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Acta Scientiarum. Education

Print version ISSN 2178-5198On-line version ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.45  Maringá  2023  Epub Aug 01, 2023

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v45i1.58717 

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS

Formação continuada e o fazer pedagógico docente: ressignificação das práticas alfabetizadoras?

Educación continua y práctica pedagógica docente: la resignificación de las prácticas de alfabetización?

Ilsa do Carmo Vieira Goulart1  * 
http://orcid.org/0000-0002-9469-2962

Iduméa de Souza Fernandes Ramos2 
http://orcid.org/0000-0003-1733-566X

Giovanna Rodrigues Cabral1 
http://orcid.org/0000-0002-4780-516X

1Departamento de Gestão Educacional, Teorias e Práticas de Ensino, Universidade Federal de Lavras, Av. Norte UFLA, Cx Postal 3037, 37200-000, Lavras, Minas Gerais, Brasil.

2Prefeitura de Heliodora, Heliodora, Minas Gerais, Brasil.


RESUMO.

Este artigo objetiva refletir sobre a formação continuada para alfabetizadores, apontando as aproximações e os distanciamentos entre as orientações no âmbito do programa Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa e o fazer pedagógico. Para isso, realizou-se uma pesquisa de campo, com abordagem qualitativa, a partir de entrevistas com alfabetizadoras participantes da formação no âmbito do programa. Apoiou-se nos estudos de Tardif, Nóvoa, Schön, Zeichner e buscou-se para o tratamento dos dados apoio na Teoria Fundamentada nos Dados. Identificou-se pontos de convergência, compondo três dimensões de análise: percurso de formação, concepção de alfabetização e letramento e práticas de ensino. Os resultados indicam que o percurso de formação das alfabetizadoras se mostra atravessado por múltiplos saberes advindos da formação, da experiência que repercute no fazer pedagógico.

Palavras-chave: formação docente; saberes docentes; professor alfabetizador; fazer pedagógico

RESUMEN.

Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre la educación continua para los maestros de alfabetización, señalando los enfoques y las distancias entre las pautas dentro del programa Pacto Nacional para la Alfabetización en la Edad Adecuada y la práctica pedagógica. Para esto, se realizó una investigación de campo, con un enfoque cualitativo basado en entrevistas con profesores de alfabetización que participan de la formación en el ámbito del programa. Subsidiada en los estudios de Tardif, Nóvoa, Schön, Zeichner. La investigación buscó el tratamiento del soporte de datos en Grounded Theory. A partir de los discursos dados, se identificaron puntos de convergencia, que comprenden tres dimensiones de análisis: camino de capacitación concepción de alfabetización y alfabetización y prácticas de enseñanza. Los resultados de la investigación indican que el camino de la formación de los profesores de alfabetización se cruza con múltiples conocimientos derivados de la formación, de la experiencia que tiene repercusiones en la práctica pedagógica.

Palabras clave: formación docente; enseñanza del conocimiento; profesor de alfabetización; hacer pedagogico

ABSTRACT.

The aim of this paper is to reflect on continuing education for literacy teachers, highlighting the convergences and divergences between the National Pact for Literacy at the Right Age guidelines and pedagogical practice. A qualitative field investigation based on interviews with literacy teachers engaged in the program was conducted for this purpose. It was founded on the research of Tardif, Nóvoa, Schön, and Zeichner and sought to treat data using Grounded Theory. Points of convergence were identified across three areas of analysis: training path, literacy and alphabetization conception, and teaching practices. The findings indicate that multiple knowledge from training and experience intersect the training path of literacy teachers, having an impact on pedagogical practice.

Keywords: teacher training; teacher knowledge; literacy teacher; pedagogical practice

Introdução

Nas últimas décadas, a inquietação com o direito à alfabetização tem ocupado as discussões sobre a educação e o fracasso escolar nas esferas municipal, estadual e federal, demarcado pelo delinear de políticas públicas com o intuito de garantir a concretização desse direito. Mediante a tal perspectiva, Gatti (2008) aponta que, depois da Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional (LDB) (Lei n.º 9.394, 1996), os órgãos federais dedicaram atenção ao fomento de propostas de educação continuada e suas metodologias. A intensificação do processo formativo apresentaria sua consolidação com a publicação da Resolução n.º 2, de 1.º de julho de 2015, que definiu as diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial em nível superior e para a formação continuada, considerando que consolidar as normativas voltadas para a formação de profissionais do magistério é “[...] indispensável para o projeto nacional da educação brasileira, em seus níveis e suas modalidades da educação, tendo em vista a abrangência e a complexidade da educação de modo geral e, em especial, a educação escolar inscrita na sociedade” (Resolução n. 2, 2015). No entanto, antes disso, no cenário nacional, iniciativas voltadas para a alfabetização, com foco em políticas públicas direcionadas à formação de professores alfabetizadores já se faziam presentes, ações como o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (2001), o Pró-Letramento (2008) e o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (2012a, 2012b), que se configuraram medidas para uma reconfiguração do panorama formativo docente no Brasil.

A última iniciativa voltada para a formação continuada de professores que figurou em âmbito nacional foi o Pacto Nacional de Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). Instituído pelo Governo Federal, em 2012, por intermédio do MEC, o PNAIC antecipou uma das ações do Plano Nacional da Educação (PNE), com a finalidade de garantir a alfabetização plena de crianças até oito anos de idade em todo o território brasileiro, atendendo, assim, ao elencado no inciso II, do art. 2º do Decreto nº 6.094 (2007), que destacou as diretrizes do Compromisso Todos pela Educação, estando alinhada com a meta cinco do PNE (Lei nº 13.005, 2014): “[...] alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do terceiro ano do Ensino Fundamental”.

Dentre os eixos que compõe o PNAIC, evidenciamos a formação continuada de professores que atuam nas escolas públicas na etapa de alfabetização, uma vez que a docência enquanto ação educativa envolve conhecimentos específicos, interdisciplinares e pedagógicos e precisa de estudos contínuos, trocas entre pares, reflexões e mudanças. Nesse sentido, a formação no âmbito do programa privilegiou encontros presenciais na escola de atuação do professor, com estudos e atividades práticas, buscando o desenvolvimento de ações subsidiadas pela realidade local. Os cadernos do PNAIC corroboraram para pensar uma educação que respeitasse o direito de aprendizagem das crianças em Língua Portuguesa, Matemática e em outros componentes, com ênfase na conquista de uma educação de qualidade. Desse modo, o programa primou por uma formação continuada que contribuísse não só para a teorização das professoras, mas que favorecesse o diálogo sobre sua própria prática, a interação com seus pares, compreendendo a realidade onde atuavam (Melo, 2015; Santos, 2017; Pereira, 2018).

Frente às iniciativas governamentais direcionadas ao processo formativo dos profissionais do magistério, este artigo objetiva refletir sobre a formação continuada para professores alfabetizadores, apontando as aproximações e os distanciamentos entre as orientações no âmbito do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (2012a, 2012b) e o fazer pedagógico de docentes que participaram dessa formação.

Para tanto desenvolvemos uma pesquisa de campo, com abordagem qualitativa, sob procedimentos metodológicos de análise da teoria fundamentada nos dados, a partir da realização de entrevistas semiestruturadas. Com base nas respostas concedidas foi possível imergir na ação reflexiva do contexto mais próximo às situações reais de ensino, planejadas e desenvolvidas em turmas de alfabetização. Para isso, organizamos três seções argumentativas: uma referente à formação docente e os princípios norteadores da formação continuada; outra sobre as concepções de alfabetização e de letramento de programas de formação; e, por fim, uma reflexão com base nas entrevistas, em busca da compreensão do processo formativo de professoras alfabetizadoras, de modo a elencar os pensares sobre as práticas educativas e os saberes acionados ou construídos no fazer pedagógico.

Formação docente: princípios norteadores da formação continuada

As iniciativas de formação docente, inicial e continuada, em âmbito nacional, com o propósito de qualificar a ação docente, visam a melhoria da prática educativa e, consequentemente, dos resultados avaliativos da educação básica. O professor torna-se o centro do processo para a conquista de uma prática reflexiva, que expressa a sua identidade e profissionalidade.

Ao conceituar ‘professor reflexivo’, Schön (2000) apresenta três situações de reflexão sobre a própria prática que decorrem de uma prática reflexiva na ação, sobre a ação e uma reflexão sobre o ato de se refletir na ação. Schön (2000) considera que o que antecede o ato reflexivo é o conhecimento na ação, visto que, ao observar algo e refletir sobre algumas o fazer pedagógico, efetua-se uma descrição sobre esse conhecimento na ação, ou seja, o conhecimento tácito. A descrição desse conhecimento dependerá da apropriação que cada sujeito tem da linguagem. Nesta direção, Zeichner (2008) discute que o ato reflexivo remete ao conhecimento de que os professores devem exercer, de modo ativo na formulação dos propósitos e finalidades de seu trabalho e de que devem assumir funções de liderança nas reformas escolares. Para Zeichner (2008) todos os professores podem ser considerados como reflexivos, entretanto o que os distinguem está no como e para que eles refletem sobre prática.

Afinal, no processo de formação docente, a centralidade está na pessoa do professor, na medida em que, se possibilita compreender o significado do desenvolvimento pessoal no processo profissional do trabalho docente. O eixo fundante da formação do sujeito docente possibilita sublinhar a importância de compreendê-lo como sujeito de saberes, construtor de sua própria história nas experiências vividas, nas ações formativas e na profissionalização.

O trabalho docente, no cotidiano do fazer pedagógico, em meio ao planejamento e ações de aplicabilidade se mostram impregnadas de saberes que, de acordo com Tardif (2002, p. 19), trata-se de “[...] um saber plural e temporal [...]”, de uma sabedoria que marca o fazer adquirido no contexto de sua história de vida, de sua formação e de sua atuação profissional.

Antes mesmo de ingressar na carreira do magistério, o professor já sabe o que é o ensino, o que é ensinar, decorrente de sua história escolar anterior, ou seja, de sua própria vivência como estudante. Segundo Tardif (2002, p. 20), “[...] muitas pesquisas mostram que esse saber herdado da experiência escolar anterior é muito forte, que ele persiste através do tempo e que a formação universitária, não consegue transformá-lo nem muito menos abalá-lo”. Assim, no exercício do trabalho docente, o professor mobiliza diferentes saberes que são definidos por Tardif (2002, p. 36) “[...] como um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais”.

Ao entender a formação docente como um processo de ensino e de aprendizagem, que se elabora e reelabora no exercício da prática docente, determinados pelo amálgama de saberes, experiências anteriores que se juntam a outros novos saberes e novas experiências com os quais estabelecem relações e interações, percebe-se que ela acontece num movimento contínuo e dinâmico, compreendendo o professor como sujeito ativo e atuante, marcado também pelo aprendizado. Na visão de Freire, os papéis de se ensinar e de se aprender se deslocam, e é nessa migração de funções que se constitui a docência, pois: “[...] não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (Freire, 2005, p. 23).

O professor é visto como um sujeito que aprende tanto quanto ensina, e por isso encontra-se em constante relação com diferentes saberes, que o constitui como único e singular, ao mesmo tempo, múltiplo e plural. Deste modo, no fazer pedagógico observa-se uma relação de vivências e experiências que o integra. Pode-se dizer que o professor constrói sua identidade no exercício da atividade docente, no confronto de saberes experienciais, conceituais e profissionais. Para Nóvoa (2013, p. 16) “[...] a identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão”.

Nesse viés argumentativo, emerge a necessidade de não apenas olhar para a prática educativa do professor, mas de dar visibilidade àquilo que o professor compreende sobre o fazer pedagógico, a partir dos subsídios teórico metodológicos disponibilizados pela formação continuada. Cada sujeito-docente possui uma identidade que reflete no ato de ser professor, que decorre de uma interlocução entre o pessoal e o profissional. Segundo Nóvoa (2013, p. 17) “[...] a maneira como cada um de nós ensina está diretamente dependente daquilo que somos como pessoa quando exercemos o ensino”. Cada um tem uma maneira particular de ser, de se fazer pedagogicamente, de se organizar, de se movimentar na sala de aula e de se dirigir aos alunos, que não está esvaziada de suas experiências socioculturais, acadêmicas e psicológicas.

Sendo assim, ao vislumbrar analisar as escolhas que caracterizam a prática pedagógica e as relações de saberes construídos com as orientações dos documentos oficiais, não se pode olhar para prática de modo simplificado, sem menção à identidade docente, da amálgama que a constitui. O olhar recai sobre a pessoa-profissional para entender o fazer pedagógico e as escolhas que tornam particularizada a atuação docente. Goodson (2013, p. 71, grifo do autor) defende que as experiências vivenciadas e o ambiente sociocultural tornam-se “[...] ingredientes-chave da pessoa que somos, do nosso sentido do eu. De acordo com o ‘quanto’ investimos o nosso ‘eu’ no nosso ensino, na nossa experiência e no nosso ambiente sociocultural assim concebemos a nossa prática”.

Não há neutralidade na prática educativa, a qual se mostra balizada por diferentes saberes e pela inconclusibilidade do sujeito humano, pois, de acordo com Goulart (2016, p. 709), “[...] a condição humana circunda-se da ideia de inconclusibilidade, de certa descontinuidade metódica e sistemática”. Diante disso, pode-se dizer que a formação docente perpassa um processo demarcado não por sequências lógicas, seja em relação ao conhecimento científico, ao conteúdo curricular, seja em relação à operacionalização das ações, à elaboração e desenvolvimento de atividades pedagógicas.

A formação docente se configura a partir dessa realidade de inacabamento da pessoa professor, que se faz e refaz intermitentemente num processo reflexivo (Freire, 2005). De modo análogo, Goulart (2016, p. 709) assinala que a “[...] formação docente se configura a partir de um movimento contínuo de ação e reflexão, este, que articula atos e atuações num âmbito de aproximações entre a experiência do cotidiano escolar e a concepção teórica”.

Concepções de alfabetização e de letramento e os programas de formação

Entendemos que saber ler e escrever é o resultado do processo de alfabetização e que, antes de a criança alcançá-lo, passa por etapas de construção do sistema alfabético ortográfico de escrita. A abordagem e o trabalhos com as capacidades elencadas no âmbito de programas, como o Pró-letramento, apontaram para a ideia de que o domínio e o uso da língua escrita trazem consequências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas, linguísticas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o indivíduo que aprenda a usá-la.

Nesse mesmo sentido, o PNAIC não se baseou em orientações pedagógicas de capacidades e habilidades cognitivas, mas optou por proposições didático-pedagógicas a partir dos direitos de aprendizagem que destaca a necessária articulação entre os processos de alfabetização, ao mesmo tempo em que prepara e capacita as crianças para o exercício da cidadania e da integração social, contextualizando as experiências formativas de uso da linguagem, ou seja, envolvendo práticas de letramento. Alfabetizar na perspectiva apresentada é assegurar à criança o domínio do sistema alfabético envolvendo a escrita, a oralidade, a leitura autônoma de textos envolvendo os diferentes gêneros que circulam nas esferas sociais. Assim, a concepção adotada no âmbito do PNAIC se pauta na alfabetização na perspectiva do letramento, o que compreende a necessidade de a criança dominar o sistema de escrita alfabética (SEA), juntamente, com o desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em diversas situações comunicativas, de modo autônomo (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, 2012a, 2012b).

Reforçando esse entendimento, o programa priorizou uma proposta pedagógica a partir do acesso a diferentes gêneros textuais, que dialoguem com práticas de apropriação do SEA, conforme apresenta Goulart (2006), explorando-os, percebendo suas características, sua organização, os suportes onde estão inseridos, além das percepções quanto a decodificação e codificação (grafemas e fonemas) da língua. Outro aspecto de ênfase pedagógica direcionou-se à aprendizagem da consciência fonológica, que permitem olhares sobre os elementos menores do texto, como as palavras, as sílabas e as letras. Entretanto, essa aprendizagem, de acordo com Morais, (2012, p. 76), precisa ser pensada a partir da “[...] criação de metodologias que auxiliem o aprendiz a reconstruir aquelas propriedades do SEA, ao mesmo tempo em que ele vive práticas letradas”.

Nessa direção, os processos descritos pelos documentos oficiais envolvem a alfabetização e o letramento, que numa ação pedagógica constituem processos diferentes, porém complementares e indispensáveis. Não se trata, portanto, de escolher entre um ou outro processo, mas integrar ambos na ação pedagógica, ou seja, alfabetizar letrando. Uma vertente da prática alfabetizadora que, conforme aponta Soares (2018, p. 349), “[...] não se pode reduzir a aprendizagem da língua escrita a apenas a faceta linguística, considerando-a como condição e pré-requisito para a interação com textos reais e para a produção de textos reais”. A autora ressalta a importância do ensino dos elementos menores do texto como “[…] grafema-fonema - a faceta linguística da aprendizagem da escrita […]”, mas que esse ensino precisa ser combinado com outros componentes essenciais do processo de aquisição da língua (Soares, 2018, p. 349).

Assim compreende-se o desenvolvimento paralelo da faceta linguística (reconhecimento de palavras), à faceta interativa, denominada como compreensão. Soares (2018, p. 350), aponta que essa tessitura apresentada pela autora precisa ser permeada pela faceta sociocultural: “[...] atividades das facetas interativa e linguística desenvolvidas em contextos em que a língua escrita esteja inserida em situações reais de seu uso social, marcadas pelo contexto cultural em que ocorrem”.

Nessa perspectiva, os materiais do PNAIC apresentaram concepções próximas, destacando a alfabetização e o letramento como processos interligados, de interação entre o sujeito e o objeto de estudo, no caso a língua. A compreensão, a valorização da cultura escrita na sociedade, (faceta sociocultural) seus modos de produção e circulação constituem fatores e condições essenciais, trazidas pelos documentos, para a inserção dos estudantes no mundo letrado. A interrelação entre as múltiplas facetas, a faceta linguística ‘necessária, mas não suficiente’ - de acordo com Soares (2018) - a faceta sociocultural e a interativa, constituem o alfabetizar letrando, defendido por Soares (1998, 2017, 2018).

Os direitos de aprendizagem presentes no PNAIC comtemplaram as facetas propostas por Soares (1998, 2017, 2018) ao apresentar em todos os eixos de trabalho da Língua Portuguesa - leitura, escrita, produção, oralidade e análise linguística -, uma condução ao processo de se alfabetizar letrando, num trabalho que se iniciava no primeiro ano, porém com aprofundamento, retomadas e consolidações de ações nos anos seguintes. Entende-se, portanto, que o trabalho com a escrita, a alfabetização e o letramento devem perpassar todas as atividades que são desenvolvidas na escola, num constante planejar, sequencial, com objetivos claros, obedecendo a uma dinâmica, uma organização pedagógica, uma rotina.

Aspectos metodológicos e discussão dos resultados

Com foco na reflexão sobre o fazer pedagógico docente, desenvolvemos uma pesquisa de campo, de abordagem qualitativa, apoiada na teoria fundamentada nos dados (TFD), conforme Cassiani, Caliri, e Pelá (1996) para tratamento dos depoimentos cedidos em campo. Para a coleta de dados utilizamos a técnica de entrevista semiestruturada com sete professoras alfabetizadoras, da rede de ensino municipal de uma cidade do sul de Minas Gerais, selecionadas por participarem do programa PNAIC, das quais obtivemos o aceite para participar da pesquisa.

Adotamos como procedimento de análise de dados a TFD, que se constitui a partir de três etapas investigativas que podem ocorrer simultaneamente: coleta de dados, codificação/categorização e teorização. Cassiani et al. (1996, p. 78) descrevem que essa Teoria se trata de “[...] uma metodologia de campo que objetiva gerar construtos teóricos que explicam ação no contexto social sob estudo”. Neste sentido, procuramos processos que estão acontecendo na cena social, partindo de conjecturas, que “[...] unidas umas às outras, podem explicar o fenômeno, combinando abordagens indutivas e dedutivas” (Cassiani et al., 1996, p. 78).

As sete professoras alfabetizadoras entrevistadas possuem formação inicial do curso técnico de Magistério, na modalidade normal nível médio, cursado no próprio município. Essas professoras ingressaram na carreira do magistério por meio de concurso público municipal e possuem uma margem de experiência que varia entre 6 a 15 anos de atuação na profissão. A diplomação de ensino superior compreende os cursos: Normal Superior, Letras, Geografia e Veredas, realizado em outros municípios e em universidades distintas. As especializações, de igual modo, se diversificam. Outro ponto referiu-se ao tempo de atuação na alfabetização, que variou de 9 a 15 anos.

As entrevistas foram realizadas individualmente, gravadas e transcritas. Para o processo de (re)leitura das respostas, buscou-se o sentido do todo, embora com recortes de fragmentos mais representativos na predominância de pontos convergentes, a partir dos quais atribuiu-se as seguintes categorias de análise: (a) percurso de formação, (b) concepção de alfabetização e letramento, e (c) práticas de ensino.

Percurso de formação demarcados na fala das professoras

A identificação do percurso de formação referiu-se às respostas que demarcaram as experiências acumulativas, nos cursos de formação inicial e continuada, bem como das informações sobre as pessoas que inspiraram o fazer docente ou das experiências pessoais que impactaram a sua prática educativa de alguma maneira. No decorrer da entrevista foi perguntado às professoras quais os saberes se articulavam no atendimento à demanda de sua prática educativa.

Assim, observamos um diálogo com diferentes saberes na construção do trabalho docente viabiliza ações pensadas, planejadas, sistematizadas para atender as reais necessidades do desenvolvimento humano, como descrito na fala da P1 ao dizer: “[...] vou juntando tudo de bom e tento aplicar na sala de aula [...]”, evidencia-se que ao planejar suas aulas, a professora seleciona os conhecimentos que considera ‘bons’, ou seja, que avalia como relevantes para os alunos, de acordo com suas concepções de ensino e de aprendizagem (Entrevista, P1, 2018).

Logo, os conhecimentos teóricos e práticos se complementam constituindo o aporte para o agir docente, como se percebe na resposta de P.5: “Então, eu penso que eu sou mais do lado prático, da experiência, eu percebo que dá certo, porém, você tem que estar conciliada com a parte acadêmica, e eu fico muito satisfeita quando já no meu trabalho vou ler alguma coisa e percebo exatamente que é aquilo, então, eu penso... poxa acertei, é esse o caminho”. (Entrevista, P5, 2018).

Na fala de P.2, percebemos menção à troca de experiências entre os pares como processo formativo: “Aprende com o tempo sim, com certeza, com o tempo, com as pessoas, com outras professoras, [...] a pessoa fala que fez uma determinada atividade e deu certo, a gente tenta, pois nem sempre aquilo que você aprendeu dá certo” (Entrevista, P2, 2018).

A atuação docente ocorre por meio da reflexão e da ação, ou melhor, da práxis pedagógica, que possibilita antes pensar a realidade e promover mudanças e transformações nessa realidade. A dialogicidade entre os conhecimentos teóricos e a realidade constitui a práxis, conforme apresentado pelo MEC, no âmbito do programa Escola de Gestores (Escola de Gestores da Educação Básica, 2020), “[...] práxis, compreendida como prática social transformadora, não se reduz ao mero praticismo, tampouco a pura teorização. [...] A compreensão da realidade, sustentada na reflexão teórica é condição para a prática transformadora, ou seja, a práxis”.

Nas experiências formativas foram citadas a primeira formação e os cursos de formação continuada como elementos de acesso a conhecimentos que favoreceram a atuação docente. A entrevistada P.6 destaca:

[...] eu pego com o que eu aprendi nos cursos que a gente fez, foram muitos cursos, muito bons, então, eu vou juntando tudo de bom e tento aplicar na sala de aula, além da troca de figurinhas com os colegas; [...] também tem os educadores que a gente lê, Magda Soares, eu gosto muito, da parte do letramento dela, que eu considero nas minhas aulas [...] (Entrevista, P6, 2018).

Na fala a professora salienta a importância dos cursos ao longo da sua carreira, o que permite pensar nas formações e conhecimentos obtidos, seja na formação inicial ou continuada, nos cursos de uma carga horária mais extensa, em relação aos demais cursos ministrados pelo município que, de certa maneira, impactaram na prática docente. Nesse sentido, P1 aponta que aproveitou as experiências desenvolvidas no âmbito do PNAIC e P4 complementa:

[...] o PNAIC ensinou bastante coisa para gente na parte de alfabetização, porque não ficou só na parte teórica, vinha os livros com os jogos e esses jogos eram muitos, a gente adaptava à turma, e deu muito certo; tanto na alfabetização no caso da escrita e da leitura, e na matemática tinha muitos jogos... muitos joguinhos de operações..., foi muito bom. (Entrevista, P1, 2018)

A fala da P4 atribui importância à formação continuada para a atuação docente e, principalmente, uma formação que agrega valores não apenas teóricos, mas práticos e a troca de saberes com outros professores, como na fala da P4:

[...] então, a gente segue um planejamento, e esses saberes vem dos cursos que a gente sempre tem na escola, tem também coisas que eu sempre leio sobre alfabetização e, também, mais da experiência, experiências dos anos trabalhados e também da troca com os colegas (Entrevista, P4, 2018).

Assim, observamos nas falas que o fazer pedagógico se mostra pautado ora nas ‘experiências formativas’, referente à formação inicial e os cursos de formação continuada como elementos relevantes para a atuação docente. Ora na ‘experiência acumulada’, o tempo de trabalho exercido traz a ideia de que se aprende pelo vivenciado, pelo que se observa, pela convivência com outros profissionais.

Concepção de alfabetização e de letramento

Ao perguntar às professoras quais conceitos teóricos consideravam para elaborar suas atividades, seu plano de aula ou de ensino, foi solicitado que descrevessem sua ação docente, enquanto professoras alfabetizadoras, como: as metodologias, os recursos didáticos utilizados, a rotina e a influência das formações na sua prática. Observamos que ora as respostas mantinham relação às orientações propostas pelos documentos oficiais ora às vivências ou experiências pessoais, de modo a sinalizar as concepções que nortearam as práticas de alfabetização e de letramento no cotidiano profissional das professoras.

As escolhas e formas de organizar as atividades, a rotina da sala de aula, a seleção dos materiais didáticos e a maneira de utilizá-los deixaram transparecer os conhecimentos adquiridos nos cursos de formação continuada, como na resposta de P1:

Eu geralmente gosto de trabalhar com música, com histórias, com textinhos pequenos [...] eu sempre trabalho assim com eles, abordando gêneros como parlendas, trava línguas, diversificado o repertório de textos, mas dentro deles trabalho com atividades para apropriação do sistema de escrita, por exemplo, tirar a palavra-chave, marcar os espaçamentos, contar as letras, apontar as letras inicial, letra final (Entrevista, P1, 2018).

Percebe-se na fala da P1 a proximidade das orientações pautadas nos direitos de aprendizagem previstos nos eixos da oralidade e da análise linguística presentes na formação do PNAIC, recorrendo a atividades lúdicas na manipulação de textos como parlendas, trava-línguas e músicas para o trabalho sistemático de ensino da língua. Da mesma forma que na fala de P3:

[...] eu utilizo todas as metodologias. Quando eu estou trabalhando que eu vejo que está precisando reforçar alguma coisa, a gente já vai atrás de jogos, de materiais diferentes. Se eu vejo que está precisando da interpretação de texto, já corro atrás de textos de vários gêneros textuais (Entrevista, P3, 2018).

As propostas descritas pelas professoras permeiam os eixos da análise linguística, da oralidade, mas o eixo da produção de texto foi pouco mencionado pelas alfabetizadoras. Talvez isso aconteça pela crença de que o aluno só pode escrever textos após estar alfabetizado, quando na verdade, as propostas apontam a importância do professor como escriba em práticas escritoras na alfabetização. De acordo com o PNAIC (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, 2012a, p. 9) “[...] a escolha do que a criança irá escrever irá depender da situação comunicativa proposta pelo professor”. A proposta pedagógica de produção de texto aparece sob a orientação de que ocorra desde as primeiras semanas de aula. Para tanto, o professor deveria compreender e diferenciar que a escrita não é sinônimo de cópia e que se pode incentivar práticas de escrita se colocando como escriba, ou seja, como aquele que registra as produções dos alunos.

O trabalho com textos, realizado pelas professoras, abrange a diversidade textual, conforme se observa na fala de P2 “[...] trabalho poesia, falo bastante sobre os gêneros textuais, tudo o que eu levo eu pergunto se eles sabem, qual é o gênero que pertence àquele texto, trabalho suas características e recorrências [...]”. Pode-se destacar que ocorre um fazer pedagógico comprometido em propiciar à criança o contato com diferentes gêneros textuais nas práticas das professoras entrevistadas. No entanto, não fica claro nas abordagens das professoras um trabalho sistematizado de produção de texto. Na fala da P7 evidencia uma perspectiva mais associativa da escrita:

Um texto menor. Primeiro lugar, pequeno, bem pequeno. [...] Este texto tem 10 linhas. Vamos enumerar este texto? Sim. É... O que que é título? Então vamos pintar o título de amarelo. Primeiro, para ele saber o que que é título. Já vai memorizar aquilo. Depois eu vou trabalhar soletrando, palavra por palavra do texto com aquela criança. Um exemplo: a bola é amarela. A-, b-o bo, l-a la. A bola. É a, m-a ma, r-e re, l-a la. Amarela. Eu leio o texto inteirinho assim (Entrevista, P7, 2018).

Na resposta se evidencia proximidades com a concepção do letramento e os direitos de aprendizagem propostos pelo programa de formação do PNAIC, contemplando o trabalho com todos os eixos da Língua Portuguesa. A ênfase do ensino nas propriedades do sistema de escrita, sobretudo no 1º ano, é fundamental, no entanto, para ler e produzir textos com autonomia, de acordo com o PNAIC é necessário que os alunos consolidem as correspondências grafofônicas, ao mesmo tempo em que vivenciem atividades de leitura e produção de textos. (Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, 2012a, 2012b). Nesse sentido, Soares (2017) sintetiza que é fundamental que a alfabetização se desenvolva num contexto de letramento, desde a etapa inicial da aprendizagem da escrita, com participação em eventos de leitura e escrita, com consequente desenvolvimento de habilidades para o uso social da leitura e da escrita.

Práticas de ensino

Para verificar se as formações vivenciadas no PNAIC, no âmbito municipal, contribuíam para a superação das dificuldades relacionadas à alfabetização, questionamos sobre o que as formações trouxeram de relevante e significativo para as práticas educativas desenvolvidas, o que fica evidente nas respostas da P.2:

[...] olho o livro didático, mas não sigo todo dia, [...], vejo o que dá para utilizar no livro, mas pesquiso bastante na internet, [...] vou intercalando as aulas de leitura, e no mais a rotina, leitura, interpretação, a parte de ortografia [...] eu estou sempre fazendo cartaz [...]. O PNAIC não utilizei, não. Não, fiz nada. [...] O que foi falado para mim lá no início, era sobre a leitura deleite (Entrevista, P2, 2018).

Entendemos que a prática docente requer que o professor domine um repertório de saberes. Assim, o saber docente se compõe, na verdade, de vários saberes provenientes de fontes distintas. Tomando, especificamente, o caso da formação continuada em serviço, percebemos a necessidade de destacar a relevância do reconhecimento e valorização dos saberes docentes, em especial daqueles provenientes da experiência adquirida no contexto escolar, considerados por Tardif (2002) como núcleo vital desses saberes. Nesse sentido, a fala da P2 apontou para uma valorização das próprias vivências, como determinantes para a constituição do fazer pedagógico.

Outras respostas demonstraram proximidade com as propostas pedagógicas dos documentos, no âmbito do PNAIC. Houve menção à leitura deleite, utilização de jogos, ao brincar e à interdisciplinaridade, pelas professoras entrevistadas. Porém, não apareceu nas falas informações que revelassem ou definissem a alfabetização e as práticas que envolvessem a exploração da consciência fonológica e de aprendizagem das propriedades do sistema de escrita. Tais conhecimentos foram abordados pelos programas como fundamentais para que o aluno se aproprie das capacidades de leitura e de escrita, embora, em algumas falas, tenha ficado evidenciado o trabalho pedagógico voltado para a aprendizagem de fonemas e grafemas. Como assinala Soares (2018), trata-se de uma faceta linguística necessária, mas não suficiente para o alfabetizar letrando.

Sobre a relação teoria e prática P4 destacou que a formação do PNAIC não ficou só na teoria, contribuindo com atividades práticas e lúdicas como os jogos.

[...] no PNAIC não ficamos só assim na parte teórica, tivemos contato com os livros com os jogos e esses jogos eram muitos, a gente aprendia a usar e os adaptava a turma, e deu muito certo, tanto na alfabetização no caso do trabalho sistemático com a escrita e a leitura, como na matemática, com joguinhos de operações [...] (Entrevista, P4, 2018).

As práticas de ensino destacadas pelas professoras foram bastante variadas, oscilando entre atividades pautadas em uma concepção mais tradicional de ensino - com base em propostas teórico-metodológicas que partem da concepção pautada na memorização e na repetição com base na aprendizagem do código linguístico - e uma postura mais construtivista, ou interacionista - com base em propostas que consideram o processo de construção da criança sobre a escrita, a partir da interação com textos -, como é evidenciado nas falas das professoras. O professor P1 deixou transparecer que faz um trabalho dialógico, conversa com os alunos, buscando conhecer os conhecimentos que os alunos trazem sobre os assuntos trabalhados e seus saberes no geral. Um fazer pedagógico que procura conhecer o contexto social de aprendizagem, por ‘não levar nada pronto’, por trazer uma ideia de construção de propostas pedagógicas junto aos alunos. Nessa prática depreende-se que o eixo oralidade contido nas orientações do PNAIC também foi valorizado pela professora, uma vez que estimulou a capacidade de participação dos estudantes nas interações em sala de aula.

Formas variadas de organização dos alunos em sala foram estratégias que P1 utilizou, agrupando-os em pares para que ocorresse mais interação entre eles, a adesão ao recurso de atividades coletivas ou em grupos. P2 também utilizou dessa estratégia de agrupamento para que um aluno auxiliasse quem apresentasse maior dificuldade durante as atividades. Ainda, procurou utilizar recursos e atividades variadas, sendo evidenciado nos relatos a presença do trabalho com músicas, vídeos, rádio, jogos, cantinho da leitura e exploração de diversos gêneros textuais, sugestões pedagógicas trazidas pelos documentos oficiais de formação no âmbito do Pró-Letramento e do PNAIC.

Outras marcas foram evidenciadas nas entrevistas que relevaram práticas em proximidades com as vivências de cada professor. Situações práticas, de resolução de problemas, a socialização e uso de boas práticas que aprendeu com um colega, um supervisor ou com sua própria atuação como alfabetizador.

Algumas professoras revelaram que a formação em serviço trouxe elementos significativos para o seu fazer pedagógico, mas consideraram que além dos conhecimentos teóricos e práticos, o aspecto da afetividade foi fundamental para o processo de aprendizagem dos alunos, como destaca P3: “[...] o PNAIC, trouxe muita coisa diferente, mas o mais relevante é você entender o aluno como um ser humano, [...] a afetividade”. A afetividade, de acordo com a professora, esteve em evidência sobre as demais questões que envolveram a aprendizagem dos alunos.

Outro ponto destacado por P3 referiu-se à necessidade de cobrança por parte da escola para a implementação das práticas aprendidas nas formações “[...] a gente percebe que a maioria das colegas só coloca em prática ou faz alguma coisa diferente quando é cobrada pela equipe pedagógica ou quando tem que aplicar atividades e levar para os encontros de formação.” Isso evidencia que as formações realizadas em serviço não têm sido capazes de promover uma cultura de formação ou uma reflexão intensa e constante da prática pedagógica, de modo a dar continuidade às ações propostas independente da vigência de políticas e programas.

P5 destacou que realizava suas atividades valorizando mais o aspecto prático, relativo às experiências e, eventualmente, utilizava dos saberes teóricos aprendidos na academia: “[...] eu penso que eu sou mais do lado prático, da experiência, eu percebo que dá certo, porém, você tem que estar conciliada com a parte acadêmica [...]” (Entrevista, P5, 2018). Essa contribuição demonstrou uma percepção de valor conferido pelos professores aos saberes experienciais como mobilizadores das práticas pedagógicas. Fiorentini, Souza, e Melo (1998), destaca que estes saberes devem ser encarados como ponto de partida e de chegada da formação continuada, no entanto, deixa claro que isto não significa o abandono das contribuições teóricas e científicas e acredita que é justamente esta formação que permite ao professor perceber as relações mais complexas da prática.

Cada professora revelou um fazer pedagógico distinto, a partir de uma forma própria de alfabetizar, de mediar a aprendizagem ou ao assumir um posicionamento de construção de conhecimento que lhe pareceu mais seguro, mais próximo de suas vivências. Ressaltamos que, em relação ao fazer pedagógico, houve um destaque à uma concepção de que somente se pode ensinar a partir do que se sabe, de que é necessário a preocupação em aprimorar o próprio conhecimento, em aperfeiçoar-se e adaptar-se às novas situações para auxiliar a construção do conhecimento dos outros.

Assim, observamos que houve compreensão da formação continuada como ação de relevância para o fazer pedagógico. No entendimento das professoras entrevistadas, fica realçado que, quando essas formações promovem atividades práticas, oportunizam a reflexão e a mudança sobre a prática docente. Ainda, quando ocorre a socialização e a troca de experiências, presentes nas discussões teóricas e nas práticas orientadas pelos programas de formação, favorece a apropriação da ação formativa.

Considerações finais

Diante da pesquisa realizada, refletimos sobre a formação continuada para professores alfabetizadores, apontando as aproximações e os distanciamentos entre as orientações no âmbito de programas como o Pró-Letramento (2008) e o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (2012a, 2012b) e o fazer pedagógico docente.

A partir das entrevistas realizadas com as professoras alfabetizadoras, identificou-se três dimensões de análise que se mostraram significativas no processo formativo, identificados como ‘percurso de formação’, ‘concepção de alfabetização e letramento’ e ‘práticas de ensino’.

O ‘percurso de formação’ se configurou permeado por uma experiência formativa e acumulativa, ou seja, uma relação entre vivência pessoal e profissional. As falas se mostraram atravessadas por múltiplos saberes advindos da formação inicial e continuada, das experiências vividas e da profissionalização, os quais repercutiram no fazer pedagógico.

A dimensão sobre a ‘alfabetização e o letramento’ remeteu às concepções que subsidiaram o trabalho pedagógico, em que se evidenciou nas falas uma inconstância teórica por parte das professoras, ora se aproximando das orientações propostas pelo PNAIC, ora priorizando ações já vivenciadas por elas. O que demonstra uma prática de ação, reflexão e mudanças no fazer docente em processo, a partir das vivências formativas. Outro dado observado foi que as professoras não conseguiram definir com clareza a metodologia utilizada para alfabetizar, mas evidenciaram na fala uma proposta de alfabetização marcada pelos métodos sintéticos e analíticos.

Por fim, as ‘práticas de ensino’ referiu-se às evidências sobre a apropriação das orientações propostas pelos programas de formação continuada na prática docente. As falas indicaram as experiências vivenciais, a troca entre os pares, a socialização de iniciativas, o trabalho com o lúdico como norteadores do fazer pedagógico que se desenvolve no dia a dia das salas de alfabetização. Destacou-se a importância de que as professoras tivessem contato com o trabalho pedagógico de colegas, uma proposta de alfabetização que perpassa a ideia de colaboração, longe de uma perspectiva de um trabalho pedagógico isolado.

As professoras ao responderem as questões, acabaram por fazer a descrição de algumas práticas pedagógicas realizadas, evidenciando, muitas vezes, uma relação teórico-metodológica desvinculada daquelas propostas pelo programa de formação. O que evidencia o desequilíbrio que as novas perspectivas de estudo estavam trazendo para ressignificar as práticas.

Entendemos que a prática docente requer que o professor domine um repertório de saberes. Assim, o saber docente se compõe, na verdade, de vários saberes provenientes de diferentes fontes. Tomando, especificamente, o caso da formação continuada, percebe-se a necessidade de destacar a relevância do reconhecimento e valorização dos saberes docentes, em especial dos saberes da experiência, considerados por Tardif (2000, 2002) como núcleo vital desses saberes.

Nesse sentido, as falas reforçam uma valorização das vivências, da relação entre os colegas, na socialização e compartilhamento de atividades como determinantes para a constituição do fazer pedagógico das professoras alfabetizadoras. Ao mesmo tempo evidenciou-se aproximações e distanciamentos em relação às propostas teórico-metodológicas estudadas, num ressignificar formativo, que não se esgota em iniciativas pontuais e deve ser garantido como processo ao longo de toda trajetória profissional. Pontos positivos foram destacados no programa como a leitura deleite, a utilização de jogos, o trabalho lúdico na alfabetização e a interdisciplinaridade.

A formação docente se mostrou uma iniciativa almejada como a ação salvífica para a problemática da alfabetização no Brasil, o que não se sustenta, uma vez que a melhoria da educação envolve tantas outras ações, como o investimento em infraestrutura, em políticas sociais que cheguem nas escolas, em valorização profissional. Empoderar o professor pela teoria, pela reflexão, promovendo mudanças nas práticas escolares são esforços empreendidos pelas políticas públicas federais, que devem ser somadas a tantas outras iniciativas que favoreçam com que a Educação ocupe lugar central no país.

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4Nota: Nós, os autores, fomos responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

Recebido: 18 de Abril de 2021; Aceito: 25 de Janeiro de 2022

* Autor para correspondência. E-mail: ilsa.goulart@ufla.br

INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES Ilsa do Carmo Vieira Goulart: Professora do Departamento de Educação e do Programa de pós-graduação em Educação, da Universidade Federal de Lavras. Doutora em Educação. Coordenadora do “Núcleo de Estudos em linguagens, Leitura e Escrita”. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9469-2962 E-mail: ilsa.goulart@ufla.br

Iduméa de Souza Fernandes Ramos: Professora aposentada da Prefeitura de Heliodora, MG. Mestra em Educação. Pesquisadora do “Núcleo de Estudos em linguagens, Leitura e Escrita”. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1733-566X E-mail: idumea46@gmail.com

Giovanna Rodrigues Cabral: Professora do Departamento de Educação e do Programa de pós-graduação em Educação, da Universidade Federal de Lavras. Doutora em Educação. Coordenadora adjunta do “Núcleo de Estudos em linguagens, Leitura e Escrita” ORCID: http://orcid.org/0000-0002-4780-516X E-mail: giovanna.cabral@ufla.br

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