SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45Post-critical educational and curriculum tools for researching and analyzing vídeosArchival research and the problematizing gesture in Foucault author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Acta Scientiarum. Education

Print version ISSN 2178-5198On-line version ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.45  Maringá  2023  Epub Aug 01, 2023

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v45i1.66386 

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS

Entre o azul e o sol, as narrativas cristalinas e fabulatórias nos processos de pesquisa: do si às multiplicidades

Entre el azul y el sol, las narrativas cristalinas y fabulatorias en los procesos de investigación: del yo a las multiplicidades

Janete Magalhães Carvalho1 
http://orcid.org/0000-0001-9906-2911

Sandra Kretli da Silva1  * 
http://orcid.org/0000-0003-0107-8726

Tania Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni1 
http://orcid.org/0000-0003-3950-0427

1Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Av. Fernando Ferrari, 514, 29075-910, Vitória, Espírito Santo, Brasil.


RESUMO

RESUMO. Enfoca, este artigo, a escrita de si (Foucault, 1992) em sua relação com a análise de implicação (Lourau, 2004) com o outro, em uma perspectiva de pesquisa narrativa que visa a superação do regime orgânico, sensório-motor, em direção a narrativas cristalinas e fabulatórias. Apresenta exemplos de diários de campo ilustrativos de escritas de si para chegar ao encontro dos outros em universos interconectados, ou seja, escritas de si potencializando análises no plano coletivo da pesquisa. Argumenta que os signos da arte, como via de acesso a movimento do pensamento até então desconhecidos, auxiliam pesquisadores e pesquisados implicados a desenvolver narrativas cristalinas-fabulatórias e compartilhar experiências. Conclui apontando que, se a cultura e a arte exercem seus sentidos quando criam, que seja então um encontro com a pesquisa sem corpo-ensinante, um encontro de trocas e de aprendizagens, uma pesquisa como um grande e afirmativo pensar-agir-criar coletivo na escola pública.

Palavras-chave: escrita de si; análise de implicação; narrativas cristalinas; fabulação

RESUMEN

RESUMÉN. Este artículo se centra em la autoescritura (Foucault, 1992) em su relación com el análisis de la implicación (Lourau, 2004) com el outro, em uma perspectiva de investigación narrativa que apunta a la superación del régimen orgânico sensório-motor, hacia el cristalino y narraciones fabuladoras. Presenta ejemplos de diários de campo que ilustran autoescrituras para llegar a otros em universos interconectados, es decir, autoescrituras que mejoran los análisis em el nível colectivo de la investigación. Sostiene que los signos del arte, como forma de acceder a un movimiento de pensamiento hasta ahora desconocido, ayudan investigadores y investigados a desarrollar narrativas cristalino-fabulatorias y compartir experiencias. Concluye señalando que si la cultura y el arte ejercen sus significados cuando crean, que es, entonces, un encuentro con la investigación sin cuerpo-ensinante, un encuentro de intercambios y aprendizaje, una investigación como una gran y afirmativa creación de pensamiento-acción-colectivo en la escuela pública.

Palabras-clave: autoescritura; análisis de implicación; narrativas cristalinas; fabulaciones

ABSTRACT

ABSTRACT. This article focuses on self-writingin (Foucault, 1992) its relationship with the analysis of implication (Lourau, 2004) with the other, in a perspective of narrative research that aims to overcome the organic, sensory-motor regime, towards crystalline and ficcional narratives. It presents examples of field diaries illustrating self-writings to reach out to others in interconnected universes, that is, self-writings enhancing analyses at the collective level of the research. Argues that the signs of art, as a way of acessing hitherto unknown movements of thought, help researchers and researched people involved to develop crystalline-fabulatory narratives and share experiences. It concludes by pointing out that if culture and art exercise their meanings when they create, that is, then, an encounter with research without teaching body, an encounter of exchanges and learnings, a research as a great and affirmative think-act-create collective in public school.

Keywords: self writing; implication analysis; crystalline narratives; fabulation

Introdução: é possível dobrar a experiência de pesquisa como sons e imagens que dobram o escuro?

O questionamento expresso no título desta introdução acena para a necessidade de superação na condução da pesquisa narrativa e do regime orgânico baseado no esquema sensório-motor, o qual modela prescritivamente a experiência dos pesquisadores, para buscarmos, nesse processo, movimentar e forçar o pensamento para sair do escuro e para pôr ‘cristais’ que projetem perspectivas diferenciais nos processos narrativos.

Este artigo objetiva assim apresentar os possíveis de narrativas de si em processos de pesquisa por meio de registros de experiências vividas na intercessão entre processos culturais, artísticos e educativos, ao estilo de escritas de si em modos cristalinos e fabulatórios, potencializadores de problematizações e/ou produção de dobras ficcionais, como também a criação de vida compartilhada na escola pública.

A premissa dessa abordagem de pesquisa poderia ser resumida no slogan: com pedaços de eus, montamos, em dobras, um ser singular e complexo, porque o pessoal e o coletivo dialogam, se mesclam, se constituem, se movimentam, se complementam (Figura 1).

Figura 1 Ensolarado (Barros, 2020)1.  

Pensar o pensamento em Deleuze (1991), que cria pela subversão e pelo caos, implica conhecer de perto a infinitude extensiva da dobra como força de criação, que, por mais que se dobre, se desdobre e se redobre, leva consigo as marcas/curvas de envolvimento, desenvolvimento, involução e evolução.

Para Deleuze, a dobra é a potência como condição de variação, ou seja, “[...] a própria potência é ato, é o ato da dobra” (Deleuze, 1991, p. 37). Pela dobra deleuziana, conseguimos entender a potência de vibração e modificação do pensamento, produzindo a diferença para além dos processos recognitivos.

Deleuze reafirma que o pensamento só pensa mediante o acaso de um encontro que o violente, que o force, que o coaja a pensar aquilo que precisa, que é necessário, que não pode mais deixar de ser pensado. Deleuze insiste que por si mesmo o pensamento não pensa, não cria, que o que importa é o que o força a sair de seu estado letárgico de mais baixa potência: da recognição (Heuser, 2010, p. 31).

Sendo assim, pesquisadores e participantes da pesquisa como seres de experiência são potencialmente seres de ruptura e, desse modo, intentam provocar um pensamento de vivência que desdobra, dobra e redobra ao infinito - como um espaço-tempo de eterna travessia processual.

Nessa travessia, a escrita de si é dobrada, redobrada e desdobrada. Isso porque, no aporte da escrita de si (hypomnemata), as narrativas são tomadas para além do processo de individualização, ou seja, concebidas como agenciamentos em redes que potencializam acontecimentos inscritos em modos coletivos (Foucault, 1992).

De acordo com Foucault (1992), a escrita de si é autoexploração, já não para chegar a Deus, mas para chegar aos muitos universos interconectados no eu. Precisamos avançar no sentido de que o autoconhecimento precisa nos levar a não nos diferenciarmos dos outros, mas a nos aproximarmos deles. Na escrita de si como textualidade, o/a narrador/a extrapola as fronteiras entre o real e a ficção.

A escrita de si é uma narrativa singular que Deleuze (1990) distingue, no capítulo ‘As potências do falso’, como pertencentes ao regime orgânico ou ao regime cristalino. No primeiro caso, a narrativa está relacionada ao esquema sensório-motor, que supõe a independência do objeto; supõe que o meio preexiste à narrativa que é feita. No segundo caso, a narrativa vale por seu objeto, podendo substituí-lo, dando lugar sempre a outras narrativas que podem modificar as anteriores. Se o regime orgânico narrativo - regime sensório-motor - compreende o real e o imaginário como dois polos em oposição, as narrativas no regime cristalino reúnem os dois modos em um circuito em que o real e o imaginário, o real atual e o virtual formam narrativas coalescentes, intimamente unidas.

Disso resulta que a narração deixa de visar à verdade, pretender ser verdadeira até mesmo na ficção, para se tornar falsificadora. Se a descrição cristalina não pressupõe mais uma realidade, a narração também não remete mais à verdade, substituindo a forma do verdadeiro pela potência do falso (Machado, 2009).

Deleuze chama de narrativas falsificantes essas fabulações criadoras que se situam além do verdadeiro e do falso. Ele destaca a potência criadora daquilo que o mundo no qual vivemos chamaria tranquilamente de ‘falso’. A proposta é essencialmente ético-política: O que se opõe à ficção não é o real, não é a verdade que é a dos mestres ou dos colonizadores, é a função fabuladora dos dominados, enquanto ela confere ao falso a potência que faz dela uma memória, uma lenda, um monstro (Deleuze, 1990).

Sendo assim, o que é rompido aqui é mais do que o modelo verídico interno à narrativa ficcional: é o modelo que faz da ficção uma verdade superior e, por isso, apartada da vida. Encontrar a função fabuladora é reencontrar o elo entre a vida e a ficção. É fazer ver a realidade da ficção, é fazer ver que a sua potência falsificadora é antes de tudo uma potência criadora de mundos, de mundos habitáveis e vivíveis. Portanto, o que é afirmado não é a verdade da ficção, mas a sua realidade falsificadora.

Entendemos, desse modo, que, no processo de produção de dados, uma questão central é a das fábulas, pois estamos invadidos por fábulas com ‘efeito de verdade’ (Foucault, 1975): as do consumismo, dos jogos eletrônicos, da mídia e do cinema comercial, entre outras. Estamos com a mente feita pela mídia como consumidores de sonhos, de democracia representativa, de objetos e símbolos, o que podemos chamar de fabulações irrealizantes, pois nos põem em estado de torpor mental e servidão voluntária (Gauthier, 2014).

Portanto, torna-se necessário lutar contra esse tipo de fabulações e criar fabulações realizantes. Se a função fabuladora falsifica a memória é porque justamente ela não é uma faculdade voltada para o passado e para a conservação do passado, mas uma faculdade voltada para o futuro, para a criação de novas e potentes imagens sem as quais o presente não passa. A fabulação é potência do falso porque ela nos força a passar, ela nos força a dizer: Eu é um outro. A fabulação é a memória do futuro (Deleuze, 2018).

Assim, podemos dizer que, na imagem-cristal, o presente é suspenso em prol de uma conexão direta entre o passado e o futuro, o que nos permite apreender um passado em sua dimensão virtual. Já na imagem-fábula, é o próprio presente que se abre ao futuro, deixando-nos entrever os estados de mudança que o atravessam. Por isso, essa nova imagem, mais do que nos oferecer uma indiscernibilidade, faz-nos ver o corpo como um campo de forças, como um campo de intercessão de forças.

A ampliação da consciência pela descrição cristalina mobiliza as potências do ‘falso’ - assim chamado no nosso contexto realístico-midiático irrealizante -, ou seja, daquilo que, falso para esse contexto, se põe, de fato, além da dualidade da verdade e da mentira, do certo e do errado. O realismo do diário de notícia, da novela, das redes sociais em geral é um aspecto da função irrealizante das formas atuais de dominação. Por essa razão, ele funciona muito bem; compramos pequenos sonhos baratos, dia após dia, noite após noite. A fabulação realizante é uma forma de ‘conscientização’, pois mostra o avesso do cenário midiático e liberta-se dele. A fabulação realizante funciona por meio de afetos desconhecidos, enquanto a fabulação irrealizante, por meio de afetos familiares, domados e sem perigo, ligação dos personagens e das suas perspectivas, tanto temporais quanto espaciais, dentro do ser, dentro de nós.

Nos processos de pesquisa em sua relação com a cultura e a arte, devemos criar outros modos de ver e enunciar o cotidiano escolar e para além dele. A todo momento, tendemos, nos processos de pesquisa, a uma relação equidistante entre o pessoal e o coletivo e/ou seguimos formas (formatadas) que impõem o que se pode ver e o que se pode/deve enunciar.

Ainda nesse sentido, precisamos considerar que tanto a escola quanto principalmente a indústria cultural vão encarcerando/subsumindo um mundo previamente formatado por desenhos animados, filmes, vídeos, entre outros, apresentados e consumidos como formas massivas entendíveis e reproduzíveis, de modo que pesquisadores e pesquisados param de fazer criações próprias e singulares de abertura para mundos possíveis e compossíveis.

Para mergulhar no mar, é preciso inspirar-conspirar, porém como mergulhar no mar da pesquisa inspirando-conspirando-realizando narrativas de si em processos coletivos?

Tomando a ética como problematização da liberdade, o exercício ético da pesquisa consiste em interrogar, provocar e tensionar as relações de poder e as condições de sujeição na busca dos espaços de criação, de produção de diferenças e de reflexões possíveis no campo de pesquisa.

Até aqui, falamos de escrita de si (hypomnemata), discorremos sobre o ato de dobrar-desdobrar-redobrar, descrevemos a relação narração orgânica, cristalina-falsificante, fabulações realizantes e irrealizantes, mas precisamos apontar pistas de como mergulhar nesse mar ético-estético-político: como inspirar-conspirar para respirar outros possíveis para, por meio de narrativas de si, mergulharmos no encontro com o outro?

No contexto da pesquisa-intervenção, esse exercício pode ser entendido como análise de implicação, que não está localizado em um momento específico da pesquisa ou em um determinado elemento da metodologia, mas “[...] como condição de possibilidade de constituição de si da relação pesquisador-pesquisado e do campo de pesquisa concomitantemente” (Lourau, 2004, p. 190).

Nesse referencial, a intervenção institucional propõe-se a provocar uma ruptura no modo instituído de funcionamento das organizações e, assim, descobrir o que geralmente não é declarado, não é assumido pelo coletivo, mantendo-se oculto nas relações que os indivíduos e grupos estabelecem com as instituições.

No movimento de análise institucional, as instituições constituem uma dinâmica, estão sempre em movimento, em um jogo entre manutenção e criação, conservação e dissolução. Os processos de transformação e criação resultam de forças que compõem os movimentos instituintes. Ao mesmo tempo, o instituído, que também compõe as instituições, constitui-se efeito da ação instituinte e está imbricado aos equipamentos e suas funções, e geralmente tende à reprodução de outras formas instituídas e à manutenção da ordem.

Para intervir junto ao instituído e disparar processos analíticos, a análise institucional utiliza dispositivos. Segundo Foucault (2000), dispositivos englobam instituições, discursos científicos, proposições filosóficas, assim como os ditos e os não ditos, podendo agenciar movimentos de mudança.

Estar no campo de intervenção impõe o exercício da análise de implicação, isto é, a análise das relações que estabelecemos conosco e com os outros - passagem do si para as multiplicidades -, pois estamos tomados por elas, queiramos ou não. Para pesquisar-intervir, o grupo de pesquisadores precisa promover autoanálise e autogestão, tanto nos coletivos em que intervém como na dinâmica de seu próprio trabalho, possibilitado pelo exercício exegético da escrita de si.

Segundo Lourau (1975), as implicações diferenciam-se em primárias e secundárias. As implicações primárias estão relacionadas às ligações entre o grupo em análise e analisadores externos. Já as secundárias são aquelas ligadas a todas as instituições que nos atravessam. Dentre essas últimas, podemos destacar suas diferentes naturezas, como as implicações de ordem afetiva, existencial e profissional.

Como limite da análise de implicação em pesquisas, situamos a organização de espaços para tal fim, uma vez que, de modo geral, a maneira de se pensar - e fazer - pesquisa é individualizada e competitiva. Construir coletivos de pesquisadores dispostos a realizar a produção da análise de implicação é complexo, pois envolve tempo, participação em inúmeras reuniões e principalmente disponibilidade interna para o processo de análise, conhecimento e transformação na perspectiva técnico-ético-política.

A revisão desses fazeres, na forma de análise de implicação, reflete na produção de dispositivos e no processo de construção das análises coletivas, sempre inacabados e com a tarefa de fazer lembrar o que muitas vezes é esquecido nas instituições; nesse caso, a defesa da vida.

Assim, cumpre destacar que a discussão e a análise de implicação não é uma parte da pesquisa, e sim condição de existência da pesquisa, constituindo todo o processo. A própria reflexão teórica também é um exercício de análise de implicação, pois indica os modos como os conceitos são agenciados em função da trajetória e da constituição do sujeito-pesquisador-escritor, que ocorre na experiência da pesquisa, e não de modo a priori. A escrita então é também processo, exercício e prática de si, que pode provocar transformações.

Para Foucault (1992, p. 146), “[...] nenhuma técnica, nenhuma habilidade profissional pode ser adquirida sem exercício; não se pode mais aprender a arte de viver, a technê tou biou, sem uma askêsis que deve ser compreendida como um treino de si por si mesmo [...]”. Assim, o processo de pesquisa implica as práticas, os conceitos e as análises, articulados na arte de viver.

A escrita é um dos elementos dessa ascese do sujeito-pesquisador-escritor e da constituição dessa relação de si para consigo. Mas qual é a tática, qual é o instrumento dessa ascese? Podemos pensar que a paraskeué está para a ascese assim como a metodologia está para a experiência da pesquisa. A paraskeué é uma das táticas da ascese, uma de suas estratégias. Assim, podemos entender a metodologia como uma paraskeué, um equipamento.

[...] a paraskeué é o que se poderia chamar uma preparação ao mesmo tempo aberta e finalizada do indivíduo para os acontecimentos da vida. Quero com isto dizer que se trata, na ascese, de preparar o indivíduo para o futuro, um futuro que é constituído de acontecimentos imprevistos, acontecimentos cuja natureza em geral talvez conheçamos, os quais, porém, não podemos saber quando se produzirão nem mesmo se se produzirão. Trata-se, pois, na ascese, de encontrar uma preparação, uma paraskeué capaz de ajustar-se ao que possa se produzir, e a isto somente, no momento exato em que se produzir, caso venha a produzir-se (Foucault, 1992, p. 387).

Essa posição afirma a existência de determinações, conceitos e lógicas, que não são dadas a priori, antes da experiência, antes do encontro do sujeito com o campo de práticas e com o encontro com o outro. Essa forma de pesquisar pressupõe constantes reformulações que vão ocorrendo na construção do problema e do processo, com os sujeitos que constituem o campo de intervenção, na qual pesquisador e campo vão transformando-se mutuamente. É a experiência e o encontro que constituem o processo.

Nesse sentido, essas estratégias permitem que o processo de pesquisar acompanhe caminhos e desvios que vão sendo produzidos nos encontros entre os sujeitos. Entre as estratégias de registro de experiência e de análise, destacam-se a análise de implicação, o diário de campo, os cadernos de registro, as agendas de trabalho e a ênfase no processo, que são importantes em toda a trajetória da pesquisa. Elas podem constituir formas de potencializar o exercício de si do pesquisador e seus efeitos.

A seguir, apresentamos três exemplos2 de registros em diários de campo, ilustrativos de escritas de si para chegar aos muitos universos interconectados no eu, ou seja, escritas de si potencializando o encontro com os outros:

(1) Abro a sala virtual. Um aluno entra alguns minutos depois. Por conhecê-lo há três anos, tenho um rosto para sua voz. Conversamos sobre as dificuldades do tempo presente, os limites e possibilidades de nossa disciplina e da escola. Ele se mostra ansioso. Percebo que me sinto esperançosa pelo primeiro contato após seis meses e meio. E ter um número tão diminuto provoca um estrago. Ao findar a aula, percebo com mais ênfase minha imagem solitária nos tempos seguintes. Sem desconfiar que isso se tornaria uma constante pelos próximos meses. E que em poucas semanas perderia meu único aluno, pois ele faria escolhas frente à demanda de compromissos e tempo de tela. [...] Procuro uma palavra que eu mesmo não sabia seu nome. Uma palavra na qual o presente realmente caiba e possa se expandir. Pois ao modo-urgência, o que urge é apenas o eco de um passado. Procuro o impronunciável. Aquilo que, assim como meu eu no pequeno quadradinho da tela, está sem rosto e não se pronuncia. Mas existe! [...] O silêncio que faço é acompanhado de uma estática. Ouço atentamente cada relato. É um encontro com o núcleo de psicologia. O compartilhado são experiências individuais-coletivas. São questões trazidas à luz. São questões que não saem de minha boca e não poderiam ser ditas por mim. De modo espantoso, algumas coincidências se apresentam. Outras questões mais genéricas são evidenciadas, porque sim, é necessário dizer o óbvio. O que emerge são as estratégias utilizadas para o cuidado de si. Penso no cuidado como cultivo. E não chego a dizer aquilo que penso. [...] Quando dei a aula por encerrada, os alunos se encaminharam para o portão da quadra, onde penduraram suas mochilas. Um dos alunos diz em alto e bom som: fecha o portão, professora. Ninguém vai sair. O que houve, pergunto prevendo. Cadê os duzentos reais? Ninguém sai. Se acalme, eu vou chamar a diretora. Diretora? A escola não sabe resolver essas coisas não. Ninguém contestou ou ousou se mexer. Enquanto eu pedia ao porteiro para chamar a coordenadora, para chamar a diretora, o aluno fazia uma ligação. Ninguém sai. O cara já está descendo. Minha cabeça começou a formigar. O cara não era o cara - não era o dono do morro, mas estava bem perto disso. Lembrei de uma professora que havia sido assaltada alguns dias antes na saída da escola. Nas horas seguintes, ao se espalhar a notícia, sua bolsa retornava para suas mãos. E o assaltante em questão tinha a idade de nossos alunos. E como algum deles, não teve uma segunda chance. A diretora descia junto com a coordenadora. Eu, na quadra com os alunos. O cara apareceu no portão da escola e deu uma hora para que o dinheiro aparecesse. Caso contrário, portão afora, a coisa seria resolvida a seu modo. [...] Aquilo que existe já não nos serve, sabemos do modo mais cruel. E aquilo que melhor se adequaria ao tempo e às necessidades presentes ainda não existe. Eis uma crise. Esse estado transitório que nos deixa entre o pessimismo que se instaura e nos habita, e a terrível indolência de nos acomodar àquilo que, como já dito, não serve. Mas existe! (Ramos, 2021, p. 61-62).

(2) Os pés passavam de um pedal para o outro, mas não sentiam o calor que fazia. Pareciam estar lançados em um certo tipo de encanto. Gelados. Trêmulos. Não se imaginava num encontro nessas condições. O estômago embrulhava. Era necessário experienciar de outras maneiras esse percurso. Os tênis brancos não estavam mais presentes fisicamente, nem a botas pretas. Não havia cadarços que desejavam amarrar-lhes, mas sim um desejo de encontrar. Só não sabia muito bem quais encontros seriam produzidos. E isso, ao mesmo tempo em que os fazia estremecer ainda mais, improvisava um estado de alerta, de atenção. Jardim XXXX era para onde deveriam ir. O gelado que assolava os pés era bombeado para todo o corpo. Ao se aproximar daquela escola, uma pequena pausa. Respira fundo. O sangue circula com um pouco mais de tranquilidade, mas a sensação gélida permanecia. Entram na escola e na entrada já tropeçam em alguns pequenos. O fluxo sanguíneo aumenta. Caminham devagar até a sala de professores. Sentiam a escola também gelar, como a pele de um anfíbio. Na sala de professores muita correria, andava-se de um lado para o outro. Mal chegam, já ouvem o sinale andam até a quadra. O portão se abre e era impressionante a quantidade de pequenos pés correndo em busca de suas professoras. Nomes começam a ser chamados e sangue agitado vai se acalmando. Junto àqueles pés, já havia outros 25 pares de calçados diferentes. Sobem a rampa, procurando sua sala. Pensamentos se atravessavam: quais seriam os possíveis encontros com aqueles pés tão pequenos? Conseguiriam produzir travessias diferenciais? Ainda havia um pensamento de que entrava em um território conhecido? Entretanto, nada a prever. Era preciso experienciar. (Des)(re)territorializar. Fazia-se necessário criar um deserto para novas ocupações, novos nomadismos. [...] Essa terra chamada Jardim XXXX foi apenas o primeiro dos pedaços de XXXX por onde esses pés voltaram a percorrer. Não era possível saber de antemão os afetos que sucederiam. Não se imaginava que aquelas terras que causavam pavor poderiam elas mesmas colaborar com a atualização de movimentos diferenciais no pensamento que acompanha esses percursos. Os encontros produzidos nessas travessias não provocam sempre calmaria, como uma boa fada trazendo um final feliz. Os encontros traçados como sombras da noite têm também sua força. Seguem as linhas de fuga do riso de uma feiticeira. Seria possível pensar com os pés?

Com a sujeira que gruda ao correr no pátio com as crianças? Com os pés que balançam por não alcançarem o chão? Estariam os pés nos ajudando a ver e sentir o mundo? Não era mais possível ser aprendizes de Hermes. Talvez desejassem ser aprendizes de Atenas, não apenas pela sabedoria, mas pela arte de guerrear. Diferentemente de Ares, a carnificina não entrava nas astúcias de Atenas. É de experimentações combativas que se trata. Como não desejar o combate contra as formas de opressão nas escolas? Como não querer ser combativo quando não podemos paralisar em frente aos golpes instituídos que sofremos? Alguns chãos por onde os pés andaram estão encharcados de pedregulhos. Muitas vezes, dói andar sobre os pés. Esses golpes são, quase sempre, duros em demasia. Como acompanhar apenas tecnicamente casos de abandono nas/das escolas? Andar sobre pedregulhos pode fazer os pés sangrar. Mas é quando o sangue é visto que uma lembrança pode ser evocada: ainda há vida! As asperezas dessas pedras misturam-se com o sangue dos que ali passam com seus pés. Amizades são afirmadas. Currículos produzidos. Aprendizagens movimentadas. Uma zona de contágio inventada. O que há de comum é o combate à petrificação do pensamento, ao descaso (Lourenço, 2019, p. 23-25).

(3) O vazio? Nada enfrenta. Não tem pretensão nenhuma. O vazio não é um corpo pensante. Não funciona nem a lógica cartesiana (cogito ergo sum) ou em qualquer outra variação do cogito. O vazio nada quer. Nós, talvez, é que queiramos o vazio. Nós é que, porventura, gostaríamos de poder devir-vazio. Mas o vazio nada é, nada quer, nada faz, então sequer é possível que com ele estabeleçamos uma relação de devir. Seria o vazio o fora? Se o vazio não é ou tão somente é uma sensação, seria ele, então, o fora? Ou o FORA? O fora o qual Foucault e Deleuze, vira e volta, discutem como aquilo do qual nascem as virtualidades, as potências, as ideias e as imagens? Não cremos nisso. Poderia, talvez, ser traçada uma linha de fuga entre o vazio e o fora. Uma linha que talvez os ligasse. É o fora o vazio? Não. Mas o vazio nos liga ao fora. Uma linha de fuga não apenas como uma linha contida num emaranhado de linhas de vida que desvia das durezas da vida ou que traça um rompante numa direção radicalmente inesperada. Não isso ou talvez menos que isso. Talvez o vazio cruzasse com o fora apenas como vislumbre, apenas uma sensação. Uma tela, tinta, sensações e ali num ponto talvez um vazio que apenas nos permita questionar tudo o que entendemos por algo. Nietzsche (2012, p. 91) chega ao ponto de falar que “somente enquanto criadores podemos destruir”, isto é, somente nos dando ao ato de criação - e aí retomamos a fabulação como um método de criação no comum - é que podemos esburacar o mundo. Mas cavoucar não qualquer coisa; cavoucar as imagens. Abrir buracos nas imagens. Rasgar vazios que questionem mais que respondam.

O vazio nada explica.

A explicação, todavia, caduca diante dele.

As defesas não mais são levantáveis.

Como defender? Como explicar?

É a vida reativa que não sabe agir diante do vazio.

Justifica-se bravamente como o presidente de ‘proceria’ nenhuma.

Tipo um desses presidentes que tanto conhecemos.

Vida reativa que não sabe agir. Até porque nunca soube.

O vazio caduca as respostas, as ideias bem-feitas.

Não arromba as sensações, mas põe formiga sob nossos pés.

E orelhas. E línguas. E dedos. E bundas. E olhos. E narizes.

Se a arte funciona por fabulação, tanto melhor se puder ela

Rasgar um vazio por onde pudermos passarmos nós.

(Roseiro, 2021, p. 206-209).

Cumpre destacar que registros e relatos no diário de campo e outros materiais permitem análises sempre inacabadas, pois é possível rever a trajetória da pesquisa e produzir sentidos outros ao que foi vivido, dando condições para a análise de implicação.

As análises de implicação são produzidas por intermédio dos analisadores que emergirem ao longo do processo da pesquisa e podem dar visibilidade e provocar os dispositivos que configuram as relações de poder nas quais se produzem. Dessa forma, a questão que se considera como importante na pesquisa é interrogar como os dispositivos podem ser visibilizados ou provocados nesse espaço, por meio da construção dos analisadores, que podem pôr tais dispositivos e seus efeitos em análise.

‘Dispositivo’ e ‘analisador’ são termos que se ligam e se relacionam, mas são distintos entre si. Para Baremblitt (1998, p. 71), “[...] um analisador não é apenas um fenômeno cuja função específica é exprimir, evidenciar, denunciar. Ele mesmo contém os elementos para se autoentender, ou seja, para começar o processo de seu próprio esclarecimento”. Um analisador visibiliza relações, dá a ver diferentes práticas e agenciamentos e potencializa, ao mesmo tempo, o processo para entender e esclarecer o que o próprio analisador faz em determinado campo, o que movimenta, o que permite, o que provoca.

Os dispositivos presentes no campo de pesquisa indicam as condições históricas e as relações heterogêneas que as fazem funcionar em determinado sentido, pois “[...] pertencemos a dispositivos e neles agimos” (Deleuze, 1996, p. 92). Os analisadores podem mostrar tanto os efeitos de dispositivo, os modos como se atualizam na especificidade do contexto da pesquisa quanto suas fragilidades e possibilidades de ruptura. Esse processo produz relações e análises singulares, não serializadas, as quais permitem a emergência de alguns analisadores, em função dos movimentos e dos encontros, das problematizações e das reflexões. A escolha de analisadores é importante para que seja possível potencializar diversos processos de mudança e de rupturas nesse campo de relações de poder.

Essa mútua implicação das noções apresentadas provoca uma relação de coexistência entre ambas. Aquilo que emerge como analisador, que dá a ver a multiplicidade de relações em um campo de práticas, que manifesta e evidencia lógicas e funcionamentos só pode fazê-lo inserido em processos de subjetivação, imerso em um campo de visibilidades, dizibilidades e relações de poder, que indicam os dispositivos como conteúdo histórico, heterogêneo e como máquina de fazer ver e de fazer falar ali agenciada.

Nos cotidianos escolares, de modo geral, pouco escrevemos para além de uma escrita burocrática e/ou pouco reflexiva e, muito menos, a compartilhamos, visto que o visível e o enunciável estão imersos em relações de poder. Sendo assim, advogamos a escrita de si em sua relação com o outro como um modo de resistência ou subversão aos poderes, ou seja, subjetivação e não sujeição, o sujeito como “[...] uma escolha irredutível da existência [...]” (Gros, 2004, p. 618), um sujeito que é capaz de escritas verdadeiras, o que não significa dizer a verdade sobre si, mas que busca respostas possíveis para pensarmos as questões ético-sociais- culturais de nossa época.

Isso porque a escrita de si é também escrita para os outros. Foucault (2006) identifica a escrita etopoética como uma das formas de fazer da própria vida uma forma de arte, uma técnica - a técnica de si. Estas formas de escrita estariam estreitamente ligadas com o cuidado de si, e relacionadas com o cuidado e o governo dos outros. De qualquer maneira, tanto os diários de campo, os diários pessoais como as cartas não se fecham em si mesmos, pois se constituem como um convite a pensar sobre si, mas também em relação aos outros.

Tem que se considerar que esses modos de escrita são feitos de fragmentos do que se vê, do que se ouve, do que se lê - são escritas feitas de outras escritas. É importante destacar que a escrita, assim como a amizade, insere-se nas práticas que constituem a ascese. Através da escrita de si, que se completa com a leitura do outro, é possível elaborar os discursos recebidos e tidos como verdadeiros em princípios racionais de ação. A escrita tem uma “[...] função etopoiética: ela é operadora de transformação da verdade em ethos” (Foucault, 2006, p. 147).

A escrita de si mesmo abre a possibilidade de operar os discursos verdadeiros que pensamos, que defendemos, em que acreditamos, que construímos, em ações e modos de ser, em uma ética própria. Essa é uma das questões que Foucault (2006) recupera da análise das práticas estoicas de ascese ou de cuidado de si mesmo. A escrita de si pode ser pensada como um modo de subjetivação possível, a partir das teorizações foucaultianas. A escrita de si mesmo é uma forma de reflexão, de estabelecer uma relação de forças consigo mesmo, uma forma de mostrar-se, de transformar-se. Não há uma essência do sujeito a ser desvendada - os sujeitos são formas, não substâncias. Só que essa escrita, que pode ser autorreferenciada, feita de outras escritas e experiências, não se basta em si mesma. Ela tem que ser socializada, completada com o olhar do outro.

Assim, a escrita se completa com a leitura do outro e com a sua reescrita. A escrita afeta outras escritas e produz efeitos sobre as práticas de quem escreve, de quem lê e de quem participa dos processos que envolvem a análise de implicação. E aí há uma dimensão político-cultural importante. É uma forma de resistência, uma forma de encontrar um espaço respirável entre as relações de saber e de poder, uma dessas “[...] operações éticas-subjetivas e intersubjetivas - diretamente implicadas nas resistências ao poder” (Branco, 2000, p. 312). É uma forma de resistência, que se faz política na medida em que não é só algo subjetivo e individual, mas coletivo, e que pode consolidar-se em relações de amizade, sem vínculos familiares, que podem constituir-se como um espaço mais criativo para a reinvenção do político-cultural.

Pesquisadores implicados tendem a fazer dobras nas narrativas, nas quais emergem, como desdobra, a necessidade de composição política para uma vida coletiva gestada em modos ativos de contraposição ao ‘ideário colonial-capitalista’ (Rolnik, 2016), assim como a apresentar enunciados propositivos a fim de colaborar para que ideias menos conservadoras ganhem mais influência nos debates, buscando uma intervenção direta no processo educacional. O processo educativo, nesse sentido, possui grande capilaridade em setores sociais com afinidade ao ideário conservador, em virtude de elementos tais como o medo da violência social, o irracionalismo do fundamentalismo religioso como resposta às questões postas pela realidade, a falta de esperança em virtude do aumento do desemprego e da ausência de investimentos sociais do governo, além da própria difusão das ideias conservadoras e organização da sociedade, de maneira a fomentar o individualismo descolado de quaisquer laços coletivos e sociais.

Abrir a janela para deixar o sol entrar em casa: narrativa, arte e cultura

Afinal, como afirma Deleuze (2008, p. 14), “[...] só se pode desejar em conjunto”. Escapamos assim da interioridade de uma cultura pela exterioridade dos encontros, examinando a conexão entre o movimento do pensamento com uma cultura dada; nesse processo, a arte é fundamental.

A sociedade contemporânea é marcada pelas imagens que convocam o olhar, que agenciam possibilidades de olhar sob certas condições de visibilidade, inseridas nos processos sociais e históricos. Esses agenciamentos provocados pelas imagens constituem modos de ver e narrar a vida.

Certamente é preciso que o presente passe, para que o novo presente chegue e passe, ao mesmo tempo que é presente, no momento em que o é. É preciso, portanto, que a imagem seja presente e passada, ainda presente e já passada, a um só tempo, ao mesmo tempo. Se não fosse já passada ao mesmo tempo que presente, jamais o presente passaria. O passado não sucede o presente que ele não é mais, ele coexiste com o presente que foi. O presente é a imagem atual, e seu passado contemporâneo é a imagem virtual, a imagem especular (Deleuze, 2005).

A problematização da visibilidade pode ser referenciada ao entendimento dos enunciados e das dizibilidades, pois, para Deleuze, “[...] eles [os enunciados] nunca estão ocultos e, no entanto, não são diretamente legíveis, sequer dizíveis. Poder-se-ia crer que os enunciados frequentemente estão ocultos, sendo objeto de um disfarce, de uma repressão ou menos de um recalque” (Deleuze, 2005, p. 62). Desse modo, destaca:

Em suma, se não nos alçamos até suas condições extrativas, o enunciado continua oculto; desde que tenhamos atingido as condições, ao contrário, ele está visível e diz tudo. [...] Que tudo seja sempre dito, em cada época, talvez seja esse o maior princípio histórico de Foucault: atrás da cortina nada há para se ver, mas seria ainda mais importante, a cada vez, descrever a cortina ou o pedestal, pois nada há atrás ou embaixo (Deleuze, 2005, p. 63).

Em síntese, o visível e o dizível não são reduzidos ao olhar e à fala, pois isso obscurece a complexidade dessas produções. Além disso, as visibilidades e as dizibilidades não são imediatamente perceptíveis nem óbvias, mesmo que explícitas, e simultaneamente não há nada por trás ou ao lado, pois tudo é dado a ver e a enunciar. O que é importante são as condições de possibilidade dos enunciados e das visibilidades, as quais são muito mais do que o dizer e o ver, pois se desenvolvem nas relações de poder que abrangem a história, a economia, a política, o governo, as instituições, a cultura, entre tantos outros elementos.

Esse posicionamento de entender o processo de pesquisar como uma prática de si do sujeito-pesquisador-escritor, uma ascese, que pode ter como equipamentos, como paraskeué, a pesquisa intervenção com a intervenção fotográfica e/ou dos signos artísticos em geral, constitui uma estratégia potente de reflexão ética construída na prática e como experiência. Dobrando as linhas de visibilidade e de invisibilidade em um processo de pesquisa, tais equipamentos produzem efeitos interessantes e materialidades que provocam e convocam reflexões.

Segundo Sontag (2004), analisando o fotografar como ação a partir quer da leitura, quer da intervenção fotográfica, é possível pensar que há também uma intervenção e uma implicação no ato de pintar, como o exercitar um olhar, e no ato de provocar outros modos de ver. A intervenção imagética inserida no contexto da pesquisa-intervenção busca tensionar, problematizar e provocar os modos de ver e as éticas do ver, para intervir nas linhas de visibilidade/invisibilidade nos processos educativos, convocando produções e reflexões. Essa hipótese seria aplicável ao uso de signos artísticos imagéticos e literários como auxiliares no processo de fuga à padronização e abertura à criação?

Assim, propomos um aliançar entre pesquisadores e todos aqueles potencialmente interessados-implicados nas questões da relação entre pesquisa, educação, cultura e arte, a pensar, junto às imagens literárias e pictóricas, a vida que insiste em transbordar em meio às ‘verdades’ impostas que engessam o nosso olhar e o nosso dizer. Se concordamos com a premissa deleuziana de um forte ataque capitalístico às vidas produzidas nos corpos, isto é, na produção de subjetividades, pensamos ser também possível fazer uma leitura imagética do inverso dessas forças de contenção. A quantidade de imagens que produzem o modo de ser necessário ao capitalismo é inegavelmente fácil de encontrar; todavia, acreditando na aposta ética de que a vida e a resistência antecedem as tentativas de controle, pensamos ser também possível dizer isso para a produção imagética do mundo, para as imagens que espalham vida. A fuga aos padrões universalizantes de modelização relaciona-se com a abertura para a vida, para o engendramento de linhas de singularização da vida em contraposição às linhas de sujeição e morte.

Problematicamente partimos do princípio de conceber as existências não como um arquivo inerte, suposto depósito das memórias do mundo, mas em sua relação com o gesto - no caso, ao modo do voo dos pássaros para encontrar o azul - como uma proposição de existência que se instaura em uma rede de relações, isto é, o continuum variável de nossa vida. Não temos a pretensão de fixar sentidos, mas visibilizar as linhas de vida que testemunhamos e implicam uma ‘vontade de arte’ (Lapoujade, 2017a). Em dada medida, é questão política perguntar: como fazer com que a vida singular de cada corpo consiga se expandir, a tal ponto que ultrapasse os próprios limites e expanda movimentos em direção a ‘uma’ vida como obra de arte?

Uma vida como obra de arte na produção de novos modos político-ético-estéticos de vida em luta nos espaços-tempos escolares por currículos não fundamentalistas e por um ensino não dogmático. O artigo indefinido é evidenciado por aprendermos com Deleuze (2002) que a vida não se resume a um Eu, mas é sempre multiplicidade, coletivos, singularizações. Lançamo-nos assim contra as imposições de um único mundo possível que, com seus dogmas, esfarela os tempos de vida dos sujeitos. Dogmas que também atravessam as escolas e subjugam professores e alunos.

O fundamentalismo que torna a pesquisa e a docência dogmáticas, com seu poder de corte e segregação social, gera medo com a presença do outro, privando-nos de conhecer laços afetivos individuais e, de modo especial, laços coletivos, levando em conta a arte como um laço afetivo coletivo, ou seja, como signos atravessados por múltiplas forças que pontuamos nesta escrita como um meio de resistência. Isso porque a arte e o sensível podem tornar-se um modo de resistir pela abertura perceptual para outros mundos compossíveis ou não.

Nos movimentos de pesquisa, acreditamos que professores e alunos podem fazer outros usos do espaço, do corpo, da linguagem e inventar relações afetivas como práticas éticas, reinventando modos de composições entre os corpos. A cultura e a arte abrem para novos/outros modos de apropriação da natureza, das existências, dos saberes que ampliam e enriquecem as relações afetivas, a solidariedade coletiva, pois opulentam a vida como espaço de trocas afetivas, de criações poéticas, de relações inclusivas que se multiplicam pela potência criativa e refundam as relações de luta poder/saber.

Nessas lutas, em geral, sobressaem as demandas daqueles que detêm direitos, no caso, os aqui chamados ‘maiorias’. As ‘minorias’, aqueles que diferem da axiomática dominante, são desprovidas de direitos e, em geral, de linguagem-força para estabelecê-los. Isso porque o direito se tornou inseparável da determinação de um fundamento sob o qual a maioria pode reivindicar esse ou aquele direito. Os despossuídos são aqueles que não se enquadram no fundamento estabelecido pelos que detêm o saber e o poder, enquanto estes últimos se aprazem em decidir sobre sua distribuição e partilha. Então, como nos afirma Lapoujade (2017b), trata-se de uma questão política, mas também estética e cultural. Conquistar o ‘direito’ de existir, eis o desafio!

Considerações finais

Para o azul entrar em casa, quais efeitos tem a arte sobre a cultura, a vida e a pesquisa que insiste em transbordar em narrativas cristalinas-fabulatórias? Ante a necessidade de aumentarmos a potência de sermos afetados, entendemos a cultura e a arte como via de acesso a afetos até então desconhecidos (Rayel, 2017). Nesse sentido, compreendemos ser nossa percepção que está condicionada aos ‘imperativos da vida prática’. Agimos - ou somos agidos - por forças reativas e/ou paixões que nos dominam, que diminuem nossa potência de agir. No entanto, se, em Espinosa (2007), é possível abandonar, ao menos em parte, o mundo das paixões, ao selecionarmos os afetos alegres, vemos também, em Nietzsche (2014), a possibilidade de afirmarmos a vida (Figura 2). E a vida é afirmada em meio às forças, em um embate constante para criar “[...] a fraqueza de vontade, ou, para falar especificamente, a incapacidade de não reagir a um estímulo é propriamente outra forma de degenerescência” (Nietzsche, 2014, p. 32); em Foucault (2006), notamos a escrita de si como mecanismo de captação do eu e dos outros que nos habitam; essa alteridade inerente a si mesma, ao próprio sujeito, pode levar-nos à construção de si por meio da construção de caminhos que sejam capazes de conectar os muitos passos vividos no eu no encontro com o outro; em Deleuze (1988), vimos o afirmar da vida por meio da repetição no eterno retorno que conserva da memória apenas a forma pura do tempo, a saber, a disjunção, a diferença de si no tempo, o que significa que a terceira síntese não faz retornar mais nada do passado, só diz respeito ao devir. O devir torna-se possibilidade do acontecimento não no sentido de um projeto, mas de abertura e/ou dobra para o engajamento num pensamento extraordinário como pensamento-mundo, impessoal, que extravasa as regularidades do pensamento ordinário, mesmo porque, nesse caso, a memória nada mais tem de pessoal, tornando-se uma memória-mundo ou memória-cosmo O eterno retorno é a eterna afirmação do ser, da positividade, que, por natureza, diverge. É a efetivação da multiplicidade e dos devires, por isso o eterno retorno produz o devir-ativo. E os devires são puras positividades, pois fazem do querer uma criação, efetuam a equação querer = criar (Deleuze & Guattari, 1996).

Figura 2 Para encontrar azul, eu uso pássaros (Barros, 2021).  

O importante é que se estabeleça uma implicação entre a pesquisa, seus agentes, a cultura e a arte, de modo que criem uma linguagem intensiva, vibrátil, característica de um sistema linguístico-imagético em contínuo desequilíbrio, em bifurcação com seus termos em variação contínua, produzindo ‘coleções de sensações intensivas’, ‘blocos de sensações variáveis’ todo um modo de individuação impessoal, de individuação sem sujeito, de singularidade definida por afetos, potências, intensidades.

Onde antes apenas formas acabadas pareciam existir, vemos a tensão de um traço que titubeia por querer explorar o que está além do conhecido, por querer atravessar os limites do real com a invenção em narrativas cristalinas e fabulatórias.

Sendo assim, somos lembrados de que a arte é a mais alta potência do falso. Ela, falseadora, nada quer de limite. Antes, quer borrar os limites do real, da vida reduzida às explicações, da vida que já sabe tudo sobre si mesma. Se o conhecimento, conforme destacamos antes, dá à vida leis que a separam do que ela pode, que a poupam de agir e, de modo geral, a proíbem de agir (Deleuze, 2018), a arte e a cultura, ao contrário, afirmam a vida justamente quando a vida falseia, quando a vida engana a própria vida, fazendo-a acreditar que pode mais. “A potência do falso deve ser elevada até uma vontade de enganar, vontade artista que é a única capaz de rivalizar com o ideal ascético e de se opor a ele com sucesso” (Deleuze, 2018, p. 132).

Se a cultura e a arte exercem seus sentidos quando criam, que seja então um encontro com a pesquisa sem corpo-ensinante, encontro de trocas e de aprendências, uma pesquisa que, em narrativas cristalinas e fabulatórias, falseie o mundo em um devir artístico, uma pesquisa como um grande e afirmativo pensar-agir coletivo.

Referências

Baremblitt, G. (1998). Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. Belo Horizonte, MG: Instituto Felix Guattari. [ Links ]

Barros, M. (2020). Ensolarado [37 cm x 24 cm]. Recuperado de http://www.marthabarros.com.br/start.htmLinks ]

Barros, M. (2021). Para encontrar azul eu uso pássaros [100 cm x 100 cm]. Recuperado de http://www.marthabarros.com.br/start.htmLinks ]

Branco, G. C. (2000). Considerações sobre ética e política. In V. Portocarrero, & G. C. Branco (Orgs.), Retratos de Foucault (p. 310-327). Rio de Janeiro, RJ: Nau. [ Links ]

Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição (L. B. L. Orlandi, & R. Machado, Trad.). São Paulo, SP: Graal. [ Links ]

Deleuze, G. (1990). As potências do falso. In G. Deleuze, A imagem-tempo: Cinema 2 (E. A. Ribeiro, Trad., p. 155-188). São Paulo, SP: Brasiliense. [ Links ]

Deleuze, G. (1991). A dobra: Leibniz e o Barroco (L. B. L. Orlandi, Trad.). Campinas, SP: Papirus. [ Links ]

Deleuze, G. (1996). O que é um dispositivo? In G. Deleuze, O mistério da Ariana (E. Cordeiro, Trad., p 56-62). Lisboa, PT: Vega-Passagens. [ Links ]

Deleuze, G. (2002). Conversações (P. P. Pelbart, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Editora 34. [ Links ]

Deleuze, G. (2005). Foucault (C. S. Martins, Trad.). São Paulo, SP: Brasiliense. [ Links ]

Deleuze, G. (2008). Abecedário de Gilles Deleuze [Entrevista concedida a] Claire Parnet). Biblioteca Nômade. Recuperado de https://www.bibliotecanomade.com/2008/03/arquivo-para-download-o-abecedrio-de.htmlLinks ]

Deleuze, G. (2018). A imagem-tempo: cinema 2 (E. A. Ribeiro, Trad.). São Paulo, SP: Editora 34. [ Links ]

Deleuze, G. & Guattari, F. (1996). Micropolítica e segmentaridade. In G. Deleuze, & F. Guattari, Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (p. 83-115). Rio de Janeiro, RJ: Editora 34. [ Links ]

Espinosa, B. (2007). Ética (T. T. Silva, Trad.). Belo Horizonte, MG: Autêntica. [ Links ]

Foucault, M. (1975). Vigiar e punir: nascimento da prisão (R. Ramalhete, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. [ Links ]

Foucault, M. (1992). A escrita de si. In M. Foucault, O que é um autor? (p. 129-160). Lisboa, PT: Passagens. [ Links ]

Foucault, M. (2000). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Graal. [ Links ]

Foucault, M. (2006). A escrita de si. In M. Foucault, Ética, sexualidade, política (p. 144-162). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. [ Links ]

Gauthier, J. (2014). Tudo que não inventamos é falso: dispositivos artísticos para pesquisar, ensinar e aprender com a sociopoética. Fortaleza, CE: Eduece. [ Links ]

Gros, F. (2004). Situação do curso. In M. Foucault, A hermenêutica do sujeito (p. 613-661). São Paulo, SP: Martins Fontes. [ Links ]

Heuser, E. M. D. (2010). Pensar em Deleuze: violência e empirismo no ensino da filosofia. Ijuí, RS: Editora Unijuí. [ Links ]

Lapoujade, D. (2017a). Potências do tempo (H. S. Lencastre, Trad.). São Paulo, SP: n-1 Edições. [ Links ]

Lapoujade, D. (2017b). As existências mínimas (H. S. Lencastre, Trad.). São Paulo, SP: n-1 Edições. [ Links ]

Lourau R. (1975). A análise institucional. Petrópolis, RJ: Editora Vozes. [ Links ]

Lourau, R. (2004). Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo, SP: Hucitec. [ Links ]

Lourenço, S. G. (2019). A força do riso como máquina de luta entre a atenção e o apego à vida (Tese de Doutorado). Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória. [ Links ]

Machado, R. (2009). Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. [ Links ]

Nietzsche, F. (2014). Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo (L. Viesenteiner, Trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. [ Links ]

Ramos, R. F. (2021). Ensaios e experimentações dos sentidos do corpo: Entre ficções e realidades em escola de periferia urbana (Tese de Doutorado). Universidade Federal Fluminense, Niterói. [ Links ]

Rayel, M. L. (2017). Gesto, afeto e arte em Espinosa. Algazarra, 1(5), 196-214. [ Links ]

Rolnik, S. (2016). A hora da micropolítica. São Paulo, SP: n-1 Edições. [ Links ]

Roseiro, S. Z. (2021). Imagens de escola: é possível fabular o vazio? (Exame de Qualificação de Doutorado). Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória. [ Links ]

Sontag, S. (2004). Sobre fotografia. São Paulo, SP: Companhia das Letras. [ Links ]

1As pinturas de Martha Barros entram nesse texto como narrativas cristalinas e fabulatórias.

2Esses três exemplos buscam ilustrar escritas de si em modos, cristalinos e fabulatórios, diferenciais em sua relação com o outro, em problematizações que instigaram os processos de análise de implicação em suas pesquisas. O primeiro e o segundo exemplos foram extraídos de duas teses de doutorado, o terceiro de uma proposta de qualificação de doutorado. Todas referenciadas.

7NOTA: Janete Magalhães Carvalho, Sandra Kretli da Silva e Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni, declaramos que fomos as responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

3In this text, Martha Barros’s paintings are crystalline and fabulating narratives.

Recebido: 29 de Outubro de 2022; Aceito: 10 de Março de 2023

*Autor para correspondência. E-mail: sandra.kretli@hotmail.com

INFORMAÇÕES SOBRE AS AUTORAS Janete Magalhães Carvalho: Doutora em Fundamentos da Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão Com-Versações com a Filosofia da Diferença em Currículos e Formação de Professores. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9906-2911 Email: janetemc@terra.com.br

Sandra Kretli da Silva: Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora Adjunta do Departamento de Teorias do Ensino e Práticas Educacionais (DTEPE); do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE); e do Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Educação (PPGMPE) da mesma universidade. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0107-8726 Email: sandra.kretli@hotmail.com

Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera Delboni: Doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professora Adjunta do Departamento de Teorias do Ensino e Práticas Educacionais (DTEPE); do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE); e do Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Educação (PPGMPE) da mesma universidade. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3950-0427 Email: taniadelboni@terra.com.br

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons