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Acta Scientiarum. Education

Print version ISSN 2178-5198On-line version ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.45  Maringá  2023  Epub Jan 02, 2023

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v45i1.57965 

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS

Orientação pedagógica e educacional nos Ginásios Vocacionais: interfaces entre pedagogia e psicologia (1961-1970)

Orientación pedagógica y educativa en los Ginasios Vocacionais: interfaces entre pedagogía y psicología (1961-1970)

Daniel Ferraz Chiozzini1  * 
http://orcid.org/0000-0002-9607-8130

Bartira Mannini1 
http://orcid.org/0000-0001-5780-5270

Natália Cardoso Compadre1 
http://orcid.org/0000-0001-8262-2409

1Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, R. Monte Alegre, 984, 05014-901, São Paulo, São Paulo, Brasil.


RESUMO.

O artigo consiste em parte de uma investigação acerca das interfaces entre Pedagogia e Psicologia nos Ginásios Vocacionais, escolas públicas de ensino secundário existentes entre 1961 e 1970 no estado de São Paulo. Foram analisadas e cotejadas com a bibliografia de referência fontes primárias que registraram trabalho de Orientação Pedagógica (OP) e Orientação Educacional (OE), possibilitando identificar essas áreas do currículo como espaço privilegiado da relação entre Pedagogia e Psicologia, sobretudo devido às temáticas abordadas e aos indícios de autores que embasaram a prática pedagógica. Nesse sentido, foram selecionados e analisados dois temas que ganharam relevo no trabalho escolar: composição de equipes de trabalho em grupo e educação sexual. Foi também constatado, no entanto, uma dificuldade em determinar a especificidade de cada uma das duas áreas e algumas mudanças emblemáticas no texto das fontes primárias utilizadas, possivelmente devido às mudanças políticas externas e internas às escolas ocorridas a partir de 1967.

Palavras-chave: psicologia; pedagogia; orientação pedagógica; orientação educacional; ginásios vocacionais

RESUMEN.

El artículo consiste en una parte de la investigación sobre las interfaces entre Pedagogía y Psicología presentes en los Ginásios Vocacionais, que fueron escuelas públicas de educación secundaria que existieron entre los años 1961 y 1970 en la provincia de São Paulo. Fuentes primarias que han registrados trabajos de Orientación Pedagógica y Orientación Educativa fueron analizadas y comparadas con la bibliografía de referencia, lo que permitió identificar estas áreas del currículo como un espacio privilegiado de relación entre Pedagogía y Psicología, principalmente por las temáticas abordadas y la evidencia de esta práctica pedagógica en los autores que las sustentaron. En este sentido, se seleccionaron y analizaron dos temas que cobraron protagonismo en el trabajo escolar: composición de equipos de trabajo grupal y educación sexual. También se observó, sin embargo, una dificultad para determinar la especificidad de cada una de las dos áreas y algunos cambios emblemáticos en el texto de las fuentes primarias utilizadas, principalmente debido a los cambios políticos externos e internos a las escuelas ocurridos desde el año 1967.

Palabras clave: psicología; pedagogía, orientación pedagógica; orientación educativa; ginásios vocacionais

ABSTRACT.

The article consists in part of an investigation about the interfaces between Pedagogy and Psychology in Ginásios Vocacionais, public secondary schools existing between 1961 and 1970 in the state of São Paulo. Primary sources that recorded work on Pedagogical Guidance (OP) and Educational Guidance (OE) were analyzed and compared with the reference bibliography, making it possible to identify these areas of the curriculum as a privileged space in the relationship between Pedagogy and Psychology, mainly due to the themes addressed and evidence from authors who supported the pedagogical practice. In this sense, two themes that gained prominence in school work were selected and analyzed: composition of teams of group work and sexual education. It was also noted, however, a difficulty in determining the specificity of each of the two areas and some emblematic changes in the text of the primary sources used, possibly due to the external and internal political changes to schools that occurred since 1967.

Keywords: psychology; pedagogy; educational guidance; pedagogical guidance; ginásios vocacionais

Introdução

Os Ginásios Vocacionais (GVs) foram escolas públicas do Estado de São Paulo que funcionaram entre 1961 e 1970. Ao longo de sua existência, foram firmadas seis unidades educacionais nas cidades de Americana, Barretos, Batatais, Rio Claro, São Paulo e São Caetano do Sul. Constituíram-se em um projeto experimental que buscava renovar a educação pública estadual, o que foi possível devido a um contexto de mudanças e debates educacionais que antecederam a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961(Dallabrida, 2017, p. 199-200). 1

Dentro de um universo que agrega escolas que genericamente podem ser nomeadas como escolas experimentais (que também envolvem, no caso paulista, o Colégio de Aplicação da Universidade de São Paulo, o Ginásio Experimental da Lapa e algumas Classes Experimentais desenvolvidas no âmbito do ensino público e particular), os Ginásios Vocacionais foram o caso mais estudado, sobretudo pelo prisma da memória de ex-participantes. São estudos emblemáticos, nesse sentido, os trabalhos de Rovai (1996), Mascellani (1999), Tamberlini (1998; 2003), Silva (1999) e Neves (2010). As memórias buscam, além de destacar o fim traumático da experiência, dar ênfase ao trabalho escolar e às experiências que efetivamente marcaram a vida pessoal e profissional de ex-professores e ex-alunos. Essas pesquisas dão grande relevo às fontes orais e exploram as vivências de ex-participantes, reforçando a proposição da existência de um currículo que, segundo Garnica e Nakamura (2018), buscava aproximar os alunos da atitude prática, incentivando a participação na comunidade da qual faziam parte por meio de práticas pedagógicas integradas, como os estudos do meio, a formação continuada dos professores e o contato constante com a comunidade de pais. Esse trabalho chegou a alcançar, ao longo da existência das escolas, mais de dez mil alunos de ambos os sexos, entre 11 e 13 anos, de 1 a 4ª série do Ensino Ginasial.

O presente trabalho se dedicou, então, a analisar as práticas pedagógicas constituintes desta experiência educacional, focalizando no trabalho de Orientação Educacional (OE) e de Orientação Pedagógica (OP) , duas áreas importantes para a organização e desenvolvimento da experiência. Para compreender as especificidades de ambas, pouco presentes na bibliografia de referência sobre os Ginásios, foram analisados dois registros documentais importantes: o livro Orientação educacional (Pimentel & Sigrist, 1971) e o Relato da Experiência educacional (Pimentel, 1967). Apesar do título genérico, esse segundo documento é um relatório interno específico da área de Orientação Educacional dos Ginásios e foi a base para a posterior publicação do livro pela Editora Pioneira (1948-1979), que tem muitos trechos copiados ipsis literis do relatório. No presente trabalho, o livro foi analisado em comparação com o relatório interno que o originou, a fim de se investigar possíveis alterações e modificações no texto original.

A hipótese inicial de pesquisa foi de que encontraríamos nos documentos uma divisão clara nos papéis desempenhados pelas áreas de Orientação Pedagógica e Orientação Educacional. Aquela seria responsável por coordenar equipe de professores, debater o desenvolvimento das disciplinas e planejar ações pedagógicas; esta, pela definição do currículo, pela mediação de conflitos, pela análise de desempenho de alunos, pela comunicação com pais, tendo suas ações mais diretamente voltada aos alunos.

No sentido de elucidar essa distinção, foram selecionados dois temas que, nas fontes primárias analisadas, tinham grande destaque no trabalho escolar: a técnica sociométrica para a formação de equipes de trabalho e educação sexual. Isso implicou em não apenas retomar as fontes anteriormente mencionadas, mas buscar documentos específicos sobre essas temáticas, assim nos levando à descoberta de dois artigos publicados na revista Ciência e Cultura, publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), genericamente assinados como de autoria da Equipe do Serviço de Ensino Vocacional. Foram eles: ‘Simpósio sobre Ensino Vocacional’(Serviços do Ensino Vocacional [SEV], 1968), e ‘A técnica de sessões de grupo na orientação educacional para alunos das primeiras e segundas séries do primeiro ciclo’ (Paula, 1970).

Ao contrário do que se esperava, não se confirmou a hipótese de que havia uma separação clara entre os papéis da Orientação Educacional e da Orientação Pedagógica. Notou-se um entrelaçamento entre ambas, além do ocultamento das ações específicas de Orientação Pedagógica. O percurso investigativo, no entanto, revelou a especificidade do trabalho desenvolvido pelas áreas nos Ginásios Vocacionais.

O status do trabalho de orientação pedagógica e educacional

O livro Orientação Educacional (Pimentel & Sigrist, 1971), que teve como objetivo sintetizar o trabalho desenvolvido durante os primeiros cinco anos de existência dos Ginásios Vocacionais, é uma fonte bastante emblemática. Tendo o texto demonstrado as intervenções desenvolvidas com ou para os alunos (como a avaliação por meio das Folhas de Observação de Alunos (FOAs), os Grupos de Educação Sexual, a aplicação do Teste Sociométrico e os encontros de Orientação Vocacional), pudemos inferir que o trabalho de Orientação Educacional possuía um caráter mais relacional e próximo dos alunos. Porém, não há menção à Orientação Pedagógica sem a referência à Orientação Educacional, o que tornou a investigação de suas ações particulares muito limitada. A pesquisa, no entanto, procurou buscar em outros documentos evidências acerca da especificidade do trabalho desenvolvido por cada uma dessas áreas. Dentre eles, um livro de Silva (2010), que fora orientador pedagógico no Ginásio Vocacional João XXIII, de Americana. O texto nos possibilitou compreender melhor as especificidades do trabalho de Orientação Pedagógica. Silva nos trouxe duas informações importantes: a coordenação dos Ginásios Vocacionais era chamada de Equipe de Direção e composta pelos orientadores pedagógico e educacional, ou seja, por quem atuava na gestão da unidade escolar; ambos os orientadores dialogavam para tratar de questões de indisciplina que estavam relacionadas a questões pedagógicas:

Note-se que, além da atuação com o coletivo, a coordenação tinha os seus momentos de trabalho individual com os professores e muitas vezes com alunos e com os pais. Com estes, muitas vezes os orientadores pedagógicos e educacionais dialogavam conjuntamente, pois era comum observar que as questões de indisciplina ou do fracasso escolar estavam vinculadas às questões pedagógicas (Silva, 2010, p. 127).

O trecho destacado nos faz inferir que havia a necessidade de ambos os orientadores realizarem o diálogo por haver questões de indisciplina e fracasso escolar associadas às questões pedagógicas, ou seja, pressupunha-se um trabalho que articulasse a aprendizagem ao ensino.

Além disso, em outros momentos da obra, Silva aponta o trabalho do orientador pedagógico em três momentos: “[...] no processo de planejamento, nos conselhos pedagógicos e em alguns aspectos na formação continuada dos professores centrada no cotidiano da própria escola” (Silva, 2010, p. 122). Destacou também o acompanhamento realizado nas 7ª e 8ª séries como trabalho do orientador pedagógico.

Entretanto, mesmo focalizando nas especificidades da Orientação Pedagógica, o caráter coletivo do trabalho de orientação não permite fazer uma diferenciação clara das funções de uma ou outra, sendo referidos em conjunto como resultado de um trabalho articulado das equipes de OP e OE.

Essa articulação entre as duas vertentes do trabalho de orientação também aparece nos demais documentos como associada ao currículo. Ambas as áreas desenvolviam, juntamente com a equipe de técnicos e professores, chamado de core curriculum, isto é, a organização do currículo entorno de um centro, composto por temas e problemas oriundos da disciplina de Estudos Sociais, de forma que os conteúdos de todas as disciplinas eram interligados e colaboravam para atingir o objetivo didático-pedagógico estipulado no início de cada ano letivo (SEV, 1968).

A Orientação Educacional, segundo descrito na obra de Pimentel e Sigrist (1971), logo no início

Se propõe a levar o adolescente a opções conscientes, baseadas no conhecimento racional dos fatos e situações, bem como na avaliação objetiva de seu próprio potencial, num processo de conscientização versus manipulação social, caminhando gradativamente para a maturidade individual e social (Pimentel & Sigrist, 1971 p. 17).

O trecho acima faz referência ao desenvolvimento de uma maturidade individual e social ligada a um processo de conscientização, muito próximo do que se associa atualmente a noção de educação integral.

O currículo, definido como “[...] conjunto de experiências proposto pela escola, visando ao atendimento dos objetivos e incluindo os meios de sua avaliação” (SEV, 1968, p. 495), é visto e estruturado como um todo, eliminando-se a divisória entre os diversos campos da especialização humana e a programação isolada de cada matéria. Cada área assume seu valor no curriculum de acordo com a direção que lhes é dada no core curriculum, ou seja, as áreas só têm significado se os conceitos por elas apresentados são trabalhados por técnicas pedagógicas compatíveis com os objetivos propostos.

Outro aspecto a ser destacado é que, nas sessões de orientação em grupo, realizadas em todas as séries do ginásio, a OE tinha uma ação direta com os alunos, constituindo um espaço de discussão de temas ligados ao desenvolvimento da unidade pedagógica, que sintetizava o planejamento de todas as áreas em torno do core curriculum, assim como assuntos que se mostravam necessários para a segurança e adaptação do aluno (Pimentel & Sigrist, 1971). Desse modo, o planejamento do Ginásio Vocacional visava a preencher as necessidades de uma educação ampla, então definida como uma preparação não apenas no plano intelectual, mas também no plano social (Pimentel & Sigrist, 1971). Sendo assim, a técnica de trabalho em grupo, assim como a educação sexual, foi central no processo educacional.

Referências indiretas

Uma leitura inicial das fontes mencionadas permite afirmar que não são citadas as referências que fundamentaram o trabalho desenvolvido, existindo apenas menções esparsas a alguns autores. Atribuímos esse ocultamento a duas hipóteses. Em primeiro lugar, os textos analisados fizeram parte de um trabalho de síntese das atividades desenvolvidas, que ocorreu somente a partir do ano de 1967, quando também emergiram algumas crises internas nos Ginásios Vocacionais (Chiozzini, 2014). Nesse sentido, cabe pensar que não havia no cotidiano dos GVs o esforço de referenciar as atividades que estavam sendo elaboradas. Decorre daí o fato de os textos analisados serem documentos de circulação interna ou deles derivarem diretamente e terem uma estrutura informal. Em segundo lugar, houve uma preocupação das idealizadoras em não vincular os Ginásios Vocacionais a qualquer modelo estrangeiro, o que pode ter ocasionado ocultações propositais das fontes que embasaram as principais ideias.

Em relação à primeira hipótese, ela também se sustenta no caso específico do relatório interno de 1967, que deu origem posteriormente ao livro de 1971. O relato foi um registro interno da experiência, construído e consultado por membros da equipe, sendo uma espécie de ‘diário’ que registrava a prática do trabalho de Orientação Educacional. Pode-se supor que as autoras não consideraram relevante à época registrar os autores de referência, já que o intuito do documento não era teorizar sobre as práticas, mas descrevê-las. Sendo assim, o livro publicado em 1971 acaba por transpor a linguagem utilizada no relato.

Já em relação à segunda hipótese, ela surge a partir da leitura de um trecho do livro Orientação Educacional (Pimentel e Sigrist, 1971), que demonstra o interesse das idealizadoras da experiência em não vincular o trabalho que estava sendo desenvolvido nos Ginásios Vocacionais com o que definem genericamente como modelos estrangeiros. Entretanto, não foram referenciadas nos documentos nem mesmo as fontes nacionais que geraram práticas pedagógicas importantes adotadas pelos GVs.

Procuramos fugir às formas tradicionalistas de discutir os assuntos de educação e a qualquer vinculação com modelos estrangeiros - imitação indesejável para o nosso desenvolvimento educacional. Há na experiência do Ensino Vocacional um compromisso com o desenvolvimento brasileiro, há uma filosofia marcada por espírito científico, crítico e de construção universal, há uma concepção de liberdade humana (Pimentel & Sigrist, 1971, p. 14-15).

Ademais, pressupomos uma combinação das abordagens psicológicas do psicodrama - já que o teste sociométrico utilizado na formação de grupos tem o mesmo conceito e método da teoria psicodramática de Jacob Levy Moreno - e do existencialismo - no qual há uma ênfase na ação que se estrutura na responsabilidade, também tão enfatizada nos documentos dos Ginásios. Essas influências, contudo, não foram confirmadas por falta de referências diretas nos documentos. Há, no entanto, uma referência à sociometria como técnica e não teste, conforme discorrem Pimentel e Sigrist (1971):

A técnica sociométrica tem sido um valioso instrumento de trabalho, permitindo aos professores o conhecimento mais objetivo da dinâmica de inter-relacionamento nas classes. Todavia, ao lado dessa técnica, devem figurar observações, entrevistas e acompanhamento dos alunos (Pimentel & Sigrist, 1971, p. 30).

A seguir, apresentaremos uma análise que trata especificamente desse aspecto do trabalho dos Orientadores Pedagógicos e Educacionais, que era a formação de equipes de trabalho e orientação de grupos.

A composição das equipes de trabalho

Como já observado anteriormente, os Ginásios Vocacionais se propunham a ser um projeto educacional que se preocupava com o desenvolvimento dos jovens para a sociedade, caminhando ao encontro de outros projetos semelhantes que surgiam à época. A preocupação com a qualidade da formação dos alunos pela possibilidade de trabalhar em grupos é um desses fazeres a ser destacados.

Uma das principais características do projeto didático-pedagógico dos Ginásios Vocacionais eram os grupos de trabalho formados por alunos. Isso porque um dos objetivos educacionais era formar os jovens para a vida em sociedade, sendo importante, portanto, desenvolver habilidades de grupos2. O percurso escolar era considerado um treino para participação em uma sociedade democrática, aproximando-se de noções atualmente difundidas como liderança, inteligência emocional e a autopercepção sobre suas habilidades funcionais.

Nessa lógica, os grupos eram o cerne do trabalho pedagógico. A equipe de professores e a coordenação trabalhavam com os alunos a importância de saber escolher com quem formar grupos, focalizando não apenas na afinidade ou afetividade com os membros, mas também nas competências necessárias para realização de um trabalho específico, ou seja, um grupo com dinâmica funcional. Com o objetivo de conhecer os grupos, os papéis desempenhados neles por cada aluno e garantir um mínimo controle para o bom funcionamento do trabalho pedagógico - Orientação Educacional e Pedagógica em conjunto com os professores -, aplicavam o que chamaram de técnica sociométrica ou sociometria, como podemos verificar no trecho a seguir:

Entretanto, para se ter um controle das inter-relações existentes no grupo [...] torna-se necessário o uso de uma técnica, uma vez que os grupos naturais dificilmente permitem qualquer tipo de controle. Essa técnica deverá mostrar como se formam os grupos na classe, se existem ou não subgrupos fechados, como se relacionam os sexos, como se escolhem os elementos e em função de que são feitas as escolhas (Pimentel & Sigrist, 1971, p. 30).

Essa técnica era realizada nos Ginásios Vocacionais da seguinte forma: pedia-se que os alunos escolhessem dentre os colegas de sua sala três com os quais gostariam de formar um grupo de trabalho e, caso quisessem, também aqueles com os quais não gostariam de trabalhar (rejeições). A coordenação garantia o atendimento de, ao menos, uma das escolhas. Essa consulta aos alunos era realizada por meio de fichas preparadas exclusivamente para esse fim. Além disso, havia outras regras a serem obedecidas: a técnica só seria aplicada após algumas semanas de convivência entre os estudantes, possibilitando assim que pudessem se conhecer antes das escolhas; a técnica deveria ser aplicada apenas em situações naturais de trabalho, com tempo suficiente para que os alunos pudessem pensar em suas escolhas; a realização partiria de uma questão objetiva como “[...] com quem você gostaria de trabalhar?” (Pimentel, 1967, p. 13).

Após a coleta das respostas, a equipe fazia um levantamento de todas as escolhas e preenchia um quadro que demonstrava o número de escolhas recebidas e de rejeições, caso tivesse havido. Para os não escolhidos, nem rejeitados, anotava-se ‘isolado’ em seu cartão. Com os dados, a equipe dos Ginásios Vocacionais podia verificar os mais escolhidos (e por isso considerados líderes), os não escolhidos (portanto, isolados) e os rejeitados. A partir disso, os grupos eram organizados de forma que nenhum deles contasse com um aluno que fora rejeitado pelos integrantes (por exemplo: se Maria rejeitou João, João entrará em outro grupo em que não haja alguém que o tenha rejeitado). Os líderes eram sempre atendidos em sua primeira escolha, assim como as escolhas mútuas (por exemplo: Maria escolheu João que também a escolheu e, portanto, eram colocados no mesmo grupo).

Era construído um quadro com círculos concêntricos ao meio. Nele os meninos eram representados por triângulos, as meninas por circunferências e dentro das figuras era escrito o primeiro nome de cada aluno. As figuras eram ligadas umas às outras de acordo com as escolhas, aproximando-se do centro quanto mais tivessem sido escolhidos.

As equipes de trabalho eram formadas a partir da análise do gráfico seguindo alguns critérios: isolados e rejeitados deveriam ficar em grupos com alunos bastante escolhidos; as equipes de trabalho que tivessem entre cinco e seis alunos deveriam ter, entre eles, um líder; as equipes deveriam ter entre quatro e seis integrantes.

Além da possibilidade de visualização e ‘exploração dos fatos sociométricos’, os Ginásios Vocacionais também identificavam a ocorrência de líderes naturais, analisando aqueles alunos com maior número de escolhas. Apesar de, inicialmente, a equipe ter usado os dados da consulta inicial para distribuir líderes entre os grupos formados, percebeu-se que “[...] conceitos falsos de liderança se estabeleceram por causa disso [...]” (Pimentel & Sigrist, 1971, p. 32) considerando que a melhor forma seria deixar a escolha dessa função a cargo dos membros de cada equipe.

Essa técnica era utilizada principalmente nas primeiras séries de Ensino Vocacional, pois acreditava-se que os alunos da 4ª série já seriam capazes de decidir a formação da equipe a partir de “[...] discussão franca e aberta sobre as necessidades de um grupo [...]” (Pimentel e Sigrist, 1971, p. 34), não sendo necessária a interferência da equipe para garantir que o grupo fosse propiciador dos objetivos educacionais.

É interessante notar que a técnica sociométrica era um instrumento complexo, trabalhoso e muito importante para o funcionamento do plano pedagógico dos Ginásios Vocacionais, pois era por meio dela que os grupos de trabalho de alunos eram formados para funcionar durante todo o semestre3. Mesmo assim, ao descrever tal processo detalhadamente, não há qualquer menção aos autores que propuseram sua a utilização. Devido à semelhança de nome e processo, podemos inferir com certa segurança que essa fonte fora J. L. Moreno (1889 - 1974).

Médico, dramaturgo e psicodramatista, Moreno idealizou o teste sociométrico como forma de conhecer a dinâmica grupal e os indivíduos inseridos nela. Segundo Russo (2010), Moreno publicou Quem sobreviverá?, seu primeiro livro em que citava a sociometria, em 1934 (versão em inglês) e, posteriormente, em 1954, a versão em francês. Considerando que ambas as primeiras publicações aconteceram anos antes da existência dos Ginásios Vocacionais, é possível que à época a equipe tenha tido contato com a obra ou com algum pesquisador que utilizava o teste. Apesar de Moreno ter desenvolvido a sociometria ao longo da década de 1930, a primeira tradução de suas obras sobre o assunto para a língua portuguesa ocorreu apenas na década de 1990, o que torna curioso pensar como a equipe dos Ginásios Vocacionais acessaram a obra. Esse fator pode ser um indicativo do quanto se investia em pesquisas de referências para a construção do trabalho pedagógico.

Segundo Pimentel (1967), a utilização da técnica sociométrica nos Ginásios Vocacionais tinha o objetivo de conhecer como se formam os grupos nas classes, “[...] se existem ou não subgrupos ou grupinhos fechados, como se relacionam os sexos, como se escolhem os elementos e em função de que são feitas as escolhas [...]” (Pimentel, 1967, p. 13), o que demonstra a intenção de conhecer a socialização entre os alunos e as vicissitudes de suas relações. Esse objetivo também concorda com aquilo que Moreno dedicou ao teste que idealizou. Como descreve o autor, “[...] o teste sociométrico é instrumento que examina estruturas sociais através da medição das correntes de atração e repulsa que existem entre os indivíduos em um grupo” (Moreno, 1992, p. 194).

Não apenas o nome e o objetivo da técnica usada pelos Ginásios Vocacionais se assemelham ao teste proposto por Moreno, mas também o método é muito parecido. Bastin (1966) explica que a aplicação do teste sociométrico de Moreno é muito simples. Consiste somente em pedir a todos os membros de um grupo que indiquem com quais outros membros gostariam de se encontrar em uma certa atividade e com quais preferem não se encontrar. A realização do teste depende apenas que os participantes respondam com sinceridade às perguntas e é justamente por isso que o autor o aponta como viável para uso em instituições educacionais, já que não depende de muito tempo nem qualquer material.

Outra qualidade do teste sociométrico é a sua grandiosa plasticidade. Tanto o psicólogo escolar nas classes que estão sob sua responsabilidade, como o psicólogo militar nas unidades, e o psicólogo industrial nas equipes encontraram facilmente situações propícias para o uso do teste sociométrico (Bastin, 1966, p. 6 tradução nossa). 4

A distribuição das respostas em um gráfico também é uma metodologia encontrada na obra de Moreno sobre a sociometria. Para o autor, apenas coletar as respostas dos membros dos grupos não possibilita a apreensão de fatos sobre ele. É apenas após apresentar os dados, por meio de um método que permita sua exploração, que se pode encontrar os ‘fatos sociométricos’.

As respostas obtidas no decorrer do procedimento sociométrico de cada indivíduo, por mais espontâneas e essenciais que possam parecer, são apenas materiais e não, ainda, fatos sociométricos em si. [...] Os sociometristas criaram processo de representação gráfica, o ‘sociograma’, que é mais do que mero método de apresentação. É, primeiramente, método de exploração. Torna possível a exploração de fatos sociométricos (Moreno, 1992, p. 196, grifo do autor).

Além disso, Saravali (2003) diferencia dois tipos de testes sociométricos, ambos associados a Moreno, apontando para sua principal diferença: o teste objetivo pede apenas que os integrantes escolham dentre os demais membros, já o teste perceptivo pede que essa escolha seja justificada. A técnica utilizada pelos Ginásios Vocacionais se assemelha, nessa perspectiva, ao teste sociométrico objetivo, já que propunha que os alunos realizassem apenas as escolhas e não as justificassem.

[...] há dois tipos de teste sociométrico: o teste objetivo e o perceptivo ou perceptual. No primeiro, os membros do grupo devem apenas fazer suas escolhas obedecendo aos critérios: positivo (aceitação), negativo (rechaço), neutro (ambivalente) e no segundo devem justificá-las, ou seja, apresentar suas razões/motivos. Podem ocorrer também outras variações do teste desde que se proponham a avaliar, sob o mesmo critério, as relações que se estabelecem entre os membros do grupo (Saravali, 2003, p. 26).

O contato dos Ginásios Vocacionais com a sociometria de Moreno (1992) ainda é um assunto a ser mais investigado, pois sabemos, como mencionado, que no Brasil suas obras sobre o assunto se tornaram acessíveis apenas na década de 1990. Apesar disso, Moreno (1992) se refere a ‘sociometristas’ em sua obra, indicando que havia outros pesquisadores utilizando-se do teste sociométrico para diversos fins. No Brasil, desde a década de 1940 já havia psicodramatistas, como o baiano Alberto Guerreiro Ramos (1915 - 1982), que aplicava técnicas psicodramáticas com a população desempregada. É possível que outros conhecedores de Moreno tenham sido mediadores desse contato entre a equipe e suas obras, mas tal fato pode apenas ser inferido, pois não há qualquer referência ou citação direta a ele nos trabalhos produzidos pelos Ginásios Vocacionais. Podemos afirmar, por enquanto, que os Ginásios Vocacionais utilizaram essa referência devido à semelhança que encontramos entre a forma definida por Moreno (1992) sobre como utilizar tais técnicas e a forma como os Ginásios as utilizaram.

É curioso o fato de que a nomenclatura utilizada pelos Ginásios Vocacionais para se referir ao teste sociométrico, ‘técnica sociométrica’, tenha diferido daquilo que propõe Moreno (1992). Apesar de parecer uma diferença insignificante, a clara definição dos termos sociométricos é pregada pelo autor como indispensável, tanto que considerou importante oferecer aos leitores um glossário de termos sociométricos ao fim do volume três do livro Quem Sobreviverá?. Para o autor, “Este glossário é parte essencial do sistema sociométrico. Nenhum conceito possui significado isoladamente. Os termos e conceitos são inter-dependentes no âmbito de todo sistema” (Moreno, 1994, p. 213).

No glossário em questão, Moreno (1994) diferencia teste sociométrico de um grupo, teste sociométrico de um indivíduo, questionário sociométrico, sociograma e status sociométrico, explicando que cada uma dessas nomenclaturas diz respeito a análises e etapas diferentes da aplicação da sociometria. Além disso, nomeia conceitos como líder sociométrico, escolha recíproca, átomo social, entre outros, que aparecem de forma indireta nos documentos dos Ginásios Vocacionais quando explicam a execução e justificativa da utilização do teste (ou ‘técnica’, como nomeiam).

‘Teste sociométrico’ (de um grupo) - mede o ‘conflito’ entre a verdadeira estrutura de um grupo, mantida por seus membros à época do teste, e a estrutura revelada por suas escolhas.

‘Teste sociométrico’ (de um indivíduo) - mede o ‘conflito’ entre a posição real que determinado indivíduo mantém no grupo e a posição revelada por suas escolhas.

‘Questionário sociométrico’ - pede a determinado indivíduo que escolha seus companheiros em qualquer grupo do qual é, ou poderá ser, membro.

‘Sociograma’ - descreve, através de conjunto de símbolos, as relações mútuas ou interpessoais que existem entre membros de um grupo. Se A escolhe B, isto é apenas metade de uma relação mútua. Para que o relacionamento seja sociometricamente significativo, é necessário que haja a outra metade. [...]

Status sociométrico’, definição operacional - quantas vezes um indivíduo foi escolhido por outros, como parceiro predileto, para todas as atividades em que se achavam engajados à época do teste. É obtido pela soma do número de escolhas recebidas em cada critério (Moreno, 1994, p. 213-215, grifo do autor).

A partir daí, levanta-se a hipótese de que os Ginásios Vocacionais chamaram o teste sociométrico de técnica por ser de conhecimento da equipe a sua aplicação, mas não a sua definição conceitual, talvez por utilizarem como referência o relato de outras instituições que aplicavam o teste. Essa possibilidade surge do fato de que os GVs descrevem toda a aplicação do teste de maneira muito fidedigna às instruções de Moreno (1992), apenas nomeando de forma diferente da do autor, como chamar o teste de técnica, o sociograma de gráficos e não nomear alguns processos (como o status sociométrico). Dá-se, assim, a impressão de que a utilização do teste sociométrico tenha se dado como um recurso institucional conhecido anteriormente de forma prática pela equipe e não uma utilização teórica seguida à risca. Seria necessário, entretanto, dar continuidade à investigação sobre a implantação do teste sociométrico como recurso pedagógico para afirmar com segurança essa possibilidade.

Educação sexual

A educação sexual, como nos lembra Figueiró (1998), está inserida no processo de educação global do indivíduo, tendo surgido, nas décadas de 1920 e 1930, os primeiros trabalhos a respeito do tema e manifestações da necessidade de programas de educação sexual.

Em 1930, a primeira inclusão da educação sexual num currículo se deu no Rio de Janeiro, no Colégio Batista. A experiência perdurou até 1954. Segundo Rosemberg (1985 apudFigueiró, 1998), a Igreja Católica foi o principal motivo para que a educação sexual não penetrasse no sistema escolar brasileiro até a década de 1960, tanto por sua repressão à atividade sexual quanto por sua posição de destaque na educação até esse período. A partir de então, foi registrado o maior número de implantação de programas acerca desse tema no Brasil. Figueiró (1998) destaca ainda que a rede pública foi palco dessas experiências, incluindo nelas a dos Ginásios Vocacionais.

A autora destaca, no entanto, alguns acontecimentos políticos da década de 1970 que mudaram o rumo do processo da implantação de programas que vinha se consolidando: a rejeição, em 1968, do projeto da deputada Julia Steinbruch (PMDB - RJ), que propunha a inclusão obrigatória da educação sexual nos currículos de 1 e 2° graus; em maio de 1970, a oficialização da censura prévia de livros e jornais pelo Congresso Brasileiro; em 1976, a afirmação de Edilia Coelho Garcia, integrante do Conselho Federal da Educação, que apresentou a posição oficial brasileira no Primeiro Seminário Latino-Americano de Educação Sexual, defendendo educação sexual como atribuição primordial da família, desse modo, não trabalhada em aulas escolares (Figueiró, 1998).

Apesar de não haver nenhuma lei ou proibição formal contra a implantação dos programas, o tabu que cercava o tema era suficiente para a denúncia da prática como imoral e subversiva. Foi apenas no final de 1997 que o MEC oficializou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). O texto considerava a orientação sexual um tema social e urgente, de necessária contemplação no currículo do ensino fundamental, em consonância com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) n. 9.394/96.

Nos Ginásios Vocacionais, a educação sexual era organizada para que todas as áreas abordassem seu conteúdo, sendo de incumbência da Orientação Educacional, em conjunto com a Orientação Pedagógica e equipe de professores. Havia duas organizações distintas dos assuntos tratados pela educação sexual. A primeira, por série, em que temas diversos eram tratados em cada uma das classes por meio das sessões em grupo; a segunda, por área de conhecimento, em que cada disciplina aprofundaria um aspecto do tema determinado pela Unidade Pedagógica (Pimentel & Sigrist, 1971).

Os documentos descrevem diversos exemplos concretos da prática de educação sexual. Na 1ª série, os temas tratados eram relacionamento entre meninos e meninas, namoro, o que é ser homem e ser mulher, modificações fisiológicas na adolescência, entre outros. Na 2ª série, os questionamentos trazidos pelos alunos eram referentes ao ato sexual, ao ‘homossexualismo’5, à inseminação artificial e semelhantes. Na 3ª série, perguntava-se sobre desvios sexuais, doenças venéreas, pornografia etc. Na 4ª série, pensava-se nas diferenças de gênero na sociedade, na luta das mulheres por libertação, questões genéticas etc. Em relação aos temas retratados por área de conhecimento, os exemplos mencionados foram os seguintes: em Estudos Sociais, na 1ª série, o papel da mulher na transformação da sociedade; em Artes Plásticas, na 2ª série, nus femininos; na 3ª série, em Ciências, características sexuais secundárias; e na 4ª série, em Português, exame de textos para analisar o problema da solidão do homem e sua necessidade de comunicação (Pimentel & Sigrist, 1971).

Vemos que o viés moralista também surge quando, na sessão de grupo da 3ª série, os temas da homossexualidade e da prostituição são tratados lado a lado, como se representassem o mesmo problema social.

Nas sessões de orientação em grupo desenvolveu-se o seguinte programa: (a) Relações heterossexuais; (b) Sentido de sexualidade; (c) A pessoa humana tomada como objeto no homossexualismo e na prostituição; (d) O amor humano e a realização pessoal (Pimentel & Sigrist, 1971, p. 117).

Há também um caso emblemático descrito por Pimentel e Sigrist (1971) envolvendo um aluno apontado como “[...] portador de aspectos afeminados [...]”, designado como “[...] caso X” (Pimentel e Sigrist, 1971, p. 71). Os aspectos afeminados vistos no adolescente do sexo masculino eram condenados, vistos como um “[...] problema sério de X [...]” (Pimentel & Sigrist, 1971, p. 76) e, desse modo, foram averiguados seus dados familiares e tomadas medidas pelos orientadores e educadores para ‘reverter o caso’. O aluno foi colocado em um grupo no qual todos os componentes eram do sexo masculino, ainda que suas amizades fossem majoritariamente femininas.

Desse modo, a Orientação Educacional do Vocacional montou uma situação que “[...] favorecesse a eclosão do que mais tarde se pôde caracterizar de crise emocional, há muito reprimida pelo aluno X” (Pimentel & Sigrist, 1971, p. 78). Isso se deu com a sua colocação em uma equipe na qual o líder e outros dois alunos eram do sexo masculino e tidos como possuidores de “[...] mais acentuados traços de virilidade e segurança, tendo em vista, é claro, os padrões culturais locais” (Pimentel & Sigrist, 1971, p. 78).

Quando X exigiu explicações da Orientadora Educacional a respeito dos motivos pelos quais só ficava em equipes com componentes masculinos, ela alegou que foi um fato acidental, ou seja, não houve transparência com o aluno a respeito do que foi apontado como um problema que estavam tentando resolver. A mãe de X chegou a procurar a escola, alegando que seu filho se encontrava “[...] abatido, com crises terríveis de choro e angústia, dizendo sempre que queria por termo à vida” (Pimentel & Sigrist, 1971, p. 80). Ela foi orientada pela escola a não levar seu filho ao médico, “[...] nem pedir que Y, amigo de X, o ajudasse” (Pimentel & Sigrist, 1971, p. 80).

Apesar do discurso emancipatório de levar o aluno a descobrir o significado das exigências corporais e da sexualidade na pessoa humana, proporcionando-lhe condições para uma reflexão objetiva e tomadas de decisões conscientes e responsáveis, alguns exemplos apresentados da prática se mostraram moralistas e binários. Assim como na proposta de discussão da “[...] pessoa humana tomada como objeto no homossexualismo e na prostituição” (Pimentel & Sigrist, 1971, p. 117), na qual a homossexualidade é associada a uma objetificação corporal.

Ainda que se discutissem temas nos quais podemos reconhecer uma percepção vanguardista para a época, tais como a posição social do homem e da mulher e a masturbação, alguns preceitos tradicionais irrefletidos foram mostrados, de modo a perpetuar situações de preconceito.

Assim, devemos retomar o contexto histórico em que a experiência educacional estava sendo desenvolvida. Àquele momento, discussões acerca da homossexualidade ainda não eram tão presentes nas escolas, as manifestações da contracultura eram recentes e mesmo uma proposta educacional que previa o desenvolvimento de um cidadão crítico e consciente não se viu livre de preconceitos acerca da vida em sociedade.

Vemos, em contrapartida, uma preocupação em incluir uma série de temas pertinentes, tal como o lugar da mulher na sociedade brasileira, aparecendo em todas as séries as questões de gênero vividas pelas mulheres até então.

Considerações finais

Após análise e comparação dos principais documentos utilizados, encontramos dois resultados interessantes para compreender o que foi a proposta pedagógica dos Ginásios Educacionais à sua época e suas interlocuções com a Psicologia: primeiro, em relação às especificidades e diferenças entre os trabalhos de Orientação Educacional e Orientação Pedagógica; segundo, em relação à dificuldade em determinar os referenciais que embasaram o projeto político-pedagógico dos Ginásios Vocacionais e as atividades cotidianas ali desenvolvidas. Confirmamos também que as fontes primárias investigadas não trazem as referências teóricas que fundamentaram o trabalho desenvolvido, sendo feitas apenas citações dispersas dos autores de referência. Nesse sentido, a bibliografia de referência foi mais direta, apontando textos e autores, porém também sem muito aprofundamento e, por vezes, valendo-se do relato memorialístico com o status de verdade histórica.

Considerando a hipótese inicial de que havia uma separação entre as áreas de Orientação Pedagógica e Orientação Educacional, podemos afirmar que tal distinção pode ser observada, porém não aprofundada, uma vez que ambos os serviços eram extremamente atrelados, e o principal documento disponível analisado se referia especialmente à área de Orientação Educacional (Pimentel & Sigrist, 1971). Entretanto, podemos formular a hipótese de que não havia de fato uma separação muito definida, já que, assim como os alunos, a coordenação também trabalhava conjuntamente nas diversas atividades realizadas nos Ginásios Vocacionais. Silva (2013), ainda que se propondo a discutir o trabalho de Orientação Pedagógica, descreveu o trabalho realizado em conjunto por ambas as orientações, tal como Pimentel e Sigrist (1971), que propunham discutir a Orientação Educacional. Pode-se inferir, portanto, que a integração existente entre os trabalhos de Orientador Pedagógico e Orientador Educacional estava diretamente relacionada com a noção de integração entre áreas que marcou o currículo dos Ginásios Vocacionais como um todo. É plausível, portanto, assumir que essa separação não estivesse definida com clareza para os próprios orientadores.

A partir dos documentos estudados, foi possível, entretanto, confirmar algumas características do trabalho de Orientação Educacional: a de exercer uma ação coordenadora, atuando em conjunto com outros profissionais, professores e pais, no planejamento, na execução e na avaliação da ação educativa desenvolvida (SEV, 1968). Também era especialmente responsável por planejar as ações diretamente voltadas aos alunos, tais como a composição de equipes de trabalho por meio do teste sociométrico e o processo de avaliação ao longo do semestre.

Já a área de Orientação Pedagógica permaneceu no ocultamento. Considerando os documentos estudados, formulamos a hipótese de que o Orientador Pedagógico seria encarregado da construção e da manutenção da grade curricular, da aprovação do planejamento didático e das técnicas didáticas utilizadas nas disciplinas (Pimentel, 1971). Assim, seria responsável por coordenar a equipe de professores, bem como definir e integrar o currículo das unidades escolares. Contudo, a área ainda precisa ser melhor investigada, não sendo possível fazer outras proposições.

Em relação à técnica sociométrica, considerando que em nenhum documento são citadas as referências utilizadas para toda a experiência educacional, vê-se pela leitura e comparação de materiais que o teste foi utilizado da forma como teorizou Moreno (1992). A única referência direta ao autor aparece em um documento localizado por Chiozzini (2014), datado de 1964 e intitulado Bibliografia para estudos de fundamento e planejamento de curriculum escolar, em que uma das obras do autor, em inglês, aparece em meio a uma relação de vários autores. No caso dos documentos consultados, há apenas uma sutil diferença: os documentos dos Ginásios Vocacionais se referem a uma ‘técnica’ sociométrica, enquanto Moreno (1992) se refere a um ‘teste’. Provavelmente tal disparidade se deu devido à tradução equivocada, o que levanta a hipótese de que a equipe dos Ginásios Vocacionais tenha tido acesso aos primeiros materiais de Moreno (1992) em língua inglesa ou francesa. Entretanto, não é evidência suficiente para descartar a hipótese de que esse contato tenha sido por meio de psicodramatistas brasileiros. Nas duas ocasiões, percebe-se o investimento intelectual que se prestava ao desenvolvimento da experiência educacional dos Ginásios Vocacionais, pois o trabalho de Moreno ainda não era grandemente difundido no Brasil. Ainda hoje a utilização do teste sociométrico no contexto escolar é vista como inovadora.

Por fim, a comparação entre os documentos de 1967 e 1971 culminou na identificação de ocultamentos e modificações no texto, principalmente no que se referia aos objetivos sociais e políticos da experiência educacional. Essas alterações podem ter sido causadas devido à perseguição que havia no contexto da Ditadura Militar Brasileira (1964 - 1985) contra instituições, movimentos sociais ou sujeitos que fossem considerados subversivos ao sistema imposto. Outro motivador pode ter sido as diferenças e mudanças internas na equipe, que buscou aproximar o projeto pedagógico dos Ginásios Vocacionais cada vez mais de um projeto político voltado para a crítica e transformação da sociedade (Chiozzini, 2014).

Em relação às citações e aos referenciais teóricos pouco presentes no relatório interno (1967) e quase inexistentes no livro de 1971, é possível que tenham sido motivados pela intenção em não vincular a modelos estrangeiros a experiência que estava sendo desenvolvida nos GVs e pelo entendimento de que o trabalho estava sujeito a constantes alterações, uma vez que se constituía como um projeto experimental constantemente avaliado e reformulado. Um projeto pedagógico sendo desenvolvido nessas condições pode ter tido como base tantas teorias e teóricos quanto possível, podendo ter se tornado dispensável para a equipe a explicitação de quais e quem foram. Além disso, considerando que o documento de 1967 foi um relatório interno construído para utilização da equipe, pode ser que a presença de referências tenha sido um detalhe dispensável, vista a informalidade do documento. Já o livro Orientação Educacional (Pimentel e Sigrist, 1971) acabou por ser uma divulgação precária do trabalho, uma vez que foi lançado após o encerramento da experiência, em um período de recrudescimento da censura e da repressão no país. Além das fragilidades do documento que inspirou o livro, havia um crescente cerceamento da liberdade de expressão.

Mesmo décadas depois de findada a experiência, entende-se que as discussões e as políticas que contemplam a educação integral e o Ensino Médio Inovador, em curso na contemporaneidade, carecem de um referencial histórico, sobretudo quando envolvem experiências que foram encerradas pela Ditadura Civil-Militar de 1964 e que passaram por um deliberado processo de apagamento. A reversão desse processo passa, em primeira instância, pelo exercício de rememoração realizado pelos sujeitos que dela participaram, tal como as iniciativas da Associação de Ex-alunos e Amigos dos Ginásios Vocacionais (http://www.vocacional.org.br/) e documentários como ‘Vocacional: uma aventura humana’ (Dourdin, Kieling, Venturi, & Venturi, 2011), do diretor Toni Venturi. No entanto, há que se desenvolver um esforço analítico voltado para investigar não somente a experiência como um todo, como já realizado na bibliografia citada, mas em estudos mais verticais, que adentrem as diferentes unidades que compuseram esse sistema de ensino e possibilitem a compreensão do uso de técnicas e metodologias inovadoras, tal como a sociométrica para a composição de equipes de trabalho e a prática de educação sexual, como se procurou fazer.

Referências

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14NOTA: Os autores foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada

Recebido: 26 de Fevereiro de 2021; Aceito: 17 de Maio de 2021

* Autor para correspondência. E-mail: danielchiozzini@yahoo.com.br

Daniel Ferraz Chiozzini: Mestre e Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pós-Doutorado no Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (EHPS/PUC-SP), onde atua como Professor Doutor. Investiga principalmente nos seguintes temas: História e Memória da Educação Brasileira, Educação e Ditadura Civil-Militar, Ensino Secundário, Escolas Experimentais e Ginásios Vocacionais. Integra a Linha de Pesquisa Educação Brasileira: produção, circulação e apropriação cultural e é um dos líderes do Grupo de Pesquisa História das Instituições e dos Intelectuais da Educação no Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9607-8130 E-mail: danielchiozzini@yahoo.com.br

Bartira Mannini: Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Assistente de Coordenação na Escola Bilíngue Pueri Domus. Mestranda no Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (EHPS/PUC-SP). Tem experiência na área de Psicologia, atuando principalmente nos seguintes temas: Educação, História da Educação, Ginásios Vocacionais de São Paulo, História da Psicologia Educacional e Educação Inclusiva e Saúde Mental. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5780-5270 E-mail: bartiramannini@gmail.com

Natália Cardoso Compadre: Graduanda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especializanda em Dependência Química pela SPDM/UNIFESP. Tem experiência na área da Psicologia e atua como psicóloga clínica. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8262-2409 E-mail: natalia.ccardoso@hotmail.com

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