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Acta Scientiarum. Education

Print version ISSN 2178-5198On-line version ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.45  Maringá  2023  Epub Aug 01, 2023

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v45i1.65773 

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS

Pesquisas com os cotidianos

Investigación con los cotidianos

1Programa de Pós-graduação Processos Formativos e Desigualdades Sociais, Faculdade de Formação de Professores, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rua Francisco Portela, 1470, 24435-005, São Gonçalo, Rio de Janeiro, Brasil.


RESUMO.

A corrente de pesquisa que foi nomeada como ‘pesquisas nos/dos/com os cotidianos’ começou a ser articulada, no Brasil, há trinta anos. O artigo comenta o que foi este começo e a preocupação com a organização metodológica que se teve já que estava sendo criado algo novo no país. Conta-se aqui, uma história possível desse início. Indica as bases teóricas iniciais que foram trazidas de Certeau e Deleuze, embora, em seguida, múltiplos grupos foram se organizando, em diversas universidades brasileiras, em torno de temáticas diversas e contando com a inclusão de outros autores europeus e latino-americanos, tais como: Maturana, Lefebvre, Mafesoli, Boaventura de Sousa Santos entre muitos. Indica-se, por fim, as questões epistemológico-teórico-metodológicas mais recentes dos grupos. Lembramos, então: os movimentos necessários às pesquisas com os cotidianos; as inúmeras redes educativas que formamos e nas quais nos formamos; a importância dos intercessores para a formação do pensamento; a virtualidade na formação dos possíveis acontecimentos curriculares; uma compreensão diversa para a ideia de repetição, como ‘espaçotempo’ de mudanças; as conversas como lócus central dos processos de pesquisa; a necessidade das relações com as artes para as pesquisas dessa corrente o que nos leva à compreensão da presença de todos os sentidos em nossos cotidianos, ações e pensamentos; a compreensão de que os atos pedagógicos trazem sempre à cena dimensões éticas, estéticas, políticas e poéticas.

Palavras-chave: cotidianos; movimentos de pesquisa; redes educativas; acontecimentos curriculares

RESUMEN.

La corriente de investigación que se denominó ‘investigación en/de/con los cotidianos’ comenzó a articularse en Brasil hace treinta años. El artículo comenta lo que fue este inicio y la preocupación con la organización metodológica que se tuvo ya que se estaba creando algo nuevo en el país. Aquí se cuenta una posible historia de este comienzo. Indica las bases teóricas iniciales que fueron traídas de Certeau y Deleuze, aunque, posteriormente, se organizaron múltiples grupos, en varias universidades brasileñas, en torno a diferentes temas y con la inclusión de otros autores europeos y latinoamericanos, tales como: Maturana, Lefebvre, Mafesoli, Boaventura de Sousa Santos entre muchos. Esta indicado, finalmente, las cuestiones epistemológicas-teóricas-metodológicas más recientes de los grupos. Recordamos, entonces: los movimientos necesarios para la investigación con los cotidianos; las innumerables redes educativas que formamos y en las que nos formamos; la importancia de los intercesores para la formación del pensamiento; la virtualidad en la formación de posibles eventos curriculares; una comprensión diferente de la idea de repetición, como un 'espaciotiempo' de cambios; las conversaciones como locus central de los procesos de investigación; la necesidad de relacionarse con las artes para la investigación en esta corriente, que nos lleva a comprender la presencia de todos los sentidos en nuestro cotidiano vivir, actuar y pensar; la comprensión de que los actos pedagógicos siempre traen a escena dimensiones éticas, estéticas, políticas y poéticas.

Palabras-clave: cotidianos; movimientos de investigación; redes educativas; eventos curriculares

ABSTRACT.

The research chain that was named as ‘research in/of/with the everyday life’ started being articulated in Brazil thirty years ago. The article talks about what was this beginning and the preoccupation with the methodological organization at the moment, since something new was being created at the country, and here, it’s told the history of the possible beginning. It indicates the initial theoretical bases brought by Certeau and Deleuze, although, next, multiple groups were organized, in many Brazilian universities, around various themes and counting on the inclusion of many European and Latin American authors, such as: Maturana, Lefebvre, Mafesoli, Boaventura de Sousa Santos, among others. At last, it points out the most recent epistemological-theoretical-methodological questions of the group. Reminding then, the necessary movements to research with everyday life; the countless educative networks that we form and in which we are formed; the importance of intercessors to the formation of thinking; the virtuality in the formation of possible curricular events; a diverse comprehension for the idea of repetition, as ‘spacetime’ of change; the talks as a central locus of research processes; the need of relations with arts for the research of this chain, taking us to the comprehension of everyone presence in all senses in our everyday life, actions and thinking; the comprehension that pedagogical acts always bring into the picture ethical, aesthetical, political and poetical dimensions.

Keywords: everyday life; research movements; educative networks; curricular events

Introdução

De saída, entendemos ser necessário lembrar - como nos fez Isambert-Jamati (1970) trazendo ideia de Durkheim - que só podemos ver as coisas com nossos olhos de hoje. A proposta deste artigo é trabalhar com a corrente de pensamento que foi chamada de pesquisas nos/dos cotidianos (Oliveira & Alves, 2001) e que graças a Ferraço (2003) passou a ser identificada como pesquisas nos/dos/com os cotidianos ou simplesmente com os cotidianos. Mas nessa introdução insistimos lembrar isto: os olhos de todos só podem ser os de hoje, com todos os anos de conversas, embates, criações - na maior parte das vezes, coletivas - que medeiam a publicação da primeira obra acerca da corrente referida e o momento em que este artigo é escrito. E com muito mais: sabendo, hoje, que para além de ver, sentimos sempre com todos os nossos sentidos os acontecimentos nos quais nos envolvemos (Pallasmaa, 2011)1.

Com isso, podemos dizer que estamos trazendo a este artigo, uma das histórias possíveis dessa corrente - aquela que nos afetou em nossa trajetória de formação e de envolvimento com ela - e que podemos contar juntos. Outras histórias são possíveis e vão surgindo em outros artigos, com certeza.

Ao mesmo tempo, por diversos limites, vão surgir apenas algumas das tantas afetações que tivemos com ideias, autores e acontecimentos que movimentaram essa corrente em sua criação e desenvolvimento no Brasil.

Inspirações e conversas

Em março de 1990, voltando da França, onde fizera um pós-doc, com Monique Vial, no Institut National de Recherche Pégagogique, organismo, hoje extinto, do Ministério de Educação da França, Nilda Alves traz na mala os dois volumes, em livros de bolso, da Invenção do cotidiano, de Michel de Certeau e outros - a tradução desses dois livros se daria no Brasil, em 1994 e 1997.

Chegando ao Brasil, dez dias antes do confisco de depósitos bancários do plano econômico de Zélia Cardoso de Mello, no governo Collor (15.03.1990 a 29.12.1992), Nilda procurou Regina Leite Garcia para conversar acerca desses livros. Mas o trabalho de estudos teóricos com Certeau, nos dois grupos de pesquisa, só começa quando o primeiro livro é traduzido e publicado pela Editora Vozes, embora as pesquisas que desenvolviam já trabalhassem com essa ideia de currículos nos cotidianos2.

No grupo de Regina Leite Garcia seu estudo vem junto com o texto acerca de rizoma, tal como tratado por Deleuze e Guattari (1995), que ela adquiriu em Buenos Aires, no momento de um encontro na Flacso-Argentina.

Já Nilda Alves vai trabalhar com a ideia de redes e semi-redes que aparece na introdução de livro de Lefebvre (1983). Outro livro deste mesmo autor vai contribuir, também, para o desenvolvimento da ideia de cotidianos nesse grupo (Lefebvre, 1992). No grupo, há também um grande interesse por livros de Maffesoli (1996, 1997, 1998) e este vem ajudar a melhor compreender as necessidades de pesquisa nessa corrente.

No momento em que neste grupo se passa a trabalhar com imagens, um livro de Todorov (1997) vai trazer algumas ideias importantes. Em especial, quando esse autor lembra o que chama de ‘a fórmula Malraux’, citando-o: “[...] a Holanda não inventa colocar um peixe sobre um prato, mas sim não mais fazê-lo a alimentação de apóstolos” (Todorov, 1997, p. 11).

Mas é neste momento, questionada insistentemente por Antônio Carlos Amorim acerca do que as imagens significavam em seus textos, que Nilda Alves vai buscar e encontrar em Deleuze e Guattari (1992) a ideia de ‘personagens conceituais’, hoje central no grupo que coordena. O grupo descobre assim - muitos anos depois do grupo de Regina Leite Garcia e outros grupos trabalhando com os cotidianos, como os grupos coordenados por Janete Magalhães Carvalho e Carlos Eduardo Ferraço - a importância de Deleuze.

Outro autor importante, que vem conversar com os grupos que vão se articulando, é Maturana cujas ideias permitiram diálogos importantes e o surgimento de uma obra clássica para as pesquisas com os cotidianos, escrita por Carvalho (2011).

O pós-doc de Inês Barbosa de Oliveira com Boaventura de Sousa Santos traz as obras deste autor para uma forte circulação entre os grupos.

A breve narrativa dessas conversas teóricas é trazida para lembrar que essa história se tece com muitos e em muitos ‘espaços -tempos’3 de realizações de ‘práticas-teorias’ dentro de inúmeras pesquisas, financiadas por diversos organismos, realizadas em diferentes programas de pós-graduação e apresentadas em congressos nacionais e internacionais que vão incorporando pesquisadores/pesquisadoras de outros países, em especial da América Latina.

Questões atuais

Se a variedade de modos como as pesquisas com os cotidianos vai se desenvolvendo é o momento primeiro, mas se decidimos contar uma de suas histórias possíveis, vamos trazer agora as questões que estão presentes em especial em alguns dos grupos que nela existem, a partir da centralidade que adquirem nos trabalhos que desenvolvem e nas conversas que criam, permanentemente, entre si.

A ideia de ‘movimentos necessários a essas pesquisas’ é uma dessas ideias. Aparecendo desde a primeira obra teórico-metodológica dessa corrente (Oliveira & Alves, 2001), vai sendo modificada nos anos seguintes, sofrendo uma grande modificação em artigo publicado mais recentemente (Andrade, Caldas, & Alves, 2019) e já diferentemente tratada, no presente, por sugestão de Reis (2018) em dissertação escrita sob a orientação de Conceição Soares, no ProPEd/UERJ. Hoje esses movimentos são assim nomeados e trabalhados em alguns grupos de pesquisa com os cotidianos: O sentimento do mundo; Ir sempre além do já sabido; Criar nossos “personagens conceituais”; Narrar a vida, áudio-visualizar e literaturizar as ciências; Ecce femina; A circulação dos ‘conhecimentos-significações’ como necessidade.

Outra ideia desenvolvida e trabalhada em alguns grupos é aquela da compreensão de que a nossa formação se dá em múltiplas e diferentes redes educativas que formamos e pelas quais circulamos. Essas redes aparecem estudadas em livro relativamente recente escrito por Alves (2019), sendo assim nomeadas e estudadas: a das ‘práticasteorias’ da formação acadêmico-escolar; a das ‘práticasteorias’ pedagógicas cotidianas; a das ‘práticasteorias’ das políticas de governo; a das ‘práticasteorias’ coletivas dos movimentos sociais; a das ‘práticasteorias’ de criação e ‘uso’ das artes; a das ‘práticasteorias’ das pesquisas em educação; a das ‘práticasteorias’ de produção e ‘usos’ de mídias; a das ‘práticasteorias’ de vivências nas cidades, no campo e à beira das estradas.

Nas conversas com Deleuze, desafios importantes foram sendo colocados para as práticas e o desenvolvimento do pensamento nas pesquisas com os cotidianos. O pensamento complexo de Deleuze acerca da Filosofia é um convite a transitarmos em múltiplas dimensões, mediadas pelas sensações da ideia de desterritorialização, mesmo sabendo que iremos criar processos de territorialização, para depois novamente desterritorializar.

Fazer na educação, o uso, inspirado por Certeau (1994), da desterritorialização de Deleuze, é criar deslocamentos, é fazer movimentos que vão além do já conhecido. É romper com dogmas, paradigmas que hegemonizam o pensamento epistemológico, metodológico, pedagógico e curricular nos processos educacionais e evidenciar cada vez mais, os movimentos com os cotidianos como epistemológicos, teóricos e metodológicos no ambiente científico da Educação que percebe a vida como se forja nas ações de seus ‘praticantespensantes’ (Oliveira, 2012).

Ter os cotidianos como orientação metodológica, pedagógica e curricular é estar permanente evidenciando as franjas, as múltiplas ‘práticasteorias’ que coabitam com a noção de um currículo, pensado hegemonicamente, como unilateral, de crenças limitantes que neutralizam os ‘fazerespensares’ docentes e discentes. Mediados pela ideia de rizoma, percebemos as redes que formamos e nos formam. Sensíveis a essa ideia, podemos perceber nos acontecimentos com os cotidianos, o emergir ora aqui, ora ali, ora acolá de sinais de expressividade que se atualizam nas ‘práticasteorias’ que vamos tecendo nestes ‘fazeressaberes’ ‘discentesdocentes’, criando e fortalecendo movimentações coletivas.

Deleuze em parceria com Guattari, em que se percebem como personagens conceituais um do outro, se propõe desestabilizar, ou melhor, nos fazer perceber, o quanto são tão instáveis, provisórios os ‘conhecimentossignificações’ criados nas ciências e nos cotidianos. Suas ideias nos colocam, mesmo, na sensação corpórea de instabilidade, de um corpo ‘sem’ órgãos, de liberdade poética de ‘praticantespensantes’ errantes. Deleuze nos coloca no centro e nas periferias das experiências, com resistências a agendas estranhas e a criação de possíveis.

A ideia de criação de possíveis nos traz a responsabilidade de nos observar enquanto ‘praticantespensantes’ da Educação, como condutores de virtualizações e produtores de atualizações. Isso parece redundante? É isso mesmo. Deleuze é redundante, é repetitivo, ele é o próprio ritornelo (Deleuze & Guattari, 2012), como uma nota que volta e volta e volta eeee. E a repetição na educação e na ação humana, como na arte, é a própria arte de criação do novo na ação de repetir, pois jamais o retorno se produz igual, já que somos outros a ouvir com nossos ouvidos já diferentes pelas escutas anteriores. Um movimento de repetição nunca será igual ao anterior e muito menos o posterior, porque se trata de movimento, que é movido por pensamentos, sensações, sentimentos e desejos, que num dado momento está na virtualidade e, também, no acontecimento que se atualiza pela repetição nunca igual.

Se a virtualidade é o que está fora do presente da ação - do gesto de atuar, por estar no passado ou na projeção do futuro, como a memória e o projeto, nela se faz o ambiente das possibilidades, que se atualizará nos modos de ‘fazersaber’.

Por isso, Deleuze nos coloca enredados em nossas fabulações, e vai buscar na potência do falso, de Nietzsche, nossa potência criadora de diversas realidades, atuando em nossas ações.

E é navegando por essas inspirações e conversas com os nossos personagens conceituais - criados por nós mesmos para pensarmos - que nos apropriamos e fazemos usos de suas ideias e teorias e pensamentos e afetações, em meio às muitas conversas e cineconversas “[...] que podem ser entendidas como conversas que se dão a partir de filmes que trazem questões sociais. As questões sociais se transformam em questões curriculares e esses movimentos são alvo de nosso interesse” (Brandão, Mendonça, & Papini, 2020, p. 1581).

No grupo de pesquisa em que atuamos entendemos as imagens, os sons e as narrativas como nossos intercessores - aqueles que nos ajudam a ir além do já sabido, ‘praticandopensando’ nas pesquisas com os cotidianos. Deleuze e Guattari (1992) referenciaram esses intercessores de ‘personagens conceituais’ e é a forma como Deleuze encontrou com todos aqueles com que decidiu trabalhar para pensar o que desejava pensar: outros filósofos, como Spinoza, por exemplo, mas também escritores, como Proust ou artistas como Francis Bacon ou cineastas, em seus dois livros acerca de cinema. Por isso, Deleuze e Guattari (1992, p. 85) lembram que o personagem conceitual “[...] nada tem a ver com a personificação abstrata, um símbolo ou uma alegoria, pois ele vive, ele insiste”. Do mesmo modo, para nós os artefatos culturais - em especial imagens, sons, em filmes - têm sido personagens conceituais que nos permitem ‘fazerpensar’, há muitas pesquisas realizadas e em realização. E acerca deles, com eles vamos realizando conversas com diferentes grupos de docentes e discentes - docentes em formação - buscando fazer aparecer, das virtualidades, acontecimentos possíveis e necessários aos cotidianos escolares.

Deleuze, mesmo antes do encontro com Guattari, trabalhava com esta ideia - embora só a fosse formular depois dos trabalhos com este, que se tornou seu parceiro. Em suas conversas com artistas - pintores, escritores, cineastas - além dos filósofos, para pensar e fazer avançar o que estava pensando e permite que compreendamos o quanto as múltiplas realizações humanas têm a conversar. Encontramos em Damasceno (2015, p. 138) os personagens conceituais como “[...] potências de conceitos e operam sobre um plano de imanência”. Essa autora nos faz compreender ainda porque o uso de artistas ajudou Deleuze a pensar e tem nos permitido avançar nas pesquisas que realizamos. Escreve ela:

Arte e filosofia recortam o caos e o enfrentam, mas não do mesmo modo, nem é da mesma maneira que essas disciplinas povoam os respectivos planos. A arte produz uma constelação de universo ou de afectos e perceptos e a filosofia cria conceitos a partir de um plano de imanência. A arte pensa por afectos e perceptos e a filosofia pensa com conceitos. Mas isso não quer dizer que ambas as disciplinas estejam impedidas de efetuarem suas respectivas trocas ou linhas melódicas (Damasceno, 2015, p. 138).

Nesta perspectiva, entendemos a importância das conversas com as artes que as pesquisas com os cotidianos vêm tendo e que publicação recente do grupo coordenado por Janete Magalhães trouxe (Carvalho, Silva, & Delboni, 2022). Esse grupo e diversos outros têm trazido a importância da incorporação de conversas com as artes também como necessidade nos currículos cotidianos em escolas e nas universidades. A ideia de criação, central nas artes, está presente no modo como Deleuze e Guattari (1992) compreendem a necessidade de surgimento dos intercessores para o pensamento ao escreverem:

[...] o essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas - para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas - mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores. É uma série. Se não formamos uma série, mesmo que completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso de meus intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê. E mais ainda quando é visível: Félix Guattari e eu somos intercessores um do outro (Deleuze & Guattari, 1992, p. 156).

Deleuze e Guattari (1992), ao perceberem o quanto a filosofia, na modernidade, está agarrada em conceitos que encerram um pensamento, passam a compreendê-la como um ambiente de percepção de ideias que são criadas em torno das questões filosóficas, não por um único pensador e sim numa tessitura coletiva. A formação desses pensamentos e conhecimentos passam pelos processos de virtualização e atualização ao longo de nossa humanidade, enquanto existência transitória de signos, sensações e movimentações. Daí ao estudarem determinadas noções a partir de determinados autores e artefatos, criando conversas com esses ou aqueles intercessores, eles chegam à ideia de ‘personagens conceituais’, pois são nas conversas que essas ideias são compreendidas, sofrem deslocamentos, apropriações, relações e atualizações como um acontecimento, tanto na ciência quanto na arte.

Deleuze e Guattari (1992) ao nos provocarem com as criações de noções que podem vir a ser os conceitos, em filosofia, trazem a ideia de Outrem, recorrendo a Leibniz, outro filósofo com quem Deleuze conversou como personagem conceitual. Para ir além da ideia de Outro na criação de conhecimentos, eles indicam aquele com quem se está em relação. A partir do encontro entre dois pensamentos, surge o terceiro, o Outrem, que acontece nos meandros desta relação, num ambiente perceptível como expressão de um outro possível. Escrevem:

[...] outrem, não mais sendo nem um sujeito de campo, nem um objeto no campo, vai ser a condição sob a qual se redistribuem, não somente o objeto e o sujeito, mas a figura e o fundo, as margens e o centro, o móvel e o ponto de referência, o transitivo e o substancial, o comprimento e a profundidade […]. Outrem é sempre percebido como um outro, mas, em seu conceito, ele é a condição de toda percepção, para os outros, como para nós. É a condição sob a qual passamos de um mundo a outro (Deleuze & Guattari, 1992, p. 30).

O Outrem com o qual Deleuze e Guattari (2012) nos provocam está na ideia da criação das noções-ideias, em constante movimento, e mais em um processo permanente de cocriação, em processos contínuos de virtualizações e atualizações. Essa ideia tem importância central nos grupos que trabalham com os cotidianos, pois compreendem que é na existência de conversas entre eles, neles e com grupos externos, na compreensão da ‘circulação científica’ como necessidade (Andrade et al., 2019) e usando inúmeros artefatos culturais, que os ‘conhecimentossignificações’ surgem, nessas pesquisas.

Assim, em nosso grupo de pesquisa, como em tantos outros que atuam nessa corrente, buscamos ampliar os sentidos e entender que nossos ‘personagens conceituais’ são as imagens e sons dos filmes, além das narrativas que aparecem nas ‘conversas’ realizadas em nossos encontros do grupo de pesquisa ou ainda nas relações com outros grupos e nas salas de aulas que atuamos. Em nossas práticas, costumamos tecer ‘conhecimentossignificações’ após ‘verouvirsentirpensar’ com os filmes, produzindo conversas acerca das possibilidades sentidas. Assim:

Fomos entendendo que os ‘personagens conceituais’ poderiam ser figuras, argumentos ou artefatos que nas pesquisas que desenvolvemos aparecem como aquilo/aquele com que se ‘conversa’, permanecendo por muito tempo conosco para que possamos pensar e articular ideias, formando os ‘conhecimentossignificações’ possíveis aos processos de pesquisa que desenvolvemos. Assim, fomos percebendo que, nas pesquisas nos/dos/ com os cotidianos, as narrativas (e sons de diversos tipos) e as imagens dos ‘praticantespensantes’ e dos ‘espaçostempos’ que pesquisávamos eram ‘personagens conceituais’. Com eles, então, conversamos longo tempo, e vamos formulando modos de fazer e pensar nas pesquisas que desenvolvemos (Alves, Arantes, Caldas, Rosa, & Machado, 2016, p. 28, grifos dos autores).

Com essa ideia, percebemos que as narrativas, as imagens, sons e todos os elementos dos cotidianos, como cheiros, sabores, texturas, sensações e toques são imprescindíveis para identificarmos como os acontecimentos se estabelecem nos ‘espaçostempos’, principalmente, nos escolares. As conversas são nosso principal lócus de criação de nossos personagens conceituais, pois em cada encontro é possível tecermos diferentes signos, sensações, percepções e sentidos, de acordo com as redes educativas em que estamos inseridos.

As possibilidades tecidas com as conversas são muito potentes, pois em seus processos formamos e somos formados, afetamos e somos afetados, num movimento incessante de fala, escuta, sentimentos e criação. O que para muitos se mostra relevante para outros passam despercebidos, porém, é na força e no exercício da coletividade que aprendemos uns com os outros. Formando novos e outros sentidos possíveis e ‘conhecimentossignificações’ para além dos já sabidos.

As cineconversas, as escolas e os filmes - lócus de criação coletiva

Para prosseguir, coerentes com os processos articulados nesses trinta anos de produção científica que temos no Brasil, sentimos necessidade de desenvolver alguns aspectos ‘práticoteóricos’ de pesquisas de alguns grupos dessa corrente de ‘práticasteorias’ com os cotidianos.

Escolhemos para isso aquilo que chamamos de ‘cineconversas’. Nelas fazemos ‘uso’ - termo importante de Certeau que informa que os ‘praticantespensantes’ para além de consumir os artefatos culturais diversos, fazem ‘uso’ deles, criando ‘conhecimentossignificações’ e tecnologias com eles - de filmes. Para que as conversas se desenvolvam, os filmes indicados previamente, são ‘vistosouvidossentidospensados’ e contam como apoio de textos que são ‘lidossentidospensados’ por cada participante dos vários grupos nas quais as ‘cineconversas’ são desenvolvidas. Esses filmes e textos servem de inspiração para conversas que nos ajudam a acessar memórias, gestos, sensações, percepções e sentimentos acerca das nossas experiências, nos diferentes ‘dentrofora’ das escolas. Não temos intenção de fazer uma análise do filme tentando entender o que o autor, diretor, roteirista querem dizer ou expressar no filme, e sim, como as linguagens cinematográficas com sua ambiência de sonoridades, de luz, de cortes, ritmos, enquadramentos, ideias e clichês nos trazem ideias acerca de ‘fazeressaberes’ nos currículos escolares cotidianos.

Lembramos que os clichês aparecem no trabalho de Deleuze com cinema quando ele chega a dizer que não somos uma civilização da imagem, mas que somos

Na verdade, civilização do clichê, na qual todos os poderes têm interesse em nos encobrir as imagens, não forçosamente em nos encobrir a mesma coisa, mas em encobrir alguma coisa na imagem. Por outro lado, ao mesmo tempo, a imagem está sempre tentando atravessar o clichê, sair do clichê. Não se sabe até onde uma verdadeira imagem pode conduzir: a importância de se tornar visionário ou vidente. Não basta uma tomada de consciência ou uma mudança nos corações (embora isso exista, como no coração da heroína de Europa 51, mas se não houvesse mais nada, tudo cairia na condição rapidamente de clichê, ter-se-ia acrescido simplesmente a condição de clichê). Às vezes é preciso restaurar as partes perdidas, encontrar tudo o que não se vê na imagem, tudo o que foi subtraído dela para torná-la ‘interessante’. Mas, às vezes, ao contrário, é preciso fazer buracos, introduzir vazios e espaços em branco, rarefazer a imagem, suprimir dela muitas coisas que foram acrescentadas para nos fazer crer que víamos tudo. É preciso dividir ou esvaziar para encontrar o inteiro (Deleuze, 2005, p. 32, grifos do autor).

Nas ‘cineconversas’ - em especial quando lidamos com filmes que descrevem ações docentes - o aparecimento de clichês relativos às escolas e às ações docentes e discentes se dá de modos diversos. Já colocados nos filmes ou presentes na formação docente, esses clichês aparecem com enorme frequência nas ‘cineconversas’. Podemos perceber isso, descrito em artigo publicado há alguns anos no qual se lê:

[Em diversos] filmes [...] [‘vistosouvidossentidospensados’] e sobre os quais estabelecemos ‘conversas’, há ênfase significativa - decidida, é claro, por roteiristas, diretores e produtores - para as práticas de professores que ‘acreditando’ em suas ações conseguem modificar atitudes dos estudantes com os quais atuam, mesmo que na contramão de diretores de escolas, autoridades diversas e, mesmo outros colegas de trabalho e, mais ainda, contra o meio ‘desorganizado/desestruturado/carente’ em que esses estudantes vivem. Desse modo, esses personagens de professores - suas ‘práticasteorias’ - caem, facilmente, na condição de clichês na medida em que os esquemas sensório-motores mobilizados pelos filmes fazem seus espectadores caírem em ideias hegemônicas sobre ‘ao que cabe aos professores fazerem, em quaisquer circunstâncias e mesmo contra elas’. Reafirmam, portanto, ideias correntes em várias disciplinas nos cursos de formação, em documentos oficiais e até em falas cotidianas de docentes que nestas disciplinas e por estes documentos são também formados. Desse modo, induzem-nos a criar expectativas no desenrolar das histórias apresentadas, sabendo até como elas ‘vão acabar’ (Brandão, Alves, & Caldas, 2017, p. 605, grifos dos autores).

É por isso que Deleuze (2005, p. 33) julga importante alertar de que

[...] não basta, decerto, para vencer, parodiar o clichê, nem mesmo fazer buracos nele ou esvaziá-lo. Não basta perturbar as ligações sensório-motoras. É preciso juntar, à imagem ótico-sonora, forças imensas que não são uma consciência simplesmente intelectual, nem mesmo social, mas de uma profunda intuição vital.

E é por isso, também, que entendemos ser importante as ‘cineconversas’ realizadas com esses filmes, trazendo a elas, junto, a compreensão de modos de existência que muitas vezes ficam submersas, invisíveis, silenciadas por uma expressão dominadora e hegemônica, que desmobiliza as experiências singulares, na tessitura de ações coletivas.

Quando um filme é proposto, como um artefato cultural dentro da ideia das ‘cineconversas’, ele, como personagem conceitual, também se torna um artefato curricular, pois o filme ou a ação das ‘cineconversas’ podem levar a apropriações, deslocamentos e relações com acontecimentos envolvidos nas nossas ‘práticasteorias’ pedagógicas, em nossas condições de criar ‘conhecimentosignificações’.

Fazemos, assim, ‘uso’ do filme como um artefato que nos permite acessar às nossas experiências habitadas em memórias, em emoções e sensações, o que está na dimensão do que Deleuze (1996) indica como ‘virtual’, amplificando todos os nossos sentidos, ao desmistificar a ideia do domínio da visão. Este movimento nos aproxima da escuta atenta, das percepções olfativas, palatáveis e táteis, ainda na virtualidade. Quando fazemos as conversas, nesta ação em si se dá a atualização, enquanto uma nova experiência vivida no presente em que ela acontece. Ela nos remete a outros possíveis movimentos de atenção para nossos ‘fazeressaberes’ cotidianos enquanto ‘discentesdocentespesquisadores’, refletindo acerca de nossas práticas, criando continuamente outras ‘práticasteorias’, na fluidez dessas constantes movimentações de virtualizações e atualizações nos modos de atuar, a partir da própria ideia de Deleuze (1995). Ao estudar essa ideia de Deleuze, Alliez (1996, p. 53) indica que “[...] a lembrança não é uma imagem atual que se formaria após o objeto percebido, mas a imagem virtual que coexiste com a percepção atual do objeto. A lembrança é a imagem virtual contemporânea ao objeto atual, seu duplo, sua ‘imagem no espelho’”.

Desse modo, o filme enquanto unidade de uma narrativa, traz fragmentos, singularidades que articulam uma narrativa coletiva, pela sua própria maneira de condução, envolvendo o enredo, as cenas, as fabulações, promovendo essa expressão de virtualidade. Sentimos, nos emocionamos, nos afetamos, somente nesta ação de ‘verouvirsentirpensar’ os filmes. O cinema, a arte e as fabulações, nas conversas, são expressões íntimas dessa coexistência do virtual e do atual. Porém a atualização precisa da ação para surgir.

Com as apropriações de nossas experiências, que nos marcam pelas sensações, emoções e pensamentos, aquelas que estão na virtualidade em ‘espaçostempos’ localizados ora no passado, ora no futuro, passa por deslocamentos, se enreda em relações com acontecimentos envolvidos nas nossas ‘práticasteorias’ pedagógicas, fazendo da experiência esse ambiente de virtualidade, que está prestes ao devir da atualização. A cada pensamento, cada fabulação acerca de uma ação instantânea, estabelece a virtualidade ou uma virtualização da próxima ação que está por vir, que está no presente da atualização, na própria ação de experimentar. Assim, ainda com Alliez (1996), podemos compreender como a sensibilidade está articulada à criação dos ‘conhecimentossignificações’ que criamos nas relações com os outros e com os artefatos culturais que usamos nesses contatos. Lemos em Alliez (1996):

É portanto num mundo de exterioridade - ‘mundo onde o próprio pensamento tem uma relação fundamental com o Fora’, destacará Deleuze em seu artigo ‘Hume’, escrito uns vinte anos mais tarde -, que não ignora um certo caráter ‘transcendental’ da sensibilidade, que o ser se iguala ao aparecer para uma subjetividade de essência prática. Nem teórica (em posição de fundamento ou de representante) nem psicológica (em situação de interioridade representada), esta última se define por e em um movimento de subjetivação cujo agenciamento de crenças e de paixões, fora de qualquer transcendência (do sujeito ou do objeto), é de ajuste da imanência em relação ao devir num continuum de intensidades que compõe o fluxo intensivo da corrente de consciência e remete à intensidade da ideia na corrente de pensamento (Alliez, 1996, p. 18, grifo do autor).

No contexto das ‘cineconversas’ percebemos que a tessitura entrelaçada pelas imagens, sons, sentimentos e as conversas produzidas pelos filmes se misturam com as vivências individuais de cada um, os tantos ‘dentrofora’ nos quais vivemos. Na possibilidade de partilha de memórias e histórias, se formam novos ‘saberesfazeres’, ‘aprendizagensensinos’ que, de modo complexo e diverso, ajudam a formar novos sentidos, signos e ‘conhecimentossignificações’, indicando outras ações a serem desenvolvidas. O individual ganha conectividade e força quando (sobre)vive nos modos existentes do legítimo Outro (Maturana, 2009). Essas histórias partilhadas vão se transformando em histórias comuns o que, segundo Sousa Dias (1995), acontece até nos textos que escrevemos. Em suas palavras:

[...] uma obra não se faz com a subjetividade individual do criador, com o eu privado do autor. Faz-se com os acontecimentos de uma vida, as coisas, gentes, livros, ideias e experiências que se consubstanciam em nós, insensivelmente até, com os nossos devires, e traçam a nossa autêntica individualidade. E faz-se com tudo isso não enquanto vivências subjetivas, percepções, afecções e opiniões de um eu, mas como singularidades pré-individuais, infinitos supra-pessoais, como tal partilháveis, ‘comunicáveis’, correntes de vida transmissíveis. Escreve-se, pinta-se, compõe-se sempre com a multiplicidade que há em nós, que cada um de nós é, o sujeito criador é sempre coletivo, o nome do autor sempre a assinatura de uma sociedade anônima (Dias, 1995, p. 104-105, grifo do autor).

Essa busca de ideias compartilhadas nos exige, sempre, considerar legítimas as vivências dos outros, tecidas nas ‘cineconversas’ e indicando as redes educativas em que formamos e estamos sendo formados como fontes de inspiração para compreender os muitos modos de existência. Larrosa (2002, p. 21) acredita que a “[...] experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca, não o que se passa, não o que acontece ou o que toca”. Diz este autor que experiência:

[...] é a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar [...]; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza [...], falar sobre o que nos acontece [...], escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (Larrosa, 2002, p. 24).

As ‘cineconversas’ começaram nos encontros com o grupo de pesquisa, numa sala com telão, onde todas e todos podiam compartilhar juntos da experiência de acessar aos filmes no calor das emoções coletivas e fazer as conversas no mesmo instante em que acabava o filme, nesta ideia de ‘virtualizaçãoatualização’. O momento pandêmico nos colocou em outras experiências e o desafio de fazer as ‘cineconversas’ no ambiente virtual e assíncrono, fez com que deixássemos de ter o ambiente acolhedor de nossas emoções, sensações, pensamentos e saberes, porém nos possibilitou as atualizações na ação desta prática, em outros grupos de pesquisas em cidades diversas, incorporando colegas de todo o Brasil, o que não é pouca coisa.

Amplificamos a experiência e temos as percepções de como se dão esses acontecimentos em cada uma dessas regiões, levando em consideração os processos singulares e coletivos de cada um desses grupos. Assim, as ‘cineconversas’ articulam, a partir de um mesmo filme ‘vistoouvidosentidopensado’, as diversidades de percepções, sensações, memórias, ‘conhecimentossignificações’ acerca das experiências nos cotidianos escolares desses grupos envolvidos, em outras regiões brasileiras e de diferentes níveis de ensino.

Dessa forma, o que nos interessa é o uso que esses ‘praticantespensantes’ diversos fazem desse artefato, enquanto produção de cultura, criação de ‘conhecimentossignificações’ e artefato curricular, promovendo experiências éticas, estéticas, políticas e poéticas. Como Larrosa (2002) entendemos que a experiência das ‘cineconversas’ busca cultivar a atenção e a delicadeza, alargar o tempo, criar articulações outras, fazer surgir novos ‘conhecimentossignificações’ nos processos curriculares cotidianos.

À guisa de conclusão

Entendemos, assim, que as ‘cineconversas’ não ficam apenas no ambiente dos grupos de pesquisa, cada integrante do grupo como um fio de tantas redes existentes amplia essas experiências em outros ambientes - em escolas de níveis diferentes; nos cursos de graduação e pós-graduação; em outros ambientes, como os de suas próprias casas com suas famílias; em congressos e seminários.

Acreditamos em Serpa (2018, p. 216) quando nos diz que “[...] o segredo da conversa é a entrega”. Neste cenário, sentimos que quando uma efetiva participação dos membros, virtual ou presencialmente, é possível tecermos muitos fios relevantes em nossas experiências.

Nas escolas - ‘espaçotempo’ de educação, com tantos agenciamentos e vigilância - aparecem, contadas por docentes participantes das ‘cineconversas’, possibilidades múltiplas de ‘práticasteorias’ que fomentam o desenvolvimento dos estudantes em diversos sentidos. As cineconversas como artefato curricular nos ajuda tanto a acessar questões que envolvem os cotidianos dos ‘praticantespensantes’ das escolas, como compreender os ‘espaçostempos’ escolares nas formações pessoais, sociais e nas ‘práticaspensamentos’ ‘discentesdocentes’.

As escolas, como as ‘cineconversas’, são ‘espaçostempos’ para muito além da absorção de conteúdo. Em ações coletivas e singulares, de exercício cotidiano de cidadania, podemos ‘verouvirsentirpensar’ seus ‘espaçostempos’ como de múltiplos e diversos contatos, que interligam o íntimo e o comunitário, promovendo afeto e acolhimento, percebendo os cheiros, criando memórias, vivenciando sentimentos múltiplos que movimentam nossos pensamentos e nos potencializam em muitos sentidos do que é a vida. Têm ainda a possibilidade de fomentar diálogos coletivos, de respeito, de reconhecimento da existência do Outro e da Outra na expressão de amor pela igualdade como uma ética e estética na atuação política, em constantes ‘virtualizaçõesatualizações’ nesses ‘fazeressaberes’ educacionais, criando agendas comuns que possibilitam processos de resistência às agendas autoritárias que apareçam.

A pequena história contada dessa corrente de pensamento no campo da Educação brasileira está agora em um momento no qual se interessa particularmente por ampliar a compreensão de como os tantos sentidos que possuímos interfere em nossos processos de pesquisa e em nossos processos curriculares, nas tantas escolas com as quais nos articulamos.

Nesse sentido, Pallasmaa (2013a, 2013b, 2011), arquiteto finlandês, tem ocupado nossas conversas e ‘cineconversas’ nos trazendo muitas ideias como esta com que ele inicia um de seus livros e com a qual concluímos este artigo:

A cultura consumista ocidental continua projetando uma postura dualista em relação ao corpo humano. Por um lado, temos um culto excessivamente estetizado e erotizado do corpo. Contudo, por outro, a inteligência e a criatividade também são celebradas como se fossem qualidades individuais totalmente separadas, ou mesmo exclusivas. Em ambos os casos, corpo e mente são entendidos como entidades desvinculadas, ou seja, que não constituem uma unidade integrada. Esta separação se reflete na rígida divisão das atividades humanas e do trabalho nas categorias física e intelectual. O corpo é considerado como o meio da identidade e da autopreservação, além de ser um instrumento de apelo social e sexual. Sua importância é entendida meramente em termos de sua essência física e fisiológica, embora seu papel como o próprio campo da existência e do conhecimento corporificados, bem como a compreensão plena da condição humana sejam subestimados e negligenciados (Pallasmaa,2013b, p. 11-12).

Que em novos encontros com essa pequena história, aqui contada, possamos ir além dessa ‘postura dualista’ hegemônica, indo além delas com os movimentos que as múltiplas artes nos estão trazendo e conseguindo articular, fortemente, com os grupos que formaram o ‘GE Cotidianos - dimensões éticas, estéticas e políticas’, na ANPEd, ações que nos levem a novos mundos escolares e educacionais.

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1Lembramos que o GE Cotidianos: dimensões éticas, estéticas e políticas foi criado em 2021, na reunião Nacional da ANPEd, nos alertando para esses tantos sentires.

2Importante lembrar que o GT Currículo da ANPEd é fundado na Reunião Nacional da ANPEd de 1986 e que seus dois primeiros coordenadores Ana Maria Saul (1986-1987) e José Luiz Domingues (1988-1989) trabalham em suas teses com os cotidianos. Saul realizando uma pesquisa acerca da auto-avaliação em seu programa de pós-graduação - “Avaliação emancipatória: uma proposta democrática para reformulação de um curso de pós-graduação”, em 1985, com a orientação de Maria Amélia Goldberg, na PUC-S.Paulo - e Domingues trabalhando com essa ideia de cotidiano - ‘Escola de 1º grau: o sonho e a realidade’, em 1985, com a orientação de Maria Regina Maluf, também na PUC-S. Paulo.

3Indicamos, mais uma vez, que essa forma de escritura desses termos - juntados, em itálico, entre aspas simples e muitas vezes, pluralizados e invertidos quanto à maneira com que nos aparecem hegemonicamente - foi criada para nos lembrar, nas pesquisas com os cotidianos, que se esses termos apareceram na Modernidade dicotomizados, estão significando limites para o que precisamos criar no momento presente.

10NOTA: Os autores foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e, ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

4Remember that the Everyday Life Study Group: ethical, aesthetic, and political dimensions was created in 2021, at the ANPEd National meeting, alerting us to these many feelings.

5It is important to remember that the ANPEd Working Group was founded at the National Meeting of ANPEd in 1986 and that its two first coordinators Ana Maria Saul (1986-1987) and José Luiz Domingues (1988-1989) worked on their theses on Everyday Life. Saul carried out a research on self-evaluation in her graduate program - "Emancipatory evaluation: a democratic proposal for the reformulation of a graduate course", in 1985, under the supervision of Maria Amélia Goldberg, at PUC-S.Paulo - and Domingues worked with this idea of Everyday Life - "Elementary school: the dream and the reality", in 1985, under the supervision of Maria Regina Maluf, also at PUC-São Paulo.

6We once again suggest that this way of expressing these terms - joined together, in italics, in simple inverted comas, and often pluralized and inverted in terms of the way they appear to us hegemonically - was created to remind us, in research on everyday life, that if such terms appear dichotomized in Modern times, they imply limitations to what we need to create at the present time.

Recebido: 10 de Novembro de 2022; Aceito: 16 de Março de 2023

*Autor para correspondência. E-mail: noaletoja22@gmail.com

INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES Noale Toja: Doutora em Educação e Cotidianos - ProPEd/UERJ, Bolsa FAPERJ. Participante do GrPesq Currículos cotidianos, redes educativas, imagens e sons, coordenado pela Dra. Profa. Nilda Alves. Colabora em projetos de Educomunicação, Arte e Tecnologia. Produtora de audiovisual, fotógrafa e professora substituta na Faculdade de Formação de Professores no Programa Processos Formativos e Desigualdades Sociais- FFP/UERJ. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1207-2795 Email: noaletoja22@gmail.com

Marcelo Machado: Doutor em Educação e Cotidianos - ProPEd/UERJ. Mestre em Processos formativos e desigualdades sociais pela UERJ/FFP. Graduado em Geografia pela UFRJ. Professor da rede privada e coordenador pedagógico da rede pública estadual (SEEDUC). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7845-7340 Email: mar_chado@hotmail.com

Nilda Alves: ProPEd/UERJ e PPGEDU Processos Formativos e Desigualdades Sociais/UERJ Professora emérita da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora emérita pela FAPERJ, com exercício na UERJ, no ProPEd - Programa de Pós-Graduação em Educação/EDU/Maracanã e no Programa de Pós-Graduação em Educação - Processos Formativos e Desigualdades Sociais - FFP/São Gonçalo (RJ). Pesquisadora Sênior/CNPq. Líder do GrPesq ‘Currículos cotidianos, redes educativas, imagens e sons’. Membro fundador do Laboratório Educação, Imagens e Sons (LABEIS)/UERJ. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0558-4175 Email: nildagalves@gmail.com

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