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Acta Scientiarum. Education

Print version ISSN 2178-5198On-line version ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.45  Maringá  2023  Epub Aug 01, 2023

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v45i1.52730 

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS

Redes formativas: esteio para aprendizagens e reflexões enredadas

Redes de formación: pilar para aprendizajes y reflexiones enredadas

1Universidade do Oeste de Santa Catarina, Rua Getúlio Vargas, 2125, 89600-000, Bairro Flor da Serra, Joaçaba, Santa Catarina, Brasil.


RESUMO.

Esta reflexão tem por objetivo compreender a existência de implicações epistemológicas, na simbiose humano/tecnociência, que colocam em xeque a razão e as hierarquias de poder, com acenos para a existência de nichos vitais recheados de profunda interdependência desde o início do processo evolutivo. Trata-se de um estudo, de natureza qualitativa, do tipo bibliográfico, cujo principal resultado significa afirmar que a evolução humana emerge em um útero sumamente complexo, que compartilha natureza, tecnologias e linguagens. É inimaginável dimensionar a complexidade das interações, tanto colaborativas quanto conflitivas, dos ingredientes dessas coevoluções interativas - humano e tecnociências. Tem-se, pois, presente na atualidade contemporânea, uma profunda transformação na dinâmica do aprender, possibilitado pelas redes digitais. Conclui-se que as redes formativas são um efetivo exercício de resistência e de profanação dos mecanismos instrucionais originários de convicções político-pragmáticas que desconhecem ou fingem desconhecer a potencialidade das redes, como redes colaborativas, redes de interdependência e presenças interativas. Redes formativas podem possibilitar outras posições e outras conexões diante da tecnoburocratização do Estado, sedento por diagnósticos quantitativos e produtivistas, realizados por planos e metas obscuras que, gradativamente, ameaçam esvaziar as utopias e as esperanças de futuros abertos e possíveis.

Palavras-chave: educação; redes formativas; simbiose humano/tecnociência; reflexões

RESUMEN.

Esta reflexión tiene como objetivo comprender la existencia de implicaciones epistemológicas, en la simbiosis entre humano y tecnociencia, que ponen en jaque la razón y las jerarquías de poder, con guiños a la existencia de nichos vitales llenos de profunda interdependencia desde el comienzo del proceso evolutivo. Se trata de un estudio, de naturaleza cualitativa, de tipo bibliográfico, cuyo principal resultado significa afirmar que la evolución humana emerge en un útero extremadamente complejo, que comparte naturaleza, tecnologías y lenguajes. Es inimaginable dimensionar la complejidad de las interacciones, tanto colaborativas como conflictivas, de los ingredientes de estas coevoluciones interactivas - humano y tecnociencias. Se tiene, pues, presente en la actualidad contemporánea, una profunda transformación en la dinámica del aprender, hecha posible por las redes digitales. Se concluye que las redes de formación son un ejercicio efectivo de resistencia y de profanación de los mecanismos instruccionales originarios de convicciones político-pragmáticas que desconocen o fingen desconocer la potencialidad de las redes, como redes de colaboración, redes de interdependencia y presencias interactivas. Redes de formación pueden posibilitar otras posiciones y otras conexiones ante la tecnoburocratización del Estado, sediento de diagnósticos cuantitativos y productivistas, realizados por planes y metas oscuros que, gradualmente, amenazan con vaciar las utopías y las esperanzas de futuros abiertos y posibles.

Palabras clave: educación; redes de formación; simbiosis humano/tecnociencia; reflexiones

ABSTRACT.

This reflection aims to understand the existence of epistemological implications, in human symbiosis and technoscience, which call into question reason and hierarchies of power with nods to the existence of vital niches filled with deep interdependence from the beginning of the evolutionary process. This is a qualitative study of the bibliographic type, whose main result means to affirm that human evolution emerges in a very complex uterus, which shares nature, technologies and languages. It is unimaginable to scale the complexity of interactions, both collaborative and conflictive, of the ingredients of these interactive coevolutions - human and technosciences. Therefore, a profound transformation in the dynamics of learning, made possible by digital networks is present. It is concluded that the training networks are an effective exercise of resistance and desecration of the instructional mechanisms originating from political-pragmatic convictions that ignore or pretend to ignore the potential of the networks, such as collaborative networks, interdependence networks and interactive presences. Formative networks may enable other positions and other connections in the face of the technobureaucratization of the State, thirsty for quantitative and productivist diagnoses, carried out by obscure plans and goals that, gradually, threaten to empty utopias and the hopes of open and possible futures.

Keywords: education; training networks; human symbiosis/technoscience; reflections

Introdução

É aceitável afirmar que, no século XXI, aspiramos por uma diferente flecha-guia também para ações pedagógicas e formativas. A expansão e a implantação das tecnologias digitais são resultado da disseminação de concepções rizomáticas e de enredamentos cuja compreensão em larga escala remete ao século XX. Por entre as crueldades humanas que assombraram o século XX, também emergiram as noções de sistemas abertos, de atratores estranhos, de rizomas com múltiplas pontas soltas, de redes colaborativas, de entrelaçamentos diversos, de variáveis ocultas, de fronteiras e sua diversidade de formas, entre tantas outras.

Esse diferente arcabouço científico envolvendo as concepções de complexidade, de caos, indeterminismo, dinâmica não linear, auto-organização e emergência não pode ser ignorado pelos educadores, nem é conveniente desprezar a variedade de implicações formativas que essas concepções comportam. Elas são convites para tensionar e reconfigurar o âmbito de nossas relações com o conhecimento, com os saberes e com as experiências do viver. São possibilidades que outorgam a criação de descontinuidades, cujo pensar próprio concede experiências de singularização e, portanto, de transformações na constituição de sujeitos para além da massificação. Sujeitos, pessoas transformadas com potencialidades distintas para viverem e experimentarem seus mundos existenciais, constituírem seus sonhos e compreenderem a ordem/desordem das e nas coisas. Uma espécie de metamorfose, expressão originária das biociências, morphé (forma), que acena para o dinâmico, para o trânsito de múltiplas formas a convergirem por estarem encadeadas em processos únicos.

A humanidade segue imersa em dinâmicas evolutivas e, na contemporaneidade, a parceria humana com as tecnologias criou um diferente referencial. Uma parceria que ultrapassa a mera expansão de nossos órgãos de sentido e ingressa no multiverso da aprendizagem, tornando prescindíveis as lógicas instrumental, racional e transmissiva. Trata-se de desafios inéditos e de oportunidades não presentes em outras épocas históricas. De modo geral, podemos afirmar que as tecnociências foram e continuam sendo parceiras da evolução humana. Isso significa afirmar que a evolução humana emerge em um útero sumamente complexo, que compartilha natureza, tecnologias e linguagens. É inimaginável dimensionar a complexidade das interações, tanto colaborativas quanto conflitivas, dos ingredientes dessas coevoluções interativas - humano/tecnociências.

No entanto, é essa trama complexa de interdependência que impacta e reacende a dinâmica da aprendizagem humana para muito além do simplismo dos mecanismos dos tradicionais rituais de iniciação, das transmissões metódicas de informações e de ‘conhecimentos’ e da instrumentalização, heranças da modernidade. Temos, pois, presente na atualidade contemporânea, uma profunda transformação na dinâmica do aprender, possibilitada pelas redes digitais. Paira, nesses ares, uma diferente visão de aprendizagem, uma visão que concebe serem as tecnologias digitais, tanto quanto os educadores, instigadores ativos e criativos de aprendizagens via investigações, em substituição aos modelos tradicionais de ensino, de memorização e de devolução via exames, provas e verificações. “As novas tecnologias ampliam o potencial cognitivo do ser humano e possibilitam mixagens cognitivas complexas e cooperativas” (Assmann, 2005, p. 18).

São experiências de aprendizagens realizadas em parcerias, com humanos aprendentes interagindo também com esse fenômeno tecnológico coestruturado e coestruturante. Essas parcerias significam coerência operacional em nosso fazer, em sintonia com preferências e desejos. Importante reconhecermos que quem guia essa parceria somos nós seres humanos e não as tecnologias. Submeter-se às tecnologias, destituir-se da condição de sujeito, negar os próprios desejos é tornar-se refém, como se o modo de viver dependesse e fosse determinado pelas tecnologias. Desse modo, o desejo de mudança nos processos de aprendizagem é o convite nosso para parcerias com tecnologias digitais. O crescimento da presença tecnológica nos modos de viver e aprender não pode significar a redução das possibilidades de escolhas, redução ou anulação dos desejos e da liberdade.

Daí a importância de sabermos a nossa condição humana, reconhecermos que somos sistemas vivos, somos personas e não coisas a serem dirigidas e determinadas do exterior. Para Maturana (2001), os sistemas vivos são sistemas determinados estruturalmente, pois o que acontece em um sistema vivo depende de sua estrutura. O desrespeito a esse princípio de determinação estrutural significa imposição e negação do ser, negação da condição de sistema vivo e de sua objetificação.

Nesse cenário de condição humana, emerge uma diferente possibilidade aprendente e, nela, entendemos ser relevante desenvolver reflexões sobre a temática das redes formativas. É opção nossa caminharmos por entre esse viés de reflexões, sem menosprezar o enorme leque de temas e de outras entradas importantes relacionados às redes formativas. Dessa forma, a problemática a ser desenvolvida, neste artigo, gira em torno do questionamento: Quais implicações epistemológicas se fazem presentes nessa simbiose aprendente, capazes de colocar em xeque a lógica racional e hierárquica acenando envolvimentos e interdependência? Assim sendo, o objetivo é: compreender a existência de implicações epistemológicas, na simbiose humano/tecnociência, que colocam em xeque a razão e as hierarquias de poder com acenos para a existência de nichos vitais recheados de profunda interdependência desde o início do nosso processo evolutivo.

Perspectivamos tratar-se de uma epistemologia aberta, na qual caiba o indeterminado, a emergência, o conversar, a recursividade e a retroação, bem como a auto-organização do sujeito, tão negligenciada pela ciência moderna. Uma epistemologia que não perde de vista a realidade dos fenômenos, nem persista na criação disjuntiva entre subjetividade e objetividade e não exclua a sensibilidade humana, o sujeito, a cultura e a sociedade, como enfatiza Morin (2010).

Entendemos, porém, que as redes formativas são um efetivo exercício de resistência e de profanação da lógica do currículo oficial homogêneo. Redes formativas podem possibilitar outras posições e outras conexões diante da tecnoburocratização do Estado sedento por diagnósticos quantitativos e produtivistas, realizados por planos e metas obscuras que, gradativamente, ameaçam esvaziar as utopias e as esperanças de futuros abertos e possíveis.

Oportuno recordarmos que a reflexão é um movimento pelo qual o sujeito dá a si mesmo o direito de questionar a verdade concernente aos efeitos de poder e questionar o poder referente aos discursos de poder. Reflexão é uma arte, a arte da insubmissão voluntária, da profanação indócil.

Na cadência do tradicional

É tumultuado o modo de viver humano na atualidade contemporânea, que tem no individualismo e no produtivismo suportes fundamentais para a captura da subjetividade do ser humano. Estamos envoltos por dispositivos biopolíticos que submetem os seres humanos às angústias da insegurança, do medo, da obediência e da absolutização do eu. Persiste um monstruoso fosso que preserva a condição de ricos e de pobres, naturalizando a desigualdade, o que implanta o reinado da maldade e da crueldade, alimentado por injustiças, opressões e indiferenças.

Se a modernidade reconheceu o paradigma cartesiano como contribuição para a formação de uma lógica simplificadora, criou também a concepção de realidade reducionista, alimentada por metodologias que, ao separarem em partes os fenômenos para melhor conhecê-los, provocaram o empobrecimento, mascarado pela especialidade, que não consegue compreender o fenômeno como um todo. Além disso, não resulta em excelência de um saber especializado e único, independentemente do tempo/espaço, dada a ineficácia das atividades práticas ‘especializadas’ na contemporaneidade.

A modernidade assume-se como domínio racional, fundada em premissas básicas aceitas a priori. O uso prioritário da razão, além de induzir nossa dimensão emocional ao esquecimento, tornou-nos prisioneiros da crença de que todo e qualquer conflito ou divergência no cotidiano do viver humano está no âmbito do racional e necessita da razão para ser resolvido. Sustentamos que as emoções não somente obscurecem a lógica racional, mas também são fontes de arbitrariedade e desordem no viver humano. No entanto, os equívocos dessa priorização racional, forçando o desmerecimento da dimensão emocional e o esvaziamento de toda afetividade, são evidenciados nos mais diversos domínios de existência humana.

Mais do que um ser racional, o ser humano é um ser de sentimentos e de paixões, um ser irredutível à racionalidade. É essa uma discussão aberta nos inúmeros debates sobre a crise da racionalidade moderna, sobre a violência da instituição do racionalismo instrumental, que consagra a eficácia e o rendimento econômico como soberanos e absolutos. Foi uma promessa da era das luzes que gerou o princípio da universalidade do racionalismo, para promover a homogeneização, que ainda ameaça pela ocultação das diferenças culturais e individuais, das diversidades e das singularidades. É o racionalismo que semeia a crença do desprezo ao diferente, considerado inferior, contrário e anormal. Essa lógica racionalista também adentra os ambientes escolares substituindo a formação pela instrução, ao visar a instrumentalização do estudante. Essa instrumentalização, no contexto da racionalidade toyotista/neoliberal1, visa capturar as mais íntimas dimensões da vida humana, produzir em grande escala técnicas utilitárias de fabricação de desejos, dispositivos de controle das condutas, normalização dos comportamentos e regulamentação dos processos de subjetivação.

Formalizamos uma biopolítica que gera uma economia política, cuja meta é governar a liberdade dos outros, administrar suas vontades, dirigindo-as para metas previamente estabelecidas, como o silêncio na obediência. Obediência de um ser/indivíduo empresarial, cuja meta é realizar-se na satisfação dos fazeres, enquanto retrai o potencial de reflexão, por tratar-se de algo prescindível. As consequências dessa retração reforçam a sensação de vazio interior, um vazio que fragiliza e pode até anular o horizonte de esperanças ao alargar a incapacidade para opções profundas de sentido. No entanto, essa boa nova salvacionista, oferecida em dose dupla, progresso econômico e gerenciamento de si, também encontra resistência.

É na base dessa resistência que se ancora o desafio de sinalizar para uma diferente sensibilidade, requerendo superar os normativos da universalização e do poder que vigia, controla e pune, para dar lugar à exceção, com possibilidades abertas para compreender a diversidade da vida e das realidades, agora plurais.

Mais uma vez, entendemos que uma formação alternativa se torna gradativamente desejada, pois, se o positivismo clássico reconheceu como pressuposto ser a verdade algo exterior ao sujeito, outras teorias, com perspectivas não objetivistas, relativizam os modos diretivos de verdade e, também, de aprendizagens, considerando como pressupostos a existência de processos interativos. Disso decorre um deslocamento da perspectiva universalista para o reconhecimento de parcialidades e pluralidades - razões abertas e plurais de mãos dadas com uma lógica nebulosa - a fuzzy logic2 -, em vez da razão universal aristotélica e binária do terceiro excluído.

Se a verdade já não é única e não se sustenta mais como intrínseca à realidade dada, objetiva e independente, a ser conhecida como ela o é, abrem-se perspectivas de reconhecimento e de compreensão da existência da diversidade bem como da importância da interdependência, consideradas como imprescindíveis à dinâmica da legitimação de aprendizagens e de conhecimentos. Essa virada, uma resistência, implica pensar de outro modo as concepções de currículo, os métodos de ensino, os processos de aprendizagens, os processos avaliativos e os inúmeros afazeres aí imbricados. A possibilidade interativa acaba revelando a existência de fenômenos inexplicáveis nos mais diversos âmbitos e, particularmente, em relação ao ser humano estudante, aos seus modos de viver e de aprender. Nesse cenário, a resistência é um convite à transformação das relações de entendimento e de valoração preponderantes na atualidade. Ao transpor esses limites, convida-se a transpor os limites específicos de sua especialidade, visando conhecimentos mais profundos, globais e abrangentes em relação às demais áreas do conhecimento.

Essa resistência teima em preservar a condição humana, o compartilhamento, a repartição, a colaboração, emergentes nos e dos primórdios da humanização. É, como forma de resistência, que Maturana (2001) afirma não ser o progresso e o individualismo constituídos de valores em si mesmos, como se fossem absolutos e objetivos. Para Maturana (2001, p. 173), mais do que progresso e agenciamento individualista “[...] a questão que nós seres humanos devemos enfrentar é sobre o que queremos que nos aconteça [...] é sobre nossos desejos e sobre se queremos ou não sermos responsáveis por nossos desejos”.

A extensão do universo dos desejos é, certamente, inominável. Contudo, citemos o desejo de sair da dimensão tirânica do trabalho assalariado, o desejo de sair da tirania da precariedade trabalhista, das opressões pelos dispositivos biopolíticos de poder e de dessubjetivação para, em uma linguagem não competitiva, encontrar dimensões de gratuidade, de equilíbrio, de cortesia humana. Infelizmente, o lugar do desejo, dos que são explorados, dos que vivem uma situação de precariedade está mais para o desespero, para a depressão e para a impotência moral. Por isso, para Maturana (2001), é tão relevante questionar sobre o que queremos, por tratar-se, também, do problema: o que podemos ainda fazer?

Entendemos que o desafio de Maturana põe em questão as perguntas ‘o que é o ser humano?’ ou ‘quem é o ser humano?’ para uma reelaboração: ‘O que vamos fazer do ser humano?’, ‘O que o ser humano pode esperar?’. E, ainda: ‘O que vamos fazer do agir formativo?’; ‘Do agir pedagógico?’. A lógica toyotista/neoliberal sedimenta uma cultura que transforma o ser humano, a condição humana em favor de uma identidade humana individualista, consumista e competitiva. Todavia, não consegue fazê-lo em definitivo, pois, no transfundo de nosso existir, somos seres reflexivos e, como tais, podemos tomar consciência da forma equivocada e desumana desse modo de viver. Nesse sentir-se consciente, “[...] podemos escolher o curso que nosso viver segue de acordo com nossas preferências estéticas” (Maturana, 2001, p. 181).

Ser humano e experiências formativas por entre envolvimentos criativos e construtivos

As tecnociências, de modo geral, podem contribuir para potencializar o desenvolvimento dos conhecimentos, de modo a tornar as vivências mais dinâmicas. A dinâmica desses conhecimentos possibilita reconfigurar nossas concepções e explicações sobre vida, viver e sobre as realidades. Entretanto, segundo Maturana (2001), isso não significa mudança em nossa natureza humana, pois, como sistemas determinados estruturalmente e abertos à interdependência, toda e qualquer perturbação irá acontecer em respeito “[...] as coerências estruturais do domínio no qual ele ocorre” (Maturana, 2001, p. 191). Nas palavras do autor:

A evolução biológica não está entrando numa nova fase com o crescimento da tecnologia e da ciência, mas a evolução dos seres humanos está seguindo um curso cada vez mais definido por aquilo que escolhemos fazer face aos prazeres e medos que vivemos em nosso gostar ou não gostar daquilo que produzimos através da ciência e da tecnologia. É por isto que a pergunta pelo que queremos é a pergunta central (Maturana, 2001, p. 190).

Assim, as inúmeras problemáticas debitadas às tecnologias não estão, de fato, nas tecnologias, elas não são em si as responsáveis, mas responsáveis são nossas escolhas dos usos efetivados no âmbito das diversas ações humanas. Novamente, as tecnologias não são capazes de modificar sistemas determinados estruturalmente, e nós somos sistemas determinados estruturalmente. Dessa forma, os perigos e suas consequências, observadas e vividas na atualidade contemporânea, estão nas relações instrumentalizadas com a tecnologia, que descartam ou oferecem pouco espaço para reflexões sobre os pressupostos que sustentam a produção e o uso das tecnologias.

Por isso, torna-se oportuno deslegitimar o autoritarismo pedagógico que ainda e muitas vezes reina intocável em grande parte de escolas e de salas de aula. Mais do que obedecer, importa saber o que acontece toda vez que obedecemos. Como e o que é necessário para ativar a obediência? O que está em jogo quando o jogo reitera a obediência? Essas violências pedagógicas podem ser desativadas por meio da reflexão participativa e investigativa, visando transformar as relações estabelecidas em uma perspectiva de poder para, então, produzir outras relações abertas, fluidas, heterogêneas, menos arborescentes e mais rizomáticas. É momento de uma nova flecha-guia que, segundo Foucault (1996 apud Carvalho, 2016, p. 16), requer “[...] não aceitar como verdade o que uma autoridade nos diz que é verdade”. Em uma perspectiva pedagógica, ancorada em pressupostos de envolvimentos e redes de interconexões, educadores e estudantes põem-se em questão e o fazem por entenderem que o pôr-se em questão é um movimento pelo qual cada persona dá a si mesmo o direito de questionar a verdade, questionar também o poder e os discursos de poder. Nessa dinâmica pedagógica, o pôr-se em questão implica a arte da insubmissão voluntária, da reflexão indócil, da profanação e do exercício da impotência (Agamben, 2007, 2013). Se, na pedagogia tradicional, estava-se ciente de que obedecer implicava desertificar o jardim da criatividade, em uma pedagogia de envolvimentos os questionamentos dos estudantes são mais profundos e contundentes, são provocativos e investigativos, abraçam a diversidade e desejam a participação.

Resistir à obediência e ao congelamento da criatividade investigativa convida a um diferente sentir-se e fazer-se educador, como destacado por Guerrini (2010, p. 7),

[...] se não houver entusiasmo pelo novo e uma abertura às novas formas de se obter conhecimento pela sociedade, principalmente através da internet; se não houver um interesse em conhecer melhor esta nova geração que não aceita mais as imposições, os controles e os desmandos de tempos passados; se não houver uma visão integrativa da natureza que permita, efetivamente, um caminhar que se sustente com uma nova ética plural e cósmica em defesa das [...] próximas gerações, aceitando as dimensões lúdicas, espirituais e transcendentais na educação; se não houver uma abertura para o sutil e para a percepção do mesmo no dia-a-dia, entendendo o funcionamento de um Efeito Borboleta3 em sistemas abertos; se não houver uma flexibilidade nos conceitos para se permitir que o outro não seja mais olhado como objeto, mas participe com seu saber peculiar, atuando igualmente como sujeito na formação do novo saber; se não houver a disposição em criar espaços alternativos, físicos ou não, para que o conhecimento da natureza possa emergir de forma integrativa, não há, definitivamente, como ser um educador e um bom professor nestes novos e desafiadores tempos do século XXI.

Eis uma busca por ambientes escolares nos quais se condena o monólogo, a prepotência, a padronização, a dominação pelo medo, a passividade e todas as formas de violência física e emocional, capazes de afetar as experiências de aprendizagem e as experiências formativas.

São desafios de desacomodação e de reconfigurações no modo de sentir-se gente, no modo de relacionar-se com outros, no modo de sentir-se decidindo aprender para muito além do específico de uma licenciatura ou especialidade. Uma metamorfose para tornar-se sensível, para sentir-se incorporado ao seu cabedal específico de conhecimentos e de experiências singulares, o desejo de familiarizar-se com a fuzzy logic, com o multiverso das incertezas, das flexibilidades e da humildade para reconhecer a relevância das experiências de vida e dos conhecimentos construídos por crianças, adolescentes e jovens - estudantes. Importante também predispor-se a abrir mão dos tradicionais pressupostos antropológicos e epistemológicos, como forma de resistência à lógica da formação tecnicista e instrumentalizadora, não visando uma exclusiva formação profissional, mas, acima de tudo, uma formação humana, um humano capaz de reflexões, capaz de pôr-se em jogo e participar.

Nessa diferente vertente formadora e aprendente, já não basta o (uni)verso científico com sua visão e compreensão exclusivista e unívoca de realidade dada a priori. Visão insuficiente por ser reducionista e sustentar-se, epistemologicamente, em pressupostos da lógica simplista e excludente. Ao produzir modelos únicos de explicação, não somente para a realidade natural mas também para realidade social e humana, negam-se as singularidades, as diferenças, as diversidades e as criatividades. Ao exigir a homogeneização e a massificação, a individualidade será negada pela lógica da argumentação racional de que o bem-estar comum se sobrepõe ao bem-estar individual. Essa lógica justifica a pedagogia modelo, a aula modelo, o livro didático modelo, o aluno modelo, a aptidão uniforme de todos os alunos de uma turma estarem preparados para realizarem uma prova em determinado dia e horário. Enfim, justificam o currículo pré-fixado por ser uma falácia que reafirma o objetivismo da modernidade, concebido pelas filosofias positivistas e reducionistas.

A perspectiva é a predisposição para compreender e aceitar uma conjugação epistemológica com conceitos como os de complexidade, incerteza, diversidade, participação e outros emergentes, extraindo deles um potencial suporte para amplificar reflexões com aberturas para diferentes sensibilidades e para compreender melhor a diversidade da vida e do viver humano, não mais sua massificação sempre atrelada à insegurança, ao medo e à obediência cega. Este é um convite forte de Stengers (2015, p. 126) ao escrever que

[...] as pessoas podem se tornar capazes de (re)tomar o gosto pelo pensamento. Ou seja, de descobrir que aquilo que lhes causava aversão, aquilo que se sentiam incapazes, não era o pensamento, indissociável de uma experiência prática concreta, mas o exercício, como efeito, bastante repugnante, de uma abstração teórica que requer que se transforme em anedota o que se sabe e o que se vive.

Eis o porquê não se pode mais persistir na lógica excludente de que muitas experiências com o pensar continuem sendo ignoradas. Todas e, em sua singularidade, são de extrema relevância para demarcar a dimensão dessas experiências, como diferentes experiências formativas. Para distanciar-se do caráter reprodutor, conservador e simplista, refém da mecânica instrumental do poder, que se satisfaz com o mecanismo do descrever, do dimensionar e do cronometrar, cabe à reflexão ampliar tanto os espaços de relações quanto os espaços das transgressões, de modo a retomar a experiência do pensamento atento às qualidades íntimas da vida, do viver e dos fenômenos de qualquer natureza.

Nesses espaços, o outro é levado em consideração, o outro torna-se importante e reconhecido. Então, cabe consensuar com o perfil de educador traçado por Severino (2002, p. 83):

Precisamos de educadores que ensinem o aluno a pensar. Mais do que isto, que despertem o gosto de pensar, que despertem o gosto de aprender e que despertem a experiência insubstituível do diálogo, em que cada um pode se reconhecer como sujeito de ideias, sujeito de palavras, como uma pessoa que tem o que dizer, e que pode dizer, e que será ouvida.

O modelo pedagógico tradicional, exigente de um expert e superior do conhecimento homogêneo, continua recheado de verdades únicas e segue submetendo alunos a atividades e temas insossos, a aulas clássicas e desmotivadoras, a provas infrutíferas, nominadas de avaliação. Trata-se da epistemologia arborescente fiel ao paradigma newtoniano e cartesiano da hierarquização. Segundo Deleuze e Guattari (1995, p. 26):

Os sistemas arborescentes são sistemas hierárquicos que comportam centros de significância e de subjetivação, autômatos centrais como memórias organizadas. Acontece que os modelos correspondentes são tais que um elemento só recebe suas informações de uma unidade superior e uma atribuição subjetiva de ligações preestabelecidas.

Os sistemas arborescentes e hierárquicos contêm o gérmen perverso que destrói a condição ‘curiosante’ da criança, que aliena o fluir pulsante e juvenil que aceita e convive com a desordem, a insubordinação e a criatividade. Ao homogeneizar e massificar, torna-se impeditivo para viver o que há de mais sublime na condição humana, o direito natural de sonhar, de esperançar e de criar utopias.

Diferentemente, em uma dinâmica pedagógica que ousa retomar o prazer pela reflexão e pela investigação participativa, ocorre a ativação do viver. Essa ativação é feita tal qual o fizeram e continuam fazendo os sistemas que fogem do estático, do normalizado e, por isso mesmo, puderam fazer emergir a vida e toda a sua dinâmica. Distante da ordem, distante do ‘tudo já está comprovado’, distante do conhecimento dado e pronto, mas envolto pela desordem, pelo desiquilíbrio e pela efervescência que a criatividade expande seus voos. Na fronteira da incerteza e do desiquilíbrio, a instabilidade é convidativa em vez de ameaçadora, possibilita o jogo participativo enquanto anela por mais criação. Esse diferente ambiente pedagógico e formativo estende-se e expande-se como um rizoma, uma rede, uma ‘teia da vida’4 e do viver convivendo.

Uma epistemologia rizomática encontra sustento nas redes e nos envolvimentos, compraz-se com a despedida das hierarquias, dos fins últimos e absolutos, bem como das lógicas binárias. Para Deleuze e Guattari (1995, p. 37, grifo nosso).

Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo ser, mas o rizoma tem como tecido a conjunção ‘e... e... e...’. Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Para onde vai você? De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis. Fazer tabula rasa, partir ou repartir de zero, buscar um começo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepção da viagem e do movimento (metódico, pedagógico, iniciático, simbólico...). [...] têm outra maneira de viajar e também de se mover, partir do meio, pelo meio, entrar e sair, não começar nem terminar.

O contraditório passa a ser complementar e a ter diferentes princípios, que também concebem as interconexões, a heterogeneidade e a interdependência. O rizoma chama para rupturas e, tal qual a Banda Moebius5, tende ao infinito, ao indefinido e ao indescritível; ele se alonga, vibra na variabilidade, produz o tortuoso, reveza-se em experiências múltiplas e colaborativas porque estão sempre próximas. Uma rede pedagógica em organização rizomática convida para transnavegar nos contextos da complexidade, um tecido não mais prisioneiro da conjunção ‘ou’, do ‘verdadeiro’ ou do ‘falso’, que perdem seu domínio para a conjunção ‘e’, para a participação para o ‘você pode ajudar’, para ‘ao mesmo tempo’. Nas palavras de Deleuze (1992, p. 60):

O E, ‘e… e… e…’. é exatamente a gagueira criadora, o uso estrangeiro da língua, em oposição a seu uso conforme e dominante fundado sobre o verbo ser. Certamente, o E é a diversidade, a multiplicidade, a destruição das identidades. [...] a multiplicidade está precisamente no E, que não tem a mesma natureza dos elementos nem dos conjuntos.

A concepção de rizoma e da complexidade oferecem um outro panorama, uma outra visão de mundo, uma outra perspectiva teórica, uma diferente tessitura conceitual que ajuda na reconfiguração do processo de construção de conhecimentos e de experiências formativas.

Em uma proposta formativa sustentada em princípios de enovelamento, a lógica da exclusão será destituída de sua ‘autoridade’, dando lugar ao ‘Terceiro Incluído’, ao ‘e’ que conjuga colaboração e complementariedade. Podemos falar em Inteligência Coletiva, uma preciosa dimensão de coordenação não hierárquica, exatamente por sinergizar inteligências singulares, trocando e navegando por entre conhecimentos em constante dinâmica de renovação.

Nas palavras de Lévy (1997 apud Strieder, 2004, p. 69):

E justamente aqui entra em cena o papel central da inteligência coletiva [...], a criação de uma sinergia entre competências, recursos e projetos, a constituição e a manutenção dinâmica de memórias comuns, a ativação de modos de cooperação ágeis e transversais, a distribuição coordenada dos centros de decisão, todos estes são fatores que se opõem à separação estanque das atividades, à compartimentação, à opacidade da organização social. Quanto mais se desenvolvem os processos de inteligência coletiva - o que evidentemente pressupõe um novo questionamento de numerosos poderes tão mais amplamente as mudanças técnicas serão absorvidas pelos indivíduos e pelos grupos e tão menores serão os efeitos segregadores ou destrutivos do movimento tecno-social. Ora, o espaço cybernético, dispositivo de comunicação interativo e comunitário, apresenta-se justamente como um dos instrumentos privilegiados da inteligência coletiva.

Simples essa transformação do espaço pedagógico hierárquico em espaço pedagógico de envolvimentos e de participações fazendo emergir a ‘Inteligência Coletiva’, sonhada por Lévy? Certamente que não, pois sobram, apesar do otimismo, questões conflitantes, uma vez que ainda não há consensos estabelecidos para que as inteligências singulares sejam ativadas e conjugadas. Muitas delas continuam sendo anuladas pela persistência reducionista e homogeneizante, com tendência à redução ao menor denominador comum. Os espaços pedagógicos alternativos e sua proposição de aprendizagens alternativas terão de distanciar-se da marginalidade perante uma educação instrumentalizadora que teima na centralização e na padronização.

Efetivar experiências formativas e de aprendizagens colaborativas requer que o educador desenvolva atitudes transdisciplinares, universalizando o direito natural da participação e da valorização dos conhecimentos, das memórias e das histórias individuais, como das experiências do viver de todos e de cada um dos alunos, sem deixar de considerar suas limitações. Dessa forma,

As crianças devem ser levadas a sério em vista de suas expressões, esperanças e desejos, introspecções e temores individuais. Elas desenvolvem suas personalidades individuais no ambiente em que vivem e, ao mesmo tempo, elas mudam continuamente o ambiente além do que se pensa, de acordo com consistentes e bem inspiradas ideias que trazem (Papst, 2005, p. 16).

É esse âmbito formativo que possibilita espaços e ambiências nos quais os alunos vivenciam com intensidade as descobertas e as experiências que a relação com o outro proporciona. Um convite para “[...] tornar todos os saberes acessíveis para todos e em toda a parte” (Follmann, 2005, p. 14).

É no sonho de superar essa fria lógica, desvinculada da vida e da satisfação prazerosa, que Papst (2005, p. 16) credita sua esperança:

O efeito das práticas educativas transdisciplinares poderia servir para que as crianças e os estudantes não sejam paralisados em seu desenvolvimento individual, e com base neste aspecto, o efeito é que eles não serão educados como deformações de seres humanos, com todos os diversos tipos de danos mentais e psíquicos. A vantagem das práticas educativas transdisciplinares é que as crianças, os estudantes e os seres humanos são levados a sério e tratados respeitosamente.

A partir dessa relação de respeito, de aceitação e de abertura para o prazer da descoberta, podemos reativar o renascer de utopias e de sonhos, como prenúncio de que, novamente, é tempo de construir e reconstruir mundos, modos de vida e fazer da educação um celeiro de vidas em realização. Como escreve Stengers (2015, p. 152):

A alegria, escreveu Spinoza, é o que traduz um aumento da potência de agir, ou seja, também de pensar e de imaginar, e ela tem algo a ver com um saber, mas um saber que não é de ordem teórica, pois não designa a princípio um objeto, mas o próprio modo de existência daquele que se torna capaz de sentir alegria. A alegria, poderíamos dizer, é a assinatura do acontecimento por excelência, a produção-descoberta de um novo grau de liberdade, conferindo à vida uma dimensão complementar, modificando assim as relações entre as dimensões já habitadas.

A alegria formativa como dimensão da complexidade, como dimensão complementar da interconexão entre diferentes pessoas, entre diferentes experiências de vida, reconhece humildemente ser e existir um conhecimento aberto para sempre. A alegria formativa, em seu sentido pedagógico, contempla poesia, afeto, ética e estética, profundidade e abrangência. Deixemos Baitello Junior (2018, p. 41) ilustrar:

A perda gradual da luz diurna traz consigo o ganho de outra luz, sem dúvida mais complexa, que é a luz crepuscular, a luz que não se vê com os olhos, mas que é perceptível apenas aos outros sentidos do homem, (como) a audição, o tato, o olfato, o paladar e a propriocepção. E a perda total da luz do dia traz consigo, por exemplo, o ganho infinito do ouvir atento e do tato cuidadoso e quente.

Importa não mais desejar esconder-se atrás de estruturas de poder que oprimem pessoas. Importa sentir-se com disposição para resistir problematizando as verdades últimas, resistir e criar linhas de fuga diante do conforto das dogmáticas convicções asseguradas por estratégias racionais.

Sentir-se aberto e desafiado a gestar diferentes modos de existência sintonizados com a incerteza, o inacabamento, a incompletude como pressupostos para conhecimentos que dialogam com o desconhecido, seja o ser humano seja a natureza. Nessa tessitura complexa e nos interstícios da presença do outro como legítimo outro (Maturana, 2001), acontece o conversar intersubjetivo, inacabado, pois também considera as inúmeras experiências de vida recheadas de sentido, de emocionalidade, como processos autopoiéticos que acontecem porque acontecem.

Considerações finais

O objetivo proposto para a reflexão desejava compreender a existência de implicações epistemológicas, na simbiose humano/tecnociência, capazes de colocar em xeque a razão instrumental e as hierarquias de poder, para então acenarmos a possibilidade da existência de modos de viver baseados na interdependência. Vamos sintetizar a reflexão ressaltando três aspectos desenvolvidos que inferem no tensionamento dessas implicações.

Em primeiro lugar, ressaltamos a importância da parceria/simbiose humano e técnica que remonta aos primórdios do processo humanizador. Mais especificamente, na atualidade, ela assume um auge de ambivalência, podendo significar mais barbárie, poder para controlar e hierarquia, como também revitalizar nossa condição humana. Ampliar as barbáries, ao persistirmos não somente em seu uso como arma de destruição em massa, mas também quando considerada suprema fonte de estratégias a fortalecer a instrumentalização, a competência técnica, a dessubjetivação e a gradativa redução da reflexão acadêmica.

Em outra dimensão, mais horizontalizada, a simbiose humano/tecnociência potencializa avanços nas áreas da produção, aqui de forma ampla e generalizada, em ganhos na saúde, no tempo de vida e, acima de tudo, nos torna mais próximos, mais interconectados e possibilita, pela trama rizomática e enredada, uma verdadeira metamorfose no processo de aprendizagem. No entanto, para essa virada, é preciso revigorar a consciência de que as problemáticas humanas não serão solucionadas pela técnica, pois ela não constrói nossa sensibilidade e nem podemos deixar ao seu dispor a gestação de nossos desejos, escolhas e decisões. Assim, na simbiose humano/tecnociência e, sobretudo, no âmbito pedagógico, importa o desafio da não adaptação a estratégias racionais de controle, mas, sim, de uma dinâmica que ativa, na pessoa, a capacidade de transformar-se.

Como segundo destaque, tendo em vista a supremacia das concepções idealizadas, das concepções de ordem, de fragmentação disciplinar, da objetividade do conhecimento, e a epistemologia arborescente, defendemos a inserção, nos aspectos pedagógicos e educativos, do pensamento complexo, da indeterminação, da desordem, entre outras fontes imprescindíveis de desacomodação, de reflexões questionadoras para fomentar a investigação, a criatividade e a criação no lugar da mesmice repetitiva e ritualizada. Esse desafio convida a mergulhar na diversidade em substituição à homogeneização, na singularidade em substituição à massificação, no desejo de passear nas margens, desejando outras posições, outras conexões e sentindo a ação do conhecer como desafio inalcançável em lugar do resignar-se diante do comprovado, do dito científico e, por isso, verdadeiro e aliado do bem.

Como terceira entrada, indicamos uma defesa em prol da reflexão. Uma reflexão que significa o início da derrocada do movimento escolar fechado que exige preparar pessoas com competências técnicas e funcionais, como forma de adaptar-se e conformar-se às expectativas da lógica toyotista/neoliberal. Deixamos evidenciado que a deformação do espírito reflexivo implica uma gradativa destruição da dimensão e da condição humana, por condenar à morte sua dimensão emocional e desejante, subjetiva e como persona/pessoa. No entorno da simbiose humano/tecnociência, conjugada com a emergência das concepções de complexidade, autopoiese, desordem e caos criador, dar-nos-emos conta da importância do enunciado de Adorno (1995, p. 141) sobre a violência existente nos mecanismos de “[...] modelagem das pessoas, porque não temos o direito de modelar as pessoas a partir do seu exterior”.

Ser humano, tecnologia e ciência podem fixar parcerias de priorização do sentido humano da ação pedagógica e educativa, tanto para tornar imprescindíveis a singularidade quanto a diversidade.

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9NOTA: Os autores foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

Recebido: 22 de Março de 2020; Aceito: 30 de Junho de 2020

* Autor para correspondência: E-mail: striederroque@gmail.com

INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES Roque Strieder: Doutor em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba - (UNIMEP). Temáticas de estudo: Educação e Formação Humana; Ética e Educação. ORCID: http://orcid.org/00000-0002-0007-7628 E-mail: striederroque@gmail.com

Anderson Luiz Tedesco: Pós-doutor em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Comunitária da Região de Chapecó - (PPGE/Unochapecó). Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - (PPGF/PUCPR). Professor do Programa de Pós -Graduação em Educação da Universidade do Oeste de Santa Catarina - (PPGEd/Unoesc). Participa do Grupo de Pesquisa: REDE SUR PAIDEIA da Universidade Tuiuti do Paraná (PPGE/UTP) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Filosofia e Educação (GEPeFE) do (PPGEd/Unoesc). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7425-1748 E-mail: anderson.tedesco@unoesc.edu.br

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