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Acta Scientiarum. Education

versión impresa ISSN 2178-5198versión On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.45  Maringá  2023  Epub 01-Dic-2023

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v45i1.60956 

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS

O ensino desenvolvimental e a formação de conceito teórico na disciplina de Física no ensino médio

La enseñanza desarrolladora y la formación del concepto teórico en la disciplina de la Física en la escuela

Carmes Ana da Rosa Batistella1  * 
http://orcid.org/0000-0003-0731-1322

Raquel Aparecida Marra da Madeira Freitas2 
http://orcid.org/0000-0003-3978-0238

1Universidade Federal do Tocantins, Campus de Gurupi, Rua Badejos, Lote 7, s/n, 77404-970, Gurupi, Tocantins, Brasil.

2Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, Goiás, Brasil.


RESUMO.

Estudos e pesquisas que têm buscando contribuir para mudanças no ensino de Física no ensino médio, especialmente quanto ao método de ensino-aprendizagem, pouco têm se beneficiado das contribuições do ensino desenvolvimental como uma alternativa para promover estas mudanças. Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa que buscou responder à questão: o uso de princípios do ensino desenvolvimental pode contribuir para mudanças qualitativas na aprendizagem e no desenvolvimento dos estudantes de Física do ensino médio? O objetivo geral foi verificar a ocorrência de mudanças no pensamento dos estudantes do ensino médio em relação a um conceito da Física, ensinado a partir de princípios teóricos do ensino desenvolvimental. A pesquisa empírica consistiu em um experimento didático formativo com o conceito calor, orientado por princípios das teorias de Vigotski, Davydov, Elkonin, Hedegaard e Chaiklin. O experimento didático formativo ocorreu em uma instituição de ensino federal, localizada no interior do estado de Goiás (Brasil). Participaram da pesquisa 22 alunos da disciplina de Física, do segundo ano do ensino médio integrado ao curso técnico, além do professor da disciplina, que possuía conhecimento das teorias fundamentadoras da pesquisa. Para a coleta de dados, utilizou-se a observação das aulas, entrevistas e a análise da tarefa realizada pelos alunos durante o experimento didático formativo. Apenas uma aluna, por razões pessoais e afetivas, não participou e não houve mudança no seu conhecimento. Os resultados mostram que os alunos que efetivamente realizaram a atividade de estudo do conceito calor pelo método proposto avançaram na zona de desenvolvimento proximal em relação a calor e formaram um conceito teórico de natureza dialética.

Palavras-chave: ensino-aprendizagem de física; ensino desenvolvimental; didática; pensamento teórico; calor

RESUMEN.

Estudios e investigaciones que han buscado contribuir a los cambios en la enseñanza de la Física en la escuela secundaria, especialmente en lo que respecta al método de enseñanza-aprendizaje, se han beneficiado poco de los aportes de la enseñanza desarrolladora como alternativa para promover estos cambios. Este artículo presenta los resultados de una investigación que buscó responder la pregunta: ¿el uso de los principios de la enseñanza desarrolladora puede contribuir a cambios cualitativos en el aprendizaje y desarrollo de los estudiantes de física de la escuela secundaria? El objetivo general fue verificar la ocurrencia de cambios en el pensamiento de los estudiantes de la escuela secundaria en relación a un concepto de Física enseñado desde principios teóricos de la enseñanza desarrolladora. La investigación empírica consistió en un experimento didáctico formativo con el concepto calor, guiado por principios de las teorías de Vigotski, Davydov, Elkonin, Hedegaard e Chaiklin. El experimento didáctico formativo se llevó a cabo en una institución educativa federal ubicada en el interior del estado de Goiás (Brasil). En la investigación participaron veintidós estudiantes de la asignatura de Física, del segundo año de la escuela secundaria integrada al curso técnico, además del profesor de la asignatura, quienes tenían conocimiento de las teorías subyacentes de la investigación. Para la recolección de datos se utilizó observación de clases, entrevistas y análisis de la tarea realizada por los estudiantes durante el experimento didáctico formativo. Solo una estudiante, por razones personales y emocionales, no participó y no hubo cambios en sus conocimientos. Los resultados muestran que los estudiantes que efectivamente realizaron la actividad de estudio del concepto calor por el método propuesto, avanzaron en la zona de desarrollo próximo en relación a calor y formaron un concepto teórico de naturaleza dialéctica.

Palabras clave: enseñanza-aprendizaje de la física; didáctica; enseñanza desarrolladora; pensamiento teórico; concepto de calor

ABSTRACT.

Studies and researches that have been seeking to contribute to changes in the teaching of Physics in High School, especially regarding the teaching-learning method, have benefited little from the contributions of developmental teaching as an alternative to promote these changes. This article presents results of a research that sought to answer the question: can the use of developmental teaching principles contribute to qualitative changes in the learning and development of high school physics students? The general objective was to verify the occurrence of changes in the thought of high school students in relation to a concept of Physics taught from theoretical principles of developmental education. The empirical research consisted of a formative didactic experiment with the Heat concept, guided by principles of the theories of Vigotski, Davydov, Elkonin, Hedegaard and Chaiklin. The formative didactic experiment took place in a federal educational institution located in the interior of the state of Goiás (Brazil). Twenty-two students from the discipline of Physics, from the second year of high school integrated to the technical course, participated in the research, in addition to the professor of the discipline, who had knowledge of the theories foundations of the research. For data collection, observation of classes, interviews and analysis of the task performed by the students during the formative didactic experiment were used. Only one student, for personal and emotional reasons, did not participate and there was no change in her knowledge.The results show that the students who effectively performed the heat concept learning activity by the proposed method, advanced in the zone of proximal development in relation to Heat and formed a theoretical concept of dialectical nature.

Keywords: teaching-learning physics; developmental teaching;didactics; theoretical thinking; heat concept

Introdução1

Os conteúdos da disciplina de Física, ainda hoje, continuam sendo ensinados de um modo que não instiga nos alunos o processo intelectual de descoberta do mundo natural e de suas propriedades (Gleiser, 2000), o que se verifica particularmente no ensino médio. Por outro lado, é identificada também a falta de motivação dos alunos para o estudo de Física, e até mesmo a aversão a essa disciplina (Bonadiman & Nonenmacher, 2007). O ensino da disciplina de Física caracteriza-se, predominantemente, por memorização mecânica de fórmulas e definições, devido à existência de respostas certas a serem reproduzidas em provas e testes. Um dos motivos é que, desde o início da educação básica, as escolas funcionam como centros de treinamento e o ensino está dentro de uma cultura de treino e testagem, com alunos e professores focados em testes alinhados à preparação para o mercado (Moreira, 2000).

As finalidades da educação escolar predominantes, atualmente, na educação brasileira correspondem ao projeto neoliberal para a educação em países periféricos. Nesse projeto, a educação escolar subordina-se a formas de governabilidade por intermédio de estandardização de resultados, que buscam regular a escola por meio de fatores de produtividade (Pacheco & Marques, 2014). Dentro dessa lógica, o objetivo é gerar percentuais e índices que permitam analisar o quanto a educação brasileira está se adaptando às demandas de natureza econômica. Todavia, professores e pesquisadores (Amorim, Reis, Oliveira, & Santos, 2018; Oliveira, Veit, & Araújo, 2015) têm se esforçado para promover mudanças no ensino de Física, buscando alcançar a aprendizagem dos estudantes para além do desempenho em testes de larga escala.

Na contramão desse projeto educacional, de viés economicista e com fins de adaptação ao processo produtivo capitalista, teóricos que se situam na abordagem do ensino para o desenvolvimento humano dos alunos (Davýdov, 1982; Hedegaard & Chaiklin, 2005) defendem que a finalidade da educação escolar é promover a formação dos alunos por meio da apropriação de conceitos, assegurando aprendizagens amplas e aprofundadas, com caráter criativo e crítico. Esses autores compreendem que o desenvolvimento dos alunos é influenciado por diversos aspectos de seu contexto histórico-cultural de vida, mas, na educação escolar, um dos aspectos fundamentais que favorece esse desenvolvimento é a organização do ensino-aprendizagem. Para eles, o modo pelo qual o ensino é desenvolvido os ajuda, assim, a assumir uma atitude de investigação e busca pela compreensão do objeto. Dessa forma, os alunos assumem a condição de sujeitos ativos no conhecimento e na aprendizagem. O motivo para aprender é gerado pelo tipo de relação que o aluno estabelece no trabalho com o objeto de conhecimento, dentro de uma atividade com esse objeto, e por um duplo movimento de conceitos, tudo isso proporcionado pela forma de organização do ensino.

O objetivo deste artigo é apresentar resultados da pesquisa que partiu do pressuposto de que o ensino desenvolvimental, a partir das formulações de Vigotski (2001, 2007), Davydov (Davýdov, 1982 2; Davydov & Márkova, 1987; Davydov, 1988), e Hedegaard e Chaiklin (2005), representa uma alternativa teórico-metodológica para impulsionar mudanças no ensino da disciplina de Física, em particular no ensino médio. Buscou-se investigar: que mudanças podem ser identificadas na aprendizagem dos alunos com o ensino organizado com base em princípios dessas teorias? O objetivo foi verificar a ocorrência de mudanças no pensamento dos estudantes em relação a um conceito da Física ensinado a partir de princípios teóricos do ensino desenvolvimental: o conceito calor.

Referencial teórico

A pesquisa fundamentou-se nas teorias de Lev S. Vigotski, Danil B. Elkonin, Vasili V. Davydov, Mariane Hedegaard e Seth Chaiklin. A teoria histórico-cultural se originou nos estudos de Vigotski (2001, 2007), sendo aprofundada por cientistas que o sucederam. Nesta pesquisa, foram relevantes os conceitos formulados por esse teórico, como mediação, internalização, zona de desenvolvimento proximal, processo de formação de conceitos e atividade humana.

Vigotski (2001) defendeu a premissa de que as características essencialmente humanas não são inatas, mas, sim, constituídas a partir da relação dialética do ser humano com a sociedade e a natureza, relação essa mediada pela cultura. Na relação do ser humano com outros sujeitos e com a natureza, ocorre a internalização dos conhecimentos historicamente elaborados e culturalmente organizados. O que caracteriza essa relação é a mediação pelos instrumentos e signos historicamente construídos.

Desse modo, Vigotski (2001, 2007) explica que a aprendizagem do sujeito ocorre como uma situação social, sendo que a aprendizagem influencia no desenvolvimento e ambos são processos inter-relacionados. Para o autor (Vigotski, 2001), a aprendizagem pode ocorrer em diferentes contextos sociais e culturais, implicando em dois tipos distintos de conhecimento e de conceitos: os cotidianos (ou espontâneos) e os científicos (também chamados de acadêmicos ou escolares). São distintos o curso e as condições do desenvolvimento destes conceitos. Os conceitos cotidianos são baseados na experiência cotidiana, desenvolvidos a partir de interações entre seres humanos e destes com o mundo, nos contextos da vida, formando a compreensão intuitiva sobre as coisas, envolvendo o processo de relacionar palavras a objetos específicos. Esses conceitos representam uma base para a aprendizagem dos conceitos científicos. Por sua vez, os conceitos científicos são elaborados e sistematizados, resultam da investigação e reflexão com base científica e são aprendidos em situação formal de ensino-aprendizagem, principalmente na educação escolar. A apropriação de conhecimentos científicos ocorre por meio de um processo educacional institucional, que produz algo fundamentalmente novo no desenvolvimento do sujeito (Vigotski, 2007). O argumento do autor é de que estes dois tipos de conceitos precisam ser compreendidos em uma perspectiva de inter-relação dialética. O processo de formação de conceitos científicos envolve todas as funções psicológicas básicas (atenção, memória, abstração, capacidade de comparar e diferenciar objetos), iniciando-se na infância e se estendendo até a adolescência. Para a formação de conceitos, é necessário aprender a direcionar os próprios processos mentais com a ajuda da palavra e dos signos (Vigotski, 2007).

Para Vigotski (2007), o desenvolvimento do ser humano ocorre por meio do processo de internalização da cultura, que se dá em dois momentos distintos, denominados de intrapsicológico e interpsicológico. Pino (2005), concordando com essa lei, explicita que a criança se torna um ser cultural (ser humano) à medida que vai incorporando a cultura, a partir de suas ações significadas pelas outras pessoas com quem se relaciona. Conceitos cotidianos e conceitos científicos são importantes, mas são os conceitos científicos que possibilitam a formação da consciência reflexiva pela mediação cultural.

Na educação escolar, outro conceito da teoria vigotskiana relevante é zona de desenvolvimento proximal. Ele está articulado aos níveis de desenvolvimento, que são dois. O nível de desenvolvimento real é caracterizado por atividades em que o indivíduo consegue compreender e agir com determinado objeto de conhecimento de forma independente. Esse nível representa o desenvolvimento retrospectivamente e diz respeito a funções mentais já formadas e a capacidades estabelecidas. O nível de desenvolvimento potencial, por sua vez, abrange capacidades correspondentes a formas ideais da cultura e conhecimentos socialmente elaborados que podem vir a ser adquiridos pelo indivíduo. É uma perspectiva de desenvolvimento a ser alcançada prospectivamente, a depender do contexto de vida e do indivíduo. A zona de desenvolvimento proximal está entre esses dois níveis, sendo determinada por funções mentais e capacidades que estão se formando, mas que ainda não permitem ao indivíduo atuar de forma independente; por isso, requer orientação, ajuda e colaboração de outra pessoa mais capaz. Essa zona permite engendrar o futuro imediato do sujeito e seu estado dinâmico de desenvolvimento (Vigotski, 2007).

A teoria do ensino desenvolvimental (ou ensino para o desenvolvimento humano), na concepção de Davydov (Davýdov, 1982; Davydov, 1988, 1999), representa um avanço nos estudos realizados por psicólogos e pedagogos russos antecessores, pertencentes à escola científica de Vigotski. Libâneo e Freitas (2017) referem que as bases desta teoria provêm de pesquisas científicas realizadas na escola Nº 91 de Moscou, por um período de 25 anos, com a participação de diversos outros teóricos, destacando-se entre eles a participação de Elkonin. Este último também formulou teoricamente a periodização do desenvolvimento psíquico humano na concepção histórico-cultural, fundamentando-se nas teses de Leontiev sobre o papel da atividade na constituição da consciência humana (Elkonin, 1987). Seus estudos estabeleceram seis períodos de desenvolvimento, sendo cada um marcado por uma atividade principal que exerce o papel de guia, ou condutor, do desenvolvimento. São elas: atividade de comunicação emocional direta com adultos (0 a 1 ano); atividade objetal manipulatória (2 a 3 anos); atividade jogo (4 a 6 anos); atividade de estudo (6 a 10 anos); atividade de comunicação emocional com coetâneos (adolescência); atividade de produção social - trabalho (adulto) (Elkonin, 1987).

A teoria de Davydov consolidou as teses propostas inicialmente por Vigotski, mas agregou, também, as contribuições de Elkonin e de Leontiev sobre o desenvolvimento humano, mediado pela atividade guia em cada período. Respaldado pela tese de Vigotski, de que o ensino-aprendizagem escolar é o meio universal de promoção do processo de desenvolvimento humano, Davydov (1988) avançou teoricamente na explicação da organização do ensino que tem por finalidade promover o desenvolvimento humano omnilateral dos alunos. Assim, foi formulada detalhadamente a estrutura da atividade de estudo (Davydov & Márkova, 1987). Essa atividade, embora deixe de ser a atividade guia a partir do período da adolescência, permanece tendo um papel fundamental como meio de promoção do desenvolvimento dos alunos. Para Davydov (1988, p. 130), “[...] os conceitos historicamente formados na sociedade existem objetivamente nas formas de atividade e em seus resultados, ou seja, nos objetos criados de forma racional”. Assim, os indivíduos atuam com conceitos já existentes anteriormente na sociedade, captando-os e apropriando-se deles, em um processo de desenvolvimento e humanização.

Ressalte-se que, enquanto Vigotski estabeleceu os conceitos cotidianos e científicos, Davydov (humana 1988) distinguiu dois tipos de conceitos científicos, o empírico e o teórico, que se formam por meio do pensamento empírico e do pensamento teórico, respectivamente. A abstração e a generalização, enquanto procedimentos de pensamento para a formação de conceitos, apresentam características distintas nos pensamentos empírico e teórico, devido às distintas diferentes lógicas que estão em sua base, sendo no primeiro a lógica formal e no segundo a lógica dialética.

No pensamento empírico, as abstrações e generalizações empíricas de caráter lógico-formal possibilitam aos alunos a análise e comparação de objetos de conhecimento, identificando e distinguindo seus atributos observáveis externamente e perceptíveis pelos sentidos de imediato, aparentes, semelhantes ou diferentes em relação a outros, os aspectos comuns a uma classe, e outros aspectos que permitem comparação, distinção, classificação, hierarquização, quantificação etc., associando-os a uma definição e formando um conceito empírico. Os conceitos empíricos são importantes no que se refere às capacidades de classificação, hierarquização, definição de relações diretas entre fenômenos etc. para compreender as coisas em sua forma particular. Davydov reconhece como contribuição do conceito empírico o fato de ele possibilitar ao aluno reproduzir representações mentais e sociais já existentes e, nesse sentido, aprender caminhos de pensamento já percorridos por outras pessoas. Porém, conceitos empíricos são insuficientes para oportunizar a compreensão mais aprofundada e impulsionar a formação de capacidades mais complexas de pensamento e análise, o que é importante para a formação omnilateral do ser humano. Para o autor, o pensamento empírico mantém os alunos reféns desses caminhos, por isso ele defende a primazia do pensamento teórico e da formação do conceito teórico (Davýdov, 1982; Davydov, 1988).

Por sua vez, o pensamento teórico desvela a essência do objeto, por meio das contradições entre suas propriedades internas e externas e nas relações com outros objetos, conferindo significado ao conceito. “O objeto de conhecimento não é mais a realidade como aparece aos sentidos, mas é a realidade - objeto-científico - construída pela teoria, na relação sujeito-objeto” (Borba & Valdemarin, 2010, p. 30). Assim, “[...] o pensamento dialético põe em evidência as passagens, o movimento, o desenvolvimento, graças ao qual pode examinar as coisas de acordo com a natureza própria delas” (Davydov, 1988, p. 111). É o pensamento teórico que permite a reprodução das formas universais das coisas para além dos seus aspectos particulares e imediatos. Este tipo de pensamento revela as propriedades internas do objeto de estudo, mas em conexão com suas propriedades externas, ou seja, aquilo que caracteriza a existência mediada refletida e essencial do objeto. O pensamento teórico possibilita o conceito teórico e este, por sua vez, é uma forma de “[...] atividade mental, por meio da qual se reproduz o objeto idealizado e o sistema de suas relações, que em sua unidade refletem a universalidade ou a essência do movimento do objeto material” (Davydov, 1988, p. 128). Por sua natureza dialética, o pensamento teórico “[...] põe em evidência permite as passagens, o movimento, o desenvolvimento, graças ao qual pode examinar as coisas de acordo com a natureza própria delas” (Davydov, 1988, p. 111). Para realizar esse movimento e passagens, é necessário que o pensamento se movimente do aspecto abstrato e universal do objeto aos seus aspectos concretos e particulares, ou seja, do geral ao particular. A organização do ensino por meio da tarefa de estudo de um objeto de conhecimento deve estar em correspondência com esse movimento, isto é, o método de ascensão do abstrato ao concreto e do geral ao particular.

A primazia dada pelo autor ao pensamento e conceito teóricos é devido ao fato de impulsionarem a um pensamento criador e a um ganho de autonomia, uma vez que levam o aluno a assumir a posição de alguém que investiga, de forma semelhante aos cientistas e pesquisadores; entretanto não com o objetivo de descoberta científica, mas de apropriar-se dos produtos da ciência. A relevância conferida ao conceito teórico também está relacionada à sua forte influência na transformação subjetiva dos alunos, repercutindo na formação de sua consciência. Por esse caminho, o aluno se apropria das riquezas teóricas acumuladas e expressas pela humanidade na forma de cultura, ciência, arte, ética etc. e expressas em conceitos (Davydov, 1988, 1999).

Davydov formulou a estrutura da atividade de estudo contemplando os elementos da atividade humana, estabelecidos antes por Leontiev (necessidade, motivo, tarefa, ações e operações), e incluiu o desejo, por acreditar que a necessidade apenas nem sempre é suficiente para o engajamento do estudante no estudo do objeto. A atividade de estudo se concretiza por meio da tarefa de estudo e é planejada intencionalmente pelo professor a fim de apresentar aos alunos um problema real a ser solucionado, sendo a solução encontrada no percurso da realização das ações de estudo. As ações de estudo possibilitam aos alunos identificar uma relação geral e universal e, utilizando-a, analisar aspectos particulares do objeto, formando dele uma compreensão integral. Para isso, o professor precisa realizar uma análise aprofundada do objeto a fim de identificar a relação universal e abstrata que caracteriza o objeto. Nesta análise, é preciso ir à gênese do objeto e compreender seu desenvolvimento e transformação dentro da área de conhecimento até sua constituição mais atual (Davydov, 1988, 1999).

Hedegaard e Chaiklin (2005) concluíram que Davydov não considerou em sua teoria algo muito importante que influencia na aprendizagem escolar: as práticas socioculturais dos alunos. Assim, na teoria do ensino radical local, estes autores as descrevem, propondo articular práticas vivenciadas pelos estudantes no nível pessoal, local e social com o conhecimento científico a ser aprendido em dada matéria, o que acentua o motivo dos estudantes para aprender. Metodologicamente esta articulação ocorre por meio do que os autores denominam de duplo movimento no ensino: de um lado, o professor vai do conceito científico à experiência sociocultural dos alunos; de outro, os alunos que vão da experiência sociocultural ao conceito científico (Hedegaard & Chaiklin, 2005).

Percurso metodológico

Realizou-se uma pesquisa situada no campo teórico investigativo da didática recorrendo-se ao experimento didático formativo, que consiste em estudar, em situação real, mediante a influência de ações didáticas intencionais propostas pelo professor, mudanças no desenvolvimento de ações mentais e práticas dos estudantes (Davýdov, 1982; Davydov, 1988; Hedegaard & Chaiklin, 2005). O pesquisador considera o desenvolvimento a que os alunos podem chegar em termos de aprendizagem e de formação de capacidades dentro de determinada matéria de estudo. O método foi formulado por Davydov e sua equipe no contexto do sistema Elkonin-Davydov de ensino, concretizando-se em programas escolares e planos experimentais de ensino (Davydov & Márkova, 1987). Ele faz parte de uma família de métodos criados na psicologia soviética para estudar as causas, condições e mecanismos de desenvolvimento por meio da educação e do ensino (Zuckerman, 2011). É um método que supõe, dentro da pesquisa, a conexão entre forma de organização do ensino, a aprendizagem e a formação de conceitos pelos alunos. Caracteriza-se pela intervenção do pesquisador no processo de ensino-aprendizagem com foco na aprendizagem e nas mudanças no pensamento dos alunos.

A pesquisa foi realizada em um Instituto Federal, localizado no interior do estado de Goiás, com a participação de 22 estudantes, sendo 14 meninas e 8 meninos, com idade entre 16 e 18 anos, e do professor da disciplina de Física, totalizando 23 participantes. Os estudantes estavam matriculados no 2º ano do ensino médio integrado a um dos cursos técnicos oferecidos por esta instituição. O professor possuía licenciatura em Física, mestrado em Física e doutorado em Educação, com conhecimento das teorias de Davydov e de Hedegaard e Chaiklin. Os estudantes foram identificados com os códigos P1 a P22 e o professor com o código P.

O planejamento do ensino de determinado conteúdo, em uma disciplina, deve incluir os conhecimentos, mas não apenas eles, pois é preciso incluir também as capacidades lógicas e psicológicas relacionadas a estes conhecimentos que se espera que sejam desenvolvidas pelos alunos durante o estudo de um conteúdo (Davydov, 1988). Assim, a proposição do experimento didático formativo requer a análise do conceito a ser ensinado-aprendido, identificando sua relação universal e abstrata.

Foi selecionado o conceito de calor para ser o objeto de aprendizagem pelos alunos. Essa escolha foi justificada por ser, epistemologicamente, um conceito que se articula a outros da Física, no ramo da Termologia e Termodinâmica, formando um sistema conceitual único e interligado. A escolha se deu, também, ao fato de esse conteúdo ser considerado pelos alunos como de difícil aprendizagem, sendo geralmente confundido com sensação térmica de quente, e sua compreensão, muitas vezes, ser expressa por meio da teoria do calórico, já substituída pela comunidade científica da Física desde a década de 1840 (Pádua, Pádua, & Silva, 2009).

Para planejar o ensino, primeiramente, realizou-se uma análise lógico-histórica do conceito de calor. Conforme a concepção davydoviana (Davýdov, 1982; Davydov, 1988), essa análise possibilita explicitar a origem do conceito, deixando claras as contradições dialéticas que envolvem superações teóricas e epistemológicas, que resultam na transformação do conceito e, principalmente, permitem a identificação da relação universal abstrata que se encontra na sua base. O estudo lógico-histórico do conceito de calor permitiu identificar as três principais explicações teóricas sobre esse fenômeno: flogístico, calórico e calor-energia (Pádua et al., 2009).

Buscou-se evidenciar que tais explicações teóricas se constituíram a partir do constante trabalho investigativo dos pesquisadores, refletindo a transformação do conceito pela superação de uma explicação sobre a base da anterior, em um processo dialético de permanências e rupturas, até se chegar à constituição do conceito de calor como “[...] uma modalidade de energia que se transfere de um corpo a outro, por causa de, exclusivamente, uma diferença de temperatura” (Carron & Guimarães, 2006, p. 266). É importante ressaltar que a “[...] matéria não possui calor, contém energia cinética molecular e possivelmente energia potencial, ‘não calor’” (Hewitt, 2002, p. 270, grifo nosso).

Essa relação universal foi considerada como base para a organização do ensino do conceito de calor, proposto no experimento didático formativo. Assim, buscou-se corresponder à premissa teórica de que para aprender um objeto, o aluno precisar formar o seu conceito, o que requer um método para pensá-lo e analisá-lo, tendo por referência o percurso mental realizado pelos cientistas na construção e descoberta deste conceito (Davýdov, 1982; Davydov, 1988). A organização do ensino é apresentada no tópico Resultados, deste artigo.

Para a coleta de dados, foram utilizados os seguintes instrumentos: questionário de caracterização sociocultural dos estudantes; tarefa diagnóstica; entrevista semiestruturada; observação direta das aulas de Física, antes e durante o ensino do conceito de calor, fundamentado no referencial teórico do ensino desenvolvimental; e roda de conversa com os estudantes. O questionário e a entrevista com os alunos abordaram temas como o contexto sociocultural de vida, a atividade principal, os motivos que predominam na vida dos alunos, a relação com a própria aprendizagem, a aprendizagem na disciplina de Física, a relação que os alunos enxergam entre sua aprendizagem e seu desenvolvimento, entre outros. A entrevista semiestruturada com o professor abordou os seguintes temas: concepção (referencial teórico) de formação e de prática pedagógica; condições do trabalho docente. Na impossibilidade de apresentar, aqui, todo o conjunto de dados, para este artigo foram selecionados alguns dados que se julgou serem mais significativos para o objetivo do texto, referentes à tarefa diagnóstica, à observação direta das aulas e falas durante a roda de conversa.

Resultados

Diagnóstico do conhecimento dos alunos sobre calor

Para identificar o conhecimento que os alunos já possuíam sobre calor (cotidiano ou científico), foi realizada uma tarefa diagnóstica com três questões. Essas questões levaram em conta o contexto sociocultural dos alunos e suas práticas socioculturais (Hedegaard, 2002; Hedegaard & Chaiklin, 2005), anteriormente expressados por eles nos questionários e entrevistas, a periodização do desenvolvimento humano em que se encontravam (adolescência) e nele a atividade principal, ou seja, atividade de comunicação emocional com coetâneos (Elkonin, 1987). A solução das três questões requeria um conhecimento científico de tipo teórico sobre o calor. A primeira questão envolveu uma das práticas das famílias dos estudantes em férias escolares; a segunda considerou as práticas socioculturais dos alunos e a comunicação com coetâneos no período da adolescência; a terceira questão dizia respeito ao contexto de práticas escolares de uma turma do nono ano do ensino fundamental, em que os alunos comumente têm o primeiro contato com a Física, sendo que um aluno questionou seus colegas quanto à sensação térmica experimentada por ele ao tocar diferentes materiais que constituem a porta da sala de aula. Por fim, em roda de conversa, foram levantadas aos alunos algumas questões. A Tabela1 sintetiza o que os alunos expressaram e manifestaram.

Tabela 1 Síntese do conhecimento expresso pelos estudantes sobre o calor na tarefa diagnóstica. 

Questão Respostas Conhecimento expressado
1. Organização de material, por um grupo de jovens, para acampamento em um parque ecológico com espaço destinado a Camping. a) Laura deveria levar utensílios adequados ao uso. Dispunha de panelas e talheres com cabo de aço inox, ou de alumínio ou de madeira. Decidiu escolher aqueles com cabo de madeira. Você faria a mesma escolha? Por quê? Dezesseis alunos afirmaram que fariam a mesma escolha, justificando ser a madeira má condutora de calor. Conhecimento empírico.
Argumento da escolha de cabo e madeira:
P16: Sim, porque o cabo de madeira transfere menos calor para as mãos e impede que haja algum acidente com queimadura.
Conhecimento cotidiano com indícios de conhecimento empírico.
Três alunos justificaram a escolha, ou não, da madeira sem vincular com o conceito calor:
P3: Sim, porque seria um acampamento em um parque ecológico e seria adequado utilizar o de cabo de madeira.
P5: Não, pois madeira é um material que, em sua superfície, acumula e incrusta material orgânico e inorgânico que é de difícil remoção. Levaria utensílios de aço inox, pois são mais duráveis, fáceis de lavar e não enferrujam.
P8: Não, pegar o que tem maior facilidade de pegar fogo é a pior opção.
Ausência de conhecimento do calor.
Três alunos não responderam (P1, P18, P21) Nada se pode afirmar quanto ao conhecimento sobre calor.
b) Pedro armazenou as bebidas em caixa de isopor justificando que o procedimento realizado deixa as bebidas “frescas” por um tempo maior e explicou que o isopor dificulta a saída do frio assim como a entrada do calor no interior da caixa. Você considera essa justificativa consistente com os conhecimentos escolares sobre o calor? Por quê? Dezenove alunos afirmaram que o isopor é um isolante térmico. Conhecimento empírico.
Questão Respostas Conhecimento expressado
Porém, complementaram com as afirmações: o isopor [...] não deixa escapar o calor de dentro para fora da caixa; [...] limita ou dificulta a transferência de calor do ambiente interno para o externo ou vice-versa e [...] impede a saída do frio.
Exemplos:
P5: Sim, pois as latas de refrigerante manteriam seu calor dentro da caixa, não trocando energia com o meio externo, que está em uma maior temperatura.
P6: Sim, porque o isopor age como um isolante que não deixa escapar de dentro o calor para fora.
Conhecimento cotidiano com indícios de conhecimento empírico.
Três alunos não responderam (P1, P18, P21) Nada se pode afirmar quanto ao conhecimento sobre calor.
c) Rute providenciou cobertores para levar ao acampamento, relatando a seus companheiros que sentiu muito frio quando participou de situação semelhante em que se esqueceu de levar esse agasalho. Ao ser questionada sobre essa atitude, ela justificou que o cobertor não deixa o calor sair do seu corpo, o que lhe proporciona dormir melhor e deixar o frio do lado de fora da barraca. Comente essa explicação, justificando-a. Dezessete alunos responderam à questão acrescentando:
P1: O cobertor aquece o corpo e faz com que o calor permaneça no corpo.
Conhecimento cotidiano.
P6: Calor todos nós temos em nosso corpo, e os agasalhos e cobertores se esquentam justamente pelo corpo.
P7: O cobertor funciona como um isolante, o corpo solta calor e o cobertor acumula o calor entre o corpo e o mesmo fazendo ficar quente.
P16: [...] o papel do cobertor é impedir que esse calor saia, fazendo com que a pessoa se mantenha aquecida com sua própria queima de energia que é transformada em calor.
P17: Está correta, o cobertor é um isolante térmico e não “um objeto que esquenta.
Conhecimento empírico.
Cinco alunos não responderam. (P5, P9, P18, P20, P21) Nada se pode afirmar quanto ao conhecimento sobre calor.
2. Alunos do 9º ano de uma escola aprenderam os conceitos calor e Temperatura. Certo dia, Marcos, um aluno curioso, dirigiu-se até a saída da sala e colocou uma de suas mãos na madeira e a outra na maçaneta metálica da porta e prosseguiu questionou seus colegas, quanto a temperatura dos materiais em contato. Afirmou que sentia calor na madeira e frio no metal e, por isso, as temperaturas não poderiam ser iguais. Você, assim como o Marcos, entendeu dessa maneira esse fenômeno. Justifique sua resposta e, se houver necessidade, escreva a resposta que você pensa ser a mais adequada. Um aluno respondeu:
P14: São materiais diferentes, logo, absorvem ou cedem calor de maneiras diferentes.
Conhecimento empírico.
Dezessete alunos responderam, cometendo erros conceituais: confusão entre conceitos de calor, Temperatura e Sensação Térmica.
Exemplificando:
P1: A madeira absorve menos temperatura sendo ela quente ou fria, permanecendo mais quente que o metal que permite a absorção de temperatura.
P7: Isso ocorre porque a madeira transfere menos calor. Já o metal absorve mais o calor da temperatura.
Conhecimento cotidiano.
Dois alunos não responderam (P2 e P20) Nada se pode afirmar quanto ao conhecimento sobre calor.
3.O que vocês têm a dizer sobre a seguinte afirmação? Hoje está fazendo muito calor, a temperatura está próxima de 40° C. Resposta esperada: A afirmação está incompleta. A presença do calor está condicionada a um sistema composto por dois corpos, no mínimo, e que estejam em temperaturas diferentes. P5: Ah, assim como falou dizer que está fazendo muito calor eu acho que está errado né, por causa que a temperatura está alta, mas não está fazendo calor.
P16: [...] ele tem essa sensação de maior calor porque o corpo dele está cedendo pouca energia. A temperatura está alta!
P19: Mas também tem a troca de calor do corpo.
Conhecimento empírico
4. Onde está o calor? Resposta esperada: Em qualquer lugar onde os corpos estejam em temperaturas diferentes Em todo lugar, responderam os 22 alunos.
Alguns acrescentaram:
P2: A caixa de isopor é uma forma de armazenar calor.
P7: É porque quando está frio, o corpo sente frio, é porque o corpo vai receber calor e a blusa é uma forma de isolamento. Fecha o calor e aí fica quente!
Conhecimento cotidiano.
Questão Respostas Conhecimento expressado
5. Podemos afirmar que alguém sente calor? Por quê? Resposta esperada: Não. Porque Calor não é sensação térmica, por isso não podemos sentir. Quente, morno e frio são sensações térmicas. P4: Oh! Gente quando eu pego um geladinho que está frio, quanto mais eu seguro mais frio e, então vou sentir esse calor.
P18: Na verdade é o contrário, sua mão está cedendo calor para o geladinho!
P2: Não! Estão os dois cedendo calor.
P18: Não, quem está cedendo calor é a mão que está mais quente.
Conhecimento empírico.

Fonte: Batistella (2020).

A análise da tarefa diagnóstica revelou que a compreensão demonstrada pelos estudantes, nos registros escritos e em suas falas, correspondia a um conceito cotidiano ou espontâneo de calor. Entretanto, ao verbalizarem sobre calor como uma modalidade de energia ou o calor como substância armazenada no corpo (teoria do calórico) etc., eles demonstravam algum conhecimento científico de calor, mas do tipo empírico, como, por exemplo: [...] madeira má condutora de calor; [...] cobertor é isolante térmico; [...] madeira e metal, são materiais diferentes, logo, absorvem ou cedem calor de maneiras diferentes. Observou-se que alguns alunos demonstraram certa confusão com relação aos conceitos de calor, sensação térmica de quente e com temperatura, como se observa nestas frases: [...] o isopor impede a saída do frio (corretamente, o isopor impede o fluxo de energia por calor entre o interior e o exterior da caixa); [...] a madeira absorve mais temperatura sendo ela quente ou fria, permanecendo mais quente que o metal que permite a absorção de temperatura (corretamente, o metal supera a madeira na condutibilidade de energia por calor, portanto, quando a mão, que se encontra com a medida de temperatura maior que a da porta, entra em contato com esses materiais, cede calor com maior rapidez para o metal, permitindo a ocorrência da sensação térmica de frio. Importante saber que a temperatura da maçaneta e da madeira que constituem a porta da sala de aula é a mesma e menor que a do corpo humano); [...] sente calor do quente ou o calor do frio (quente e frio são sensações térmicas, calor é uma modalidade de energia que existe sob condição de existência de sistemas com medidas de temperaturas diferentes, o que faz entender que não é possível sentir calor do frio ou do quente).

Portanto, se pode inferir que os alunos P3, P9, P21 têm pouco ou quase nenhum conhecimento científico sobre o calor, pois deixaram de responder algumas questões ou não vincularam algumas respostas ao conceito. Dezenove alunos apresentaram fortes indícios de conhecimento científico empírico, revelando-se duas situações no que se refere à zona de desenvolvimento proximal (ZDP): parte deles com uma ZDP envolvendo conceito cotidiano e conceito científico do tipo empírico; outra parte com ZDP envolvendo conceito científico empírico e conceito científico teórico. Essa constatação respaldou ainda mais o planejamento do ensino experimental com foco no conceito teórico de calor, por meio da organização da tarefa de estudo (Davýdov, 1982, Davydov, 1999) e do duplo movimento no ensino (Hedegaard, 2002; Hedegaard & Chaiklin, 2005). As necessidades de aprendizagem dos alunos envolveram três tipos de mudança: ‘de ausência de conceito para conceito teórico’; de conceito cotidiano para conceito teórico; de conceito empírico para conceito teórico. Isso foi o que se buscou com a realização do experimento didático formativo.

Organização do ensino para aprendizagem de calor como conceito do tipo teórico

Davydov (1988) formulou a estrutura geral da atividade de estudo a ser empreendida pelos alunos, composta por seis ações: 1ª Transformação dos dados da tarefa para descobrir a relação universal do objeto de estudo; 2ª Modelação desta relação universal em forma objetivada, gráfica ou literal; 3ª Transformação do modelo da relação universal para estudar suas propriedades em forma pura; 4ª Solução de tarefas particulares que podem ser resolvidas pelo método geral; 5ª Avaliação do desempenho das ações precedentes; 6ª Avaliação da formação do método geral de solução da tarefa de estudo. A partir destas ações, são realizadas tarefas que se compõem de cada ação, o objetivo a ser alcançado nesta ação e as condições para realizar a ação. O autor propõe que estas ações, exceto a sexta, devem ser realizadas de forma coletiva e o pensamento do aluno movimentar-se do geral para o particular e do abstrato para o concreto.

Na organização do ensino do conceito calor, foi formulada uma tarefa, estruturada na forma de atividade de estudo, composta por seis ações para os estudantes realizarem (Davýdov, 1982; Davydov, 1999; Hedegaard & Chaiklin, 2005) a fim de formarem o conceito teórico calor. Na primeira ação, ao introduzir um problema, desafiando os alunos a solucioná-lo, a intencionalidade da pesquisadora foi: mobilizar a atividade mental/prática dos estudantes; envolvê-los ativamente com o objeto de estudo (calor); motivá-los a uma busca investigativa para chegar à solução. Esperava-se que chegassem à explicação aprofundada do problema utilizando um método teórico de pensá-lo e analisá-lo.

O problema inicial envolveu a atividade rural, bastante familiar ao contexto sociocultural de vida, relatado pelos estudantes nas entrevistas. Eles foram orientados a realizarem as cinco primeiras ações de forma coletiva e colaborativa, trabalhando em grupos designados pela letra G e o número atribuído ao grupo (G1, G2, G3 etc.). A cada ação foi sendo modificada a composição dos grupos, a fim de promover a interação e diversificar a presença de estudantes com diferentes zonas de desenvolvimento proximal em relação ao conhecimento de calor. Nesta composição, também foram consideradas as relações afetivas entre eles. Os alunos são indicados com a letra P (participante) e o correspondente número, e o professor está indicado apenas como Professor. A seguir, são descritas as ações.

Primeira ação

Ao propor aos estudantes esta primeira ação, objetivou-se mobilizá-los para a investigação e descoberta da seguinte relação universal (Davydov, 1988, 1999), presente na base do conceito teórico calor: uma modalidade de energia que se transfere de um corpo a outro, por causa de, exclusivamente, uma diferença de temperatura (Carron & Guimarães, 2006). Esperava-se que eles chegassem a essa conclusão por meio da busca de relações e conexões, realizando imaginativamente um caminho de análise semelhante ao dos teóricos que anteriormente investigaram e formularam o conceito calor.

Como desafio, foi apresentado foi um problema enfrentado por um pequeno produtor rural, que criava livremente um lote de frangos caipiras nas proximidades de sua residência (prática comum na região em que a escola se localiza). O produtor não possuía conhecimento sistematizado sobre sua atividade e as condições materiais para exercê-la eram restritas. Visava-se que os alunos identificassem que, com pouco conhecimento sobre o assunto, o produtor cometeu falhas na condução do processo de reprodução das aves, o que resultou em insucesso em algumas tentativas, sendo as falhas relacionadas ao fenômeno físico calor. Dessa forma, também se buscou articular as práticas vivenciadas pelos estudantes e o conhecimento local com a busca do conhecimento científico teórico sobre calor para despertar o motivo e o desejo de aprender, bem como fazer com que atribuíssem sentido à busca pelo conhecimento teórico. Em outras palavras, buscou-se promover a conexão do conhecimento local no contexto sociocultural dos estudantes e o conhecimento científico escolar para estabelecer o duplo movimento no ensino na perspectiva radical local: o movimento dos alunos que partisse da experiência sociocultural local em direção ao conceito científico; o movimento do professor, partindo do conceito científico para a experiência sociocultural dos alunos (Hedegaard, 2002; Hedegaard & Chaiklin, 2005).

Os estudantes deveriam analisar a situação e elaborar hipóteses explicativas, utilizando os conhecimentos que tinham até então. Para que pudessem obter mais elementos que embasassem sua análise, foi apresentado um vídeo de curta duração, que tratava de frangos caipiras em diferentes fases de reprodução. Alguns, mesmo antes de concluído o vídeo, já se expressaram sobre o que observaram, como, por exemplo: “Nossa! Os ovos aumentaram?! P18” (Batistella, 2020, p. 139). Dialogaram, discutiram, elaboraram e expressaram ideias diversas acerca do problema. Essas ideias estavam ligadas a aspectos das teorias explicativas sobre calor. Na Tabela 2, apresentam-se alguns exemplos da discussão nos grupos, com elementos que sinalizam que entre os alunos havia dois tipos de conhecimento sobre calor: um cotidiano, portador de confusão e erro conceitual e outro que, embora seja conhecimento científico do tipo empírico, estava na perspectiva da teoria do calórico, superada desde a década de 1840 pela teoria do calor energia. Nota-se, também, a ausência de indícios de conhecimento científico ligada à teoria do calor energia. Assim, elementos que apareceram na tarefa diagnóstica também aparecem aqui.

Tabela 2 Algumas respostas hipotéticas dos estudantes ao problema enfrentado pelo Produtor Rural. 

Teoria do calórico (calor substância) G1. Para o ovo se tornar pintinho, é necessário que a galinha choque, transferindo calor para o ovo.
G2. Quando todos os ovos chocaram [transformaram-se em pintinhos] houve a perfeita distribuição de calor entre os ovos, tornando ideal o meio de reprodução; quando apenas alguns chocaram foi porque o calor não se distribuiu bem em todos os ovos. Provavelmente a galinha botou ovos demais e não conseguiu aquecer a todos.
G4. [...] ninho em local não apropriado, de cimento e o calor não fica contido no cubículo. Instalar luzes amarelas (devido ao calor gerado) no cubículo de madeira, (porque a transferência de calor da galinha para a madeira é menor do que da galinha para o cimento).
Teoria do calor energia Não foram realizadas hipóteses considerando calor como energia.
Erro conceitual: Confusão entre Temperatura, calor e Sensação Térmica G1. O produtor poderia fazer um galinheiro para as galinhas, assim elas não abandonariam os ovos e haveria maior transferência de calor porque seriam mais corpos envolvidos.
G2. Aconselhamos a construção de um galinheiro para colocar os ninhos espalhados, deixando o calor acumulado lá dentro.
G4. [...] instalar luzes amarelas (devido ao calor gerado) no cubículo de madeira.
G5. A teoria do calórico explica o sucesso e o insucesso, sendo que é necessário a transferência do calor da galinha para os ovos em processo de reprodução.

Fonte: Batistella (2020, p. 141).

Na sequência, os estudantes foram desafiados a realizar uma representação teatral da situação-problema vivenciada pelo produtor, ação que desenvolveram com muito envolvimento, entre risos e brincadeiras, denotando-se daí que a forma solicitada para a representação mobilizou o interesse e os motivou. Alguns se posicionaram de cócoras para representarem os pintinhos, enquanto outros se abraçaram e ficaram em pé para representarem a galinha. Eles deviam permanecer bem próximos. Solicitados a analisar o que ocorreu, considerando o vídeo e as discussões que realizaram, eles constataram uma relação entre calor e o insucesso do produtor rural. O fato de reconhecerem o calor como fator determinante no insucesso do produtor rural denota que os estudantes estavam trabalhando em suas análises com elementos da relação universal do calor, ou seja, “[...] modalidade de energia que se transfere de um corpo a outro, por causa de, exclusivamente, uma diferença de temperatura” (Carron & Guimarães, 2006, p. 266).

No final dessa ação, os estudantes receberam do professor, para leitura, análise e discussão, um texto elaborado pela pesquisadora em que eram abordadas as três teorias aceitas pela comunidade científica para explicar a natureza do calor (flogístico, calórico, calor-energia). O professor mediou às discussões com questionamentos e comentários, com a intenção de levá-los a identificarem a relação universal que se encontra na base do conceito calor. O diálogo, a seguir, contém elementos que mostram o início da transformação qualitativa do conhecimento anterior que os alunos expressaram na tarefa diagnóstica.

P11: Tem diferença sair do frio ou do quente?

P20: O frio não cede energia pro (sic) quente, é o contrário.

P7 e P11 conversam e P11 diz não ter entendido.

Professor: P11 não entendeu, vamos lá. P11, qual que é a relação geral básica do conceito de calor?

P11: É a transferência de energia..., ah! Fale aí P20!

Professor: P11, Energia, transferência de energia por causa das temperaturas diferentes. Calor está no corpo?

P4, P1 e P20: Não: calor é processo!

P11: Por isso da seta?

Professor: Isso, a seta nesse desenho indicaria o processo.

P11: Ahhh, agora entendi. Entendi, entendi... A seta indica o processo! [a aluna se sentiu feliz por ter compreendido o modelo e em consequência a relação universal do calor]

Este recorte do diálogo, que ocorreu durante a socialização dos modelos da relação universal do calor elaborado pelos grupos G1, G2 e G3, possibilita constatar que o conhecimento da aluna P11 que era do tipo cotidiano avança para o conhecimento empírico, verificável quando ela entende a necessidade de um dos elementos do modelo (seta) cuja existência é essencial para identificar o calor.

Segunda ação

Tendo descoberto na primeira ação que há uma relação universal explicativa do conceito de calor, nesta os alunos deveriam construir o modelo representativo desta relação. Esse modelo visa representar esta relação como elemento essencial constitutivo do objeto estudado e que frequentemente não é perceptível de imediato (Freitas, 2012). Portanto, não se trata apenas de indicar características externas e aparentes do fenômeno, mas de demonstrar o que está por detrás de elementos do objeto expressos e perceptíveis de imediato.

O modelo pode ser expresso por meio de texto, gráfico, símbolos ou letras, representação teatral etc., desde que ele expresse de forma correta a relação universal do objeto em estudo (Davydov, 1988; Hedegaard & Chaiklin, 2005). Foi solicitada aos alunos a representação por meio de desenho.

Organizados em três grupos (G1, G2 e G3), os alunos formularam e construíram um modelo que consideraram representar a relação universal de calor. Durante a socialização dos modelos dos grupos, verificou-se que falhas no modelo eram indícios de que a relação universal ainda não havia sido identificada corretamente ou de que o modelo não estava suficientemente bem construído. Então, o professor solicitou aos alunos que avaliassem os modelos, analisando se correspondiam ao que foi pedido para que percebessem os equívocos que, embora sutis, descaracterizavam a relação universal. Nesse momento, portanto, os alunos estavam realizando, dentro da segunda ação, o que está definido na quinta ação por Davydov (1988, 1999) para ser realizado de forma transversal em todas, isto é, o exame consciente, reflexivo e crítico de seu desempenho e seu percurso no conjunto das ações, tendo como referência os objetivos definidos. Os erros identificados pelo professor e pelos alunos e discutidos para que corrigissem foram: a) O grupo G1 representou o calor por meio de setas com a mesma direção e nos dois sentidos, indicando transferência de calor de ambos os corpos embora eles estivessem em temperaturas diferentes. Neste caso, a forma correta de indicar a relação universal do calor seria colocar seta unidirecionalmente, em apenas uma das extremidades da reta, indicando que o fluxo de energia por calor ocorre, espontaneamente, do corpo de maior para o de menor temperatura. b) O grupo G2 utilizou ‘quente e frio’ para identificar os corpos bem como o movimento das moléculas que o constituem. Quente e frio são sensações térmicas, portanto o correto seria usar temperaturas T1 e T2. O G3 acrescentou na relação a grandeza física ‘distância’. A relação universal do calor pode ser descrita como modalidade de energia que se transfere de um corpo a outro, por causa de, exclusivamente, uma diferença de temperatura, isto é, do corpo de maior temperatura para o corpo de menor temperatura. O modelo deveria ser representativo desta conexão interna essencial do objeto calor.

Eles acrescentaram o momento de equilíbrio térmico, com ambos os corpos atingindo a mesma temperatura e resultando na extinção de calor no sistema considerado. A Figura 1 exemplifica um dos modelos construídos e o modelo final elaborado por todos.

Fonte: Batistella (2020, p. 152)

Figura 1 Modelo da Relação universal do calor do Grupo G2. 

A relevância da ação de construir o modelo representativo da relação universal do conceito está em promover, no aluno, a consciência da realidade captada e reproduzida pela mente humana, realçando a necessidade de que, na formação da consciência sobre um objeto real, ocorra sua recriação de forma ideal pela mente humana. Esta recriação reflete o objeto real em outra forma, a forma de pensamento teórico, que por sua vez expressa, no plano ideal, o movimento do objeto real, suas contradições e transformações (Davýdov, 1982; Davydov, 1988; Hedegaard & Chaiklin, 2005). Outro papel importante da modelação é que ela proporciona aos alunos a oportunidade de criarem e não apenas reproduzirem o conhecimento. Criar o modelo requer análises e sínteses, imaginação, experimento mental, o que vai tornando o aluno um sujeito que formula, planeja, elabora representações e não apenas repete ou memoriza. Essa ação contribuiu para que os alunos se tornassem conscientes de que, para formar um conceito teórico de um fenômeno real, é necessário um método de analisar e pensar este fenômeno e ele exige inicialmente o procedimento de abstração da relação universal, que contém seu nexo mais essencial e interno. Desse modo, ao mesmo tempo em que realizavam a ação, os alunos também examinavam seu percurso e seu método de pensamento, análise, apreensão do objeto, o que corresponde à quinta ação (descrita adiante).

Após as discussões e correções em cada modelo, os alunos foram solicitados a chegar a um consenso sobre a formulação de um único modelo que expressasse dois corpos com temperaturas diferentes, indicando o movimento da energia do corpo de maior para o de menor temperatura (Figura 2).

Fonte: Batistella (2020, p. 156)

Figura 2 Modelo final da Relação universal do calor. 

Terceira ação

Alterando-se o núcleo da relação universal, o seu resultado também se altera (Freitas, 2012). A análise dessa alteração é importante para que os alunos aprofundem a compreensão da relação universal, pois precisam perceber as consequências advindas da alteração. Para isso, os alunos são solicitados a realizaram a mudança no modelo construído na segunda ação (Davydov, 1988). O professor pediu que os alunos iniciassem a terceira ação assistindo e analisando um vídeo sobre a reprodução de pinguins na Antártica, onde a temperatura média é de 40°C negativos.

Após essa etapa, os alunos foram orientados a realizarem, imaginativamente, um experimento: levar o sistema galinha/ovos (presente no problema da primeira ação) para chocar na Antártica, ambiente em que os pinguins se reproduzem. O pensamento dos alunos foi orientado para a análise da contradição referente à quantidade de energia na forma de calor necessária para manter o equilíbrio térmico entre a galinha e os ovos, observando-se as condições climáticas do ambiente. Para isso, deveriam utilizar como referência o modelo construído na segunda ação. Imediatamente, eles argumentaram a impossibilidade de reprodução dos ovos da galinha devido à quantidade de energia que o sistema galinha/ovos transferiria para o ambiente por meio do calor, causando a morte dos animais e de seus ovos. É possível verificar, no recorte de diálogo a seguir, a compreensão formada pelos alunos:

Professor: Então: qual que é o sentido da transferência de energia?

Alunos: Da galinha para o ambiente.

P2: Ah, que legal! A galinha vai ceder energia até entrar em equilíbrio térmico com o ambiente.

Alunos: Cede energia na forma de calor.

Professor: Então, vamos pegar a galinha e os ovos e levar lá pra Antártica. O que acontece?

P2: Tanto o ovo como a galinha vão ficar na mesma temperatura do ambiente

Professor: Então os pintinhos vão nascer?

Alunos: Não.

Professor: Então o que o ovo precisa para se manter vivo?

Aluno: Calor! Não! Troca de energia

Outro aluno diz: Não pode ter troca de energia! Tem que manter a temperatura!

Quarta ação

Esta ação consiste em apresentar aos alunos problemas que envolvem o objeto de aprendizagem em distintos tipos de situação particulares. Tendo compreendido a relação geral abstrata e construído seu modelo, os alunos devem utilizá-la como método geral de pensamento para análise do objeto em situações particulares, ou seja, como uma ferramenta mental que permite resolver muitos casos específicos a partir de um princípio teórico geral (Davýdov, 1982; Davydov, 1988; Freitas, 2012). Desse modo, a ação cinco consistiu em resolver problemas particulares envolvendo o fenômeno calor.

Inicialmente, foi sugerida aos alunos a leitura do texto ‘Dez dicas para enfrentar o calor’, com acesso livre disponibilizado na internet (https://brasilescola.uol.com.br/saude/10-dicas-para-enfrentar-calor.htm). Os estudantes foram orientados a ler, identificar e analisar afirmativas que estivessem em desacordo com o que aprenderam até aquele momento sobre calor, propor correções argumentando a respeito a partir da relação universal e seus nexos com as distintas formas particulares pelas quais se podem identificar os modos com se apresenta o fenômeno físico calor.

Os estudantes expressaram grande euforia quando perceberam que conseguiam constatar equívocos em relação ao calor. Esse tipo de constatação representa um indício de mudança no pensamento dos estudantes e que eles se apropriaram da relação universal de calor. A Tabela 3 apresenta uma síntese do que os alunos identificaram e das expressões que elaboraram para a correção do texto.

Tabela 3 Identificação e sugestão de expressões em análise do texto ‘Dez dicas para enfrentar o calor’. 

Expressões Originais do Texto Expressões Elaboradas pelos Alunos
Exposto ao calor do sol Exposto à energia solar
O calor estraga mais rapidamente os alimentos Alguns alimentos expostos a altas temperaturas estragam facilmente
Roupas claras esquentam menos do que roupas escuras Roupas claras absorvem menos energia térmica do que roupas pretas
Aumentam o calor do ambiente Aumentam a temperatura do ambiente
Que o calor saia Que a energia interna de um corpo varie [diminua] por meio do calor
Dias de extremo calor Dias com temperaturas muito elevadas

Fonte: Batistella (2020, p. 163).

Como continuidade dessa ação, os estudantes realizaram um experimento em dois momentos distintos: primeiramente, solicitou-se que friccionassem suas mãos por alguns segundos e que, em seguida, encostassem-nas em suas faces. Os estudantes identificaram o aumento de temperatura das mãos na fricção (atrito) e a presença de calor ao tocarem a face (movimento da energia das mãos para a face), o que demonstrou que estavam estabelecendo a conexão entre a relação universal e uma determinada relação particular de calor. O diálogo a seguir apresenta elementos que significam indício de que houve o trânsito da relação universal à particular e a identificação de contradição:

P9: Não pode haver calor, as mãos estão na mesma temperatura.

Professor: Então o que aconteceu com suas mãos após a fricção?

P5: Esquentaram.

P13: O que aconteceu foi aumento de temperatura (Batistella, 2020, p. 163).

Como última operação desta ação, os estudantes receberam um excerto de artigo referente à desova e reprodução de tartarugas do projeto Tamar. A indicação deste texto considerou o desejo que a aluna P2 havia expressado (em aula anterior) em compreender e aprender mais sobre a reprodução deste animal. Após a leitura, os estudantes deveriam explicar por que as tartarugas fazem seus ninhos na areia sob a radiação solar intensa. Esta era uma variação do problema inicial envolvendo a reprodução das galinhas, porém em outro contexto e com outra particularidade, mas o procedimento de pensamento, análise e dedução a ser utilizado deveria ser o mesmo, isto é, ter como base a relação universal do fenômeno calor.

Na sequência, um recorte de diálogo mostra como os alunos analisaram o problema envolvendo a reprodução das tartarugas3.

P1: Gente, a tartaruga é igual à galinha. Deixar os ovos sob a radiação solar é como a galinha deitar em cima dos ovos....

P4: As tartarugas fazem seu ninho sob a radiação solar, na areia existe uma troca de calor entre eles, mas não é tão elevada [como] se eles estivessem em contato direto com os raios solares.

P7: Com a areia debaixo do sol (sic), os ovos vão estar sempre aquecidos, a areia faz o papel da mãe, para aquecer, entendeu (Batistella, 2020, p. 163-164).

Na quarta ação, os estudantes devem ter consciência de que a relação universal do objeto se converte em procedimento mental para a solução de uma diversidade de problemas particulares e concretos, realizando generalizações deste procedimento. Assim, é possível que construam um conceito do objeto integral, compreendendo a unidade formada pela sua relação geral em conexão com as relações particulares. Eles adquirem a capacidade de compreender o objeto em movimento, realizando transições do geral e abstrato ao particular e concreto, e vice-versa (Davýdov, 1982; Davydov, 1999).

Quinta ação

Consiste na avaliação das ações anteriores, em que os próprios alunos examinam como as estão realizando, desenvolvendo uma reflexão consciente e crítica sobre si no alcance dos objetivos propostos para o estudo do objeto (Davýdov, 1982; Davydov, 1999). Pode-se considerar que esta ação corresponde a uma autoavaliação coletiva e individual dos alunos tendo como referência as orientações presentes na tarefa e os objetivos a serem alcançados (Freitas, 2016).

A quinta ação precisa ocorrer no transcurso do cumprimento da tarefa de estudo e exige dos alunos estarem atentos, mantendo a conexão com o objeto de estudo e com os objetivos propostos. Ela foi exemplificada na descrição da Segunda Ação, anteriormente, mas se repetiu em todas as outras, permitindo que os alunos estivessem sempre se esforçando para estarem conscientes de suas ações e de sua aprendizagem, tendo como referência o alcance do objetivo da tarefa em sua totalidade (Hedegaard, 2002; Hedegaard & Chaiklin, 2005).

Apresenta-se aqui brevemente um excerto de diálogo que também mostra que os alunos estavam preocupados em manter o trabalho individual e coletivo, e examinavam suas hipóteses, conclusões e caminhos de pensamento: “P20 - uma galinha abandona o ninho se outras galinhas forem lá e mexerem nos ovos dela e também se um cachorro for lá e comer algum ovo... P13: Essas hipóteses não têm muito a ver com Física, não!” (Batistella, 2020, p. 166). Durante uma das ações, dois alunos saíram da sala (P19 e P22) e os colegas demonstraram preocupação com o fato de que o trabalho precisava ser coletivo e os alunos ausentes precisariam retomar o foco ao retornarem: “P6: tomara que eles apareçam ainda aqui. Depois nós perguntamos a eles o que é calor? Nós não podemos fazer nossa pesquisa sem eles” (Batistella, 2020, p. 167).

Este recorte de diálogo ocorrido durante a socialização do modelo do grupo G1 referente a segunda ação, mostra que a relação universal do calor ainda não havia sido identificada pelo grupo e que a interação e discussão colaborativa com os colegas de outros grupos contribuiu para superar dúvidas deste.

P12: Tem que melhorar aqui [entre os corpos] para representar o calor?

P20: Uma seta saindo do corpo mais quente para o mais frio (sic).

P11: Tem diferença sair do frio ou do quente?

P20: O frio não cede energia pro (sic) quente, é o contrário.

P7 e P11: Conversam e P11 diz não ter entendido.

Professor: P11 não entendeu, vamos lá. P11, qual que é a relação geral básica do conceito de calor?

P11: É a transferência de energia..., ah! Fale aí P20!

Professor: P11! Energia, transferência de energia por causa das temperaturas diferente. Calor está no corpo?

P4, P1 e P20: Não: calor é processo!

Professor: Está claro isso, gente?

P11: Por isso da seta?

Professor: Isso, a seta nesse desenho indicaria o processo.

P11: Ahhh, agora entendi. Entendi, entendi... A seta indica o processo! [a aluna se sentiu feliz por ter compreendido o modelo e em consequência a relação universal do calor] (Batistella, 2020, p. 167).

É relevante destacar que durante a atividade de estudo, alguns alunos refletem sobre seu método de pensar o objeto, que se empenha em realizar a tarefa conforme proposta, em corrigir e retomar o caminho ao identificar falhas.

Sexta ação

Em acordo com o que estabeleceu Davydov (1988), as ações da primeira a quinta se realizaram coletivamente e a 6ª ação foi de forma totalmente individual. Nesta ação, ocorreu a avaliação individual da aprendizagem para verificar a formação do conceito teórico pelo aluno. O professor deveria verificar se o estudante formou para si um conceito teórico do objeto calor, se foi capaz de realizar a abstração da sua relação universal e depois generalizá-la como um procedimento de análise e solução de variados problemas particulares e concretos, envolvendo o fenômeno físico calor.

Solicitou-se que os estudantes resolvessem as mesmas questões que haviam sido apresentadas na tarefa diagnóstica. Ao contrastar a solução da tarefa agora com aquela realizada anteriormente, observaram-se indícios de mudança no modo como estavam pensando e analisando o calor como objeto de conhecimento. Essa mudança representou um avanço em relação ao conhecimento inicial dos alunos. Exemplifica-se com respostas de alguns alunos as questões número 1 (letras a e d) e, número 2 (letra c) no Tabela 4.

Tabela 4 Resposta da questão 01 do diagnóstico solicitada após o estudo teórico do calor. 

Pergunta Resposta na tarefa diagnóstica Resposta da tarefa correspondente à ação 6 Indício verificado
1ª a) Laura deveria levar utensílios adequados ao uso. Dispunha de panelas e talheres com cabo de aço inox, ou de alumínio ou de madeira. Decidiu escolher aqueles com cabo de madeira. Você faria a mesma escolha? Por quê? “Não, pois madeira é um material que, em sua superfície, acumula e incrusta material orgânico e inorgânico que é de difícil remoção. Levaria utensílios de aço inox, pois são mais duráveis, fáceis de lavar e não enferrujam” (P5) “Sim, pois colheres com cabo de madeira não conduzem muita energia (calor), logo não queimará a mão de quem for preparar uma comida quente, diferente das de inox e de alumínio que são bons condutores térmicos” (P5) Transformação do pensamento em relação ao objeto calor e movimento de formação de uma compreensão conceitual teórica.
“Não, porque há opções melhores, pois dentre esses, para um ambiente que há presença de fogueiras e outros inflamáveis, pegar o que tem maior facilidade de pegar fogo é a pior opção” (P8) “Sim, pois o de madeira não conduz tanta energia em [forma de] calor como os outros” (P8).
1ª d) Rute providenciou cobertores para levar ao acampamento, relatando a seus companheiros que sentiu muito frio quando participou de situação semelhante em que se esqueceu de levar esse agasalho. Ao ser questionada sobre essa atitude, ela justificou que o cobertor não deixa o calor sair do seu corpo, o que lhe proporciona dormir melhor e deixar o frio do lado de fora da barraca. Comente essa explicação, justificando-a. Calor todos nós temos em nosso corpo, e os agasalhos e cobertores se esquentam justamente pelo corpo. Nós nos sentimos mais quentes porque estamos em contato direto com o cobertor que absorve nosso calor e o que não aconteceria se estivesse em contato com o ar frio (P6). Tá errado porque acontece a transferência de energia do corpo para o agasalho (P6). Transformação do pensamento em relação ao objeto calor e movimento de formação de uma compreensão conceitual teórica.
2ª c) Responda: Ao beber o café com leite um dos estudantes não observou que imediatamente antes da mistura ser efetivada os líquidos se encontravam em temperaturas diferentes. Nessas condições, é possível afirmar corretamente qual dos dois líquidos cedeu calor? Por quê? O café, ele estava mais quente (P14). Não, tem que saber qual dos dois estava com a temperatura maior (mais quente) (P14). Transformação do pensamento em relação ao objeto calor e movimento de formação de uma compreensão conceitual teórica.

Fonte: Batistella (2020, p. 170-171).

As respostas apresentadas na Tabela 4 (P5, P6, P8e P14), quando contrastadas com aquelas realizadas na tarefa diagnóstica, fornecem indícios de que os estudantes conseguiram avançar do pensamento empírico para o teórico em relação ao conceito de calor, o que representa um indício de que estava se iniciando uma mudança em sua ZDP (Batistella, 2020).

Embora professor e alunos tenham se esforçado em despertar o interesse e motivar toda a turma durante o experimento didático formativo, os alunos P3, P16 e P21 não chegaram a formar o conceito teórico de calor, provavelmente porque não entraram em atividade de estudo. A aluna P3 em entrevista revelou que tem problemas com sua família e, em sala de aula, a atitude de permanecer isolada da turma e de não interagir com colegas ou com a professora era comum. Já os alunos P16 e P21 mostraram estarem habituados a realizar listas de exercícios, pesquisas com atribuição de notas e esse não foi o objetivo do experimento didático-formativo. Conclui-se que, ao final do experimento formativo, a ZDP destes alunos poderia ter se ampliado caso o experimento formativo continuasse.

Na finalização do experimento didático formativo, os estudantes foram convidados a enviar uma resposta ao produtor rural, sugerindo a solução para o problema apresentado na primeira ação de estudo. Destacam-se, a seguir, algumas ideias que eles apresentaram.

P4: Nos dois ninhos que tiveram problemas para o produtor foram as condições dos ninhos que não eram corretas. É preciso que a galinha troque menos energia possível com o meio ambiente durante a chocação, para isso os ninhos devem ser feitos em lugar fechado, protegido do vento e com comida e água perto da galinha.

P5: Claro os ninhos têm que ser em lugar fechado e a quantidade de ovos embaixo da galinha tem que ser pequena, eles têm que receber energia sempre para se manterem aquecidos durante todo o tempo.

P6: A galinha tem que acostumar botando ovo em lugar fechado e limpo, daí quando chocar fica deitada em cima dos ovos e eles vão receber a quantidade de energia para se manterem aquecidos e todos virarem pintinhos.

P12: É importante manter as galinhas em lugar fechado, com ventilação e quantidade de calor pequena, apenas para manter a temperatura dos ovos igual à da galinha (Batistella, 2020, p. 173).

Houve significativa participação dos estudantes tanto nos trabalhos internos ao grupo quanto no momento de socializar as ações a todos. O professor mediava iniciando o diálogo que, em seguida, se enriquecia pela participação dos estudantes, trazendo suas experiências locais, hipóteses explicativas, conclusões etc.

Discussão dos resultados

O objetivo da pesquisa foi verificar a ocorrência de mudanças no pensamento dos estudantes do ensino médio em relação a um conceito da Física, calor, ensinado a partir de princípios teóricos do ensino desenvolvimental, conforme o referencial teórico explicitado. Os resultados da tarefa diagnóstica forneceram elementos para se prosseguir com o experimento didático formativo, mostrando que os estudantes demonstraram ter sobre calor um conceito científico empírico ou um conceito cotidiano, ou não demonstraram um conhecimento.

Verificou-se que, entre os vinte e dois alunos participantes da pesquisa, somente uma aluna P3 não apresentou nenhuma mudança em seu conhecimento sobre calor. Ela justificou ter motivos pessoais e afetivos para não realizar a tarefa de estudo e, desse modo, não chegou a desenvolver uma atitude de sujeito em atividade de estudo. Deduz-se que com maior tempo, mais mediações didáticas e compreensão aprofundada dos motivos desta estudante, provavelmente ela poderia participar e ter atitude investigativa como seus colegas, podendo até formar o conceito teórico de calor.

Quanto aos demais alunos, os dados apresentados nas tabelas são indicativos de que houve mudança em direção ao conceito teórico de calor. Os alunos que se encontravam com um conhecimento empírico eram oito (8). Destes, todos chegaram a uma compreensão teórica sobre calor. Os alunos que apresentavam indícios de conceito cotidiano sobre calor eram treze (13) e todos também formaram a compreensão teórica do conceito.

Outra mudança verificada foi no aspecto motivacional e de participação dos alunos. Ao organizar o ensino, introduzindo problemas que estavam ligados ao contexto sociocultural dos alunos e ao conhecimento local, houve repercussão positiva que favoreceu o estabelecimento da relação com o objeto de estudo e, desse modo, se caracterizou, de fato, a realização da atividade de estudo, que tem como um critério definidor esta relação. Os alunos desenvolveram a atitude de alguém que investiga e quer descobrir a explicação do fenômeno calor, o que é fundamental para formar um conceito teórico e ultrapassar o nível apenas da reprodução do conceito a partir de conclusões dos teóricos da área da Física. Foi importante, também, a consideração da periodização do desenvolvimento dos alunos e a atividade de comunicação coetânea, pois, além de favorecer o trabalho coletivo e colaborativo, contribuiu para que a realização das ações e a busca pela solução do problema tivesse para eles um sentido pessoal.

A organização do ensino conforme a teoria de Davydov, combinada ao duplo movimento no ensino proposto por Hedegaard e Chaiklin, mostrou ser uma alternativa promissora para o ensino do conceito de calor na disciplina de Física no ensino médio. Tais teorias representam referências de uma didática desenvolvimental para se efetivar a perspectiva da formação integral dos estudantes, a formação da autonomia em aprender, da criatividade na solução de problemas da vida em contexto social, a transformação dos conceitos teóricos em procedimentos mentais a serem utilizados na vida cotidiana. Assim, tem-se uma perspectiva superadora da perspectiva instrumental, pragmática, reducionista e limitadora da aprendizagem e do desenvolvimento dos alunos.

Entretanto, há que se ressaltar que a utilização consistente dessas teorias como fundamento didático do planejamento e organização do ensino de Física põe como desafios ao professor a capacidade de análise epistemológica do conteúdo a ser ensinado e o conhecimento aprofundado dessas teorias. Tal apreensão teórico-metodológica requer um investimento em formação inicial e continuada dos professores de Física. Silva, Pereira, Novello e Silveira (2018) afirmam que a maioria dos professores está desmotivada em relação à carreira docente e, por isso, há a necessidade urgente de políticas públicas que promovam a valorização do professor, principalmente, no aspecto financeiro, de modo que este profissional possa dedicar um tempo maior a sua formação e ao planejamento de suas aulas. A formação do pensamento teórico dialético como método de pensar e analisar um objeto de estudo remete à ideia de um processo subjetivo de mudança nas capacidades psíquicas dos estudantes, mas há que se considerar que, conforme Vigotski (2007), o impacto no desenvolvimento é um processo mais amplo, que não se capta de imediato. Trata-se de um processo orientado para o futuro, que se manifestará cada vez que o estudante vier a utilizar o método de pensar o conceito em outras situações e de forma integrada à aprendizagem do sistema conceitual da Física.

Considerações finais

A escola, hoje, está em uma busca incessante por qualidade do ensino, mas nessa busca tem predominado uma concepção de rendimento escolar, expresso no desempenho em testes de avaliação externa focados em medição quantitativa de aprendizagem. Isso tem impelido os professores a um papel técnico no processo de ensino-aprendizagem e ao atendimento de finalidades educativas pragmatistas de viés neoliberal mercadológico (Menegão, 2016). Assim, os alunos perdem a oportunidade de um tipo de aprendizagem que impulsione seu desenvolvimento de forma mais aberta e mais ampla, levando em conta as necessidades de transformação pessoal e social.

Particularmente no ensino de Física no ensino médio, muito há ainda para ser alcançado em termos de mudanças. Na literatura científica sobre o ensino de Física no ensino médio, os principais problemas estudados por pesquisadores abrangem dificuldades de aprendizagem (Bonadiman & Nonenmacher, 2007; Menegotto & Rocha Filho, 2008; Oliveira et al., 2015; Darroz; Trevisan & Rosa, 2018), falta de interesse dos alunos em aprender conceitos da Física (Cima, Rocha Filho, Ferraro, & Lahm, 2017); distanciamento entre conteúdos escolares e cotidiano dos alunos (Bonadiman; Nonenmacher, 2007; Menegotto &; Rocha Filho, 2008; Sena dos Anjos, Moreira, & Sahelices, 2017; Cima et al., 2017); contextualização dos conhecimentos de Física (Reis & Reis, 2016; Vizzotto, Mackedanz, & Miranda, 2017); introdução de estratégias e recursos didáticos para facilitar a aprendizagem (Sousa & Silva, 2014; Amorim et al., 2018). Estas pesquisas argumentam a necessidade de mudanças no ensino da disciplina Física, sugerindo propostas metodológicas diversificadas a fim de impulsionar a participação do aluno, tornando-o ativo no processo ensino-aprendizagem, bem como criar formas de motivação e envolvimento com a aprendizagem.

Ao concordar com esses pesquisadores, reafirma-se a necessidade de uma perspectiva superadora da compreensão da finalidade do ensino de Física, argumentando-se a favor da perspectiva teórica do ensino desenvolvimental, que destaca como essencial a formação do conceito teórico dialético. Porém, poucos são os estudos que se fundamentam explicitamente na concepção do ensino para o desenvolvimento dos alunos. Por exemplo, fundamentados em Vigotski, encontram-se estudos com foco na interação social entre os alunos e na zona de desenvolvimento proximal (Monteiro, Monteiro, Germano, & Gaspar, 2010; Pureza & Magalhães, 2008), na mediação, afetividade e vivência (Pereira & Abib, 2016). Fundamentados em Davydov, encontram-se estudos como o de Merengão (2011), que enfocou a formação de ações mentais dos alunos, o de Brignoni (2018), que desenvolveu um experimento didático-formativo com alunos da segunda série do Ensino Médio para formação de conceitos de propagação da luz e formação de imagem, o de Borges (2016), que realizou um experimento didático-formativo no primeiro ano do Ensino Médio integrado sobre o conteúdo ‘Leis de Newton’. Assim, além de poucos estudos, não foram encontrados trabalhos que incorporassem as contribuições de Hedegaard e Chaiklin.

Neste vasto campo a ser explorado, os resultados desta pesquisa podem agregar novas contribuições para a busca de mudanças no ensino de Física no ensino médio, fortalecendo a perspectiva do ensino para a promoção do desenvolvimento das capacidades dos alunos, por meio da formação do pensamento teórico de natureza dialética. Foi o que se buscou no presente estudo, tomando o conceito calor para a realização de um experimento didático formativo no ensino médio. É uma necessidade pedagógica e social que haja mudanças no ensino-aprendizagem na disciplina de Física no ensino médio para que os alunos estejam motivados a aprender, sintam desejo de compreender de forma mais aprofundada os conceitos de fenômenos físicos, tornem-se capazes de utilizar tais conceitos na vida social geral e no seu contexto local de vida. O ensino desenvolvimental representa uma alternativa para promover uma formação mais ampla dos alunos, que não se restrinja ao foco em provas e testes, que não reduza seu desenvolvimento aos critérios neoliberais de desempenho, focados em produtividade e adaptados a demandas apenas de natureza econômica.

As teorias de Vigotski, Davydov, Elkonin, Hedegaard e Chaiklin podem ser amplamente exploradas e aproveitadas em busca de constituir uma práxis didático-pedagógica no ensino de Física no ensino médio, orientada para o compromisso social com a promoção de transformações na formação cognitiva, social, ética, política, cultural dos estudantes, contribuindo para que se tornem sujeitos conscientes e atuantes na sua realidade social e local, dispondo, para isso, de conceitos teóricos. Os resultados aqui descritos, ainda que não possam ser generalizados de forma ampla ao ensino de Física no ensino médio, fornecem importantes pistas para que mudanças possam ser introduzidas na direção de um processo de ensino-aprendizagem mais próximo de uma formação criativa, crítica e consciente dos adolescentes, que lhes permita a atitude de sujeito e o movimento de superação dos conhecimentos cotidiano e empírico formal, rumo ao conhecimento teórico dialético. A contribuição principal desta pesquisa é a de mostrar empiricamente a possibilidade do ensino desenvolvimental como uma alternativa para o ensino de Física no ensino médio, de modo a impulsionar a qualidade da aprendizagem dos alunos e, assim, contribuir para sua formação e para o desenvolvimento humano.

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1O projeto da pesquisa foi aprovado por comitê de Ética com o protocolo CAAE: 1071501930000.0037.

2Ao longo do texto aparecem as grafias Davydov e Davýdov, que se devem às diferentes formas utilizadas nas obras citadas. As autoras deste artigo optam pela forma Davydov, preservando a grafia original quando se trata de citação.

3Outros problemas particulares foram apresentados aos alunos para solução, como por exemplo o de uma pessoa com febre. Não são descritos aqui por economia de espaço no texto.

7Nota: Carmes da Rosa Batistella: autora da pesquisa de doutorado, que realizou a escrita da tese e do artigo sob a orientação da professora Dra. Raquel A. M. M. Freitas, que colaborou na formulação do projeto de pesquisa e na análise dos dados e, também, na elaboração do artigo.

Recebido: 20 de Setembro de 2021; Aceito: 12 de Janeiro de 2022

*Autor para correspondência. E-mail: carmesbatistella@hotmail.com

INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES Carmes da Rosa Batistella: Doutora em Educação (PUC- Goiás), Mestre em Ensino de Física (UFRGS), Licenciada em Ciências e em Física (Universidade de Ijuí-RS) Desenvolveu docência na Universidade de Passo Fundo-RS e Universidade Estadual de Goiás. Atualmente professora do Magistério superior na Universidade Federal do Tocantins. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0731-1322 E-mail: carmesbatistella@hotmail.com

Raquel Aparecida Marra de Madeira Freitas: Doutora em Educação (Unesp, 2002), Mestre em Educação (UFG, 1997), Graduada e Licenciada em Enfermagem (UFG, 1985). Atualmente atua como docente na PUC/Goiás no PPGE (Mestrado e Doutorado) e docente colaboradora no Mestrado em Atenção à Saúde. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3978-0238 E-mail: raquelmarram@gmail.com

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