similares a los de las principiantes que acompañan en la mentoría, experimentando tensiones como: miedo e incertidumbres ante el futuro (incluyendo el regreso de las actividades escolares presenciales), ansiedad, angustia, sentimiento de incapacidad, dudas en la reorganización de las actividades escolares, dificultades en el diálogo con los familiares, preocupación con los alumnos y sus familiares, ausencia de informaciones y diálogo en las escuelas y redes de enseñanza, rebeldía ante las acciones gubernamentales. También se observó la atribución de nuevos significados al proceso de convertirse en profesor. Se ha constatado un desequilibrio en la constitución de la identidad profesional como uno de los primeros efectos de la pandemia. Tal desequilibrio ha dado lugar al empoderamiento de la propia identidad docente, ampliando el repertorio de conocimientos profesionales.

Palabra clave: formación del profesorado; identidad profesional; enseñanza primaria

ABSTRACT.

This paper analyzes the constitution of being a teacher in the context of the Covid-19, aiming to: i. characterize the elements present in the process of reframing the teaching professional identity in the context of a pandemic; ii. identify the challenges experienced in professional practice as a teacher in remote education. This is a descriptive-analytical study of an exploratory nature, related to a more extensive research-intervention, considering the pandemic first year. This article focuses on the experience of eight experienced teachers in remote teaching who acted as mentors in the research-intervention. The data comprised written narratives recorded in reflective diaries, virtual activities, and reports by WhatsApp. As a complement, we will consider the deposits of experienced professors registered in virtual synchronous online meetings. It was possible to identify/understand: i. signs of anguish and helplessness when facing the professional effects caused by the pandemic, ii. sense of emptying one's professional identity and iii. challenges in designing teaching in remote education. It was observed that in this new scenario caused by the pandemic, teachers are going through processes similar to those of the novices accompanied during mentoring, experiencing tensions such as: fear and uncertainty about the future (including the return of regular classroom activities), anxiety, anguish, feeling of incapacity, doubts about the reorganization of school activities (remotely), difficulties in dialogue with the students’ family members, concerns with the children and their families, lack of information and dialogue in schools and education networks, revolt at government actions, among others. It was also observed that new meanings are being attributed to the process of becoming a teacher. The imbalance in the constitution of professional identity was noticed as one of the first effects of the pandemic. Such an imbalance gave way to the empowerment of the teaching identity itself, also causing an expansion of the repertoire of professional knowledge.

Keywords: teacher training; personal identity; elementary schools

Introdução

Ao considerar o contexto de pandemia da Covid-19 e seus desdobramentos sobre a atividade docente, este artigo analisa a constituição do ser professor e as mudanças decorrentes em suas práticas profissionais. Para melhor compreender esse impacto, foram analisados os depoimentos de oito professoras experientes expressos em diferentes momentos ao atuarem como mentoras em um programa de mentoria1 - reuniões síncronas online, tarefas online e comunicação pelo WhatsApp, entre os meses de março e junho de 2020. As seguintes questões de pesquisa nortearam a sua condução: Diante do contexto de pandemia, como as professoras experientes se veem como professoras? Quais os desafios que elas enfrentam na atuação profissional diante do ensino remoto? Delimitaram-se os objetivos da investigação, a saber: i. caracterizar os elementos presentes no processo de ressignificação da identidade profissional docente no contexto de pandemia; ii. identificar os desafios vividos na atuação profissional como docente no ensino remoto.

Quando essas docentes foram questionadas sobre como elas se vêem como profissionais no contexto da pandemia da Covid-19, a professora J. indicou que o poema ‘José’, de autoria de Carlos Drummond de Andrade, representava a imagem da professora-mentora que ela vislumbrava nesse cenário. Segundo Saraiva Silva (2019, p. 61), a “[...] escrita poética de Drummond torna-se um campo no qual é possível traduzir as tensões existentes entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo, no qual o sentimento sempre presente de angústia e desamparo é transformado em palavra poética”. Especificamente no poema citado, os tons de angústia e urgência estão presentes. Ademais, o nome do poema - José - representa a coletividade, isto é, os questionamentos nele postos reverberam “[...] um sentimento geral e comum à existência humana” (Saraiva Silva, 2019, p. 63).

O período vivido por Drummond na ocasião da escrita do poema (Estado Novo) tem características próprias, e não é possível (e nem desejável) transpor diretamente as ideias e concepções do autor para o momento atual. Todavia, a tensão, o medo e as incertezas diante do futuro - marcas do período da escrita do poema - são contemporâneos e corroboramos Saraiva Silva (2019, p. 66, grifo do autor) quando enfatiza que “[...] as inquietações de José ainda são vivenciadas pelo ser humano, o que torna a temática do poema ‘José’ atemporal, considerando ainda que tais inquietações são inseparáveis da condição humana”. Por isso, em um primeiro momento, a representação de J. nos provocou a olharmos os depoimentos das professoras-mentoras à luz do poema, mas os dados nos interpelaram a irmos além dessas primeiras impressões.

Aportes teóricos

Compreendemos, na perspectiva de Dubar (1997), que a identidade profissional é constituída em um processo de socialização no entrecruzamento de processos biográficos e relacionais, uma vez que abrange uma construção subjetiva de uma definição de si (identidade para si) e as categorias que identificam e reconhecem um sujeito em determinado espaço social (identidade para o outro). Nesse processo de socialização, o sujeito é interpelado por outros sujeitos e instituições; ele pode aceitar ou não essa interpelação e/ou, ainda, criar outra. Assim, há uma constante tensão entre os ‘atos de atribuição’ - que retratam aspectos do “[...] que tipo de homem (ou mulher) você é, ou seja, a identidade para o outro” (Dubar, 1997, p. 137) e ‘atos de pertencimento’ - que definem “[...] que tipo de homem (ou de mulher) você quer ser, ou seja, a identidade para si” (Dubar, 1997, p. 137). As tentativas de aproximar a identidade de si e a identidade para o outro geram ‘estratégias identitárias’ que

[...] podem assumir duas formas: ou a de transações externas entre o indivíduo e os outros significativos, visando tentar acomodar a identidade para si à identidade para o outro (transação denominada objetiva) ou a de transações internas ao indivíduo, entre a necessidade de salvaguardar uma parte de suas identificações anteriores (identidades herdadas) e o desejo de construir novas identidades no futuro (identidades visadas), com vistas a tentar assimilar a identidade-para-o-outro à identidade-para-si (Dubar, 1997, p. 140).

Desse modo, a constituição da identidade docente pressupõe negociações e é um processo contínuo, instável, mutável e multifacetado fundamentado por aspectos sociais, culturais, políticos e históricos de cada contexto no qual se insere o professor (Rodgers & Scott, 2008), os modos de reconhecimento das instituições e dos outros e de reconhecimento de si (Dubar, 1997). Esse processo é mediado pelas experiências dos docentes nas escolas e fora delas, por suas próprias crenças e valores sobre o que significa ser um professor e o tipo de professor que aspiram a ser (Sachs, 2005). Por isso é fundamental que os professores se tornem conscientes de suas identidades e respectivos contextos, das relações e emoções que moldam esses contextos, e reivindiquem a autoridade de sua própria voz (Rodgers & Scott, 2008).

A essas ideias sobre a constituição da identidade profissional somamos a perspectiva do desenvolvimento profissional como um processo contínuo de vir a ser, isto é, de transformação e constituição do sujeito, ao longo do tempo, em um campo profissional específico como a docência (Fiorentini & Crecci, 2013). No caso em tela, sendo, então, direcionado para a “[...] satisfação do direito à aprendizagem que os alunos e a comunidade social esperam da escola” (Roldão, 2017, p. 201).

O desenvolvimento profissional docente incorpora a trajetória pessoal e profissional do professor, engloba atividades e experiências planejadas sistematicamente (Vaillant & Marcelo, 2012), realizadas em benefício do sujeito, do grupo ou, ainda, da escola (Day, 1999), que demandam uma postura de “[...] indagação, de formulação de perguntas e problemas e a busca de suas soluções” (Vaillant & Marcelo, 2012, p. 169).

Ao se desenvolver profissionalmente, o sujeito amplia e aprofunda o repertório de conhecimentos e competências profissionais para atuar na docência, assim como desenvolve suas capacidades, personalidade, habilidades e interação com o ambiente. Por isso, o desenvolvimento profissional não se descola do processo de constituição identitária docente.

É válido pontuar que as participantes deste estudo são professoras experientes - com mais de 10 anos de atuação na docência. Via de regra, os docentes experientes, além de possuírem um repertório de conhecimentos e habilidades mais elaborados, complexo e multifacetado que os principiantes, ao atuarem, desempenham um controle mais voluntário e estratégico sobre os elementos que envolvem o processo de ensino e aprendizagem e conseguem analisar uma situação problemática por diferentes vieses (Reali, Tancredi, & Mizukami, 2008; Marcelo, 2009, entre outros). Entretanto, esses docentes, tendo um perfil adaptativo (Marcelo, 2009), continuam se desenvolvendo profissionalmente, buscando continuamente transformar, aprofundar e ampliar suas competências, e seguem constituindo suas identidades profissionais. Desse modo, o enfrentamento de novas e desafiantes situações resulta no surgimento de novas capacidades (Marcelo, 2009).

Por isso, compreendemos que as transformações que ocorrem na sociedade podem ter um papel desestabilizador das certezas do ser e do atuar como professor, acarretando tensões, mas também a resignificação da própria identidade profissional, a renovação do compromisso social com a docência, a ampliação e o aprofundamento dos conhecimentos e habilidades necessárias ao exercício da profissão.

Percurso metodológico

Nesta pesquisa, de caráter exploratório, investigaram-se oito professoras experientes que atuavam como mentoras no programa de mentoria no contexto da pandemia da Covid-19, conforme objetivos apresentados na seção introdutória deste texto. Neste artigo, utilizam-se as iniciais do primeiro nome de cada professora para sua identificação. No período da coleta de dados, três professoras, identificadas por C., N. e J., atuavam na Educação Infantil em escolas da rede pública municipal. Elas tinham entre 42 e 51 anos de idade, todas formadas em Pedagogia, e possuíam mais de 20 anos de carreira nessa etapa de ensino. J. também tem 12 anos de experiência como formadora da Educação de Jovens e Adultos (EJA), por isso na mentoria ela acompanhou iniciantes da Educação Infantil e da EJA. Cinco professoras - identificadas como V., L. Na., W. e M. - atuavam no Ensino Fundamental - anos iniciais - e tinham entre 32 e 42 anos, sendo quatro delas com formação em Pedagogia e uma formada em Letras, tendo de 12 a 20 anos de carreira docente. Quatro professoras - V., Na., W. e M. - atuavam na rede municipal de ensino, sendo que V. também atuava na rede estadual. V. tinha 20 anos de experiência docente nos anos iniciais, Na. tinha 16 anos de docência e W. 12 anos de carreira docente, ambas atuaram como formadoras no Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) e M. atuou onze anos como professora alfabetizadora e há um ano é vice-diretora de uma escola da rede municipal. A professora L. atuava como docente na rede particular há 16 anos, nos anos iniciais, e tinha experiência de 10 anos de atuação como coordenadora pedagógica.

Para a realização deste estudo, analisaram-se prioritariamente narrativas escritas dessas professoras ao atuarem como mentoras registradas em diários reflexivos e relatórios de atividades e mensagens trocadas via WhatsApp, entre elas e a equipe de pesquisadoras. Foram considerados, de modo complementar, seus depoimentos registrados em vídeo em reuniões síncronas online realizadas com a equipe de pesquisa. Todos esses dados foram produzidos entre os meses de março e agosto de 2020. Cada excerto de narrativa é apresentado, neste texto, da seguinte forma: inicial do nome da professora, tipo de texto (diário, por exemplo) e a data de produção. As mensagens trocadas via WhatsApp são identificadas do seguinte modo: data de envio, o aplicativo e a direção do interlocutor (por exemplo, Mensagem de J. para as professoras/mentoras e as pesquisadoras).

Utilizando-se da perspectiva da análise prosa (André, 1983), os eixos de análise não foram construídos a priori, mas a partir da contextualização dos depoimentos das professoras e da identificação de temas e conceitos principais nesse contexto estudado, realizando, inicialmente, um paralelo com o poema ‘José’ - considerando-o sua representatividade diante do cenário vivido. A partir disso, foi possível identificar/compreender: i. tons de angústia e desamparo diante dos efeitos profissionais ocasionados pela pandemia; ii. sentido de esvaziamento da própria identidade profissional; iii. os desafios na projeção da docência no ensino remoto.

Apresentação dos dados

O programa de mentoria foi desenvolvido entre os anos de 2017 e 2019 de forma a articular atividades presenciais e online com professores experientes da educação básica no acompanhamento de professores iniciantes. Em 2020, o distanciamento social imposto pela pandemia da Covid-19 exigiu que todas as atividades de mentoria e de pesquisa fossem realizadas online. Na condução dessa fase do programa, a equipe de pesquisadoras começou a observar os impactos que a pandemia estava causando na vida profissional (e pessoal) das professoras experientes. Um novo desafio profissional foi posto. É possível continuar sendo professora de crianças em um contexto de aulas não presenciais? Se sim, como? Essa situação atinge diretamente a construção da identidade profissional e o próprio desenvolvimento profissional; afinal, esses processos sofrem influência de forças externas do contexto e das relações sociais. A seguir, apresentamos os achados da pesquisa (utilizam-se as iniciais dos nomes das professoras/mentoras e das pessoas por elas citadas em seus depoimentos).

Tons de angústia, desamparo e sentido de esvaziamento da própria identidade profissional

Observamos que diante do inesperado e do incerto cenário decorrido da pandemia, tons de angústia, desamparo e urgência - marcas do poema de Drummond - estiveram presentes nos depoimentos das professoras, expressos em diferentes momentos (reuniões síncronas online, tarefas online, comunicação pelo WhatsApp). Esses tons estavam imersos em preocupações relacionadas ao mundo (às ações governamentais, à escola, às famílias, aos alunos, às professoras iniciantes etc.) e a si próprias. O instável, mutável e multifacetado do ser docente, aspectos indicados por Rodgers e Scott (2008), se apresentaram realçados por uma situação não vivida, inesperada, assustadora e confusa, pois as premissas, compreensões e proposições prévias, e até então concebidas como estáveis, foram desmanchadas. Tal cenário trouxe à tona fragilidades, inadequações e inseguranças, tornando as professoras conscientes de uma identidade fragilizada e da força modeladora dos fatos políticos, históricos e sociais vivenciados naquele momento.

Em alguns desses depoimentos, percebemos um sentido de esvaziamento da própria identidade docente. As negociações entre as representações que os docentes fazem de si mesmos e de suas funções com as condições concretas de trabalho, com o imaginário social da profissão (Sachs, 2005; Garcia, Hypólito, & Vieira, 2005), dentre outros aspectos objetivos, foram tensionadas, e, para as professoras, os elementos que constituem essa identidade entraram em colapso. Os trechos dos depoimentos apresentados a seguir ilustram essas considerações:

Com relação à pandemia em minha vida, tenho momentos de muita ansiedade, medo, insônia e até certa dificuldade de concentração, mas estou procurando não pensar muito e tento viver um dia de cada vez e se prevenindo. [...] O vírus impôs o isolamento social, ‘de repente as escolas fecharam e nos afastamos das nossas crianças sem ainda ter estabelecido o vínculo necessário para desenvolver nossas atividades. Simplesmente de um dia para outro parece que deixamos de ser professor’. Sabemos que nas escolas da primeira infância o aprendizado se dá por meio do brincar e da interação social, é relação com os pares [...], e também na interação com o professor [...] (C., Diário, 3 de junho de 2020, grifos nossos).

‘Me pergunto diariamente o que acontecerá com a nossa profissão. Se as instituições não se adequarem nós estaremos impossibilitadas por tempo indeterminado de exercer a nossa função’. [...] Nós não temos como atender a todas as crianças se não for por meio do ensino remoto. ‘Ou se organizam e nos organizam ou será realmente um ano perdido, cheio de frustrações, angústias e medo’[...] além do que tudo aquilo que a pandemia já pode nos ‘proporcionar’. [...] Saímos [da escola] sem material das crianças e sem muitos de nossos objetos pessoais e que usávamos no trabalho. Tudo estranho, ‘uma situação confusa e tensa [...] Só tínhamos como meio de comunicação com a equipe da direção e os demais professores, o grupo oficial da escola. Na verdade, a impressão que tenho, relembrando isso tudo agora é que o grupo foi tomado por um silêncio’ (V., Diário, 25 de maio de 2020, grifos nossos).

Em seu depoimento, C. expressou angústia em razão de que a necessidade do distanciamento social não permitia a realização de algumas das ações que caracterizam a educação infantil (o brincar e a interação com o mundo físico e social). V. expressou elementos da materialidade da identidade profissional e também indicou o compromisso social da escola em atender a todas as crianças, pontuando a impossibilidade de atender a todas presencialmente; entretanto, como será discutido mais adiante, ela também questionou as dificuldades de se concretizar um ensino remoto efetivamente inclusivo.

As professoras mostraram angústia pela perda do vínculo com os estudantes, evidenciando o quanto a relação interpessoal é elemento constituinte da identidade docente - especificamente a dimensão afetiva - e, além disso, elas expressaram alguns valores integrados a essa identidade. O depoimento de J. é ilustrativo desse elemento que também se fez presente na imagem docente construída por L., especificamente no que tange à ‘identidade para o outro’.

Esses últimos três meses foram muito pesados para mim, pois sou uma pessoa que me coloco muito no lugar do outro, ‘fico pensando como estão as crianças [...]. Sei que tem crianças que estão sob os cuidados dos próprios irmãos mais velhos, que não são tão mais velhos assim. Outras que estão passando necessidades’, pois entraram em contato para pedir ajuda (J., Diário, 22 de maio de 2020, grifos nossos).

[na semana que antecedeu a suspensão das aulas] os alunos também pareciam ter o mesmo ‘sentimento de insegurança’ que eu. Porém, eu precisava, de alguma forma, demonstrar segurança nas recomendações que eu dava: evitar aglomerações, ficar em casa, estudar as atividades combinadas, não ficar tão perto do amigo, talvez essa tenha sido a parte mais difícil do dia. ‘Os alunos nos vêem sempre como um espelho, um exemplo, um modelo a ser seguido, mas mostrar a eles certezas que eu não tinha, dizer que tudo ficaria bem, mesmo eu não sabendo de nada, me fez sentir num dos piores dias de trabalho. Nos dias seguintes, a sala vazia era minha companhia’ (L., Diário, Sem data, maio de 2020, grifos nossos).

Esses dados revelam um aspecto que precisa ser levado em consideração para que as professoras pudessem exercer a função docente. A constituição da identidade docente envolve uma articulação entre a dimensão subjetiva - como o sujeito se vê enquanto professor - e objetiva - como o outro o vê (Dubar, 1997). Desse modo, se elementos que constituem a ‘identidade para si’ entraram em colapso e impediram que a própria professora se visse como docente, como ela poderia se relacionar com a escola, com as crianças e seus familiares nesse contexto; afinal, quem é ela, o que ela faz? Tal situação gerou um sentimento de inaptidão, como revelou Na.

[...] hoje completamos praticamente três meses de outros desafios e angústias. [...] o ‘sentimento de incapacidade’ que se aproxima a cada novidade que surge. [...] ‘Lidar a cada dia com novos desafios [...] exige um desgaste muitas vezes desnecessário que impacta em outras atividades’. (Na., Balanço do trabalho de mentoria, Julho de 2020, grifos nossos).

Observamos que, no caso das sete professoras que atuam na rede municipal, a angústia e o questionamento da própria identidade foi se intensificando, uma vez que, no início da pandemia, a Secretaria Municipal de Educação (SME) - no dia 20 de março de 2020 - cancelou as atividades presenciais sem fornecer alguma orientação do que iria acontecer: as professoras não sabiam se mantinham contato com os familiares dos alunos; se sim, como poderiam contatá-los, não sabiam se estavam em período de recesso escolar2, e nas escolas não havia um consenso entre o corpo docente e a equipe gestora sobre o que poderia ser feito. Perante a falta de orientação, as professoras sentiram-se desamparadas, e iniciativas isoladas foram tomadas, revelando um tom de urgência em saber o que fazer. Ademais, a ausência de orientação representou para as professoras certo descaso da rede de ensino com a função social da escola e com a docência, evidenciando que essas professoras não se identificaram com esses ‘atos de atribuição’ (Dubar, 1997) que lhe foram impostos pela postura do poder público diante da pandemia. Esses dados mostram o quanto é importante que as redes de ensino e as escolas busquem provocar a conexão entre a ‘atribuição’ e a ‘pertença’. As narrativas revelam tentativas de trazer a público sua voz e suas experiências e assumir um protagonismo, definindo o rumo de algumas ações de enfrentamento às situações estabelecidas. Ao atuarem desta maneira, as professoras buscaram construir alternativas em face aos fracassos, processos relevantes ao ilustrar o seu lugar de ‘contestação’ das demandas externas e o significado e desejo do ser professor. Não foram silenciadas e possivelmente começaram a percorrer a trilha da configuração de uma nova identidade (Rodgers & Scott, 2008).

Em seu depoimento, V. representa a percepção de seus pares sobre essa situação:

[...] ‘Desde que saí da escola, em 18 de março, vivi uma constante busca de estratégias e ferramentas que viabilizassem meu contato com as crianças e os responsáveis por elas. [...] Deixamos a escola num contexto de instabilidade, medo e incertezas’. [...] Os cenários alteram-se a cada semana e ninguém consegue nos posicionar porque tudo é novo e diferente em todas as áreas, situações e em todos os contextos. [...] ‘hoje, 23/05 ainda não temos nenhum posicionamento oficial da prefeitura do município’. Ainda não se definiram por nenhuma plataforma para que as atividades possam ser disponibilizadas. ‘Ainda não há nada concreto’, tudo que conseguimos ouvir é que estão fazendo as reflexões necessárias para o cenário atual. ‘[...] Dá uma sensação de abandono [...]’ Chegamos [professoras da escola] a sugerir que levantassem os dados por região de quantas são as famílias que não tem nenhum tipo de acesso às redes sociais. Mencionamos que esse dado é fundamental para que pudéssemos pensar em ações efetivas. ‘Continuamos no aguardo’. A única informação que tivemos [...] uma reunião ‘não obrigatória’ sobre que no início de junho haverá a distribuição de materiais aos alunos/as (V., Diário, 25 de maio de 2020, grifos nossos).

Nesse período, todas as professoras buscaram manter contato com as crianças e seus familiares, e nesses casos o WhatsApp foi o aplicativo mais utilizado. Nos depoimentos apresentados a seguir, as professoras revelam algumas iniciativas que foram realizadas por elas e/ou pelas escolas enquanto aguardavam orientações da SME. Na., por exemplo, indicou que a escola na qual atua optou por divulgar atividades descontextualizadas e que precisavam ser impressas às famílias das crianças pelo Facebook. A professora, por não considerar essa prática adequada, enviava outras atividades pelo WhatsApp, e assim conseguiu manter certo contato com as famílias e com as crianças. Entretanto, Na. sentiu-se mais desamparada pela gestão pública quando um recesso escolar foi publicado no Diário Oficial com data retroativa, o que ela interpretou como ‘falta de respeito’ pelo trabalho até então realizado.

[Alguns dias antes da suspensão das aulas] ‘Os professores aproveitaram para colocar a documentação pedagógica em ordem (diário, portfolio, correções...) e organizar algumas atividades para disponibilizar online sobre a prevenção ao COVID19. Até este momento, achávamos que seria uma suspensão de 15 dias e retornaríamos em breve’. Todos estavam ansiosos e certo ar de melancolia pairava na escola vazia, sem vida, sem barulho, sem crianças! Até que tudo mudou ainda mais rápido, [...] suspendendo as atividades escolares no período de 20 de março a 30 de abril de 2020, [...] ‘percebemos a gravidade da situação e o quanto estávamos despreparados sem a comunicação com os pais. A gestão da escola solicitou que enviássemos atividades, mas sem muitas orientações’, [...] percebi que o melhor seria montar um grupo de WhatsApp. Sempre relutei em usar grupos de WhatsApp com os responsáveis [...]. Em conversa com M. ‘vinha avaliando a possibilidade de montar um grupo da turma, o que foi inevitável. Entre o comunicado do decreto e o fechamento da escola eu tinha 10 minutos para recolher o contato de todos os responsáveis’. [...] Sem eles eu não teria contato com os alunos e as famílias. No dia seguinte, entrei em contato com os responsáveis pelos alunos da turma, convidando-os para participar de um grupo no WhatsApp. Dos 33 alunos matriculados, apenas três não foram inscritos porque [...]. ‘Até o momento todos têm respeitado e interagido de maneira respeitosa; fico muito contente, a resistência tornou-se necessária e a experiência tem sido muito positiva’. [...] Foi realizado um planejamento pensando em [...] em 4 de abril fomos surpreendidos com a publicação da portaria[...] estabelecendo recesso escolar retroativo no período de 23 de março a 06 de abril, diante disso combinei com os responsáveis uma pausa nas atividades entre os dias 13 e 26 de abril, retomando o envio no dia 27. [...] Quando foi publicado o decreto municipal nº 199, de 18 de maio de 2020, suspendendo as atividades até o dia 31 maio, ‘começamos a ficar preocupados com a falta de orientação da Secretaria Municipal de Educação’, embora tenham sido realizadas algumas reuniões do Conselho Municipal de Educação, nenhum encaminhamento concreto foi realizado. ‘Essa ausência deixou muitos professores angustiados e decepcionados com a falta de respeito com o trabalho que tem sido desenvolvido até o momento. [...] Depois de mais de 30 dias úteis de atividades realizadas com os alunos fomos categoricamente informados que esse trabalho ‘voluntário’ não valeria nada’. [...] Avaliando a interação das atividades por WhatsApp, considero que há um retorno significativo, embora nem todos participem e alguns pais tenham deixado claro que não irão fazer as atividades propostas; estimo que aproximadamente 70% da turma têm realizado as atividades satisfatoriamente, [...]. ‘Durante a suspensão das aulas, a escola está disponibilizando atividades pelo Facebook, uma prática que tem me preocupado um pouco pela seleção das propostas, geralmente impessoais, com muitos recortes e links da internet e que demandam impressão para realização. Neste caso, sigo com as atividades específicas para minha turma, trocando atividades, sugestões e conversando muito com as demais professoras do 3º ano da escola. Embora estejamos alinhadas, cada uma prepara as atividades da semana de acordo com sua turma e sua dinâmica pessoal’ (Na., Diário, 25 de maio de 2020, grifos nossos).

Para lidar com essa situação, W. também manteve contato com os familiares pelo WhatsApp, preocupando-se com a não obrigatoriedade da realização das tarefas. Para a professora, nesse momento, o mais importante era manter uma boa relação com as famílias e as crianças. Entretanto, o grau de intensidade da angústia era elevado, uma vez que W. se preocupava com a desigualdade social que acarreta a exclusão digital, intensificada pela inércia do poder público. Ao se posicionar diante de tal situação, observa-se que W. renova seu compromisso com os propositivos morais de ensino e, assim, vai se desenvolvendo profissionalmente (Day, 1999):

[...] ‘Por iniciativa própria, assim como alguns poucos colegas professores, criei um grupo no WhatsApp com os responsáveis dos alunos para tentar manter algum diálogo e enviar sugestões de atividades semanais, buscando incentivar a continuidade dos estudos, mas sempre salientando que estas atividades não são obrigatórias, pois não serão consideradas para reposição das aulas, tampouco serão avaliadas’. A partir da leitura do texto [...] disponibilizado aos iniciantes [...], também pudemos refletir e acompanhar a situação atual em diferentes escolas. ‘Neste momento, a única certeza é de que temos de fazer algo para que não aumentem as desigualdades educacionais. Porque muitas escolas particulares estão mandando suas atividades, e nelas estão as famílias com mais letramento’3 e, portanto, em teoria com mais facilidade em manter os filhos estimulados no processo de aprendizagem. ‘A maior angústia é ver as demais redes de ensino (particulares, municipais e estaduais) oferecerem um suporte aos alunos e a nossa rede permanecer omissa diante desta situação. Nossos alunos estão sendo prejudicados, o letramento digital nos apresenta novas barreiras e aumenta o grau de desigualdade social’. [...] Seria de suma importância o apoio da direção e supervisão, nos mostrando as diretrizes a seguir. Porém, estamos aprendendo a buscar novas alternativas (W., Diário, 25 de maio de 2020, grifos nossos).

Por obter baixo retorno das famílias por contato via WhatsApp, W., em conjunto com uma colega, escreveu cartas para as crianças e as enviou pelo correio. Ela relatou, então, que o retorno das crianças foi bastante positivo, conforme pode-se observar a seguir:

Apesar de ter um grupo no WhatsApp com os responsáveis pelos alunos, alguns pais saíram do grupo por opção, a maioria não responde às mensagens e a comunicação é apenas com os familiares e não com os alunos. Portanto, a sensação ainda é de distanciamento das crianças. Por isso, em conversa com uma amiga professora em outra escola da rede municipal [...] resolvemos escrever ‘cartas’ para os alunos. As ‘cartas’ foram postadas no correio na mesma data e alguns já receberam. A devolutiva foi incrível. Os relatos dos pais e as mensagens das crianças foram emocionantes. Em tempos de tecnologia foi preciso reinventar a maneira de se comunicar para tentar minimizar a distância e ressignificar a docência. Algumas mensagens dos familiares para acalentar o coração: ‘Boa noite, minha filha L. ficou muito feliz com sua carta [...]’, ‘sou a mãe do Y. recebemos sua carta ficamos super feliz e me emocionei com sua atitude só tenho a agradecer vc por ser essa professora maravilhosa e essa pessoa especial o Y. mandou abraço’. O próximo passo será realizar uma reunião online com os alunos, [...] Esta iniciativa também foi idealizada apenas pelos professores, sem interferência e/ou orientação da direção da escola. A nossa reunião virtual será na terça. [...] Será a primeira experiência com os alunos e não sabemos como será a adesão e participação [...] ‘Percebi que o ‘ser professora’ para mim esteve centrado na presença, nos conteúdos, nos resultados (acompanhar a evolução dos alunos), porém, neste momento foi necessário ressignificar a docência e buscar ser presente mesmo na ausência, criar laços e promover encontros (com o eu e com o outro)’ (W., Diário, 25 de maio de 2020, grifos nossos).

Esse depoimento de W. também evidencia um aspecto da ‘identidade de si’ que vai se transformando em razão das relações interpessoais, que, conforme foi pontuado anteriormente, é um elemento importante para a constituição dessa dimensão subjetiva da identidade da professora. W. continuou seu depoimento indicando que o registrar no diário como estava sendo a docência na pandemia e pensar no tipo de apoio que essa situação demandava possibilitou que ela percebesse que as crianças também poderiam estar apresentando sentimentos adversos e que precisavam de apoio emocional:

Além da docência, há ainda a dificuldade em conciliar os cuidados com a casa e a família, [...]; além dos compromissos com o [programa de mentoria]: elaboração de material pedagógico para os alunos; reuniões de orientação, leituras e em breve o retorno das aulas do doutorado. ‘É um desafio muito grande assumir todas estas obrigações aliadas às inseguranças, receio pela saúde de todos e privação de momentos de lazer, o que resulta em uma sobrecarga mental para todos’. Me pergunto - O que é ser criança em tempos de Covid-19? Pensando em minha filha e nos meus alunos, pois se para nós adultos é difícil lidar com os sentimentos, para os pequenos também, somado à falta de oportunidade de falar sobre o que estão vivendo e sentindo. [...] comecei a pensar em qual apoio posso oferecer aos meus alunos nesse momento. ‘Nós buscamos uma rede de apoio através das conversas com outros professores, colegas de profissão, familiares e outras mães. Mas em quais momentos as crianças têm suporte para falar sobre suas dúvidas, medos e dilemas?’ (W., Diário, 25 de maio de 2020, grifos nossos).

[...] ‘compreendendo a necessidade de desenvolver um trabalho com os alunos e com os professores iniciantes sobre a compreensão dos sentimentos’. Em tempos de tecnologia ‘foi preciso reinventar a maneira de se comunicar’ para tentar minimizar a distância e ressignificar a docência (W., Relatório, Junho de 2020, grifos nossos).

Ainda é válido ressaltar que, no caso de W., não significa que os elementos ensino e aprendizagem dos conteúdos tenham um papel secundário na caracterização de sua identidade profissional, mas que o cenário de pandemia deslocou o foco das atribuições conferidas à docente, e, assim, a dimensão afetiva ganhou forte relevância. Por outro lado, isso pode gerar a percepção de que a competência profissional do docente que atua nos anos iniciais estaria ameaçada, uma vez que a especificidade de seu trabalho reside em fazer aprender alguma coisa (o currículo) a alguém (Roldão, 2017).

Nesse contexto tenso e incerto, as professoras buscaram apoio nas colegas para pensarem juntas em como lidar com a situação apresentada. Ao trazerem suas histórias e tentarem pensar de maneira diversa ao habitual, as professoras se questionaram sobre os discursos, as normas e emoções e se prepararam para a autotransformação, o que é favorecido quando ocorre em companhia dos pares (Rodgers & Scott, 2008). O depoimento de N. é outro exemplo desse movimento:

[...] ‘desejava/planejamento muita interação, brincadeiras, projetos [...], mas veio a pandemia e estamos como diria Freire nos reinventando/reconhecendo/redescobrindo!’ Acredito que atualmente tenho mais perguntas do que resposta [...] Ai penso, leio, escuto: EaD.. Nada disso [...] Educação Remota [...] de tudo um pouco! ‘Na verdade, estamos todos, alguns com mais cautela e outros com menos, em busca de caminhos!’ Mas, calma nem tudo é procura, sei que tenho aprendido bastante com isto também [...] tenho repensado métodos, estratégias, ajudando pais a observar as crianças e interagir, aprendendo a usar aplicativos e mídias, trocando experiências, fazendo reuniões on line, conversando em nossas reuniões do [programa de mentoria]. A SME e o CME estão pesquisando [...] mas sem orientação direta por enquanto; ‘da direção tenho recebido algumas trocas, poucas é verdade, mas quando tenho dúvidas, às vezes questiono a M. e nos ajudamos, também as colegas do CEMEI e até as mentoras J. e C., tem sido uma dodiscência’4 (como falamos a prof. N. S. e D. C.) intensa! ‘Não é nada oficial, mas leituras, lives, conversas e trocas têm sido o norte neste momento’. Não sei o que farei no futuro, todavia sei o que não farei! Quando as aulas retornarem, sendo este ano, não vou ficar alucinada em ‘recuperar o tempo perdido’ vamos brincar, cantar, conversar, CONVIVER! (N., Diário, Sem data, junho de 2020, grifos nossos).

Por outro lado, a rede estadual de ensino, logo no início da suspensão das aulas, demonstrou uma gestão mais coesa diante do problema. As escolas tiveram um período de férias e de recesso escolar para que a Secretaria Estadual de Educação (SEE) traçasse um plano de ação e o governo pudesse firmar parcerias com as companhias de telefonia móvel, para que os estudantes obtivessem isenção no uso dos dados móveis ao acessarem a plataforma educacional que seria utilizada pelo governo estadual. Além disso, constantemente a SEE manteve contato com equipes gestoras e professores, via webconferência, para fornecer orientações. Essa situação foi importante para a professora V., uma vez que assim ela se sentiu amparada pela rede estadual e foi adquirindo confiança para atuar em um contexto que considera adverso, buscando fortalecer a função docente.

[…] No estado sou professora de um quinto ano. Assim como na prefeitura, usamos a semana de 16 a 20 de março para o acolhimento das crianças e familiares, bem como esclarecimento das dúvidas com relação à suspensão das aulas. Tivemos nosso recesso e as nossas férias adiantadas e retornamos em 22 de maio com replanejamento, ATPC e aulas remotas. A partir de 27 de maio passamos a contar com as vídeo aulas transmitidas pelo Centro de Mídias [...], mas também é possível vê-las pelo youtube e facebook do Centro de Mídias do Estado de São Paulo. [...] ‘Sei que há inúmeras críticas com relação ao uso do aplicativo e do ensino, mas não dá para comparar a diferença que tenho sentido entre as duas instituições nas quais atuo’ (V., Diário, 25 de maio de 2020, grifos nossos).

O relato de V. não significa que não houve tensões no ensino remoto na rede estadual; entretanto, em diversos momentos de sua fala, nos encontros semanais com a equipe de mentoria, V. dizia que se sentia acolhida como profissional diante das ações da referida rede de ensino. Possivelmente essa experiência profissional poderia auxiliá-la no fortalecimento de sua identidade em um momento de fragilidade.

No caso de uma professora que atua em uma escola particular, a falta de orientação inicial também ocasionou angústia; no entanto, aos poucos, em seu contexto de trabalho, a equipe gestora da escola, junto com os professores, foi construindo caminhos.

[...] Os questionamentos dos pais, a cobrança intensa e a dificuldade de comunicação estiveram muito presentes nas primeiras semanas. Fiquei bastante incomodada com a forma como alguns pais exigiam de nós respostas que não tínhamos, mas por outro lado me via querendo, de qualquer modo encontrar respostas que, na verdade, ninguém tinha. ‘Nas semanas seguintes, cada passo foi pensado e seguido de acordo com cada nova orientação. Primeiramente, a escola procurou uma forma rápida de comunicação com a escola’, o recurso utilizado foi o WhatsApp. ‘A troca entre os pares foi muito importante, principalmente com aqueles que trabalhavam em outras escolas, percebíamos que todos estavam em busca de soluções.’ Quanto às orientações sobre as aulas remotas surgiam milhões de inseguranças’: o que seria feito depois com as aulas gravadas, a classe docente seria depois dispensada, teríamos interações assíncronas ou síncronas, qual a melhor forma para uma nova interação com as crianças. ‘Sempre me achei uma pessoa bastante prática e me orgulhava por conseguir traçar boas soluções, mas confesso que não está nada fácil conciliar as demandas de questionamentos, de trabalho, de necessidade de manter saúde mental’, enfim, está bastante complexo lidar com todas essas questões (L., Diário, Sem data, maio de 2020, grifos nossos).

O depoimento de L. também mostra a importância de a equipe gestora agir de forma coesa em um momento de crise. Além disso, evidencia aspectos relacionados ao eixo biográfico (Dubar, 1997) na constituição de sua identidade profissional.

Os desafios em projetar a docência no ensino remoto

Diante desse cenário turbulento ocasionado pela pandemia e pela forma como o poder público lidou inicialmente com essa situação, as professoras relataram os desafios em projetar a docência no ensino remoto. Com base em Rodgers e Scott (2008), ao citar os estágios de desenvolvimento da consciência da formação do self e da identidade profissional docente propostos por Kegan (1982, 1994), foi possível vislumbrar como um processo construtivo pode se apresentar nestes casos. Especificamente, colocam em xeque as demandas externas e sua atuação, caracterizando um estágio de ‘socialização’ com a nova circunstância, que é dado por questionamentos sobre como atuar levando em conta diversos aspectos.

No caso das professoras atuantes na rede municipal, somente no final do mês de maio, elas foram convocadas para dialogarem com a SME sobre o plano de ação que estava sendo traçado, e o desenvolvimento de atividades escolares de forma remota teve início em junho. Essa decisão da rede municipal em iniciar o ensino remoto gerou sentimentos contraditórios, como alívio, dúvidas e incertezas, e impôs determinadas atribuições às professoras, mas elas questionaram: Qual será minha função nas aulas remotas? Como alcançar todas as crianças diante da desigualdade social e exclusão digital? Como propor atividades educativas? Como propor o brincar? Como avaliar as aprendizagens das crianças?

O depoimento de J., exposto a seguir, é representativo dessas considerações e mostra a desarticulação entre os atos de atribuição - oriundos da proposta de ensino remoto - e o sentimento de pertença - em razão de adversidades socioeconômicas e da falta de formação para tal atuação:

[...] ‘Como garantir o acesso à informação de todos os alunos? Como garantir o aprendizado das crianças da educação Infantil se esse aprendizado se dá por meio das vivências e interações?’ Como garantir o que preconiza a BNCC? ‘Durante esse período pensei em mandar diferentes propostas para os pais, mas chegaram algumas demandas que é impossível propor o que eu pensava’. Por exemplo, pensei em uma receita de massa de modelar feita com farinha. Na receita trabalhamos as quantidades, ingredientes, interação e o resultado final possibilita muita criatividade, eu já tinha até elaborado a receita para mandar aos pais, mas me chegou a demanda que uma das famílias estava sem alimento, como usar a farinha para fazer a massa de modelar se eles não têm nem para comer? [...]. ‘Nesse período eu precisei trocar minha internet’ para que pudéssemos usá-la de forma mais adequada, mas para mim será um gasto que não estava previsto. [...] ‘Falar do problema e discuti-lo nos possibilita ir clareando os caminhos, confesso que o meu ainda está muito obscuro!! Eu não consigo ver uma educação nesse período que possibilite o acesso igual a todos os alunos dentro do que acreditamos’. Se não tomar cuidado, podemos transformá-la em um grande faz de conta!!! (J., Diário, 22 de maio de 2020, grifos nossos).

C., no depoimento a seguir, parece buscar um sentido de pertença às atribuições que lhe são postas, já que ela se coloca em movimento para aprender como trabalhar de forma remota com as crianças da educação infantil. Mas a situação socioeconômica das famílias causa tensão nessa tentativa de ressignificação da identidade e da prática profissional:

A secretaria nos orientou a passar sugestões pedagógicas priorizando o brincar, não quer atividades impressas, [...] ‘Vivemos um momento de se reinventar, [...] estamos aprendendo sobre o trabalho online com nossas crianças, como essa interação é possível por meio do celular, ou outra ferramenta disponível’. A minha escola adotou o WhatsApp para manter o vínculo com as famílias, [...] tenho uma criança que não está no grupo porque a mãe não tem celular, essa criança não poderá ficar excluída e levamos esse caso para direção que irá comunicar a secretaria. ‘No entanto, ao mesmo tempo, em que podemos ter esse contato, vemos que a desigualdade mostra a realidade do país, que tem falta de investimentos na educação e em políticas públicas para enfrentamento de tais situações’ (C.,, Diário, 3 de junho de 2020, grifos nossos).

Diante desse cenário, as professoras relataram os desafios de projetar o trabalho escolar remoto com crianças. Uma síntese desses desafios é apresentada a seguir, em conjunto com depoimento que os ilustram.

i. Propor atividades educativas por meio de diferentes ferramentas tecnológicas que envolvam, motivem e propiciem o desenvolvimento dos alunos, de forma a contemplar as especificidades de cada um (crianças pequenas, aluno público alvo da educação especial, diversidade de ritmos de aprendizagem etc.) e a não sobrecarregar os familiares no acompanhamento das atividades escolares.

[...] São inúmeras as nossas incertezas entre elas: Como será a regulamentação desse período? Como garantir a qualidade e o cumprimento do que vínhamos desenvolvendo? Como engajar alunos e famílias nesse nosso modelo? [...] Enquanto professora, assim como elas [professoras iniciantes], estou precisando aprender novas coisas para continuar cumprindo minha missão, ‘estou aprendendo novas ferramentas tecnológicas e principalmente como interagir com os pais e as crianças. [...] Modificamos todo nosso planejamento pedagógico para encontrar alternativas que envolvam, motivem e propiciem o desenvolvimento dos alunos, mesmo que a distância’ [...] (J., Balanço do trabalho de mentoria, Julho de 2020, grifos nossos).

[Sobre a diversidade de ritmos de aprendizagens] ‘E se na situação de educação presencial era necessário fazer intervenções pontuais e individuais, como poderia disponibilizar atividades que atendessem as crianças do jeito que eu conseguia fazer em sala?’ Como organizar grupos ou sugerir atividades no Drive da escola sem apontar os nomes de quem e quais atividades fariam? Como garantir que essas crianças fariam do jeito que eu precisava que elas fizessem? Como garantir que as intervenções dos pais e/ou responsáveis fossem minimamente adequadas? Todas essas angústias só aumentavam a cada dia (V., Diário, 25 de maio de 2020, grifos nossos).

ii. Aprender a interagir com os familiares dos alunos de forma online, considerando que alguns familiares não dominam a leitura e a escrita e outros não são letrados digitalmente.

J: ‘O sentimento da professora - preocupação’ [J. está se referindo ao comentário de M. que indica que a iniciante que acompanha está preocupada com o ensino remoto] ‘é o sentimento de muitas de nós!!! A direção da escola que trabalho quer que os pais aprendam a usar o blog, como, se precisamos fazer tutorial até para algumas professoras? Semana passada não compartilhei a vivência no grupo de WhatsApp e não tive nenhum retorno!!! Nenhum!!! O grupo estava vindo até que bem!!!’ [...] nesse momento temos que facilitar a vida dos nossos pais e não complicar!!! ‘Enquanto mãe não tem sido fácil’, hoje L. chorou [...] ‘Temos que pensar que nossos pais também estão enfrentando um período muito difícil!!!’ (29/06/2020, WhatsApp, Mensagem de J. para as professoras/mentoras e as pesquisadoras).

V: ‘Aprendizagem do dia: pode ser que aquele responsável que só visualiza as suas mensagens no grupo da escola não saiba ler e não tenha coragem de te falar’[...] nem no particular [...]

J.: Isso mesmo V.!!!

V.: É gente [...] Tá fácil, não!

M.: Nossa

Na.: Poxa, V.. É isso mesmo. ‘E muitas vezes vejo os pais ajudando as crianças e escrevendo no caderno os enunciados com erros de ortografia, misturando letras [...] Aí como corrigir ou exigir do aluno que não reproduza’. É a referência que eles têm agora... São tantas situações, sem contar os relatos das dificuldades. Por isso digo que ‘muitas vezes estamos mais oferecendo apoio emocional do que pedagógico. Tenho um caso de AEE que a mãe não tem condições de ajudar. A professora especialista e eu ficamos limitadas pq a criança precisa de intervenção muito específica e não podemos cobrar isso da família’ (02/07/2020, WhatsApp, Diálogos entre as professoras/mentoras e as pesquisadoras).

iii. Lidar com a falta de retorno das crianças e seus familiares, muitas vezes decorrente: da falta/dificuldade de acesso à internet e/ou equipamento eletrônico pelos familiares, da falta de ter um espaço adequado em casa para realizar as atividades escolares, da sobrecarga de trabalho dos familiares que os impossibilita de acompanhar as crianças nas atividades.

[Após o início das aulas remotas] [...] estamos preparando Vivências Lúdicas, que são compartilhadas no blog da escola, organizado por faixa etária e professor. ‘As devolutivas acontecem pelo grupo de WhatsApp. No início a interação era intensa e hoje vejo que caiu consideravelmente. Alguns pais me procuraram e relataram problemas financeiros para manter saldo no celular e falta de tempo’ [...] (J., Tarefa - Perfil e atuação no momento atual, Julho de 2020, grifo nosso).

M.: Bom dia!!! Minha PI disse que está preocupada. Os alunos estão cansando. Os pais também. [...] ‘Muitas mães estão cansando. Mesmo assistindo aos vídeos. Já me disseram. Disse que vão levando como vai dando, porque trabalham fora, tem um celular só não consegui ensinar o conteúdo’. Que angústia!!!

Na.: Bom dia, M! Passamos a semana discutindo isso no meu grupo/ano aqui em [omitido]. ‘As aulas oficiais começaram recentemente, mas estamos realizando atividades com eles desde março. Os pais estão cansados e não teremos recesso’. A situação é bem complicada.

[...]

Na.: Há muitos relatos da dificuldade que estão enfrentando para as crianças fazerem as tarefas, mesmo diminuindo a quantidade.

[...]

Na.: Sim. ‘As atividades ‘remotas’ não podem virar sofrimento, principalmente para as crianças. Quando percebemos que estão desmotivados mandamos mensagens e conversamos direto com eles, tem ajudado’. O maior problema é quando as famílias vão priorizando outras atividades, aí fica mais difícil para lidarmos. ‘É um período bem difícil para as PIs e para nós também’.

[...]

M.: É verdade. Tem sido um desafio para todos, escola, famílias, professores e alunos.

[...]

M.: ‘Na minha escola optamos pelas atividades impressas, porque a comunidade tem pouco ou quase nenhum acesso a internet’. Nos grupos de interação com as famílias, têm poucas que interagem. Cerca de 12 por turma.

[...]

N: Oi N. tudo bem? Bom dia me desculpe não ter mandado as atividades do D. essa semana é que estou cuidando de meu avô, está ficando em minha casa ele é bem debilitado e precisa de cuidados estamos se adaptando ainda mandarei essa semana ele até pulou amarelinha e fez o vivo ou morto mas não tirei as fotos mesmo atrasada mandarei ok, mil desculpas

N: Sim, a jornada não está fácil para ninguém, recebi hoje de uma mãe super participativa! ‘Elas se sentem culpadas, quando não dão conta!’ [...] (29/06/2020, WhatsApp, Diálogo entre as professoras/mentoras e as pesquisadoras, grifos nossos).

vi. Lidar com os efeitos da perda de vínculo da criança com a escola e a professora. Nesse período as professoras demonstraram grande motivação em criar laços com os alunos e promover encontros (com o eu e com o outro).

V.: Bom dia! Concordo. ‘Infelizmente, algumas crianças perderam totalmente o vínculo com a escola e o professor’. E nessa situação, de ensino remoto, tenho percebido que aquelas crianças que precisavam de atendimento específico em sala, muitas das vezes, só esperam por um telefonema nosso para se sentirem acolhidas.

[...]

V.: Tenho um aluno depressivo. Esse tipo de ‘atenção’ fez toda diferença para ele, segundo a mãe (29/06/2020, WhatsApp, Diálogo entre as professoras/mentoras e as pesquisadoras, grifo nosso).

v. Aprender a ensinar de forma remota ao mesmo tempo em que ensina remotamente.

‘Estamos aprendendo a ensinar à distância dentro das condições possíveis e imersas no próprio processo de atuação da docência e mentoria’. É difícil construir uma reflexão sobre um contexto enquanto sujeitos participantes inseridos no próprio processo, espaço e tempo das ações (W., Reflexão sobre o acompanhamento das PIs, Agosto de 2020, grifos nossos).

vi. Perda do espaço-tempo de diálogo com os pares. O horário de trabalho pedagógico coletivo, realizado online, passou a enfocar palestras sobre os mais diversos assuntos, nem sempre relacionadas às demandas do trabalho docente no ensino remoto.

‘Nesse momento se eu pudesse colocar uma palavra que exprima o que estou sentindo seria a falta, falta das pessoas que estávamos acostumados a trocar conhecimento’, [...]. O que sou hoje se completa nas minhas interações. ‘Apesar de ter conhecimentos sobre a área que atuo, esses conhecimentos são complementados nas interações com meus pares’. Com a Pandemia essas interações diminuíram muito, as reuniões que antes eram espaços de troca, hoje são espaços para passar recados e assistir palestras que muitas vezes estão distantes do que estamos precisando no momento atual (J., Reflexão sobre o acompanhamento das PIs, Agosto de 2020, grifos nossos).

Retomando o paralelo estabelecido com o poema José para a análise dos dados, compreendemos que o poema de Drummond expressa a ‘solidão do sujeito e a ausência de lugar no mundo’, isto é, reflete o ‘esvaziamento próprio das desilusões’ (Saraiva Silva, 2019). De fato, as professoras experientes, imersas em ‘atos de atribuição’ e ‘atos de pertença’, questionaram qual é o lugar da escola, dos professores, dos alunos e de seus familiares e da mentoria em tempos de pandemia. Talvez o sentimento de falta de lugar no mundo seja derivado do sentimento de desamparo ocasionado pela ausência de políticas públicas e da não coesão das ações dos gestores.

Os depoimentos destacados anteriormente mostram que, como a personagem do poema de Drummond, ‘as professoras não ficam imóveis’, elas agem. No entanto, no poema José é impedido de agir, ele não abandona, mas é abandonado. A princípio parece que não há saída para a personagem, o futuro é incerto; entretanto, José resiste e continua marchando (Saraiva Silva, 2019).

Ao buscarem seu lugar nesse ‘novo’ mundo, as professoras procuraram uma saída, percebem que novas ações são necessárias e caminham, resistindo. Assim, observamos que o tom de urgência presente nos depoimentos das professoras refere-se ao ‘se reinventar’ e ‘ressignificar a docência’. Esse cenário - que provocou as professoras a realizarem o trabalho docente de outra maneira - gerou inúmeras tensões, mas as desafiou a projetarem novas ações - o que pode apontar para o empoderamento da própria identidade - e impulsionou o desenvolvimento profissional - ampliação/diversificação do repertório de conhecimentos e experiências necessários à docência.

Observa-se, então, como essas professoras vão se desenvolvendo profissionalmente, afinal, sós e acompanhadas, elas analisaram a situação, questionaram e buscaram construir soluções (Vaillant & Marcelo, 2012). Nesse processo elas

[...] reveem, renovam e desenvolvem o seu compromisso como agentes de mudança, com os propósitos morais do ensino, adquirem e desenvolvem conhecimentos, competências e inteligência emocional, essenciais ao pensamento profissional, à planificação e à prática com as crianças, com os jovens e com os seus colegas [...] (Day, 1999, p. 4).

Além disso, identifica-se que as professoras demonstraram clareza das forças que incidem sobre sua atuação, como se definem e o que são capazes de fazer. Esse novo posicionamento sinaliza para o fato de que elas deixam de ser mobilizadas apenas pelas demandas externas, mas que o seu modo de ser e atuar predomina nas novas ações e projetos realizados (Rodgers e Scott, 2008).

Considerações finais

Foi observado que, diante do novo cenário ocasionado pela pandemia, especialmente em seu início, as professoras experientes passaram por processos similares aos das iniciantes que acompanham na mentoria. Tensões como receio e incertezas diante do futuro (incluindo o retorno das atividades escolares presenciais), ansiedade, angústia, sentimento de incapacidade, dúvidas na reorganização das atividades escolares (de forma remota), dificuldades no diálogo com os familiares, preocupação com as crianças e seus familiares, ausência de informações e diálogo nas escolas e redes de ensino, revolta diante das ações governamentais, entre outras, estão presentes nos depoimentos das professoras experientes expressos em diferentes momentos.

Ao identificar algumas das formas manifestadas pelas professoras-mentoras para administrar as tensões, sejam elas relacionadas a conflitos, dúvidas, dilemas etc., com frequência elas traziam para o programa de mentoria suas inquietações relativas à sua atuação como docentes de modo similar às professoras iniciantes acompanhadas. Essas transições, entre o ser professora e ser mentora, sugerem que, num contexto geral de vida e trabalho que se mostra incerto, fugaz e confuso, as situações experienciadas exigiram que se mantivessem ativas e elaborassem o sentido de novos cenários (Pérez Gómez, 2019). Nesses movimentos ocorreram a redefinição de suas identidades profissionais (como professoras e mentoras) por meio de um processo bastante complexo. Verificou-se o desequilíbrio da constituição de cada uma delas como um dos primeiros efeitos da pandemia, isto é, a própria identidade profissional encontrava-se à beira do colapso. Aos poucos, a partir de novas informações e trocas com os pares, essas professoras-mentoras passaram a utilizar os recursos disponibilizados e demonstraram mais suas emoções.

Em relação à atuação docente na educação infantil, é importante considerar as especificidades dessa etapa educativa. O conhecimento e as aprendizagens das crianças resultam das relações que elas estabelecem e constroem, por meio de diferentes linguagens, com o mundo físico e social (adultos e crianças), a partir de suas próprias significações produzidas nos seus contextos e pelas suas manifestações culturais e expressivas (Buss-Simão & Rocha, 2018). Assim, a proposição de práticas educativas na educação infantil deve ter como foco essas relações, a escuta e a dialogicidade. A dificuldade de propiciar práticas com essas características no contexto remoto possivelmente colocou em xeque o ser professor na educação infantil e ocasionou o colapso da própria identidade docente.

No caso dos anos iniciais - ensino fundamental - a perda da especificidade da docência (saber fazer aprender algo a alguém) possivelmente foi originada pelo fato de que os efeitos do contexto de pandemia requereram, muitas vezes, o enfoque na dimensão humana/afetiva do processo de ensino e aprendizagem. Apesar de essas professoras terem projetado práticas de ensino remoto voltadas para os conteúdos escolares do referido ano de ensino em que atuam, muitas vezes se sobressaía a preocupação em manter/aumentar o vínculo afetivo com as crianças e com as famílias, bem como a empatia pelas famílias diante das dificuldades enfrentadas para propiciar condições para que o ensino remoto se concretizasse com qualidade.

Contudo, observamos que novos significados estão sendo atribuídos ao processo de se constituir um professor. Em razão dos efeitos da pandemia, verificamos que o desequilíbrio evidenciado, em um primeiro momento, na constituição da identidade profissional deu lugar ao empoderamento da própria identidade docente, ocasionando também ampliação do repertório de conhecimentos profissionais. Aparentemente, esse movimento revela a relevância, no caso dessas formadoras, do investimento na adaptação/adequação de sua identidade docente como etapa prévia fundamental para a reconfiguração de uma identidade como formadora.

Agregado a essas considerações, no segundo semestre do ano, essas professoras colocaram a imprevisibilidade sobre o que iria acontecer e quando, especificamente sobre o retorno às aulas presenciais. Isso se configurou como uma tensão entre o reconhecimento do papel social docente e a atribuição de responsabilidade a elas pelo não retorno às aulas presenciais. Nessa ocasião essas professoras relataram vivenciar condições adversas de trabalho, tais como excessivo o número de horas dedicadas a sua atividade profissional e de documentos a serem encaminhados para a direção da escola em função da fragmentação da atividade docente ao não serem responsáveis por todo o processo de ensino-aprendizagem e ao dividirem tarefas com pares de mesma turma e com as famílias de seus alunos. Certamente isso gerou/ocasionou tensões em suas identidades docentes prévias, mas, também, pode ser desencadeador do desenvolvimento de suas identidades profissionais em direção a novos perfis.

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11NOTA: Declaramos que Ana Paula Gestoso de Souza e Aline Maria de Medeiros Rodrigues Reali foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada

Recebido: 16 de Outubro de 2020; Aceito: 17 de Fevereiro de 2021

* Autor para correspondência. E-mail: ana.gestoso@gmail.com

Ana Paula Gestoso de Souza: Mestre e doutora em Educação pela UFSCar, graduada em Pedagogia pela UFSCar. Professora adjunta do Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas da UFSCar e do Programa de Pós-Graduação em Educação. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2015-0829 E-mail: anapaula@ufscar.br

Aline Maria de Medeiros Rodrigues Reali: Doutora em Psicologia pela USP, mestre em Educação Especial pela UFSCar e graduada em Psicologia pela FFCL de Ribeirão Preto, USP. Professora Titular do Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas da UFSCar. Editora da Revista Eletrônica de Educação (REVEDUC) vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4915-8127 E-mail: alinereali@gmail.com

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