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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.46 no.1 Maringá  2024  Epub 01-Ago-2024

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v46i1.72705 

APRESENTAÇÃO

Infâncias e Educação em tempos de ditaduras no Brasil, Espanha e Portugal

Elizabeth Figueiredo de Sá1 

António Gomes Ferreira2 

Luís Mota3 

1Universidade Federal de Mato Grosso, Mato Grosso, Brasil.

2 Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal.

3Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Coimbra, Coimbra, Portugal.


Apresentação

A História da Infância ganhou, seguramente, outra relevância com a publicação do livro L'enfant et la vie familiale sous l'Ancien Régime, de Philippe Ariès, em 1960, que nos colocou sobre uma controversa visão da evolução da família e do lugar da criança na sociedade entre a idade média e a sociedade contemporânea. De certa forma a História despontava, na segunda metade do século XX, para o estudo de um tema que a Medicina, o Direito e, sobretudo, a Psicologia e a Pedagogia vinham acarinhando, pelo menos desde o início de novecentos. É claro que o interesse pela infância vem de séculos anteriores, mas hoje podemos concordar com Ellen Key que profetizava, no início da centúria, que estávamos diante do século da criança. Na verdade, o esforço de dignificação e compreensão da infância teve efeitos em sucessivas políticas na generalidade dos países, o que não significa que a situação das crianças se tenha alterado em simultâneo em diferentes territórios e grupos populacionais. Se é certo que podemos relevar um percurso ideológico e pedagógico desde as primeiras décadas do século XX, com a Liga das Nações a adotar a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, elaborada por Eglantyne Jebb, e que veio a ser reconhecida na Declaração Universal dos Direitos Humanos pelos Estados Partes e proclamada, em 1959, pela Assembleia Geral das Nações Unidas e mais vincado ainda quando, em Novembro de 1989, as Nações Unidas adotaram por unanimidade a Convenção sobre os Direitos da Criança, muito ficou por fazer em prol do reconhecimento da infância no mundo até ao final desse milénio. Por outro lado, os países conheceram regimes que não deram a mesma importância à infância e tiveram que enfrentar situações conjunturais que prejudicaram a implementação de políticas condizentes com enunciados científicos e os articulados das declarações internacionais. A atenção para com as crianças e o modo como se vai afirmando o reconhecimento da infância depende muito de circunstâncias económicas, políticas, sociais e culturais dos países e das regiões e também das condições que envolvem diferentes grupos sociais e das convicções que os regem. As situações e as visões colocam as crianças diante de ambientes educacionais muito diferentes independentemente de considerarmos igual período cronológico e idêntico regime político. Os estudos mais consistentes sobre a História da Infância são os que olham para as crianças e as atitudes para com elas no seu contexto buscando uma compreensão dentro das possibilidades que se colocavam à sociedade em causa e sem julgamentos prévios. Mas a História refaz-se sempre que se perspetiva de modo diferente e se acrescentam novos elementos à interpelação do passado. Por isso, pensamos que continua a ser necessário prosseguir nos estudos históricos sobre a situação e a educação das crianças para compreendermos quanto estas são reféns da sorte do seu nascimento e das condições materiais e culturais que as envolvem e daí a razão deste dossiê. O intuito foi propiciar ocasião para se refletir sobre a situação da educação das crianças no quadro de ditaduras políticas que vingaram em decénios distintos e em diferentes países.

O conjunto de artigos deste dossiê, num total de dez, aborda diferentes problemáticas geograficamente situadas, distribuindo-se as suas pesquisas pelo Brasil, seis, um foca-se em Espanha e os demais, em Portugal. Socorrendo-se de fontes diversas e recorrendo, por vezes, ao seu cruzamento, este corpo mobiliza fontes arquivísticas, legislação, a imprensa e diferentes periódicos, bem como outras publicações, nomeadamente, livros didáticos e manuais escolares. No seu conjunto, analisam e discutem a educação e o ensino no Brasil, em Espanha e em Portugal, em momentos de vigência de regimes ditatoriais, durante o século XX. Três desses artigos apresentam estudos focados na educação da infância, seja pelo viés dos discursos pedagógicos, da análise de instituição de acolhimento ou das opções políticas estaduais dirigidas à infância. Outro artigo apresenta-nos as representações da criança a partir de uma publicação da época. Dois outros exploram instituições de enquadramento das crianças e jovens, com pendor mais centrado na sua integração ideológica ou no mundo do trabalho. Finalmente, um dos estudos escrutina a política educativa de alfabetização e o recurso a agentes de ensino não qualificados.

O dossiê abre com Para uma compreensão da lenta e inevitável evolução da Educação de Infância: Análise do discurso sobre a Educação de Infância no Estado Novo português (1933-1974), da autoria de Carla Vilhena, António Gomes Ferreira e Luís Mota centrado na análise dos discursos sobre a educação de infância, a partir de um conjunto de revistas de educação e ensino que circularam em Portugal nos 41 anos de duração do Estado Novo, captando a evolução da vigência e prevalência de uma visão de natureza assistencialista (1933-1944), respaldada num discurso médico-higienista, para o predomínio de um discurso psicopedagógico compaginado com a primazia do método Montessori, revalorizando-se a função educativa concomitantemente com a defesa da generalização da educação pré-escolar.

Na sequência, um artigo assinado por Elizabeth Figueiredo de Sá e Betânia de Oliveira Laterza Ribeiro, intitulado Assistir e Educar: O Departamento Nacional da Criança e suas ações em Cuiabá-MT (1940-1948), debruça-se sobre a concretização, no plano estadual, das bases de proteção à maternidade, infância e adolescência definidas pelo governo Getúlio Vargas através dos objetivos estabelecidos aquando da criação do Departamento Nacional da Criança (DNCr). Mobilizando periódicos, boletins e outras publicações do DNCr, a par da legislação, as autoras dão nota das iniciativas assistenciais no Estado de Mato Grosso, caracterizando o investimento realizado no cuidar da criança, no quadro do Departamento Nacional da Criança e da Legião Brasileira da Boa Vontade (LBA).

Respaldadas na sociologia figuracional de Norbert Elias, em O Lar Santa Rita no município de Dourados/MS: as origens do atendimento e a “etiqueta civilizatória” (1965-1982), Priscila Demeneghi da Silva Vargas e Magda Sarat compaginam a análise de fontes e documentos institucionais referentes à gestão do Lar Santa Rita, entre 1965 e 1982, com quatro entrevistas com sujeitos que fizeram parte da história da instituição, para a descreverem enquanto espaço que recebia crianças com história de abandono e cujo programa e atuação se caracterizou por criar, cuidar e educar de acordo com os padrões culturais da sociedade douradense das décadas de sessenta a oitenta do século XX.

Em Narrações para a fascistização da infância no livro “O Brasil É Bom” (1938): Pinocchiate à brasileira?, Ademir Valdir dos Santos a partir da análise do livro O Brasil é bom, editado em finais da década de trinta do século XX, pelo Departamento Nacional de Propaganda (D.N.P.), desenvolve um estudo comparado, com recurso a análise de conteúdo, com as pinocchiate produzidas no ambiente do fascismo italiano, permitindo-lhe desocultar como o referido livro encerra nos conceitos que mobiliza, nas explicações que convoca, bem como nos alertas e nas ordens em relação aos fundamentos da ação humana preconizados para as crianças brasileiras, narrativas “fascitizantes”.

Samanta Vanz, Elisângela Cândido da Silva Dewes e José Edimar de Souza assinam Representações de Nacionalismo e Patriotismo nas Escolas de Ensino Primário de Caxias do Sul (1939-1955) que nos transporta ao universo da cultura escolar no ensino primário, nas décadas de quarenta e cinquenta do século passado, num município do estado do Rio Grande do Sul. O estudo parte de um corpus documental diversificado - fotografias, circulares, programas de ensino, um periódico de educação e ensino, outros produtos da imprensa local - analisado pela perspetiva da história cultural e consequente perceção de que estas fontes, enquanto formas de expressão dos sujeitos, encerram representações. A partir da análise documental evidencia-se como as ideias de renovação das práticas pedagógicas se disseminaram convivendo com práticas que promoviam condutas para um fortalecimento do espírito patriótico, pelo viés das ideias nacionalistas de modelo de cidadão brasileiro.

Buscando uma leitura da escola como meio de operacionalização e fortalecimento do ideário da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), recorrendo a fontes documentais e bibliográficas, livros didáticos e ao corpo legislativo sujeitas a análise de conteúdo, Rosimar Serena Siqueira Esquinsani e Sidinei Cruz Sobrinho, em A infância e a cultura escolar: livros didáticos e as marcas da Ditadura Civil-Militar de 1964 a 1985, problematizam a cultura escolar e os livros didáticos recorrendo, nomeadamente, aos de História e Estudos Sociais e educação Moral e Cívica, evidenciando o uso da escola como veículo daquele poder civil-militar, revelando como a escola se constituiu em arena para a adoção de estratégias discursivas alinhadas com o contexto e circunstâncias da ditadura.

Margarida Louro Felgueiras e José Pedro Amorim, esteados em revisão da literatura e na utilização de fontes arquivísticas apresentam-nos uma compreensão da política de criação de postos escolares/postos de ensino. Em Regentes escolares e alfabetização de crianças pobres em Portugal (1930-1976) evidenciam como esta opção de política educativa concretizou uma alfabetização para as camadas mais desfavorecidas da população e aquela que residia no espaço rural ou periférico urbano. Os agentes de ensino, designados como regentes escolares, caracterizavam-se por serem, em geral, portadores de habilitações ao nível da 4ª classe, por lhes ser reconhecido bom comportamento moral e por manifestarem adesão ao regime. Auferiam metade do ordenado de um/a normalista, habitualmente atuavam nos locais de origem e constituíam um corpo quase exclusivamente feminino. De acordo com o estudo ora apresentado, o seu papel contribuiu para tornar as comunidades mais impermeáveis a comportamentos e valores diferenciados, bem como se traduziu num mecanismo de controlo do corpo docente.

A proposta socioeducativa do Regime Militar presente na FUNABEM e no I Fórum de Menores consubstancia um estudo para compreender a relação trabalho e educação na proposta socioeducativa voltada para crianças e adolescentes pobres durante o Regime Militar, a partir dos documentos da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM). Da autoria de Maria Escolástica de Moura Santos e Mayara Macêdo Melo este artigo centra-se em três eixos, nos fins e nos meios educativos, na relação entre a proposta educativa e a ideologia da segurança nacional e no vínculo entre as propostas de assistência e de educação para crianças e adolescentes pobres e a preparação de mão de obra barata para o mercado de trabalho. Recorrendo à análise de conteúdo, os autores evidenciam a centralidade da educação para garantir a conformação dos menores à ordem social vigente, orientando a formação para os ofícios manuais, cuja finalidade era moldar “adultos úteis a si mesmos e à nação”.

Patricia Delgado-Granados e Bárbara de las Heras Monastero, as autoras de A Assistência Social da Falange e a construção identitária da nova infância na ditadura franquista, focam a sua atenção no tema da infância durante a ditadura de Francisco Franco (1939-1975), a partir da instituição falangista “Auxílio Social”, a quem estava cometida a função de “disciplinar a alma da criança e ressocializar a população escolar dos territórios dos derrotados”, salientando os mecanismos utilizados para a construção identitária da “Criança Nova” que divergia da realidade conhecida pelas crianças que frequentavam a “Auxílio Social” e serviu para promover a aceitação social do regime. Explorando as notícias e documentários, as autoras desvelam um instrumento de propaganda que serviu a difusão audiovisual dos valores nacional-sindicalistas e nacional-católicos.

Em A Mocidade Portuguesa (MP) e a Mocidade Portuguesa Feminina (MPF): educação e identidade nacional no período salazarista, Amanda Marques de Carvalho Gondim e Edson Tenório da Silva partem de um conjunto de publicações de ambas as instituições - Jornal da MP, o Boletim do Comissariado Nacional, o Boletim para dirigentes da MPF Centros Primários e o jornal Lusitas - para destacarem a importância das duas organizações para a divulgação dos ideais nacionalistas por via da educação de crianças e jovens através da inculcação de uma “educação moral voltada aos valores cristãos e cívicos, de combate ao liberalismo e ao marxismo”. Os autores não deixam de sublinhar a ocasional falta de recursos para cumprir o desiderato, bem como a “interferência direta do governo ditatorial português na condução das duas instituições”.

*Autor para correspondência. E-mail: elizabethfsa1@gmail.com

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