Um preâmbulo dialógico para a Educação no/do Campo
A educação popular no Brasil ganha força a partir do II Congresso Nacional de Educação de Adultos em meados de 1960. Nesse período, o Congresso serviu como estímulo para novas ideias e métodos educativos para jovens e adultos. Desde então, a educação popular brasileira se desenvolveu como um conjunto de práticas educativas desveladas no movimento histórico liderado pelos setores populares como movimento de libertação e emancipação dessas populações. Essa educação popular contempla a Educação no/do Campo, que conta com os movimentos sociais, tais como: movimentos de educação popular, movimentos da ação católica (juventude agrária), movimentos sociais do campo (ligas camponesas, serviço de assistência rural, dentre outros) e outros movimentos de ação popular (Carvalho, 2016).
As frentes ruralistas e urbanizadoras predominavam nos discursos pedagógicos de 1930 até a década de 1970 e contemplavam o sistema contra-hegemônico. Em meados de 1990, os sinais de transformação aparecem, pois os movimentos sociais e sindicais se articularam, buscando junto ao poder público a garantia de construção de políticas públicas para as populações do Campo, com propostas pedagógicas que respeitassem a realidade, as formas de produção, de lida com a terra, de viver e conviver dessas pessoas que, até então, eram esquecidos (Carvalho, 2016).
O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) constituiu um marco importante para a Educação no/do Campo em meados de 1997, num processo de redemocratização do Brasil. Esse movimento realizou o I Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária (I ENERA) em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Universidade de Brasília (UnB). Dessa parceria resultou a I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, ocorrida em Luziânia-GO em 1998. Tal Conferência evidenciou um debate mais articulado dos movimentos sociais e sindicais sobre as políticas públicas da Educação no/do Campo (Carvalho, 2016).
Diante do exposto, Caldart, Pereira, Alentejano e Frigotto (2012) abordam uma reflexão sobre a importância das políticas públicas que insiram camponeses/as no contexto educativo, valorizando a identidade desses povos:
Ao afirmar a luta por políticas públicas que garantam aos trabalhadores do campo o direito à educação, especialmente à escola, e a uma educação que seja no e do campo, os movimentos sociais interrogam a sociedade brasileira: por que em nossa formação social os camponeses não precisam ter acesso à escola e a propalada universalização da educação básica não inclui os trabalhadores do campo? (Caldart et al., 2012, p. 259).
O conceito de Educação no Campo incute a participação efetiva dos movimentos sociais como parte da luta do público do Campo. O debate da questão agrária e seus pressupostos são elementos que norteiam essa abordagem em que todos esses saberes são partes integrantes do processo educativo. É de fundamental importância seus conhecimentos, habilidades, valores, modos de produzir, de se relacionar com a terra e de compartilhar a vida. Já o termo Educação do Campo se refere a uma reflexão da sociedade pautada no direito à educação, pensado a partir do seu lugar de vida e seu contexto histórico e cultural, bem como suas necessidades humanas e sociais, no sentido de luta pela educação como direito universal, não como uma política compensatória1.
De posse dessa abordagem das escritas, o Campo, segundo as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo (Resolução nº 1 CNE/CEB, 2002), traz suas especificidades de contexto para a compreensão dos espaços escolares. O conceito de Campo é apresentado como conceito de território, notadamente onde o sujeito é imerso com seu modo de vida e produção. A organicidade desses sujeitos do Campo envolve simbologias permeadas pela diversidade cultural, multiplicidade de saberes de conhecimentos e da terra, com movimentos de luta, de mobilização social e de estratégias de sustentabilidade.
Sendo assim, o conceito de Campo deve ser entendido como parte da luta das populações camponesas. A questão territorial é muito importante, pois traz a ideia de sustentabilidade e solidariedade. É mediante essa compreensão territorial que tal conceito é construído pela organicidade dos movimentos sociais, que constituem o elemento essencial e norteador para construir a proposta pedagógica dessas pessoas. A caracterização e a legitimidade dessa massa do Campo em âmbitos sociais, econômicos, políticos e culturais é compreendida com as aspirações dos grupos e da comunidade local.
Nesse sentido, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), do Ministério da Educação (MEC), foi o órgão que encaminhou para a Câmara de Educação Básica (CEB), do Conselho Nacional de Educação (CNE), o Parecer nº 1 (2006), publicado no Diário Oficial da União em 15/03/2006, que trata da pedagogia da alternância, conseguindo sua aprovação. Foi pela experiência das Casas Familiares Rurais que surgiram sete componentes ou invariantes que elucidaram as características da pedagogia da alternância: o alternante, o projeto educativo, o lugar das interações socioprofissional, a rede de parceiros, o dispositivo pedagógico, o contexto pedagógico, os formadores e outros atores educativos (Gimonet, 1998)2.
Aperfeiçoar o funcionamento da pedagogia da alternância, promovendo o equilíbrio entre essas invariantes, é um desafio para o desenvolvimento da Educação no/do Campo. Esse equilíbrio sempre é instável, visto que são sujeitos em ação dentro de um sistema que está aberto e atrelado à vida. E a vida é sempre mudança e evolução (Gimonet, 1998). Destarte, a Educação no/do Campo parte da compreensão do que são os movimentos sociais e de como eles podem auxiliar no processo educativo dos camponeses/as.
No Brasil, um crescente número de pesquisas produzidas por instituições de ensino e organizações de agricultores/as aponta a viabilidade técnica e econômica da agroecologia para a produção de alimentos, assim como para conservação de recursos naturais (Mattiazzi, 2017). A agroecologia é uma das atividades que despontam principalmente nas regiões do estado de São Paulo, pois a exposição aos agrotóxicos vem desencadeando possíveis adoecimentos à população assentada, como perda auditiva, problemas gastrointestinais (dores de estômago) e câncer, atingindo todas as faixas etárias. Não obstante essa situação, na região de Mato Grosso do Sul, que compreende o universo dessa pesquisa, ainda predominam as atividades do agronegócio.
Diante dessa realidade, pensar e incentivar práticas agroecológicas podem diminuir os impactos ocasionados pelo uso excessivo dos agrotóxicos. Dessa forma, a presente pesquisa objetivou investigar a compreensão das percepções de estudantes camponeses/as sobre a temática do agrotóxico a partir do debate da Educação no/do Campo a fim de refletir a formação inicial de professores/as do Campo, de forma emancipatória e crítica no curso de Licenciatura em Educação do Campo (LEDUC) da área de Ciências da Natureza. Para isso, foi possível formular a seguinte questão de pesquisa: De que maneira se apresentam as compreensões dos/as egressos/as do Curso da LEDUC sobre o tema agrotóxico presente nos Trabalhos de Conclusão de Curso3?
A exposição desses trabalhadores/as camponeses/as aos agrotóxicos tem sido alvo de pesquisas, como Pavanelli (2019), Castro (2017) e Mattiazzi (2017). O interesse por grande parte dessas pesquisadoras é divulgar o papel da agroecologia como fonte alternativa de práticas agrícolas e difundir qualidade de vida para os/as agricultores/as, pois a maioria não possui um grau elevado de escolaridade, dificultando a compreensão dos danos que esses insumos podem causar à saúde humana.
Tendo em conta que os agrotóxicos estão presentes nas relações de trabalho de estudantes camponeses/as, os quais desempenham atividades agrícolas nos seus lotes, destacamos aqui que a formação emancipatória e crítica desses/as futuros/as educadores/as na universidade será desvelada pelas possibilidades e potencialidades da perspectiva freireana para construir o debate da Educação no/do Campo.
Os agrotóxicos são considerados produtos químicos e biológicos que podem ser utilizados nas lavouras para combater determinadas pragas (fungos, nematoides, bactérias, insetos, ervas daninhas, roedores), aplicados de acordo com a plantação (Castro, 2017). Dessa forma, como a Educação no/do Campo prima por uma educação voltada para os que vivem no/do campo, é necessário que essa abordagem temática seja introduzida no contexto educativo dos camponeses/as da Ciência da Natureza do curso LEDUC.
Nessa acepção, a obra de Paulo Freire intitulada Pedagogia do Oprimido traz contribuições importantes para a compreensão de como desvelar a realidade do oprimido e torná-lo sujeito do processo de construção da sociedade, formando um novo/a educador/a para as escolas do Campo. Na escola do Campo, há o Projeto Político Pedagógico (PPP), que deve ser elaborado junto à comunidade escolar (gestores/as, coordenadores/as, merendeiros/as, zeladores/as, motoristas do ônibus) e à comunidade do Campo, no caso, as famílias dos estudantes. Assim, a identidade dos/das camponeses/as são legitimadas na construção desse importante documento da escola, atendendo à Resolução nº 1, de 3 de abril de 2002 (CNE/CEB).
Cabe salientar que o Programa Nacional de Educação do Campo (Pronacampo), ocorrido em março de 2012, foi definido como uma política de Educação do Campo no Decreto nº 7.352 (2010), de 4 de novembro de 2010, oriundo de mobilizações dos trabalhadores do campo com aspectos de uma ‘educação rural’, com demandas pautadas no capitalismo no campo. A partir disso, situamos alguns desafios entrelaçados na Educação no/do Campo no Brasil.
Já o Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (Procampo) foi criado em 2007 pelo MEC, por iniciativa da SECAD, como fruto de parcerias de instituições públicas de ensino superior para promover a formação de educadores/as para as escolas do campo na educação básica.
O PROCAMPO reconhece e defende a necessidade de formação inicial para os educadores/as que atuam nas escolas do campo. Este programa, enquanto política pública, contribui para o debate em torno das questões educacionais que devem ser, com seriedade, amplamente discutidas pelo governo brasileiro. Como verificado na história do país, a política educacional, até então destinada ao campo, considerou tal espaço, apenas a extensão da cidade, de modo que, a instituição escolar, os currículos, as histórias, identidades e memórias de educadores/as foram constantemente desconsideradas (Santos & Silva, 2016, p. 140).
Nesse sentido, o programa foi implantado inicialmente na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na Universidade Federal da Bahia (UFBA), na Universidade Federal do Sergipe (UFS) e na Universidade de Brasília (UnB), com um PPP elaborado por representantes das universidades e movimentos sociais de cada estado, visto que a pedagogia da alternância constituía um desafio para os/as professores/as.
Diante dessa realidade, a formação articulada entre Tempo Universidade (TU) e Tempo Comunidade (TC) é o movimento da pedagogia da alternância e mostra-nos possibilidades de diálogos entre temporalidades e espacialidades de contextos diferentes, e favorece a superação de um dos mais significativos desafios na formação dos/as professores/as do Campo: as condições do processo formativo em diálogo com cultura, lazer, religião e trabalho (Santos & Silva, 2016). Desse modo, a formação de professores/as do Campo poderiam incutir especificidades das singularidades que os representam.
A formação específica dos educadores/as do campo pode significar garantias de práticas coerentes com os valores e princípios da Educação do Campo, reconhecendo as relações sociais que ali se estabelecem e tantos outros aspectos que apontam o território campesino, não como extensão da cidade, e sim de valorização das formas de vida, desejos e trajetórias. Por outro lado, não se pode analisar tal formação somente na perspectiva de valorização dos saberes da comunidade. É preciso compreendê-la, especialmente, na dimensão da autonomia e na organização de outra sociedade que enfrente qualquer forma de opressão. Neste sentido, as demandas que se fazem presentes nas escolas do campo, necessitam de educadores/as cuja formação os possibilite entender a atual realidade do campo. Um campo pressionado pelo modelo econômico excludente e que exige dos seus sujeitos, educadores e lideranças dos movimentos sociais, uma intensa capacidade de resistência. Esse é mais um dos objetivos do Procampo na defesa da Educação do Campo (Santos & Silva, 2016, p. 141).
Refletir sobre a práxis libertadora é necessário, uma vez que está baseada na ação-reflexão, no sentido de seres inconclusos, no processo de superação da própria realidade. Vê-se, portanto, na prática do diálogo, a consolidação da práxis constituída a partir de uma unidade dialética (subjetivo versus objetivo). Nesse contexto, o processo de humanização para Paulo Freire são possibilidades dos seres considerados inconclusos e conscientes de sua inconclusão, oriundos de uma história, um contexto real, concreto e objetivo. O desvelar dessa realidade é afirmada no anseio de liberdade, de justiça social, de luta dos/as oprimidos/as pela recuperação de sua humanidade roubada (Freire, 2016).
O processo de desumanização referido não é somente uma humanidade roubada, mas uma violência por parte dos/as opressores/as, o ‘ser menos’. A luta dos/as oprimidos/as em superar o ‘ser menos’ é condição para restaurar opressores/as e oprimidos/as. Segundo Freire (2016, p. 41), “[...] aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos ─ libertar-se a si e aos opressores”. Ainda para Freire (2016, p. 53): “Esta superação exige a inserção crítica dos oprimidos na realidade opressora, com que, objetivando-a, simultaneamente atuam sobre ela”. A inserção crítica refletida na obra Pedagogia do Oprimido faz referência ao que pode ser possível a partir da dialética da subjetividade e objetividade. A imersão do/a oprimido/a na realidade e a sensação de impotência frente à realidade opressora cria a situação-limite4. Nesse viés, para Paulo Freire (2016), o caminho para uma pedagogia humanizadora é uma relação dialógica permanente.
Considerando esses apontamentos da obra, julga-se necessário discutir que a “educação bancária” é um instrumento de opressão do sistema. Para Freire (2016, p. 80): “Em lugar de comunicar-se, o educador faz comunicados e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção bancária da educação”.
O papel do/a educador/a nessa perspectiva é posicionar-se no ato de impulsionar seus/suas educandos/as no processo de luta por sua libertação, orientando-os/as no sentido da humanização, num movimento da práxis, que implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo-o/a (Freire, 2016). O diálogo é o ato cognoscente para desvelar a realidade e promover a educação problematizadora. A diferença é que a educação bancária assistencializa e a educação problematizadora criticiza. O diálogo é um ato de amor. Assim, a educação problematizadora incorpora o diálogo que se faz numa relação horizontal, baseada na confiança entre os sujeitos. Em oposição, a concepção bancária da educação, que é um processo antidialógico (Freire, 2016).
Isto posto, o/a camponês/a pode, por meio de sua formação acadêmica, desenvolver o pensamento crítico como uma possibilidade de refletir e problematizar a realidade, buscando alternativas e condições para o desvelamento da realidade para transformá-la. Isso é possível com o apoio do movimento social, da articulação com a prática pedagógica aplicada em sala de aula, com a participação das famílias dos estudantes (comunidade do assentamento) e do empoderamento de cargo público que o/a professor/a venha a assumir. Assim, a tríade: escola, estudante, família são colocados a par das questões decisivas em busca de políticas públicas específicas para o campesinato. Para Paulo Freire (2016), os seres são capazes de se tornarem sujeitos capazes de gerar situações libertadoras da realidade.
Análise Textual Discursiva (ATD)
Foram realizadas as análises parciais de 21 Trabalhos de Conclusão de Curso5, alguns apresentados como artigos monográficos6, de um total de 28 produções defendidas pelos/as egressos/as do curso da LEDUC integrado a uma Faculdade Intercultural Indígena de uma universidade pública referente ao ano letivo de 2014. As 7 produções não analisadas, não estavam publicizadas até a presente investigação da pesquisa.
A organização das análises basearam-se em quatro elementos básicos da Análise Textual Discursiva (ATD), sendo que os três primeiros constituem um ciclo: 1) desmontagem de textos; 2) estabelecimento de relações; 3) captando o novo emergente; e 4) um processo auto-organizado. A Figura 1 apresenta a ATD como um ciclo.
No primeiro movimento do ciclo ocorre uma desconstrução dos textos, na qual as informações da pesquisa são analisadas. Nesse momento, a fragmentação desordenada de informações são auto-organizadas com o envolvimento consciente e inconsciente do/a pesquisador/a, impregnando-se de novas compreensões pretendidas. É um movimento desordenado de informações (Moraes & Galiazzi, 2016). A seguir, na Tabela 1, é sistematizado o título, o/a autor/a (classificado como Aluno A, B, C etc. e a numeração em ordem crescente), o ano de publicação e o tipo de trabalho.
Título | Autor e ano | Tipo | Etapa do ciclo da tríade: unitarização |
A produção de hortaliças no assentamento Eldorado II, grupo Fetagri: entraves e desafios | Aluno A1 (2018) | Artigo | |
As dificuldades de permanência dos assentados em lotes irregulares no assentamento São Judas | Aluno B2 (2018) | Artigo | |
Ações ambientais desenvolvidas na escola municipal Caburai no assentamento Santo Antônio | Aluno C3 (2018) | Artigo | |
O impacto da monocultura da soja na soberania alimentar: um estudo sobre as mudanças na produção de leite no assentamento Itamarati-Fetagri | Aluno D4 (2018) | Artigo | |
A história da educação de jovens e adultos no assentamento Santa Rosa | Aluno E5 (2019) | Artigo | |
A visão camponesa sobre o impacto dos animais silvestres nas lavouras do assentamento Colônia Nova, Nioaque, MS | Aluno F6 (2018) | TCC | |
A percepção de agricultores sobre a influência da capivara na agricultura em Laguna Carapã, MS | Aluno G7 (2018) | TCC | |
‘O veneno aqui é rei!’: uma análise da forma de produção no assentamento Alambari-FAF de um estudo de caso com as mulheres assentadas | Aluno H8 (2018) | Artigo | |
A presença do Senar no assentamento Eldorado 2, Sidrolândia/MS: um estudo de caso com as famílias agricultoras | Aluno I9 (2018) | TCC | |
Uma análise da percepção dos estudantes da escola municipal agrotécnica Padre André Capelli sobre os resíduos produzidos na escola e a possibilidade de reciclagem | Aluno J10 (2018) | Artigo | |
Aspectos socioambientais e as plantas alimentícias não convencionais (PANCs) no assentamento Tamakavi, Itaquiraí, MS | Aluno K11 (2018) | TCC | |
O consumo de PANCs na comunidade Joaquim das Neves, MST assentamento Itamarati I | Aluno L12 (2018) | Artigo | |
Formação inicial docente na educação do campo: expectativas e desafios dos futuros professores de Ciências da Natureza | Aluno M13 (2018) | TCC | |
Práticas pedagógicas acessíveis: protótipos alternativos como proposta para o ensino de Física | Aluno N14 (2018) | TCC | |
Vivências do campo nas escolas da cidade: por que e para quem? | Aluno O15 (2018) | Artigo | |
Importância e desafios da educação do campo e o fechamento da escola rural retirada da laguna | Aluno P16 (2018) | Artigo | |
História e memória: acampamento, conquista da terra, educação, escola e organização socioeconômica no assentamento Taquaral em Corumbá, MS | Aluno Q17 (2019) | TCC | |
Biodigestor como material didático no ensino de Ciências da Natureza na Educação do Campo | Aluno R18 (2018) | TCC | |
Espécies de aves do assentamento Areias, Nioaque, Mato Grosso do Sul | Aluno S19 (2018) | Artigo | |
Uso e conservação das áreas de preservação permanente e de reserva legal no assentamento Boa Vista, Ponta Porã, MS | Aluno T20 (2018) | TCC | |
Destinação dos resíduos inorgânicos e orgânicos no assentamento Palmeira, Nioaque, Mato Grosso do Sul | Aluno U21 (2018) | TCC |
Fonte: Adaptado de Domingos, Pires, e Oliveira (2020, p. 3-5).
Em seguida, partindo da leitura do material empírico, iniciou-se a leitura para extrair as unidades de significado, que não constam aqui no artigo, mas contabilizaram o total de 544 unidades. Foi possível aprofundar a investigação da questão de pesquisa realizando a análise dessas unidades e buscando a ideia central para cada material observado, como se fossem palavras-chave (codificação das unidades de significados).
A codificação é muito importante para o processo analítico. O seguinte exemplo pode contribuir para elucidar esse processo: o texto do Aluno A (2018) foi codificado com A1; com isso, todos os fragmentos ou unidades de significado que foram retirados desse texto codificado como U terão a sequência A1U1 (codificação da primeira unidade de significado), ou seja, o primeiro fragmento que for retirado do texto A será o U1, e assim sucessivamente: U2, U3. A explicação desta etapa faz-se necessária para alinharmos o entendimento do procedimento. A Tabela 2 delineia o exemplo de desconstrução das unidades de significado.
Codificações das unidades de significados dos alunos A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, U |
Aluno A1: agricultura camponesa, agronegócio, cooperativas. |
Aluno B2: questão agrária, agricultura camponesa, agronegócio. |
Aluno C3: sustentabilidade e Educação do Campo, projeto político pedagógico, eixo terra, vida e trabalho. |
Aluno D4: monocultura, agronegócio, subsistência. |
Aluno E5: história da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no campo, alfabetização, pluralidade de sujeitos, diversidade de contexto. |
Aluno F6: a importância dos animais silvestres no conhecimento da etnozoologia, atividade de criação de gado pelos camponeses, dificuldade de obtenção de insumos (óleo diesel, adubos, agrotóxicos, embalagens) para práticas agrícolas. |
Aluno G7: currículo e etnozoologia, valores tradicionais da comunidade, conscientização e preservação da fauna e da flora. |
Aluno H8: práticas agroecológicas versus monocultura, mulheres no campo, chefes de família, alimentação saudável sem uso de agrotóxico. |
Aluno I9: agricultura familiar, assistência técnica, geração de renda. |
Aluno J10: educação ambiental, coleta seletiva, escola do campo. |
Aluno K11: soberania alimentar, PANCs, agricultura familiar. |
Aluno L12: soberania alimentar, PANCs, agrotóxico. |
Aluno M13: formação de professor/a do campo, Educação no Campo, escola do campo. |
Aluno N14: escola do campo, protótipos, Educação no Campo. |
Aluno O15: escola do campo, vivências do campo, sistema de ensino. |
Aluno P16: Educação no/do Campo, escola do campo, fechamento de escolas do campo, formação inicial do educador/a do campo. |
Aluno Q17: Educação no/do Campo, escola do campo, fechamento de escolas do campo, formação inicial do educador/a do campo, movimentos sociais, agricultura familiar, governos Lula, transporte escolar. |
Aluno R18: escola do campo, interdisciplinaridade, sequência didática, conteúdos programáticos de química, física e biologia. |
Aluno S19: interdisciplinaridade, formação inicial, identidade camponesa. |
Aluno T20: agrotóxico, agroecologia, agronegócio, commodities, identidade camponesa, características da reforma agrária, monocultura, glifosato, educação ambiental, movimentos sociais, metodologia conscientizadora de Paulo Freire. |
Aluno U21: conteúdos programáticos de química, física e biologia, interdisciplinaridade, problematização, Educação no/do Campo, agrotóxicos. |
Fonte: Adaptado de Domingos et al. (2020, p. 6-7).
O segundo momento do ciclo é o processo de estabelecimento de relações ou categorização. Nesta etapa ocorre a construção de relações entre as unidades de bases, combinando-as e classificando-as, formando conjuntos de elementos significativos, de modo mais completo possível, mas nunca finalizado. Esse processo de aglutinação é a parte central da ATD, pois evidencia-se a construção das compreensões em relação aos fenômenos investigados, o que caracteriza essa etapa como um processo auto-organizacional, oriundo das compreensões emergidas no processo analítico (Moraes & Galiazzi, 2016).
O captar do novo emergente é a fase em que as intuições existentes no primeiro momento, ainda que inconscientes ou conscientes, sofrem insights repentinos de compreensão emergente, que, segundo Moraes e Galiazzi (2016), ‘são raios de luz’ na ‘tempestade de ideias’. A categorização emerge da busca de compreensão do processo de unitarização, no qual o círculo hermenêutico é ativado. Esse círculo corresponde ao processo de ir e vir nas codificações da unitarização para encontrar sentidos e significados para entender os objetivos da pesquisa.
Nesse movimento, a atitude fenomenológica do/a pesquisador/a é importante, pois aproxima a compreensão do que o sujeito investigado expressa na escrita. É uma ação de apreender o que o ‘outro’ traz como teorização do fenômeno observado. Além disso, as categorias se constituem da comparação contínua entre as unidades de significado e o agrupamento; aglutinação das codificações, dos elementos semelhantes que dão sentido ao fenômeno investigado.
A categorização pode ser construída por diferentes níveis. Em alguns casos, como o desta pesquisa, ela se classifica em iniciais, intermediárias e finais, com o intuito de aumentar a abrangência de entendimento e delimitar com maior precisão e menor número de categorias (Moraes & Galiazzi, 2016). Pensando nessa sistematização das categorias, elaborou-se a Tabela 3.
O terceiro e último momento do movimento da análise foi a construção do metatexto ou a comunicação das compreensões emergentes, que podem ser descritivas ou interpretativas. Ambos os movimentos contribuíram para esta pesquisa durante as reflexões e as compreensões, retomando sempre que necessário as unidades de significado, dando aprofundamento teórico à interpretação, aspectos próprios do círculo hermenêutico (Moraes & Galiazzi, 2016).
Sendo assim, a tríade ‘unitarização’, ‘categorização’ e ‘metatexto’ constituiu o caminho da metodologia de análise da ATD. O metatexto foi configurado de acordo com as compreensões do conjunto de categorias desenvolvidas nas análises, as quais emergiram nas categorias finais que sinalizaram a construção do metatexto intitulado: A Questão Agrária e o Capitalismo Agrário no Mato Grosso do Sul.
Categorias iniciais: títulos emergidos após a identificação das palavras-chave | Categorias intermediárias abordadas no debate da Educação no/do Campo | Classificação dos termos das categorias intermediárias: questão agrária/ capitalismo agrário | Categorias finais no debate da Educação no/do Campo |
A compreensão da agricultura camponesa: é possível a criação de cooperativas para legitimar a produção de hortaliças dos povos do campo? (Aluno A1) Soberania alimentar e sua relação com a questão agrária no MS (Aluno B2) | Agricultura camponesa, soberania alimentar | Questão agrária | Conceitos da questão agrária no MS, agroecologia: debate da Educação no/do Campo, agricultura camponesa, soberania alimentar, educação ambiental, referencial de Paulo Freire para nortear a pesquisa, trabalho feminino, invisibilidade. Movimentos sociais. Características do debate na Educação no/do Campo; características da reforma agrária, formação inicial de professores/as. |
A importância dos documentos oficiais na Educação do Campo (Aluno C3) O papel da educação ambiental no processo de compreensão da coleta seletiva na escola do campo (Aluno J10) | Educação ambiental | Questão agrária | Conceitos do capitalismo agrário no MS, agronegócio: arrendamentos, vendas de lotes para sobrevivência, monocultura, agrotóxico. Modos de atividades agrícolas: agronegócio versus agroecologia. |
A pluralidade de sujeitos do campo e a história da alfabetização na EJA (Aluno E5) Possibilidades da etnozoologia nas atividades campesinas da região de Nioaque/MS (Aluno F6) Etnozoologia e currículo: possibilidades e aspectos tradicionais de preservação da fauna e flora na região de Laguna Carapã/MS (Aluno G7) A formação do/a educador/a do campo para a escola do campo (Aluno M13) O uso de protótipos na escola do campo para se fazer Educação no Campo (Aluno N14) Um olhar sobre as vivências do campo legitimando o currículo da escola do campo (Aluno O15) | Debate da Educação no/do Campo | Questão agrária/ capitalismo agrário | |
A pluralidade de sujeitos do campo e a história da alfabetização na EJA (Aluno E5) A formação do/a educador/a do campo para a Escola do Campo (Aluno M13) O uso de protótipos na escola do campo para se fazer Educação no Campo (Aluno N14) Um olhar sobre as vivências do campo legitimando o currículo da escola do campo (Aluno O15) | Referencial de Paulo Freire para nortear a pesquisa | Questão agrária | |
A monocultura como subsistência do agronegócio (Aluno D4) A força do trabalho das mulheres camponesas: práticas agroecológicas versus monocultura (Aluno H8) A importância da assistência técnica para o desenvolvimento da agricultura familiar e possibilidades de geração de renda (Aluno I9) A formação do educador/a do campo para a escola do campo (Aluno M13) | Movimentos sociais | Questão agrária | |
A força do trabalho das mulheres camponesas: práticas agroecológicas versus monocultura (Aluno H8) O cultivo de PANCs pelo campesinato: aspectos da soberania alimentar (Aluno K11) O veneno está na mesa: o cultivo das PANCs como possibilidade de alimentação saudável na soberania alimentar (Aluno L12) | Trabalho feminino, invisibilidade; práticas agroecológicas | Questão agrária | |
A importância da assistência técnica para o desenvolvimento da agricultura familiar e possibilidades de geração de renda (Aluno I9) | Arrendamento, vendas de lotes para sobrevivência | Capitalismo agrário | |
A monocultura como subsistência do agronegócio (Aluno D4) O cultivo de PANCs pelo campesinato: aspectos da soberania alimentar (Aluno K11) O veneno está na mesa: o cultivo das PANCs como possibilidade de alimentação saudável na soberania alimentar (Aluno L12) A força do trabalho das mulheres camponesas: práticas agroecológicas versus monocultura (Aluno H8) | Monocultura, agrotóxico | Capitalismo agrário | |
Formação inicial do professor do campo e o debate da Educação no/do Campo (Alunos P16 e Q17) Interdisciplinaridade e sequência didática como possibilidades na formação inicial de professores do campo (Aluno R18) Os documentos oficiais que delimitam a Educação no/do Campo (Aluno S19) As características da reforma agrária nos dias atuais e as implicações sobre o uso de agrotóxico (Aluno T20) Descarte de resíduos orgânicos e inorgânicos como possibilidades na formação inicial de professores do campo. (Aluno U21) | Movimentos sociais, reforma agrária, agroecologia, agronegócio (commodities), monocultura, agrotóxico, formação inicial, interdisciplinaridade, educação ambiental | Características do debate na Educação no/do Campo; agronegócio versus agroecologia; características da reforma agrária, formação inicial de professores/as |
Fonte: Adaptado de Domingos et al. (2020, p. 7-11).
A questão agrária e o capitalismo agrário no Mato Grosso do Sul
O processo de categorização (inicial, intermediária e final) possibilitou profundas reflexões sobre a compreensão das percepções dos/as professores/as habilitados/as em Ciências da Natureza da LEDUC, decorrentes do processo de análise da temática dos agrotóxicos. A dicotomia do capitalismo agrário versus a questão agrária surge como resultado do contexto em que os estudantes estão inseridos, que é a região de Mato Grosso do Sul, mais especificamente os municípios de Sidrolândia, Laguna Carapã, Nioaque, Corumbá, Itaquiraí, Rio Brilhante, Dourados e Nova Alvorada do Sul. Desse modo, as compreensões das características da Educação no/do Campo são enviesadas às práticas agrícolas desenvolvidas pelos estudantes, incutindo aspectos da agroecologia como método sustentável e o agronegócio como método de produção em larga escala, proveniente do uso dos agrotóxicos, em sua maioria, o glifosato no cultivo de soja.
Evidenciando uma leitura flutuante dos elementos que caracterizam a Educação no/do Campo, tal como a agricultura camponesa que pode evitar o êxodo rural, o Aluno A (2018) traz um trecho, na unidade de significado, que potencializa a agroecologia como prática agrícola alternativa ao uso de agrotóxico: “[...] como essa atividade pode desempenhar um papel importante na esfera socioeconômica e cultural na sociedade produzindo alimentos saudáveis com práticas agroecológicas” (A1U2a). Em outro fragmento do texto, o autor aponta para as dificuldades encontradas pelos pequenos produtores com relação às suas atividades de agricultura no município de Sidrolândia/MS (região de pesquisa): “Alguns produzem apenas para seu próprio consumo (soberania alimentar)7. Outros ainda tentam comercializar os excedentes à produção de subsistência. E outros ainda praticam a criação de gado” (A1U4). “A comercialização dos produtos da agricultura camponesa passa por dificuldades quanto ao escoamento das produções. A falta de transporte deixa as mercadorias na mão dos atravessadores, ocasionando uma diferenciação no valor de venda deles, dando prejuízo aos pequenos produtores” (A1U5). O Aluno A (2018) ainda menciona como uma possível solução para o problema dos atravessadores: “[...] a criação de cooperativas que possam facilitar a venda e a comercialização das mercadorias com melhores preços” (A1U23).
Como a economia no estado é basicamente mantida pela agricultura e pela pecuária, a utilização do agrotóxico geralmente ocorre no modo de produção do agronegócio, com o cultivo da monocultura em alguns assentamentos da reforma agrária. Na região de Dourados, essa abordagem temática é contextualizada pelas aspirações de sobrevivência. A reforma agrária com os princípios da agricultura familiar privilegia os assentados com a produção local livre dos agrotóxicos. Desse modo, a agroecologia constitui um elemento importante no papel de formação dos/as futuros/as professores/as de Ciências da Natureza. O fragmento de texto do Aluno B (2018) evidencia que “[...] entender a reforma agrária no nosso país caracteriza compreender a luta e a permanência do povo camponês no campo” (B2U2a).
O Aluno D (2018) relata a influência do agronegócio nos/as agricultores/as:
Alguns escolheram a cultura do agronegócio por entender que assim poderiam se manter no assentamento sem sair para outro lugar em busca de condições melhores de vida. Como para uma pequena parte das famílias continuar no leite com, pelo menos, uma parte do lote é importante para poder contar com outra forma de renda e complementar as necessidades da família (D4U5a).
Com relação a esse trecho, Paulo Freire (2016, p. 54) indica como ‘situação-limite’ a impotência do ‘oprimido’ frente à ‘realidade opressora’, que se apresenta intransponível. Esse momento é marcado quando os povos campesinos vendem ou arrendam seus lotes para os latifundiários por falta de condições adequadas e políticas públicas direcionadas a atenderem às suas demandas. O papel do/a educador/a do campo é impulsionar a superação dessa realidade, desenvolvendo no estudante a ‘inserção crítica’. Os oprimidos se reconhecem como tal e procuram, mediante a práxis (reflexão e ação) do homem, transformar a realidade.
Paulo Freire ainda destaca como possibilidade desse movimento o ato da dialogicidade. Cabe aqui salientar a importância dos/as futuros/as professores/as de Ciências da Natureza, especialmente, os da LEDUC, assumirem uma postura de seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão. O papel de desvelamento da realidade pelas massas populares é desafiador e incide a ação crítica e transformadora num contexto real em busca de mais humanização.
Os movimentos sociais assumem uma postura dentro do papel de reforma agrária no país, assim como na participação efetiva de formação das lideranças camponesas, mas enfrenta algumas limitações do ponto de vista do modo de produção pautado na monocultura (Domingos et al., 2020). Em virtude disso, o Aluno Q (2019) sinaliza a importância dos movimentos sociais como constituintes das vozes dos camponeses/as:
Os movimentos sociais são muito importantes para a realização de uma ação coletiva, organização e conscientização dos direitos da sociedade. Durante os períodos de dificuldades estiveram sempre apoiando e incentivando os trabalhadores sem-terra, atuando como porta-voz entre os acampados e o governo (Q17U 19a).
Destarte, a monocultura é um risco à agricultura camponesa, pois responde à demanda do mercado, descaracterizando a identidade de produção dos povos do campo, pautada na soberania alimentar, e deslegitima o papel da Educação no/do Campo.
Para o Aluno E (2019), a importância da EJA surge como uma alternativa para erradicar o analfabetismo, impulsionando o sujeito à reflexão da vida real:
[...] um dos grandes objetivos do Estado brasileiro de diminuir o analfabetismo é através destas propostas que proporcionam à população, cuja faixa etária não se ajusta mais ao ensino fundamental e ensino médio, mas sim a uma complementação de sua formação escolar (E5U7a).
Em outro fragmento de texto, o Aluno E (2019) enfatiza:
É importante ressaltar que a educação no campo nem sempre teve os mesmos direitos que a educação urbana, e para que isto acontecesse foram realizadas várias conferências internacionais com o objetivo de tomar medidas, no que diz respeito a oferecer um direito de igualdade na educação, tanto na urbana quanto na rural, com a finalidade de melhorias para aqueles que não tiveram acesso à educação na época certa (E5U8b).
De acordo com o fragmento do Aluno E (2019), é possível verificar que o baixo grau de escolaridade se faz presente no contexto dos diversos assentamentos, e que essa pauta dificulta ainda mais a compreensão por parte dos/as agricultores/as camponeses/as sobre a problemática do uso de agrotóxico. Aqui, vale salientar que o papel dos/as egressos/as é de impulsionar o desenvolvimento de atividades agrícolas alternativas para a sustentabilidade, mesmo que, estejam inseridos/as no contexto do modo de produção da monocultura com o uso de defensivos agrícolas. Nessa vertente, trazemos aqui o fragmento de texto do Aluno K (2018) ressaltando a falta de conhecimento dos/as camponeses/as (agricultores/as assentados/as) sobre as Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs):
Outra razão para a baixa diversidade local no uso de PANCs é a própria falta de conhecimento dos assentados sobre a possibilidade de usos das plantas consideradas ‘matos’ existentes no assentamento e em todo o estado de Mato Grosso do Sul (K11U16a).
Sabendo da prática agrícola com uso das PANCs, o Aluno L (2018) aponta essa prática como uma alternativa sustentável:
As plantas alimentícias são recursos alimentares não convencionais que podem e devem estar presentes na alimentação, contribuindo para a soberania e a segurança alimentar da população em geral, sobretudo por se tratar de plantas que não exigem muitos cuidados no plantio, como ocorrem com as que são consumidas com frequência e que, na maioria das vezes, recebem toneladas de agrotóxicos para crescerem e evitarem pragas. As PANCs enriquecem a alimentação e são mais saudáveis, principalmente por serem livres de agrotóxicos (L12U9a).
Logo, as PANCs vão ao encontro da proposta da agricultura familiar, que ainda predomina nos assentamentos da reforma agrária de Mato Grosso do Sul, na qual agricultores e agricultoras protagonizam um processo produtivo mais solidário e sustentável, apesar das inúmeras dificuldades impostas pelo agronegócio, minimizando, assim, a exposição dos vegetais aos agrotóxicos e à poluição ambiental em geral.
O cultivo das PANCs constituem um grupo de plantas que poderiam ser adquiridas pelos programas de aquisição de alimentos, como o Programa Nacional de Merenda Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), implantados no governo Lula de 2003 e restituído no governo Lula atual, proporcionando aos estudantes e a toda a comunidade escolar uma merenda mais diversificada, rica em nutrientes e de maior segurança alimentar (Domingos et al., 2020).
Além de práticas agrícolas sustentáveis, no fragmento de texto do Aluno H (2018) aparecem elementos da situação-limite para os estudantes:
[...] bem como a grande demanda de moradores que arrendaram suas terras para o cultivo de soja e milho com uso em larga escala dos defensivos agrícolas. Nessa região, ficou evidente que as práticas agroecológicas ainda são uma novidade, e os moradores não a desenvolvem (H8U2a).
O Aluno H (2018) também indica a participação do trabalho feminino na formação do assentamento Alambari-FAF, em que as mulheres camponesas participavam do desenvolvimento da agricultura, seja por meio de técnicas da agroecologia (procurando observar e compreender como alguns moradores/as obtiveram conhecimento sobre ela), seja pela utilização das técnicas da agricultura capitalista, com sua larga utilização de insumos e defensivos agrícolas. Segundo o trecho do Aluno H (2018), o trabalho feminino reafirma as práticas sustentáveis: “Desta forma, . . . a agroecologia envolvendo mulheres começa a ganhar destaque quando elas, as mulheres camponesas, relacionam seus afazeres com a prática agroecológica” (H8U45).
O trabalho feminino é desenvolvido em seus quintais, sem contar que elas contribuem no roçado, principalmente em época de plantio e colheita. Sendo protagonistas na produção, mesmo não sendo reconhecidas, elas tomam posse de seus direitos, ocupando terras, plantando, colhendo, buscando conquistas e independência na sua própria história (H8U47b).
O Aluno H (2018) ainda considera importante reafirmar que a reforma agrária é legitimada pelas práticas agroecológicas como identidade dos povos do campo.
Esta pesquisa nos revela o significado da importância de conhecermos a terra como valor que ela tem para aqueles vivem e produzem nela, e como enxergam diferentemente estas mudanças recorrentes de fatores mecanizados daqueles que não tiveram convívio com o processo de conquista da terra. Portanto, faz-se necessário criar ações e políticas públicas para reverter essa situação, e vivermos uma verdadeira reforma agrária e agricultura familiar, para que todos os assentados sejam privilegiados com a produção local livre dos agrotóxicos (H8U60c).
De acordo com essa abordagem, cabe ressalvar que a Lei dos Agrotóxicos, Lei nº 7.802 (1989), de 11 de julho de 1989, e sua regulamentação pelo Decreto nº 98.816 (1990), de 11 de janeiro de 1990, é responsável pela regulamentação dos agrotóxicos em todas as etapas e seu ciclo de produção, comercialização e utilização (Alves Filho, 2002). Com a aprovação dessa Lei, novos e importantes aspectos foram regulamentados, configurando uma nova estrutura de gestão e dos riscos representados pelos agrotóxicos, principalmente no que se refere ao descarte de resíduos que provocam danos ao meio ambiente e à saúde pública.
Para Altieri (2012), a economia está cada vez mais globalizada, impondo práticas de monocultura em contraposição às práticas agroecológicas, ocasionando, assim, uma crise no sistema alimentar global, resultado direto do modelo industrial de agricultura, pois afeta a biodiversidade com os gases do efeito estufa em oposição aos lucros obtidos em larga escala. A questão agrária e a reforma agrária são distintas, mas caminham no tempo histórico com algumas semelhanças: os sujeitos políticos levantam a questão agrária como também uma proposta de tese (Constituinte) de reforma agrária. Não obtendo respaldo político, continua a estrutura agrária antes pautada pelos direitos de propriedade estritamente com a finalidade de mercado de compra e venda (Delgado, 2018).
Em outro fragmento de texto, o Aluno H (2018) aponta as limitações vivificadas quanto à produção agrícola:
[...] a necessidade dos pequenos produtores quanto ao mercado consumidor, pois se sentem ameaçados, encontrando no agronegócio uma forma de expandir seus ideais, ignorando, muitas vezes, que o projeto de formação da reforma agrária tem causado danos às formas de produção dos assentados, que sofrem pela falta de escoação de seus produtos de horticultura (H8U5).
O Aluno H (2018) ainda relata que as atividades agrícolas foram desenvolvidas pelos povos indígenas considerados tradicionais: “As primeiras formas de trabalho com a terra ocorreram por meio das culturas indígenas que, de maneira geral, faziam a derrubada da mata e a queimada (coivara) para limpeza da terra e plantio de alimentos para o consumo” (H8U7d).
Nesse sentido, compreende-se que o Aluno H (2018) menciona que esses conhecimentos de plantio e cultivo da terra, tão utilizados pelos povos tradicionais, os indígenas, passavam de geração para geração e foram perdendo-se, o que influenciou outros povos. Atualmente, eles lidam com atividades agroecológicas, pois sabem trabalhar a terra e fazê-la produzir, mas não são valorizados na produção em pequena escala. E a agroecologia enfatiza justamente esses saberes em lidar com a terra buscando o equilíbrio do solo, das matas, dos rios e dos campos.
No contexto histórico mais recente, há a proposta de tese da reforma agrária, derrubada no governo militar, e a recuperação da tese (Constituinte), também derrotada nos anos 2000, pois relativizava-se à questão agrária da década de 1960. Sendo assim, o cenário contemporâneo carrega marcas do regime fundiário instituído em 1988 com as normas da política dominante e seus respectivos problemas atrelados. Logo, a estrutura agrária herda do regime militar o direito de propriedade fundiária rural desde a Constituição de 1988 (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988), como critério de função social e ambiental, e é acrescido o direito territorial de povos indígenas e comunidades quilombolas. O ciclo de economia política é fortalecido pelo agronegócio (mercadorização dos espaços territoriais) (Delgado, 2018).
Nessa perspectiva, crescem as distorções na política social brasileira com o ‘desmonte’ das relações de trabalho pelas vias dos direitos sociais, como saúde pública, educação básica e pública de qualidade, previdência, assistência social e seguro-desemprego. Já a questão agrária visa refletir sobre a problematização da estrutura de propriedade, posse/uso da terra e seus sujeitos sociais. Contudo, a reforma agrária constitui um embate político e contra-hegemônico que almeja a condições socioeconômicas da questão agrária.
Para Fernandes (2018), o termo Paradigma da Questão Agrária (PQA) retrata os estudiosos da reforma agrária, e Paradigma do Capitalismo Agrário (PCA) se refere àqueles que não têm interesse na reforma agrária, sinalizando as diferenças entre as conflitualidades geradas pela disputa da terra e os modelos de desenvolvimento.
A conflitualidade é, além dos conflitos por terra, o confronto que coloca frente a frente relações sociais não capitalistas e capitalistas que disputam terras, territórios, políticas públicas, modelos de desenvolvimento e os governos. O elemento central da conflitualidade é a disputa entre agronegócio e campesinato (Fernandes, 2018, p. 63).
Para Fernandes (2018), essa disputa está baseada na tendência contínua e acelerada do agronegócio, no trabalho assalariado, nas grandes empresas e multinacionais que produzem no modelo de monocultura para exportação em larga escala. Sendo esse modelo de desenvolvimento do setor agrícola predominante no contexto atual, cuja origem foi a chamada ‘modernização conservadora da agricultura’, o campesinato ou o/a agricultor/a familiar que prima pelo desenvolvimento com base no trabalho familiar (associativo ou cooperativo), chamado de agroecologia, em projetos próprios de educação, em mercados institucionais e populares, sofre com confrontos, conflitos e conflitualidades que formam a estrutura agrária e repensa a questão agrária de tempos em tempos (Fernandes, 2018).
Nesse contexto, o Aluno I (2018) traz como reflexão a produção agrícola: “As propriedades rurais brasileiras de pequeno e médio porte são compostas por grande parte dos agricultores do país; geralmente são trabalhadores rurais que produzem diversas culturas com pouca tecnologia e mão de obra familiar” (I9U1a). É nítido para o Aluno I (2018) que os alimentos do pequeno produtor, oriundos da reforma agrária, alimentam milhões de brasileiros. Não obstante, são os latifundiários que detêm o poder de investimentos na monocultura para atender ao mercado em larga escala. O fato é que os pequenos e médios produtores sofrem com a baixa produtividade, baixos preços, altos custos etc. Isso acarreta a venda ou o arrendamento dos seus lotes e propriedades que, normalmente, são adquiridos pelos latifundiários que desenvolvem o agronegócio.
Vale destacar que o Aluno I (2018) relata que os/as assentados/as receberam, a princípio, recursos e incentivos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em parceria com a assistência técnica Crescer, que auxiliavam as famílias, mas com a troca do governo federal, esse apoio foi extinto. O assentamento, atualmente, segundo o Aluno I (2018), vive uma realidade muito triste, pois os proprietários dos lotes os vendem ou arrendam-nos para pessoas vindas da cidade em busca de melhores condições de vida. Grande parte do assentamento cultiva soja e milho; os que não plantam, arrendaram seus lotes para o agronegócio, haja vista que os/as assentados/as não possuem renda para sobreviver de seus lotes. Já o restante dos lotes produz horta, levada para a comercialização na Central de Abastecimento de Mato Grosso do Sul (CEASA) em Campo Grande/MS. Alguns ainda criam vacas para o leite; outros, umas poucas frutas.
Nessa acepção, o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) contribuiu pouco para a permanência dessas famílias na produtividade agroecológica. Os cursos ofertados, consoante o Aluno I (2018), serviram para produção própria, e não como geração de renda, o que notoriamente evidencia o descompasso entre as políticas públicas e a assistência técnica oferecida para as famílias assentadas.
Destarte, como o baixo grau de escolaridade foi indicado durante as análises como um elemento que interfere na percepção dos/as agricultores/as quanto aos riscos causados pela exposição aos agrotóxicos, o compromisso da Licenciatura em Educação do Campo na área de Ciências da Natureza sinaliza para reforçar as práticas agroecológicas como meio de minimizar esse impacto no meio ambiente e na saúde humana.
Considerações finais
O curso da LEDUC trabalha em uma perspectiva multidisciplinar, e os/as professores/as das Ciências Humanas orientam trabalhos de conclusão de curso para a formação dos/as estudantes na Ciência da Natureza, configurando, assim, olhares diferentes na formação pedagógica, pois são de áreas distintas, tais como: Química, Física, Agronomia, Biologia, Geografia, Pedagogia, Filosofia e Sociologia. Isso propicia uma compreensão quanto à formação inicial no papel de construção do conhecimento científico ancorado nas articulações sociais, políticas, econômicas e das próprias construções históricas de vida dos/as camponeses/as.
Por conseguinte, a formação do/a educador/a do Campo com um viés crítico quanto às aspirações camponesas foi estimulada a partir dessa articulação multidisciplinar e com relação aos trabalhos de pesquisa que apontaram a questão do agrotóxico com profundas reflexões. Dessa forma, destacamos que o baixo índice de escolaridade da maioria dos produtores agrícolas constitui um motivo pelo qual estes não utilizam os EPI’s e, consequentemente, aplicam os agrotóxicos em larga escala, sem conhecimento do grau de toxidez. Outrossim, contribuem para as práticas de monocultura dentro das atividades do agronegócio.
De 21 trabalhos analisados, nove apresentaram reflexões sobre o agrotóxico sem abordar diretamente as questões ambientais e a saúde dos agricultores e de suas famílias: intoxicação, câncer, depressão, dentre outras doenças. Considera-se um número significativo, tendo em vista as diferentes abordagens dos Trabalhos de Conclusão de Curso.
Em virtude dos fatos mencionados e com base nessas percepções das compreensões da temática do agrotóxico, apresentadas pelos/as egressos/as da LEDUC, vislumbra-se potencializar a formação inicial de professores/as do Campo, incentivando o desenvolvimento das práticas agroecológicas a fim de proporcionar uma qualidade de vida aos camponeses/as, com uma alimentação saudável, e que estes inclusive, possam participar dos programas de alimentação do governo junto às escolas do Campo. Por fim, a continuidade da pesquisa é necessária para garantir a formação inicial crítica e emancipatória de educadores/as do Campo e, assim, contribuir para o entendimento dos riscos ocasionados à saúde do/da trabalhador/a do Campo pelo uso em larga escala dos agrotóxicos na agricultura.