SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.45Zapping: methodological arsenal to tune death policies and affirmative escapes in a curriculumResearch on everyday life author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Acta Scientiarum. Education

Print version ISSN 2178-5198On-line version ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.45  Maringá  2023  Epub Aug 01, 2023

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v45i1.65150 

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS

Montar um céu estrelado: possibilidades metodológicas com imagens na pesquisa em educação

Montando un cielo estrellado: posibilidades metodológicas con imágenes en la investigación educativa

Gregory da Silva Balthazar1  * 

Livia de Rezende Cardoso2 

Lydia Huerta Moreno3 

1Universidade Tiradentes, Av. Murilo Dantas, 300, 49032-490, Aracaju, Sergipe, Brasil.

2Universidade Federal de Sergipe, São Cristovão, Sergipe, Brasil.

3University of Nevada, Reno, Nevada, Estados Unidos.


RESUMO.

A presente escrita é um esforço de realçar possibilidades metodológicas frente ao trabalho infinito diante da imagem, uma vez que, como bem nos ensinou Foucault, existe uma relação incontornável de irredutibilidade da imagem à palavra, e desta àquela. Com efeito, e a partir das teorizações arquegenealógicas foucaultianas, objetivamos delinear alguns caminhos metodológicos para pensarmos em uma pedagogia ética do olhar diante da imagem. Para tanto, argumentamos sobre a potência metodológica de uma arqueologia do saber das imagens, isto é, um exercício genealógico de pensar a multiplicidade de sentidos sobre e com imagens na tessitura do conceito de montagem proposto por Georges Didi-Huberman: os modos como as imagens, enquanto entes estelares singulares, nos permitem produzir, quando colocadas lado a lado, como em uma espécie de novos desenhos constelares, possíveis aprendizagens de resistências, de zonas de respiro, de espaços de criação do pensamento. Seguindo suas pistas, a partir de sua análise do Atlas Mnemosyne do historiador da arte alemão Aby Warburg, entendemos a montagem como um movimento genealógico que procura enfatizar o trabalho infinito diante de uma imagem, um exercício que nos permita pensar diferentemente o que somos e o que podemos vir a ser. Nesse bailado cintilante, a montagem tenta apreender a dança sobrevivente e anacrônica que é a historicidade mesma do acontecimento que é a imagem - aparecimentos, destruição e renascimentos, ou melhor, uma arqueologia do saber da e sobre a imagem que impõe à ordem do saber uma dupla condição: o inesgotável da imagem - a exuberância de seu aparecimento, o modo como nos abre para além do já sabido - e o abismal da imagem - as dimensões da imagem que se fazem irredutíveis à provisoriedade do ato de olhar, um não-saber que é intransponível ao nosso olhar diante da sobrevivência que fazem as imagens pulsar como entes vivos.

Palavras-chave: imagem; montagem; metodologia; genealogia; educação

RESUMEN.

El presente escrito muestra las posibilidades metodológicas al trabajar con la imagen, ya que, como nos enseñó Foucault, existe una relación insoslayable de irreductibilidad de la imagen a la palabra, y de una a la otra. En efecto, y a partir de las teorías arque-genealógicas de Foucault, pretendemos esbozar algunos caminos metodológicos para pensar una pedagogía ética de la mirada de la imagen. Para ello, argumentamos sobre la potencia metodológica de una arqueología del conocimiento de las imágenes, es decir, un ejercicio genealógico de pensar la multiplicidad de significados sobre y con las imágenes en el entramado del concepto de montaje propuesto por Georges Didi- Huberman: los modos en que las imágenes, como seres estelares singulares, nos permiten producir, puestas una al lado de la otra, como en una especie de nuevos dibujos de constelaciones, posibles aprendizajes de resistencias, zonas de respiración, espacios de creación de pensamiento. Es a partir del análisis del Atlas Mnemosyne del historiador de arte alemán Aby Warburg, que entendemos el montaje como un movimiento genealógico que busca enfatizar la obra infinita frente a una imagen, un ejercicio que nos permite pensar diferente sobre lo que somos y lo que podemos llegar a ser. En este centelleante ballet, el montaje intenta aprehender la danza sobreviviente y anacrónica que es la historicidad misma del acontecimiento que es la imagen -apariciones, destrucciones y renacimientos, o más bien, una arqueología del saber de y sobre la imagen que se impone al orden del conocimiento una doble condición: lo inagotable de la imagen -la exuberancia de su apariencia, el modo en que nos abre más allá de lo ya conocido- y lo abismal de la imagen -las dimensiones de la imagen que se hacen irreductibles a lo provisional como la naturaleza del acto de mirar, un no-saber infranqueable a nuestra mirada frente a la supervivencia que hace que las imágenes palpiten como seres vivos.

Palabras-clave: imágen; montage; metodologia; genealogia; educatción

ABSTRACT.

This article explores methodological possibilities when working with an image, since, as Foucault taught us, there is an unavoidable relationship of irreducibility from the image to the word, and vice versa. We aim to outline some methodological paths to think about an ethical pedagogy of looking at the image based on Foucault’s archeo-genealogical theories. To do so, we argue for the methodological power of an archeology embedded in the knowledge of images. This genealogical exercise allows us to think about a multiplicity of meanings about and with images anchored in Georges Didi-Huberman’s concept of montage where images as singular stars, when placed next to each other, allow for drawings of constellations that produce new spaces for the creation of thought, breathing zones and possible learnings of resistance. Drawing from the analysis of the Atlas Mnemosyne by the German art historian Aby Warburg, we use the term montage as a genealogical movement that seeks to emphasize the infinite work in front of an image, an exercise that allows us to think differently about what we are and what that we can become. In this scintillating ballet, a montage tries to apprehend the surviving and anachronistic dance that is the very historicity of the event that is the image - appearances, destruction and rebirths, or rather, an archeology of knowledge of and about the image that imposes a double condition on the order of knowledge: the inexhaustibility of the image and its abysmality. In its inexhaustibility we refer to the exuberance of its appearance, the way it opens us up beyond what is already known. It its abysmality we refer to, the dimensions of the image that are made irreducible to the provisional nature of the act of looking, a not-knowing which is insurmountable to our gaze in the face of the survival that make the images pulsate like living beings.

Keywords: image; montage; methodology; genealogy; education

Introdução

Diante da página em branco, a difícil tarefa de produzir escrita, de sujar não somente o branco da folha, mas nossas mãos, nossos corpos, nossas subjetividades. Enfim, nós mesmas, mexidas, transformadas por aquilo que escrevemos. Inspiradas em Michel Foucault, a escrita é, aqui, problematizada como um modo de mobilizarmos o nosso pensamento em um movimento de transformação do que somos. Nas palavras de Foucault, a escrita de seus livros se construiu como um exercício de “[...] fazer [de si] mesmo, e de convidar os outros a fazerem [consigo] [...] uma experiência do que somos, do que é não apenas nosso passado, mas também nosso presente, [...] de tal forma que saíssemos transformados” (Foucault, 2013a, p. 192).

Na esteira de Foucault, não é, de modo algum, nova a reflexão no campo da educação, da escrita como um modo alternativo de criação de formas outras de pensar, dizer e, potencialmente, de relacionarmo-nos conosco e com os outros (Fischer, 2005; Loponte, 2006; Meyer & Paraíso, 2012). Com efeito, esse texto é um exercício de definição de um caminho teórico-metodológico possível à pesquisa com e sobre imagens em educação, pensando este caminho, antes de tudo, como um ato ético-político que assumimos diante daquilo que no mundo nos toca e que, consequentemente, transformamos em objetos de pesquisa. Se apostamos, como dito acima, na escrita como um modo de implicação de nós mesmos, é porque ela se constitui, para nós, como uma tarefa de impregnar cada dito e escrito que produzimos com a “[...] paixão daquele que cria [...]”, como nos convidou a pensar Rosa Fischer (2005, p. 117). Escrever, portanto, seria um ato ético-político pelo e no qual podemos problematizar como o que estudamos “[...] tem a ver com nossa vida, com aquilo que amamos e que se faz carne viva em nós” (Fischer, 2005, p. 117).

No campo da educação, a pesquisa com imagem esteve, como é possível observar, em um panorama mais geral do GT 23 da ANPEd, profundamente marcada pelas lentes teórico-conceituais dos estudos culturais em educação implicados à analítica de poder de Michel Foucault. A partir de uma pluralidade de “[...] regimes de visualidade (filmes, novelas, jogos eletrônicos, propagandas, game shows), as imagens, entendidas como artefatos culturais, operam como potentes pedagogias culturais na contemporaneidade, transmitindo saberes e valores, palavras e conselhos, que nos interpelam cotidianamente e, assim, ensinam modos normativos de ser e de viver” (Balthazar & Marcello, 2018, p. 9). Para além dessa marca decisiva do campo da educação, almejamos sugerir alguns delineamentos teórico-metodológicos que nos permitem propor uma escrita que se afaste da dimensão educacional disciplinadora dos corpos em direção à proposição de possíveis aprendizagens de resistências, de zonas de respiro, de espaços de criação pulsantes nas e pelas imagens, já que, “[...] uma pedagogia que toma posição pela, na e com a imagem é, portanto, uma pedagogia que nos provoca a ‘ver abismos ali onde estão lugares comuns’. É uma pedagogia que nos mobiliza aprender não pelo consenso, mas pelo conflito, pelo desvio, pela diferença” (Balthazar, 2019, p. 219, grifo nosso).

Em outros termos, objetivamos contribuir com pesquisas em educação que têm buscado “suscitar novos trabalhos ‘em direção a outro ‘efeito Foucault’ nas pesquisas em educação’ - para além das disciplinas e da analítica do poder, para além dos modos de subjetivação que ‘nos constrangem’, para além das práticas de vigilância e punição - mas, obviamente, sem abandonar tais aspectos absolutamente imprescindíveis aos estudos foucaultianos” (Fischer & Marcello, 2016, p. 160, grifo nosso). Nesse sentido, e no âmbito da pesquisa com imagens, este é um trabalho infinito, como disse Foucault (1987) ao pensar a relação da irredutibilidade da imagem à palavra, e desta àquela. Afinal, “[...] por mais que se diga o que se vê, o que se vê não está jamais no que se diz, e por mais que se faça ver por imagens, metáforas, comparações o que se vai dizer, o lugar onde elas resplandecem não é aquele que os olhos percorrem, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem” (Foucault, 1987, p. 25). Com efeito, Foucault fala de uma força na imagem que perturba a possibilidade mesma de, pela palavra, sabermos nomear tudo que vemos pelo imperativo da representação; “[...] não por incompetência de quem olha, mas por resistência da própria imagem, que desdobra os ditos que se fazem sobre ela sempre em novas possibilidades” (Marcello, 2005, p. 56). Nos termos de uma questão, assumimos o desafio de problematizarmos: como propor uma metodologia que se traduz, minimamente, como o infinito da tarefa ética do olhar diante da imagem? Como, mais especificamente, construir uma metodologia que faça com que essa tarefa nos permita apreender as imagens justamente onde nos escapam, no espaço em que se tecem relações de não-saber que são potência à vida?

Sob o prisma dessas proposições, lançamo-nos ao trabalho quase mudo de ensaiarmos uma metodologia que nos coloque na fronteira da ação/passividade diante do constrangimento que a imagem nos provoca ao escapar, como um clarão, da ordem da palavra, do saber, da representação. Para dar conta disso, argumentamos sobre os delineamentos de uma ‘arqueologia do saber das imagens’, isto é, um exercício genealógico de pensar sobre e com imagens na tessitura do conceito de montagem proposto por Georges Didi-Huberman, a partir de sua leitura de filósofos como Aby Warburg, Walter Benjamin e, de forma mais decisiva para nós, Michel Foucault. Assim sendo, a aposta metodológica que fazemos reside em como a montagem nos permite afastarmo-nos da ideia da imagem como fruto singular de uma vontade de saber em direção a um conceito de imagem que se faz irredutível à ordem do discurso, sugerindo-nos a possibilidade de apreendermos, mesmo que de forma contingente, aquilo que nas imagens escapa à nossa cognoscência e nos convoca a transformar o pensamento.

Uma escolha ética diante da vida e da morte da imagem

Para dar continuidade à nossa discussão, retomamos uma pergunta lançada por Silvio Gallo (2016, p. 16): “[...] o que pode uma imagem?”. Levando em consideração o lugar quase onipresente das imagens em nossa cultura, tal como diversas autoras e autores têm apontado (Didi-Huberman, 2012; Alloa, 2015; Sontag, 2004), Gallo nos convocou a desafiar os sentidos tão enraizados, nas sociedades ocidentais, de uma correspondência quase incontornável entre o conceito de imagem àquele de representação, sob o qual a “[...] imagem informa, conforma, induz ao não-pensamento” (Gallo, 2016, p. 20). Estamos, portanto, diante de uma proposição metodológica sobre o conceito de imagem que buscamos, aqui, nos afastar: a imagem como um artefato cultural que nos educa tão somente de forma normativa - o que, nos termos de Jacques Rancière (2015, p. 192), é uma aposta em que “[...] as imagens não seriam nada, somente simulacros sem vida, e seriam tudo, a realidade da vida alienada”. Sob essa aposta teórico-metodológica em tela, tornar-nos-íamos diante das imagens indivíduos singularmente assujeitados às verdades hegemônicas de nosso tempo: “[...] quando estamos diante de uma imagem - da arte, da mídia, do cinema, do teatro - percebida como um instrumento dos poderes instituídos (do biopoder), estabelece-se, no ato de olhar, uma relação pedagógica marcadamente dogmática; ensinando-nos saberes e valores sob os quais nossos corpos precisam se construir e se conformar” (Balthazar, 2019, p. 215).

Operacionalizar uma metodologia com e sobre imagens sob o imperativo da representação diz, como bem nos ensina Georges Didi-Huberman, de uma escolha ética nossa, enquanto pesquisadoras e pesquisadores, de estabelecer uma vontade de poder ‘sobre’ a imagem, em um movimento que empobrece suas potências e sentidos sob a égide do nosso desejo de cognoscência: “[...] compreende-se que se trata, uma vez mais, de sublinhar o gesto sem o qual a [imagem] perde sua densidade poética e se desseca em um discurso imóvel e morto” (Didi-Huberman, 2017, p. 198). Assumir uma visão crítica sobre a ideia de imagem como mera representação, como sintoma da ordem normativa das coisas, é um exercício de delinearmos uma aposta outra sobre o conceito de imagem, de modo que pudéssemos falar, nos termos de Silvio Gallo (2016, p. 23), em “[...] uma imagem-pensamento [...]” em educação: uma imagem que, na relação conosco, no ato mesmo de olhar, “[...] delira e cria”. Falamos, portanto, de um entendimento sobre a imagem que privilegia as dimensões que, nela, nos convocam a tensionar as verdades das quais somos sujeitos, o que, para nós, se constitui como um gesto de nos abrirmos à potência pedagógica da imagem em “[...] desconstruir e, em seguida, renovar nossa linguagem e, por conseguinte, o nosso pensamento” (Didi-Huberman, 2015a, p. 306).

Como, então, nos guiarmos, metodologicamente falando, frente a todas as armadilhas potenciais do sentido múltiplo das imagens? Como organizar uma forma de saber que não assuma o nosso olhar de pesquisadoras ou pesquisadores como o elemento fundante, mas como elemento de passagem diante de um objeto que nos transcende em termos de vida e morte? Se, como colocou Didi-Huberman (2012, p. 211), pesquisar com imagens é estar “[...] diante de um imenso e rizomático arquivo de imagens heterogêneas difícil de dominar, de organizar e de entender, precisamente porque seu labirinto é feito de intervalos e lacunas tanto como de coisas observáveis [...]”, é no exercício de apreender esse arquivo em seus jogos de vida e morte, de sobrevivências e destruições, que se exige um exercício de imaginação e montagem que tome como lócus primeiro a historicidade mesma das imagens: é tentar fazer uma arqueologia que sempre nos convoca a nos “[...] arriscar[mos] a por, uns juntos a outros, traços de coisas sobreviventes, necessariamente heterogêneas e anacrônicas, posto que vêm de lugares separados e de tempos desunidos por lacunas” (Didi-Huberman, 2012, p. 211).

Falar de uma arqueologia do saber das imagens exige, irremediavelmente, que nos debrucemos sobre o conceito de história proposto pelo pensamento de Michel Foucault. Assim, tomar o método genealógico foucaultiano como inspiração de uma metodologia com e sobre imagens sempre inconformada com o conforto do já sabido, nos afasta do lugar da fixidez da “[...] história dos historiadores [...]”, como colocou Foucault (2013b, p. 284). Colocando-nos, assim, nas águas turbulentas de uma história ‘que reintroduzir[á] o descontínuo em nosso próprio ser’, enfim, que ‘dividirá nossos sentimentos; dramatizará nossos instintos; multiplicará nosso corpo e o oporá a si mesmo’. Como um riso frente às pretensões de alcançar a verdade sobre passado, a genealogia foucaultiana coloca, de muitos modos, o fato histórico em rasura, propondo-nos problematizar a infinitude de uma miríade de acontecimentos como um descontinium que, de algum modo, nos toca e nos convoca ao pensamento.

Dito isso, compreendemos que a cinzenta genealogia de Michel Foucault permitiu a autores, como Georges Didi-Huberman, ampliarem o léxico de metodologias sobre a imagem, rompendo, como já colocamos, com a ideia de uma história total em nome de uma história que privilegia o descontínuo dos acontecimentos. Nisso reside uma e mesma tarefa: a de “[...] ‘assinalar a singularidade dos acontecimentos’, fora de qualquer finalidade monótona, espreitá-los lá onde menos se espera e no que passa por não ter história alguma” (Foucault, 2013b, p. 273, grifo nosso). Dito de outro modo, Foucault propôs, ao privilegiar as singularidades, fazer uma história de forma distante da busca de uma origem: este lugar que guardaria, de maneira unívoca, toda e qualquer verdade sobre o passado.

No âmbito dos estudos de imagem, a ideia de origem se aproximaria das propostas de análise de olhar de época de Michael Baxandall (2006), uma vez que privilegia problematizar a arte a partir de uma perspectiva da história social. Em uma crítica à proposta de Baxandall (2006), Lúcia Kern (2010) pontuou como este historiador social da arte propôs que operássemos com a ideia de categorias visuais historicamente pertinentes, de modo que, para compreender uma imagem, seria preciso aproximá-la de uma fonte pertencente a uma realidade intrínseca, ou seja, produzidas em seu tempo. Como exemplo, lembramos de como Baxandall (2006) analisou a obra Dame prenant son thé (1735) do pintor barroco Jean-Baptiste Chardin, relacionando-a a outras produções do mesmo período: a tendência empiricista presente na filosofia (a exemplo de John Locke) e na ciência (a exemplo de Isaac Newton); pois, para este historiador social da arte, “[...] há certa afinidade entre um tipo de pensamento e um tipo de pintura” (Baxandall, 2006, p. 123).

Há, aqui, uma imbricação da ideia do olhar de época com alguns mitos herdados das concepções que circundaram o historicismo do século XIX, colocando as imagens sob a premissa do eucronismo: pensar o passado a partir de categorias e de analogias com fontes do próprio período. Assim, um mesmo marcador temporal seria o aglutinador de um conjunto dado de artistas, de imagens, procurando, sobremaneira, uma essência que tais obras teriam, partilhariam, como sintomas de um mesmo tempo (Didi-Huberman, 2015b). Nos termos da crítica de Foucault (2013b, p. 275, grifo do autor), “[...] procurar tal origem é tentar recolher o que ‘era antes’, o ‘aquilo mesmo’ de uma imagem exatamente adequada a si; [...] é querer tirar todas as máscaras para finalmente desvelar uma identidade primeira”. Como já referido a partir das análises de Didi-Huberman (2015b), esta premissa temporal eucrônica é cara à iconologia, sobretudo aquela vinculada às disposições de Panofsky. Nela, a imagem é concebida como um resquício de um tempo ido que, de algum modo, poderia ser restaurado, em sua totalidade e verdade essencial, mediante - tomando emprestado o termo de Foucault (2013b, p. 275) - o olhar do historiador que não “[...] escuta a história [...]” e, sim, a crê “[...] como metafísica”.

Como demonstrou Georges Didi-Huberman (2015b), algo se perde da potência das imagens no momento em que perseguimos, de modo singular, o eucronismo, mesmo que essa seja uma dimensão importante, fundamental e intransponível. Assim sendo, Georges Didi-Huberman nos convidou a pensar as imagens inscritas num outro tempo, alheio à busca incessante do historiador da arte que enquadra a imagem como um sintoma de seu momento de criação, como portadora de uma essência do contexto de sua primeira aparição (como se ela fosse, portanto, apenas um efeito, o resultado quase óbvio de determinado contexto; a obsessão por enquadrar as imagens da história da arte a esse ou àquele período, vinculá-las a esse ou àquele “movimento”, seriam, para o autor, apenas um exemplo disso). Ou seja, Didi-Huberman propôs mostrar justamente o contrário: como as imagens escapam à ordem canônica do discurso em história da arte.

Portanto, Didi-Huberman apostou que, nas imagens, há uma vocação à sobrevivência, fazendo-as irredutíveis ao seu tempo de produção. Como colocou o historiador francês, a imagem, enquanto forma sobrevivente, “[...] desaparece num ponto da história, reaparece muito mais tarde, por conseguinte, no limbo ainda mal definido de uma memória coletiva” (Didi-Huberman, 2013a, p. 55). No sentido de melhor exemplificar a noção de sobrevivência de Didi-Huberman, Gabriela Almeida (2016) nos mostra como a questão da sobrevivência das imagens se tornou uma chave fundamental do pensamento de Warburg, sob o termo Nachleben, de modo que a sobrevivência se refere às ressurgências ou às reaparições vividas pela imagem através do tempo. É, pois, a sobrevivência à sua própria destruição que faz, da imagem, uma constante mutação, uma espécie de rastro de tempos múltiplos que a passaram e a deslocaram. A sobrevivência da imagem é, assim, uma desorientação temporal, desafiando-nos a pensar em uma configuração anacrônica de tempo (e, por que não dizer, de história): “[...] o anacronismo seria, assim, numa primeira aproximação, um modo temporal de exprimir a exuberância, a complexidade, a sobredeterminação das imagens” (Didi-Huberman, 2015b, p. 22).

Enquanto arquivo, as imagens nunca estão ali já dispostas. Antes, elas são entes singulares que, em sua sobrevivência, em sua complexidade, colocamos juntos para compor sentidos específicos sobre nosso tema de pesquisa. Assim, à maneira de Foucault, avistar as intensidades singulares que experimentamos diante de cada imagem é, pois, apostar que cada imagem se constitui como uma espécie de estrela - em cada uma brilha, de modo muito particular, uma história de vida e morte, de clarão e apagamento, de aparição e destruição. Com efeito, pensamos a metodologia como um gesto pedagógico que nos convoca a transformar o ato de olhar, “[...] numa espécie de entrega, de deixar-se levar, de suportar um olhar em relação à intensidade de uma evidência” (Fischer & Marcello, 2016, p. 18).

Metodologicamente falando, como problematizar as fraturas, os ritmos descontínuos e os embates de tempos múltiplos pulsantes nas imagens? Mais do que isso, como apostar no caráter de sobrevivência anacrônica das imagens para problematizar a arte em sua potência de nos constranger e nos afrontar como um não-saber?

Montagem como metodologia, montagem de constelações

É preciso retornar uma vez mais à arquegenealogia, uma vez que ela nos ensina, como colocou Foucault (2013b, p. 276), a “[...] rir da solenidade da origem [...]” como um ato de nos direcionarmos a uma problematização dos acontecimentos que privilegie “[...] seus abalos, suas surpresas, as vacilantes vitórias, as derrotas mal digeridas” (Foucault, 2013b, p. 276). Assim sendo, o método genealógico é pensado aqui como permissão de olhar para as imagens não mais buscando enquadrá-las em uma linearidade possível, mas, antes, problematizado-as em seus movimentos de radicais descontinuidades e de rupturas temporais. Com isso, o que cabe é debruçar-mo-nos sobre a possibilidade de recorrer à emergência das imagens como acontecimentos singulares: “[...] essa entrada em cena das forças, os saltos pelo qual elas passam dos bastidores aos palcos” (Foucault, 2013b, p. 282).

Em uma perspectiva, Didi-Huberman nos deu pistas, a partir de sua análise do Atlas Mnemosyne do historiador da arte alemão Aby Warburg, para a construção de um caminho genealógico que nos permita problematizar as imagens nos espaços que nos escapam, convidando-nos, assim, a uma relação de suspensão do saber em nome de nos deixarmos apreender pela multiplicidade de sentidos, de memórias que habitam as imagens. Segundo este filósofo da imagem, o tempo da imagem não é o tempo da história da ciência, dos saberes, mas, tal como privilegiado no Atlas, o tempo de sua singularidade como acontecimento de tempos múltiplos: o passado que delas as imagens emana encontra-se permanentemente reconfigurado perante os múltiplos presentes que a olham; perante o futuro, é provavelmente ela quem sobreviverá a nós (Didi-Huberman, 2015b). Se a imagem é o elemento de duração e nós somos o elemento transitório, diante da imagem somos colocados à beira de fissuras temporais que as fazem irredutíveis a um saber que a tudo pretende nomear.

Por meio dos estudos de Didi-Huberman, compreendemos que Warburg pensou, com seu Atlas imagético, sobre a complexidade da vida humana, da luta cotidiana diante de uma fragilidade inelutável da vida; por isso sua recusa a fixar as imagens num relato ordenado e definitivo. Resumidamente, o Atlas é um projeto iniciado em 1924 e que reúne cerca de 20 anos de trabalho de Warburg, construindo-se, assim, como um conjunto de composições entre imagens aparentemente sem relações temporais, culturais ou geográficas. No Atlas, 971 imagens foram dispostas e organizadas sob a forma de grandes painéis, produzindo uma espécie de mosaicos, nos quais as peças (as imagens) se comunicam por uma disjunção. A historiadora Daniela Campos (2016a), em um de seus muitos estudos sobre o pensamento de Didi-Huberman e Warburg, mencionou como o Atlas Mnemosyne não teve um ponto final devido à morte do historiador da arte alemão, momento em que estava composto por 79 painéis: “[...] eram telas de madeira, de 1,5 por 2 metros, cobertas por tecido preto. Sobre tais tecidos foram fixadas cópias de quadros, reproduções fotográficas, pedaços de periódicos, imagens e textos retirados de material gráfico - organizados, assim, a partir de eixos temáticos” (Campos, 2016a, p. 14).

Na prancha 46 do Atlas (Figura 1), por exemplo, Warburg dispôs, lado-a lado, uma série de 26 imagens reunidas como uma espécie de variações anacrônicas da imagem de maior destaque da prancha, a saber, o afresco do pintor renascentista Domenico Ghirlandaio de uma mulher carregando frutas: são “[...] imagens de Lippi, Raphael, Botticelli e até mesmo uma fotografia tirada por Warburg de uma mulher camponesa em Settignano [...]. O painel também destaca como a expressão literária desempenha um papel crucial e dialógico na história da arte renascentista” (Johnson, 2012, p. 100). Assim dito, e conforme o filósofo Giorgio Agamben (2011), Aby Warburg coloca, sobre o fundo negro, imagens que são, ao mesmo tempo, reproduções de outras imagens, mas originais em seu próprio direito: Partindo de um relevo de Longobard do século VII a um afresco de Ghirlandaio em S. Maria Novella (esta última retrata a figura feminina que Warburg chamava jocosamente de ‘Miss Quickbring’ e que, numa troca sobre a ninfa, Jolles caracteriza como “[...] o objeto dos meus sonhos que se transforma cada vez em um pesadelo encantador”) (Agamben, 2011, p. 64).

O mesmo painel também contém figuras do carregador de água de Raffaello a uma camponesa toscana fotografada por Warburg em Settignano.

Para o filósofo, a prancha faz viver, em sua montagem, o sentido mesmo do objetivo mais geral da obra de Warburg e que estrutura o método mesmo de seu Atlas: os gestos, os drapeados dos tecidos ou os cabelos das figuras femininas, conhecidas (Figuras 2 e 3) e desconhecidas (Figuras 4 e 5), que habitam majoritariamente a prancha 46 são sintomáticas do ‘movimento das imagens’, sua vida enquanto entes sobreviventes, enquanto entes de historicidades anacrônicas, que assombrou o pensamento de Aby Warburg desde sua tese O Nascimento da Vênus.

Figura 1 Painel 46 do Bilderatlas Mnemosyne de Aby Warburg (1927-1929). The Warburg Institute, Londres (Warburg.libary, 2013/2016). 

Figura 2 Retrato de Giovanna Tornabuoni de Domenico de Ghirlandaio (1488), localizada no Museo Thyssen-Bornemisza em Madrid (Warburg.libary, 2013/2016). 

Figura 3 Giovanna Tornabuoni em medalha de bronze por Niccolò Fiorentino (1485) (Warburg.libary, 2013/2016). 

Figura 4 Desenho de uma mulher de Giuliano da Sangallo (Início do séc. XVI), localizado na Uffizi Gallery em Florença (Warburg.libary, 2013/2016). 

Figura 5 Mulher campesina fotografada por Aby Warburg (Sem data), localizada no Warburg Institute em Londres (Warburg.libary, 2013/2016). 

Na mesma esteira de Agamben (2011) sobre a figura da ninfa pulsante na constelação que compõe a prancha 46, Daniela Campos nos provoca a pensar como o movimento que pulsa na historicidade das imagens - sua gênese, sua vida, sua destruição, sua sobrevivência - é um dos principais elementos do pensamento com imagens de Warburg:

[...] essa inversão no olhar é uma de suas grandes características teóricas na história da arte. Warburg nos ensinou a cultivar uma observação do detalhe, os olhos que não necessariamente fitam aquilo que é mais evidente na imagem: o seu principal tema. Na tese [de doutoramento sobre a Vênus de Botticelli], Warburg deslocou ligeiramente seu olhar para as flutuantes madeixas de cabelos ao vento, para os fluidos e drapeados tecidos. E está ali, na fórmula de movimento, nessa forma fluente, que ele reconheceu com clareza, o pathos fundamental da imagem (Campos, 2020, p. 234).

Diante da prancha 46, não podemos buscar um arquétipo ou a origem da qual as imagens são derivadas, uma vez que “[...] nenhuma é original; nenhuma é simplesmente uma cópia” (Agamben, 2011, p. 64). Assim, a ninfa é, enquanto sintoma do movimento vivo da imagem, feita do próprio tempo: a ninfa é “[...] um ser cuja forma coincide pontualmente com sua matéria e cuja origem é indissolúvel de seu devir, é o que chamamos tempo; que Kant, na mesma base, definiu em termos de auto-afeição. [...]. são cristais de memória histórica, cristais que são fantasmatizados” (Agamben, 2011, p. 65). Assim, e mais do que propor uma análise per se das imagens da prancha 46, importa, para nós, mais singelamente, o que elas nos dizem sobre o método mesmo da montagem e aquilo que ela nos convida; isto é, pensar a ninfa como um personagem teórico de Warburg sobre o caráter sobrevivente e anacrônico das imagens:

A ninfa seria a personagem que apresentaria em suas madeixas e vestidos esse movimento da alma. Fixar o movimento da vida em uma imagem fora uma das grandes questões dos antigos que pareceu voltar à tona no Renascimento toscano. A vida humana é o elemento fundamentalmente fugaz. A imagem é, frente à vida, o elemento de sobrevivência. A certeza, ou a esperança, que temos é que a imagem sobreviva a nós. E como apresentar o movimento de algo tão volátil como a vida numa materialidade mais duradoura, seja ela pedra, madeira ou tela. Essa é uma das mais profundas e antigas questões que o homem travou com a imagem. Essa é uma das mais profundas e angustiantes questões que parecemos querer resolver com a ninfa. Pensar a ninfa como uma personagem teórica warburguiniana a inscreve exatamente como heroína de um tempo distante que sempre retorna (Campos, 2020, p. 237).

Estamos, portanto, de frente a uma montagem, como pode ser chamado este trabalho de Warburg: um método que tenta, de algum modo, suscitar o aparecimento, no encontro de imagens dissemelhantes, de certas relações íntimas, de certas correspondências capazes de propiciar um conhecimento transversal da inesgotável complexidade daqueles objetos (Didi-Huberman, 2013b). Pode-se dizer que, por meio do Atlas, o historiador da arte alemão se propunha a compor uma outra história da arte:

O atlas warburgiano é um objeto pensado a partir de uma aposta. A aposta de que as imagens, agrupadas de certa maneira, nos ofereceriam a possibilidade - ou melhor, o recurso inesgotável - de uma releitura do mundo. Vincular de modo diferente os pedaços díspares, redistribuir a sua disseminação, um modo de a orientar e de a interpretar, é certo; mas também de a respeitar, de a remontar sem pretender resumi-la nem esgotá-la (Didi-Huberman, 2013b, p. 21).

Assim, o Atlas era um exercício de colocar, lá onde o historicismo havia falhado, o pensamento em movimento, um pensamento pela montagem. O princípio motor do Atlas, da montagem, é a imaginação. Não falamos da imaginação como uma fantasia pessoal gratuita, mas como um exercício intenso que, no ato de olhar, pode “[...] por o múltiplo em movimento, de não isolar nada, de fazer surgir os hiatos e as analogias, as indeterminações e as sobredeterminações em jogo na imagem” (Didi-Huberman, 2012, p. 155). Com efeito, a imaginação - a exemplo do Atlas de Warburg - nos permite montar e desmontar imagens de formas plurais, colocando-as em um permanente intercâmbio capaz de, utilizando o termo de Foucault (2013b), multiplicar os acontecimentos.

Produzir uma história pela montagem é, talvez, fazer uma outra história. Com efeito, e afastada das sínteses e das ficções tornadas verdades, esta outra história nos exige assumir algo tão singular como as próprias imagens que coloca em diálogo: a multiplicação dos sentidos das imagens no momento em que são colocadas uma ao lado da outra. A imaginação se tornaria, então, o gatilho para uma (des/re)montagem das sobrevivências das imagens, em uma anacronização radical da própria história. Mais centralmente, imaginar as sobrevivências da imagem por meio da montagem é, como nos convidou Didi-Huberman (2015b, p. 16, grifo nosso) a partir de Warburg, problematizar ‘a anacronização da própria história’ por uma questão intransponível: “[...] como dar conta do ‘presente’ dessa experiência [diante da imagem], da ‘memória’ que ela convoca, do ‘futuro’ que ela insinuava?”. É, pois, de uma radical anacronização do tempo - em suas três dimensões possíveis: presente, passado e futuro - que a história, por sua vez, se vê anacronizada.

Assim, a primeira dimensão dessa questão - que por certo é indissociável das outras duas, mas tomemos, por questões didáticas, uma de cada vez - se refere aos modos como ‘a sobrevivência anacroniza o próprio presente’. Em um estudo sobre o conceito de montagem, Daniela Campos (2017) mostrou como Didi-Huberman, por meio do pensamento de Benjamin, demonstrou os modos como só podemos problematizar o passado por meio das nossas experiências presentes, sendo elas uma marca inelutável nas análises que fazemos dos resquícios do passado que chegaram até nós. Como ‘desmontagem’ de estruturas de outrem (o passado), o lugar do agora do nosso olhar desfaz a possibilidade mesma de uma história que busca a origem, a essência, de um tempo ido que residiria nas imagens, em uma espécie de dialética em que o passado que reside na imagem é, por nós, olhado no presente. Para melhor compreendermos tal movimento, lembremos, aqui, como Didi-Huberman (2015b) mostrou, com Benjamin, como esta fecundidade dialética da imagem está presente no modelo óptico do caleidoscópio, um brinquedo óptico que fez sucesso na Paris dos anos 1820. Dentro da caixa metálica, o material visual do caleidoscópio - disposto dentro do brinquedo (pedaços de vidro, de conchas, de vidrilho, de tecido) - é da ordem de um tempo passado, isto é, como traços ou rastros de passados que a imagem tocou e que a ela tocou. Como “[...] borras do tempo [...]” (Didi-Huberman, 2015b, p. 145) pretérito, a dialética do tempo opera pelo olhar que, do presente, de nosso presente, lançamos à imagem e que ela, em sua sobrevivência, lança sobre nós. Na relação do olhar, a polirritmia de tempos - tempos idos, tempos do agora - se faz a partir do encontro deste material visual desmontado dentro caleidoscópio, isto é, no giro do aparelho sob nossas mãos e nosso olhar, estes rastros do passado são remontados em (ou melhor, conjugados a habitarem) uma imagem no presente. Em outros termos, as imagens do passado são ‘desmontadas’ para serem, por nós, ‘remontadas’ no presente, formando uma espécie de ‘poética imagética da sobrevivência’.

Estamos, pois, diante da segunda dimensão da questão: ‘a sobrevivência anacroniza o passado’. Recorremos, novamente, a outro estudo de Daniela Campos realizado a partir do conceito de sobrevivência de Didi-Huberman:

[...] assim como nós, os indivíduos cujas obras estudamos tiveram distintas experimentações temporais, memórias e contato com diferentes passados. Diversas temporalidades e múltiplas representações. ‘Os artistas manipulam tempos que não são os seus’. E a imagem é um dos muitos objetos em que reverbera essa pluralidade. ‘A imagem pode ser vista e analisada em um ‘distempo’’ (Campos, 2016b p. 53, grifo nosso).

A partir do excerto acima, é preciso reconhecer os múltiplos tempos que habitam cada imagem. Como cada produção artística remonta não somente ao tempo que a olhamos, mas a um passado mais distante daquele de sua emergência. Não há origens, apenas eclosões de tempos sobreviventes. É inevitável, para nós, recordar do texto de Foucault (2013c) chamado A pintura fotogênica, escrito em 1975, por ocasião da exposição do artista Gérard Fromanger. Nele, Foucault (2013c, p. 350) fez referências a uma tradição que, por algum tempo, se perdeu nas artes visuais, àquela “[...] bela hermafrodita [...]” da “[...] imagem andrógina [...]” que conjuga uma montagem de imagens. Ao analisar o método de Fromanger, o filósofo francês nos contou como o artista foi às ruas tirar fotos ao acaso e, na sequência, na escuridão de uma sala, um projetor relançou a imagem sobre uma tela, momento em que aplicou a pintura; é um ato de “[...] criar um acontecimento-quadro sobre o acontecimento-foto [...], um foco de miríades de imagens em jorro” (Foucault, 2013c, p. 355). Em um movimento que vai da rua ao ato fotográfico e, deste, à projeção que leva à pintura, Fromanger dá a ver o movimento anacrônico de suas imagens, pois povoadas de tempos heterogêneos que fazem de suas pinturas “[...] um lugar de passagem [de tantas outras imagens que as antecedem], infinita transição, pintura povoada e passante” (Foucault, 2013c, p. 358). Ao ‘remontar’ uma ‘poética imaginal da sobrevivência’ no presente, é preciso reconhecer que as imagens não dizem de forma singular de seu momento de criação - apenas deste ou daquele movimento, desta ou daquela estética -, mas se fazem, a todo instante, um lócus de tempos impuros que são memórias de passados plurais anteriores a elas e que, talvez, sobrevivam ao nosso olhar preso ao agora.

Por fim, então, nos encontramos frente a como ‘a sobrevivência anacroniza o futuro’, pois, se desmontamos para remontar, juntar imagens nessa poética imagética da sobrevivência é, com efeito, um ato de criação de uma nova montagem. Ao rememorar as palavras de Didi-Huberman em um recente seminário, Daniela Campos (2017) nos lança uma analogia da montagem à figura misteriosa da cartomante, uma vez que, com seu baralho de imagens sobreviventes, a cartomante busca “[...] uma premonição do tempo que advir” (Campos, 2017, p. 270). Para a autora, portanto, Didi-Huberman nos provoca a pensar como ‘remontar’ diferentes tipos de imagens por uma aproximação particular é, pois, produzir transformações nas imagens, no sentido de promover, por uma nova ‘montagem’, por novos sentidos, uma espécie de ‘abertura do nosso olhar a algo novo’.

No sentido de melhor exemplificar como a sobrevivência anacroniza o futuro, podemos trazer à discussão o filme As Horas, produzido em 2003, pelo diretor Stephen Daldry. Nele, certamente, encontramos um ‘retorno presente’ (do momento de produção do filme) de lembranças de passados distantes (pelo menos, a referência à obra Mrs. Dolloway escrita por Virginia Woolf, no início dos anos 1920, e às vidas de três personagens do livro de mesmo nome do autor Michael Cunningham, de 1999: Virginia Woolf, interpretada por Nicole Kidmen; a personagem vivida por Juliane Moore, Laura Brown, que lê Mrs. Dolloway na Los Angeles de 1949; e Clarissa Vaughan, personagem interpretada por Maryl Streep, que partilha, no início do século XXI, não apenas o primeiro nome de Mrs. Dolloway, mas, sobretudo, sua trajetória organizando, ao longo de um dia, uma festa. ‘Que montagem nova’, porém, vemos no filme? Das muitas análises possíveis, escolhemos uma dimensão analisada por Guacira Louro (2017): apesar da vida das personagens estarem distantes no tempo, elas partilham sentimentos, receios, impulsos; elas ‘têm, todas, afetos e desejos que transbordam fronteiras’. Cada uma destas mulheres experimentaram um beijo, um amor com outra mulher, um afeto a ser escondido à época de Clarissa Dolloway; a ser vivido em intensidade à época de Virginia Woolf; a ser um movimento de libertação à época de Laura Brown e, por fim, a ser uma nova normalidade à época de Clarissa Vaughan. Segundo Guacira Louro (2017, p. 122), “[...] seus beijos podem ter sido mais ou menos fortuitos, mas acabaram por se tornar, de algum modo, perene”. O beijo é a imagem que a montagem de As Horas nos dá a ver, fazendo-nos problematizar os limites de uma norma de gênero e sexualidade que determina quais amores são, a nós, possíveis. Assim, o filme de Stephen Daldry (2003) conjuga tempos de experiências múltiplas de imagens da lesbianidade, permitindo-nos nessa nova montagem imagética - possível pelas des/remontagens que fez dos livros de Woolf e Cunningham - chegar a sentidos outros sobre o afeto, o amor. Enfim, a montagem emerge como um alerta intransponível diante do nosso olhar: é possível, afinal, criar um futuro onde as relações de poder de gênero e sexualidade sejam radicalmente diluídas e transitórias.

Costumaz, o caráter sobrevivente das imagens é um elemento fecundo dos (des/re)aparecimentos das imagens, o que neles torna-se passível de “[...] lembrança [passado], retorno [presente], ou até renascimento [futuro]” (Didi-Huberman, 2013a, p. 72). Combinar imagens pela montagem é, então, inscrevê-las em outro tempo: não aquele da linearidade herdada pelo historicismo, mas aquele de uma arquegenealogia que se insinua por saltos, cortes, pela disjunção entre imagens, a princípio, díspares, sem nenhuma relação imediata entre si. Ao fazer isso, a montagem instaura outras relações entre as imagens - relações que não são dadas de antemão, por meio de um saber a elas exterior, mas criadas, inclusive teoricamente, por aquela ou aquele que monta. Ao fazer isso, a (des/re)montagem acaba por produzir um outro tipo de saber sobre e pelas imagens: um saber imprevisível, sempre passível de alteração (já que uma mesma imagem pode dar lugar a outras formas de saber, frente a outras combinações).

O método de Warburg é, assim, um exercício de montar, desmontar e remontar configurações possíveis sobre os painéis, concebidos por Didi-Huberman (2013a), como uma mesa de trabalho da pesquisadora e do pesquisador da imagem; enfim, a mesa como metáfora de um suporte “[...] de encontros e de disposições passageiras” (Didi-Huberman, 2013a, p. 18). Distante da fixidez, pensar na (des/re)montagem sob metáfora da mesa é, apesar de singela, potente para compreender que metodologicamente estamos, antes de tudo, falando de uma abertura a novas possibilidades, novos encontros, novas configurações, novas multiplicidades pela, na e entre as imagens: “[...] suporte de encontros, constituídos pela própria mesa, como recurso de belezas ou de conhecimentos - analíticos, por cortes, por reenquadramentos ou por dissecação - novos” (Didi-Huberman, 2013a, p. 18).

Considerações finais

Para além das sínteses da representação, a montagem é, assim, um movimento genealógico que procura enfatizar o trabalho infinito diante de uma imagem: o de reunir-conjuntamente (lembrando da multiplicidade da des/re/montagens) sobre uma mesa - no caso das pesquisas em educação, a folha em branco de cada página de uma tese ou dissertação - imagens capazes de “[...] ‘formar uma constelação’ [...]” (Didi-Huberman, 2013a, p. 221, grifo nosso) que nos permita orientar o pensamento, em um exercício de pensar diferentemente o que somos e o que podemos vir a ser. Estamos falando de um gesto pedagógico que prima por um deslocamento do olhar que pressupõe, na e pela (des/re)montagem de uma constelação de imagens, o Übershen warburguiano: “[...] ver com um olhar abrangente e fazer com que certas coisas ou relações saltem às vistas; mas significa também não ver, não captar tudo, omitir qualquer coisa que, no próprio ‘aperçu’, salta, nos escapa nas profundezas do não sabido” (Didi-Huberman, 2013a, p. 243, grifo nosso).

Como um procedimento metodológico, portanto, a (des/re)montagem tenta apreender a dança sobrevivente e anacrônica que é a historicidade mesma do acontecimento que é a imagem - aparecimentos, destruição e renascimentos -, em uma genealogia - ou melhor, uma arqueologia do saber da e sobre a imagem (Didi-Huberman, 2015b) - que impõe à ordem do saber (pois, inelutavelmente, estamos produzindo um saber, mas, distantes da vontade de saber do sujeito cognoscente, nos inscrevemos no espaço de um saber vacilante, um saber que busca dançar sob e com a constelação de imagens) uma dupla condição: o inesgotável da imagem - a exuberância de seu aparecimento, o modo como nos abre para além do já sabido - e o abismal da imagem - as dimensões da imagem que se fazem irredutíveis à provisoriedade do ato de olhar, um não-saber que é intransponível ao nosso olhar diante da sobrevivência que fazem as imagens pulsar como entes vivos.

Como dito, a montagem, enquanto um trabalho arqueológico sobre as imagens, não é a busca das grandes generalizações (implicadas à ordem da imagem-saber), mas, antes, é um ocupar-se do inesperado que emerge do encontro das (e com as) imagens e que pode se constituir como ruptura na ordem discursiva. Enfim, a montagem de uma constelação é um esforço de que transformemos a nós mesmos pelos diálogos que construímos entre arte, filosofia e educação, convidando-nos “[...] a colocar nosso pensamento ‘em outra parte’, de um outro modo [...]” (Fischer & Marcello, 2016, p. 21, grifo do autor) - o que, para nós, aqui, diz da urgente tarefa de construirmos uma pedagogia com e sobre imagens que nos permita criar a nós mesmos como uma impensável estrela que olha de volta para o céu.

Referências

Agamben, G. (2011). Nymphs. In J. Khalip, & R. Mitchell (Eds.), Releasing the image (p. 60-80). Stanford: Stanford University Press. [ Links ]

Alloa, E. (2015). Entre a transparência e a opacidade - o que a imagem dá a pensar. In E. Alloa (Org.), Pensar a imagem (p. 7-22). Belo Horizonte, MG: Autêntica. [ Links ]

Almeida, G. (2016). Por uma arqueologia crítica das imagens em Aby Warburg, André Malraux e Jean-Luc Godard. Significação, 43(46), 29-46. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-7114.sig.2016.115616 [ Links ]

Balthazar, G., & Marcello, F. (2018). Corpo, gênero e imagem: desafios e possibilidades aos estudos feministas em educação. Revista Brasileira de Educação, 23(1), 1-23. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-24782018230047 [ Links ]

Balthazar, G. (2019). Quando a pedagogia toma posição ou o que aprendemos com os homens do triângulo rosa?. Revista Periodicus, 11(1), 209-233. DOI: https://doi.org/10.9771/peri.v1i11.29218 [ Links ]

Baxandall, M. (2006). Padrões de intenção: a explicação histórica dos quadros. São Paulo, SP: Cia. das Letras. [ Links ]

Campos, D. (2016a). Um pensamento montado: Aby Warurg entre uma biblioteca e um Atlas. Revista Phoenix, 13(2), 1-20. [ Links ]

Campos, D. (2016b). A imagem e o anacronismo nas páginas da Garotas do Alceu. Dobras, 9(20), 53-67. DOI: https://doi.org/10.26563/dobras.v9i20.476 [ Links ]

Campos, D. (2017). Um saber montado: Georges Didi-Huberman a montar imagem e tempo. Aniki, 4(2), 269-288. DOI: https://doi.org/10.14591/aniki.v4n2.299 [ Links ]

Campos, D. (2020). A ninfa como personagem teórico de Warburg. Revista de História da Arte, 4(3), 225-245. DOI: https://doi.org/10.24978/mod.v4i3.4567 [ Links ]

Daldry, S. (Diretor), & Rudin, S., Fox, R. (Produtores). (2003). As horas [Mídia de gravação: Filme/DVD]. USA: Paramount Pictures. [ Links ]

Didi-Huberman, G. (2012). Quando as imagens tocam o real. Pós: Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da UFMG, 2(4), 204-219. [ Links ]

Didi-Huberman, G. (2013a). A imagem sobrevivente: história da arte e tempo de fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto. [ Links ]

Didi-Huberman, G. (2013b). Altas ou a gaia ciência inquieta. Lisboa, PT: KKYM. [ Links ]

Didi-Huberman, G. (2015a). Falenas: ensaios sobre aparição. Lisboa, PT: KKYM. [ Links ]

Didi-Huberman, G. (2015b). Diante do tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte, MG: Editora da UFMG. [ Links ]

Didi-Huberman, G. (2017). Quando as imagens tomam posição. Belo Horizonte, MG: Editora da UFMG. [ Links ]

Fischer, R. (2005). Escrita acadêmica: a arte de assinar o que se lê. In M. V. Costa, & M. I. Bujes (Orgs.), Caminhos investigativos III (p. 117-140). Rio de Janeiro, RJ: DP&A. [ Links ]

Fischer, R., & Marcello, F. (2016). Pensar o outro no cinema: por uma ética das imagens. Revista Teias, 17(47), 13-29. DOI: https://doi.org/10.12957/teias.2016.24577 [ Links ]

Foucault, M. (1987). As palavras e as coisas. São Paulo, SP: Martins Fontes. [ Links ]

Foucault, M. (2013a). Conversa com Michel Foucault. In M. Foucault (Org.), Ditos e escritos VI: repensar a política (p. 289-347). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. [ Links ]

Foucault, M. (2013b). Nietzsche, a genealogia e a história. In M. Foucault (Org.), Ditos & Escritos II: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento (p. 271-295). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. [ Links ]

Foucault, M. (2013c). A pintura fotogênica. In M. Foucault (Org.), Ditos & escritos III: estética: literatura e pintura, música e cinema (p. 346-355). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária. [ Links ]

Gallo, S. (2016). Algumas notas em torno da pergunta: ‘o que pode a imagem?’. Revista Digital do LAV, 9(1), 16-25. DOI: https://doi.org/10.5902/1983734821766 [ Links ]

Johnson, C. (2012). Memory, metaphor, and Aby Warburg's Atlas of images. Ithaca, NY: Cornell University Press. [ Links ]

Kern, M. L. (2010). Imagem, historiografia, memória e tempo. ArtCultura,12(21), 9-21. [ Links ]

Loponte, L. (2006). Escritas de si (e para os outros) na docência em arte. Educação, 31(2), 295-304. [ Links ]

Louro, G. (2017). Flor de açafrão: takes, cuts, close-ups. Belo Horizonte, MG: Autêntica. [ Links ]

Marcello, F. (2005). Criança e o olhar sem corpo do cinema (Projeto de Doutorado em Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. [ Links ]

Meyer, D., & Paraíso, M. (2012). Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação. Belo Horizonte, BH: Mazza Edições. [ Links ]

Rancière, J. (2015). As imagens querem realmente viver? In E. Alloa (Org.). Pensar a imagem (p. 91-204). Belo Horizonte, BH: Autêntica. [ Links ]

Sontag, S. (2004). Sobre a fotografia. São Paulo, SP: Cia. das Letras. [ Links ]

Warburg.library . (2013/2016). Panel 46 - Nymph. 'Hurry-Bring-It' in the Tornabuoni circle. Domestification. Recuperado de https://warburg.library.cornell.edu/panel/46Links ]

4NOTA: Gregory da Silva Balthazar, Lívia de Rezende Cardoso e Lydia Huerta Moreno foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados, redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

Recebido: 25 de Setembro de 2022; Aceito: 06 de Fevereiro de 2023

* Autor para correspondência. E-mail: gsbalthazar@gmail.com

INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES Gregory da Silva Balthazar: Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Tiradentes. Coordenador do Núcleo Diadorim de Estudos de Gênero. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-0371-1962 E-mail: gsbalthazar@gmail.com

Lívia de Rezende Cardoso: Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora do Departamento de Biologia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Científica. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4091-9110 E-mail: livinha.bio@gmail.com

Lydia Huerta Moreno: Ph.D. em Culturas e Linguagens Latinas e Ibéricas pela University of Texas, Austin. É professora do Departamento de Gênero, Raça e Identidade da University of Nevada, Reno. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8918-6862 E-mail: lydiahuerta@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons