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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.46 no.1 Maringá  2024  Epub 01-Ago-2024

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v46i1.69121 

HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Narrações para a fascistização da infância no livro ‘O Brasil É Bom’ (1938): Pinocchiate à brasileira?

Narraciones para la fascistización de la infancia en el libro ‘Brasil es Bueno’ (1938): ¿pinocchiate a la brasilera?

Ademir Valdir dos Santos1  * 
http://orcid.org/0000-0002-5958-689X

1Departamento de Estudos Especializados em Educação, Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Rua Eng. Agronômico Andrei Cristian Ferreira, s/n, 88040-900, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil.


RESUMO.

O objetivo do estudo é analisar o teor do livro O Brasil é Bom, edição de 1938 do Departamento Nacional de Propaganda (D.N.P.). A metodologia está embasada na Análise de Conteúdo, aplicada em conjugação com referenciais teórico-metodológicos dedicados à investigação sobre o fascismo e a aspectos da produção literária destinada à infância. Os resultados evidenciam similaridades entre a textualidade d’O Brasil é bom, gerado como ferramenta de propaganda no contexto da ditadura do Estado Novo, e as pinocchiate produzidas no ambiente do fascismo italiano. Verifica-se que se as tramas em que o boneco Pinóquio foi envolvido em nome da propaganda fascista são recheadas de mensagens para a infância italiana, que apelam para um embasamento amalgamado por violências e preconceitos de diversos tipos em relação aos inimigos do regime mussoliniano, em diversas das seções do livro brasileiro examinado se compreende que os conceitos, as explicações, assim como os alertas e as ordens em relação aos fundamentos da ação humana sugeridos ao menino brasileiro são constituídas por narrações igualmente fascistizantes.

Palavras-chave: fascismo; infância; literatura; educação; ditadura

RESUMEN.

El objetivo de este estudio es analizar el contenido del libro Brasil es Bueno, publicado en 1938 por el Departamento Nacional de Propaganda (D.N.P.). La metodología se basa en el Análisis de Contenido, aplicado en conjunto con referentes teóricos y metodológicos dedicados a la investigación sobre el fascismo y aspectos de la producción literaria dirigida a los niños. Los resultados muestran similitudes entre el aspecto textual de Brasil es bien, creado como herramienta de propaganda en el contexto de la dictadura del Estado Novo, y las pinocchiate producidas en el entorno del fascismo italiano. Parece que si las tramas en las que se ve envuelto el muñeco Pinocchio en nombre de la propaganda fascista están llenas de mensajes para la infancia italiana, que apelan a un fundamento amalgamado por violencias y prejuicios de diversa índole en relación con los enemigos del régimen mussoliniano, en diversas de las secciones del libro brasileño examinadas, se comprende que los conceptos, explicaciones, así como advertencias y órdenes sobre los fundamentos de la acción humana sugeridos al niño brasileño están constituidos por narrativas igualmente fascistas.

Palabras clave: fascismo; infancia; literatura; educación; dictadura

ABSTRACT

ABSTRACT. This study aims to analyze the content of the book Brazil is Good, published in 1938 by the Propaganda National Department (P.N.D.). The methodology is based on Content Analysis, applied in conjunction with theoretical and methodological references dedicated to research on fascism and aspects of literary production aimed at children. The results show similarities between the textual aspect of Brazil is Good, created as a propaganda tool in the context of the Estado Novo dictatorship, and the pinocchiate produced in the environment of Italian fascism. It appears that if the plots in which the doll Pinocchio was involved in the name of fascist propaganda are filled with messages for Italian childhood, which appeal to a foundation amalgamated by violence and prejudices of different types in relation to the enemies of the Mussolinian regime, in several sections of the Brazilian book that were examined, it is understood that the concepts, explanations, as well as warnings and orders regarding the fundamentals of human action suggested to the Brazilian boy, are constituted by equally fascist narratives.

Keywords: fascism; childhood; literature; education; dictatorship

Introdução

Concebida como uma das narrativas mais ricas da literatura universal, As aventuras de Pinóquio: história de um boneco (Collodi, 2011) foi originalmente publicada no periódico semanal Il Giornale per i Bambini, em 1881, sob o título Storia di um burattino. Vinculada ao momento histórico em que a Itália almejava ser uma nação unificada, nos apresenta um personagem querido tanto pelas crianças como por adultos do mundo todo: um boneco inconformado e transgressor, mas que paga caro por suas ações.

Considerado o texto primordial - uma novela em que o personagem central termina enforcado em uma árvore gigante -, assim como as modificações introduzidas nas versões posteriores, as narrações sobre a trajetória de Pinóquio têm sido objeto de estudos de naturezas diversas. Segundo Meira (2018), por exemplo, o cotejamento entre os formatos plurais da história de Pinóquio possibilita compreender que o seu enredo alude tanto à humanização como à educação, porque destaca processos de transformação e de sensibilização, na medida em que conjuga alguns dos bons ou maus valores que se deveria nutrir ao longo da vida; mas, por outro lado, é preciso discutir os efeitos dessa produção literária, ao se levar em conta o engendramento histórico de sua recepção, apropriação e transformação em diferentes contextos, bem como na busca por interrogar o teor ideologizado e os possíveis efeitos perversos dos textos destinados à infância na ordem social e cultural:

[...] com a história de Pinóquio, Collodi queria descrever um processo de humanização através do desenvolvimento da moralidade, da autonomia e da alteridade - da responsabilidade com o outro. O processo de humanização tem muitas semelhanças com o processo educativo, e pode ocorrer através da educação. Mas [...] esse processo também pode ocorrer de maneira inversa, especialmente através do processo educativo, ‘fantochizando’ as crianças (Meira, 2018, p. 390, grifo do autor).

Nesse sentido, acrescento como um dos referenciais basilares investigações que destacam como o ambiente autoritário do fascismo italiano, cronologicamente demarcado entre 1922 e 1943, adotou a produção literária para a infância como um dos instrumentos de propaganda do regime ditatorial, que dela se utilizou para a materialização e reprodução da ideologia fascista. Especialmente, interessa o tipo de produção literária que serviu ao aparelhamento do sistema educacional, na medida em que visou à indução do pensamento simbólico fascista nos meios escolares, associado às práticas educativas. Vem à tona o fato de que Pinóquio foi a inspiração para muitos escritores que se dedicaram à produção de livros para a infância, uma vez que dá sequência à estória ou recria argumentos presentes no enredo collodiano, o que origina as denominas pinocchiate. Especificamente no período fascista italiano apareceram publicações em que o boneco é retratado em sua adesão ao regime ditatorial.

Pinóquio também não escapou da mira do fascismo. Durante o período em que Mussolini esteve no poder foram publicadas diversas versões do boneco em chave fascista. Sua irreverência, que aparentemente não se enquadra no modelo do fascismo, serviu para o combate ao inimigo. Pinóquio aparece ora em posição de saudação ao Duce, ora vestindo a camicia nera dos apoiadores do regime e subjugando um comunista barbudo (Netto, 2019, p. 134).

Essa literatura é composta por quatro livros que circularam com o escopo de arregimentar as crianças, à medida que recorrem ao conhecido boneco Pinóquio como protagonista.

Os livros Avventure e spedizioni punitive di Pinocchio fascista, Pinocchio fra i balilla, Pinocchio istruttore del Negus e Viaggio di Pinocchio fazem parte de uma série atualmente convencionada como pinocchiate, isto é, o vasto conjunto de enredos breves que fizeram uma releitura da obra Pinóquio [...] As pinocchiate fascistas foram produzidas com o intuito de alcançar as crianças em idade escolar, em particular as do sexo masculino, tendo em vista à formação de um contingente de verdadeiros balilla, os meninos entre 8 e 15 anos treinados segundo os preceitos da disciplina fascista. O objetivo das publicações era condicionar os pequenos italianos de modo que vissem a si próprios como representantes de uma cruzada épica em favor da reconstrução do país nos moldes fascistas (Netto, 2022, p. 316).

Pari passu, como outro elemento de cunho teórico-metodológico, estabeleço conexões com a análise de Bellatalla (2010) quanto à cotidianidade e concretude da escola elementar italiana durante o fascismo, trazida numa investigação que salienta como o sistema escolar foi transformado em potente e eficaz meio de transmissão da ideologia do poder vigente, por superar as dimensões de uma formal e eventualmente ineficaz ritualidade. Nesse intento, lança mão de uma metodologia embasada nos testemunhos e na memorialística construída por meio dos depoimentos de docentes que estiveram atuantes no período do fascismo italiano, que introduzem em suas narrações as formas com que lidaram com as orientações didáticas e os manuais prescritos à época, e estabelecem alguns parâmetros para que se possa compreender o alcance da mudança educacional preconizada à época.

Para responder a esta pergunta, é preciso, também no caso da escola elementar, confrontar o quanto as nossas testemunhas privilegiadas contaram com as imagens de escola evocada de outros testemunhos, oferecidos pelos cadernos, pelos ‘manuais escolares’, pelos guias didáticos que circulavam entre os bancos e entre as mãos dos professores no vintênio da ditadura fascista. (Bellatalla, 2010, p. 134, grifo nosso, tradução nossa)1.

Concomitantemente, e também em conexão com a tessitura analítica, trago para o campo argumentativo as pesquisas de Santos (2010, 2012, 2014), que, por meio de estudos comparativos ressaltam como o processo de fascistização da escola elementar (ou primária), calcado no uso dos materiais escolares como artifício ideológico para o doutrinamento da infância, ocorreu tanto na Itália, sob o regime de Mussolini, como no Estado Novo brasileiro capitaneado por Getúlio Vargas entre 1937 e 1945.

Dadas tais componentes, apresento como objetivo analisar o teor do livro O Brasil é Bom, edição de 1938 do Departamento Nacional de Propaganda (D.N.P.). A metodologia tem por base a Análise de Conteúdo (Bardin, 1977), cuja aplicação implica na construção de categorias analíticas que representam o conteúdo de um texto ao aglutinar suas proposições discursivas, considerando que a terminologia empregada pode tanto apresentar uma frequência numérica significativa como uma carga semântica semelhante, o que possibilita compreender e interpretar os elementos históricos, sociais e culturais presentes na narração.

O menino sabe... O menino não sabe... O menino quer saber...

O livro examinado faz parte de um acervo privado constituído por objetos da cultura material que circularam em escolas do sul do Brasil nas décadas de 1930 e 1940. É um dos raros componentes de uma coleção que reúne livros e manuais escolares, cadernos, fotografias, imprensa pedagógica, além de carteiras e lousas. Datado do ano de 1938, O Brasil é Bom integrou o conjunto documental produzido pelo Departamento Nacional de Propaganda, órgão que foi criado naquele mesmo ano com o intento de difundir as políticas e proposições ideológicas do Estado Novo, período ditatorial chefiado por Getúlio Vargas. É uma brochura de 39 páginas, em que não há paginação, com dimensões de 12 cm x 18 cm, cujos tipos impressos são emoldurados, em cada uma delas, por uma fina borda retangular vermelha. A lombada é unida por dois grampos metálicos e está sem capa, que se estima tenha sido perdida ou sofrido deterioração devido ao contínuo manuseio no decurso de mais de 80 anos.

Quanto ao texto, apresenta um conteúdo subdividido em 30 seções numeradas. Após a folha de rosto, que traz dados de identificação, temos um pequeno preâmbulo com um alerta ao leitor. Mas quem é o desejado receptor d’O Brasil é Bom? Ao folheá-lo, fica evidente que ele é genericamente identificado como ‘Menino’.

‘Menino’:

Lê êste livrinho com atenção. Aprende êstes ensinamentos. Si teu pai e teus irmãosinhos sabem lêr, faze com êles o leiam comtigo. Si êles não sabem lêr, prestarás um serviço ao teu Brasil, lendo-o em voz alta para que êles o ouçam e aprendam o que nêle se ensina (Departamento Nacional de Propaganda [D.N.P.], 1938, seção 1, grifo nosso).

Mesmo assim, embora haja um sujeito genérico a quem se destinam as mensagens, verifico que ao longo da narração há um conteúdo apresentado através de prescrições diretas e que usam do modo verbal imperativo. Indico, em decorrência, a elaboração de um rol de desejáveis ensinamentos, que não somente seriam apreendidos por meio da atenta leitura do menino, mas que depois deveriam ser lidos conjuntamente com os familiares ou em voz alta pela criança, isso no caso de sua parentela não saber ler. Desta maneira, o tempo verbal empregado nas narrativas garante a presença, desde o princípio do livro, não apenas de pedidos, sugestões ou de simples conselhos, mas de verdadeiras ordens.

Diante dos argumentos em elaboração, cabe acrescentar um alerta quanto a perspectivas analítico-metodológicas empregadas. Isto porque tomo como objeto da análise de conteúdo, com viés histórico-cultural e até mesmo afetivo, um livro infantil precisamente datado, e embora não seja especialista em teoria da literatura infantil, me constituo como um daqueles “[...] interessados e envolvidos na formação do leitor criança” (Soares, 2015, p. 33). Por conseguinte, em certa medida estou alinhado aos estudiosos que atribuem aos textos escritos um potencial de dominação e imposição de modelos, que se soma a uma determinada capacidade de construir certo matiz identitário e de imobilizar, ou seja, por chamar

[...] a atenção para o fato de a linguagem escrita permitir dominar à distância, seja pela imposição de modelos amplamente difundidos ou pela figura edificante de um santo ou a da criança descobrindo o amor pela pátria, utilizando-se da escrita para submeter às pessoas à força de um preceito e prendê-las nas redes de uma identidade coletiva. Por esse viés, o aprendizado da leitura configura-se, muitas vezes, como um exercício que incute o medo, que submete o corpo e o espírito, que incita cada um a ficar em seu lugar, a não se mover (Soares, 2015, p. 25).

Por outro lado, levo em conta os alertas de que tanto as noções de letramento como aquelas próprias da experiência literária estão relacionadas a controversos entendimentos quanto à formação do leitor criança e às especificidades do texto literário para a infância. Todavia, a proposta é de que a análise desse texto para a criança brasileira possa contribuir para a necessária e contínua reflexão sobre os paradigmas com que se opera, o que envolve discutir a formação de leitores desde a escolarização inicial e o papel da docência:

Sem dúvida, um dos muitos nós que encontramos no processo de formação de leitores de literatura encontra-se nas primeiras séries da educação básica: que tipo de leitor criança deve-se formar? De que forma se dá o processo de formação desse leitor? É igual para todos? Qual o papel dessa primeira formação no desenvolvimento desse leitor? O professor das primeiras séries da educação básica domina os aparatos necessários para lidar com esse tipo de texto e de leitor? (Soares, 2015, p. 26).

Avancemos sob a égide de tais premissas. O Menino representa o destinatário das palavras, pois mediante o procedimento de localização por frequência ou enumeração proposto pela análise de conteúdo, verifico que aquele termo ocorre 52 dentre as linhas d’O Brasil é Bom. Compreendo que não há indícios de um endereçamento à ‘infância’, o que é corroborado pela total ausência de termos correlacionados como criança, ou mesmo de algum uso do gênero feminino, ou seja, que direcione o conteúdo a uma menina.

Sendo assim, detecto as primeiras conexões entre o conteúdo do livro O Brasil é Bom e as pinocchiate fascistas. Minha constatação vai ao encontro do que salienta Netto (2022, p. 318) em relação ao teor das pinocchiate, já que elas registravam uma explícita distinção de gênero: “[...] a literatura para infância é atravessada por questões de gênero, sendo comum a diferenciação entre enredos para meninas e para meninos. No caso das pinocchiate isto é relevante: os enredos são dirigidos especificamente aos meninos fascistas”. Quanto ao argumento evocado, pondero quanto à presença de perspectivas fascistizantes, uma vez que o texto age à maneira de um estímulo para que o ‘menino’ brasileiro se identificasse com características de um balilla. Quero dizer que existe um conteúdo aplicado especialmente aos meninos, impregnado de intencionalidade, a exemplo do que impulsionou as práticas associativistas institucionalizadas na escola italiana, que tinham por base o significado de se tornar um Balilla, que conjugava uma visão ultranacionalista ao orgulho de pertencer à obra fascista desde a infância:

Nas escolas do ensino primário e secundário as práticas fascistas iniciam-se aos quatro anos, quando o menino é levado a participar de um grupo que possui o nome mitológico de ‘Os filhos da Loba’, uma clara alusão à mística do Império romano. Aos oito anos transforma-se num Balilla, designação retirada do nome de um jovem genovês, Giovanni Batista Perasso, de alcunha Balilla, que em 1746 dera o sinal para a revolta contra os austríacos que ocupavam o território (Paulo, 1994, p. 15).

À vista disso, o conteúdo da primeira seção dá o tom às narrações seguintes d’O Brasil é Bom, demarcadas por uma concatenação redacional que alinha uma afirmação, uma interrogação e as explicações necessárias à doutrinação do leitor. Deste modo, atua por meio de linguagem que organiza um discurso repleto de adjetivos aplicados ao Brasil e que demarcam os seus atributos: “O Brasil é bom. Porque o Brasil é bom? Isso é que ‘o menino quer saber’. É facil (sic) explicar porque o Brasil é bom, porque é grande e forte. Porque produz, porque seu sólo é rico, porque tem uma natureza prodigiosa [...]” (D.N.P., 1938, seção 1, grifo nosso). Constantemente adjetivado como bom, grande e forte, o Brasil é apresentado como um local prodigioso, de prosperidade e riqueza oriundas do trabalho do brasileiro. Nestes termos, tem-se um conteúdo que inclusive defende a possibilidade de enriquecimento do trabalhador, mas desde que atue honesta e criativamente.

O Brasil é um país rico. A Constituição considera a iniciativa individual o fundamento e base da riqueza e da prosperidade nacional. Cada brasileiro póde exercer livremente a profissão que escolher. País rico, no Brasil póde qualquer homem enriquecer pêlo trabalho honesto, pêlas suas iniciativas e capacidade de creação. Cada qual póde auferir proventos na medida de seus esforços. Por isso, o Brasil é bom (D.N.P., 1938, seção 7).

De modo consorciado aparecem referências à grandeza do Brasil, inicialmente em comparação com as dimensões geográficas dos outros países. Mas como tal argumentação poderia eventualmente soar insuficiente, aparece um novo tipo de cotejamento, como no caso da confrontação com o Canadá, que embora fosse maior em extensão territorial, estaria repleto de regiões não utilizáveis, ao que se acrescenta uma característica que se insinua negativa, ou seja, o fato de ser uma colônia dependente.

No território brasileiro caberiam a França, a Argentina, a Italia, a Inglaterra, a Alemanha, o Mexico, a Polonia e Portugal reunidos, sobrando ainda espaço. O Brasil é o terceiro país independente do mundo, em extensão territorial. Na America, o Brasil é a maior nação independente, sobrepujando os Estados Unidos em mais de mil quilometros quadrados. Só o Canadá é maior do que o Brasil, na America, em extensão territorial. Mas o Canadá não é uma nação independente. É ainda uma colonia inglêsa. E o território brasileiro apresenta uma vantagem sôbre o do Canadá: presta-se a toda sorte de culturas e é todo êle utilizável, desde o extremo-norte ao extremo-sul, ao passo que o Canadá tem regiões que não passam de enormes geleiras. No Brasil caberiam reunidos, ainda sobrando espaço, o Urugauy, o Mexico, a Costa Rica, Cuba, Nicaragua, Haití e São Domingos, Honduras, Salvador, Argentina, Bolivia, Chile e Colombia (D.N.P., 1938, seção 19, grifo nosso).

Por sua vez, o conteúdo das seções 19 e 21 está centralizado no discurso da ‘latinidade’: o Brasil não somente surge como a maior nação latina, mas existe uma explicação sobre os porquês de sermos uma população de ‘latinos’ e, mais do que isso, de gozarmos da beleza da herança latina no campo das artes, das ciências, das leis e da filosofia.

O Brasil é ‘a maior nação latina do mundo’. ‘Fazem parte das nações latinas a Italia, pátria dos romanos, ou latinos’, assim chamados por falarem o latim, lingua hoje morte, a Rumania, França, Espanha, Portugal e todas as nações americanas de fala espanhola e portuguêsa. ‘São chamados latinos esses países porque eles herdaram dos romanos a lingua, o sangue a fôrça da mais bela e fecunda civilização’. O francês, como o espanhol e o rumeno, são linguas que procedem do latim antigo, modificado através dos tempos, de acôrdo com as peculiaridades de cada país. ‘O que existe de mais belo no mundo, em arte, ciência, leis e filosofia é obra da latinidade. O Brasil se orgulha de ser um país latino e, mais do que isso, de ser a maior nação latina do mundo atual, quer pêla sua extensão territorial, quer pêla sua população’, que supera a da Itália, a da Espanha, a da França, Argentina, Mexico, Chile e qualquer dos outros países latinos (D.N.P., 1938, seção 19, grifo nosso).

Entendo que as referências a outras nações e povos, involucradas por uma narrativa em que o Brasil é adjetivado como o maior e enquanto herdeiro de uma herança cultural civilizatória superior, revelam uma das características comuns aos vários fenômenos históricos de fascistização e que representam esses diferentes movimentos do século XX: o racismo. Mesmo que se atente para a questão de que o regime italiano não tenha flertado com a racialização nos seus primórdios, já que somente depois de dez anos de poder e para justificar a violência colonialista que essa discursividade foi assimilada, a associação entre racismo e fascismo é inequívoca.

Em 1939, o império colonial italiano contava com cerca de 12 milhões de habitantes distribuídos entre Eritreia (colônia desde 1883), parte da Somália (1886), Líbia (1911), Etiópia (1935) e Albânia (1939), uma área de quatro milhões de quilômetros quadrados, mais de dez vezes o tamanho da Itália. Cerca de 200 mil civis italianos viviam nessas terras, convencidos da superioridade dos homens brancos e da insignificância dos povos atacados (Fascismo III, 2023).

E apesar d’O Brasil é Bom não mencionar nações africanas, pois privilegia uma perspectiva eurocêntrica à citação de outros países entendidos como latinos, é pertinente examinar a questão mediante o fundamento analítico de Carsten (2008, p. 690, tradução nossa), que num estudo das características comuns aos movimentos fascistas sublinha: “Uma parte da ideologia dos movimentos era constituída de um mito poderoso, aquele da nação e da raça que em geral se exprimia no expansionismo territorial [...] além disso glorificavam e veneravam o passado: o império romano da antiguidade ...]”2.

Diante de conteúdos mais ou menos tácitos em relação a um fundo fascistizante, evoco outro fator que, segundo teorização vinculada à compreensão do fascismo, foi denominado como eficácia política. De acordo com Konder (2009), um dos propósitos do conjunto de artistas e intelectuais seduzido pelo regime, em diálogo com as classes dominantes que assumiram o poder, foi desempenhar a função social de elaboração de representações ou interpretações capazes de enriquecer, a cada época e em cada país, determinada autoconsciência, o que possibilitaria aos sujeitos melhor reconhecerem a realidade; além disso, tal intelectualidade necessita lidar com uma herança cultural pretérita e em relação à qual se vê subordinada às novas exigências do presente, o que requer uma reelaboração crítica do material ideológico herdado das gerações precedentes. Indo ao encontro dessa perspectiva, há uma compreensão de que a textualidade do livro O Brasil é Bom pode ser lida com uma narrativa com intrínsecas relações com algumas das bases ideológicas do fascismo italiano, que chegou ao Estado Novo brasileiro devido ao processo histórico de circulação do ideário autoritário do período entre as décadas de 1920 e 1940. E como teria se dado tal fenômeno? No princípio, porque em 1937 foi exarado na Itália o Real Decreto Legislativo 880, depois transformado em lei, que sob a inspiração nazista das Leis de Nuremberg, trouxe à cena as primeiras medidas de defesa da raça. E nesse processo houve a participação da intelectualidade na proclamação do racismo como ingrediente do fascismo, conforme destaco:

A discussão sobre as leis raciais ao Manifesto da Raça ou Manifesto dos Cientistas Racistas, embora o título original seja mesmo Fascismo e os problemas raciais. Publicado na primeira página do Giornale d’Italia, em 15 de julho de 1938, o documento foi subscrito por um grupo de cientistas, professores e intelectuais a pedido do Ministério da Cultura Popular. Estava escrito: “[...] a população da Itália atual é principalmente de origem ariana” e “É hora dos italianos se proclamarem francamente racistas” (Fascismo III, 2023).

Concilio tal argumento ao caráter interpretativo que é possível por meio da análise de conteúdo, pois verifico na seção 4 uma narração em que o fundamento das teorias raciais em voga aparece, sob a alegação de que a bondade do Brasil também reside em não nutrir preconceitos e distinguir as raças, e finaliza com o argumento de que o país recebe pessoas de todas as raças e oriundas de todos os continentes. Mas o texto é entremeado pelas condições que implicariam para que ninguém sofresse preconceito: respeito às leis, dedicação ao trabalho, bem querer e ao amor pelo Brasil acima de qualquer coisa.

O Brasil é bom porque não faz distinções de raças. Porque não tem preconceitos de côr, nem de religião. Todos pódem viver no Brasil si respeitam as leis do Brasil. Mas ninguem póde viver no Brasil si não quer acatar as suas leis. O preto é brasileiro? é, sim, e é um bom brasileiro si trabalha pêla grandeza do Brasil. O branco é brasileiro? É, sim, e só é um brasileiro quando trabalha pêlo bem do Brasil.

Filho de japonês, - nasceu no Brasil, é brasileiro. Filho de alemão, - nasceu no Brasil, é brasileiro. Filho de italiano, - nasceu no Brasil, é brasileiro. Todos são brasileiros, com os mesmos deveres e direitos. Todos devem respeitar a Pátria dos seus páis, mas devem querer e amar, acima de tudo, o Brasil.

Não são bons brasileiros os que assim não procedem. E o Brasil não quer no seu sólo máos brasileiros. O Brasil acolhe gente de todas as raças e de todos os continentes (D.N.P., 1938, seção 4).

E quanto às relações entre esses conteúdos do livro editado pelo Departamento Nacional de Propaganda do Estado Novo brasileiro e as narrativas das pinocchiate fascistas, em que o pano de fundo é claramente racista, ressalto uma análise sobre Pinocchio istruttore del Negus (traduzindo, Pinóquio instrutor do Negus), obra infantil em que Pinóquio se torna negro devido a um banho de chocolate, o que inclusive gera os gritos do seu patrão, que o chama de abissínio. Mais que isso, a fantasiosa confusão devido à mudança de cor é apresentada ao leitor infantil como tão confiável que um cidadão inglês leva o boneco para o país africano, numa situação em que ele teria que se aliar aos inimigos do colonialismo militar italiano. Por sorte, o boneco é resgatado pelos italianos devido sua identificação com a bandeira da sua pátria natal!

As conquistas na África também estavam presentes nas tramas das continuações fascistas. Em Pinocchio istruttore del Negus, de 1939, o boneco é auxiliar em uma confeitaria e após ter derramado sobre si um caldeirão de chocolate sai correndo em disparada enquanto seu patrão o chama, aos gritos, de abissínio, por causa da coloração que tomou. Um inglês que vê a cena acredita que Pinóquio vem do país africano e acaba por levá-lo a Abissínia para treinar os soldados daquele país, então aliado da Inglaterra, para que superassem o exército italiano. No fim Pinóquio é localizado e salvo por um avião italiano após ter chamado a atenção agitando com ímpeto a bandeira tricolor (Netto, 2019, p. 136).

Segundo Curreri (2008), as pinocchiate - quatro novelas e um romance breve - exprimem o emprego do boneco durante o vintênio fascista como um auxílio para ajudar a reconstruir uma história da literatura, ao representar reprises ou versões do boneco de Collodi em contextos absolutamente diversos do original e podem ser tidas, de certa forma, como uma espécie de gênero em si na literatura escapista e infantil. Ainda segundo argumenta, Pinocchio istruttore del Negus resulta em grande interesse por vários motivos, sobretudo porque traz os acontecimentos na África Oriental italiana, especificamente na Etiópia, um lugar simbólico para os sonhos imperialistas, mas também da queda do fascismo. Destarte, o livro encena outra figura bastante recorrente na literatura escapista do período, ou seja, o inglês que é tão tolo quanto ingênuo, a ponto de confundir um Pinóquio manchado de chocolate com um abissínio; de acordo com Curreri (2008), o texto traz algumas das típicas características típicas do romance colonial, inclusive no que concerne à produção infantil, tais como o exotismo, o paternalismo, a linguagem incorreta e quase ridícula dos nativos e, notadamente, o racismo, apresentando Negus, o inimigo do exército italiano, caricaturizado como pouco inteligente, já que é como que a vítima de uma cultura atrasada. Dadas tal contextualização e referências raciais, é factível associar tal conteúdo d’O Brasil é Bom a uma espécie de pinocchiate à brasileira, já que o menino receptor do livro é exposto a uma narrativa que julga necessário afirmar: “O preto é brasileiro? é, sim, e é um bom brasileiro si trabalha pêla grandeza do Brasil” (D.N.P., 1938, seção 4).

Concomitantemente, a grandeza do Brasil, que é expressa ao longo do conteúdo do livro O Brasil é Bom com o uso do adjetivo ‘grande’ em 45 ocasiões, é associada à manutenção da ordem. Aborda-se o expansionismo, uma das marcas do governo Vargas na chamada Marcha para o Oeste, mediante um discurso que fala do incremento nas redes de transportes de vários tipos, por meio do qual detecto um fundamento que também pode ser visto como matizado pelo ideário civilizatório e de marchar para conquistar a qualquer preço, no rumo do engrandecimento. Enfim, uma espécie de processo colonizador interno.

O Brasil é um grande país. O Brasil só precisa de ordem para progredir a passos firmes. O dever de todos os patriótas é o dever da ordem. Nação de vasto território, com oito milhões e quintos mil quilometros quadrados, com 1.405 municipios, dos quais 1.010 cidades e 295 vilas, a grande Pátria brasileira é o maior país da America do Sul e a maior nação latina do mundo.

Dada a vastidão do seu território, o Brasil necessita grandemente de transportes. Navios, trens de ferro, autos, aviões comerciais e militares a serviço do correio aéreo, cruzam o seu imenso território. Mas ainda é pouco. O Brasil necessita de linhas ferreas de penetração, rumo ao Oéste.

[...] E a Oéste? A Oéste, temos as vastas regiões de Minas, de Goiás e de Mato Grosso. Regiões onde as culturas agrícolas pódem constituir uma riqueza imensa para o Brasil. Mas, para isso, é preciso que haja transportes, porque não adianta produzir, sem haver escoamento do produto.

O futuro do Brasil está na marcha para o Oéste. Foi a marcha épica dos bandeirantes para o Oéste que marcou o início da civilização brasileira. A marcha para o Oéste coroará, agora, essa civilização. O Presidente do Brasil quer rasgar novas vias de comunicação, aumentando, no rumo ao Oéste, os nossos trinta e pouco mil quilômetros de linhas ferroviárias. O trabalho de todos os brasileiros construirá um Brasil maior. E o sentimento de ordem será o colaborador principal da grandeza do país.

Brasileiros: pêla lei e pêla ordem! (D.N.P., 1938, seção 26).

Nesse corolário doutrinador há que destacar as partes do texto em que se arrola uma definição da soberania do Estado, na busca por invocar o que se pretende defender como uma constitucionalidade do governo.

Mas o Brasil é bom sobretudo porque tem o govêrno que lhe convém. O Estado Brasileiro é soberano.

Que é um Estado soberano? É um Estado que se governa por si mesmo, sem admitir intervenção estranha. Na casa do Brasil, quem manda é o Brasil.

Que é um Estado? Um estado, menino, é uma nação constituida e livre, governando-se por um conjunto de leis próprias.

A principal lei de um páis se chama Constituição. O Brasil tem uma grande Constituição. Todos os brasileiros pecisam [sic] conhecer a Constituição para conhecer os seus direitos e deveres para com a Pátria (D.N.P., 1938, seção 1).

Tal conteúdo apresenta uma terminologia que se presta a informar o pequeno leitor quanto aos fundamentos do governo da época. De fato, uma elaboração argumentativa com nexos internos que arrolam alguns dos aspectos conceituais sobre o que é uma ditadura. Como ponto de partida, a ditadura se apresenta como uma forma de governo que seria a conveniente para o país, que tende a expressar-se como se fosse a mais legítima representante dos interesses e necessidades do povo e, neste sentido, usa dos artifícios da linguagem para uma imposição capilar e coercitiva que visa à aceitação entusiástica do regime. Neste mesmo plano narrativo, a noção de soberania que é proposta busca esconder a concentração de poder e a forma rígida de transmissão da autoridade política de cima para baixo, embora tente transmitir a impressão de que há o atendimento do princípio da soberania popular. Na verdade, o que o regime pretende inculcar é que existe tal soberania para, de alguma maneira, nela se apoiar com vistas à permanência no poder. No mesmo âmbito, ao invocar a presença de uma Constituição, o fato é que a ditadura pretende sempre que seu governo não seja refreado pela lei, pois em acordo com os princípios do autoritarismo, acaba colocando-se acima dela, e por fim age para transformar a própria vontade em lei. Mais que isso, uma ditadura busca recorrer às leis que contradizem aquelas anteriormente existentes, ou àquelas que criam exceções, ao utilizar os seus poderosos organismos políticos para invocar diretamente pretensos princípios superiores, que no final irão guiar a ação do governo e prevalecerão sobre qualquer lei.

As partes do conteúdo d’O Brasil é Bom que têm essa natureza foram dispostas para dar a entender que o aceitável é a possibilidade criada, ou seja, de que a ditadura não pode ser refreada pela lei, mas sim se coloca acima dela. Quer dizer, converte a própria vontade em lei, o que no caso do Estado Novo foi feito com a promulgação de uma nova e particular Constituição, o que se deu em 1937. Frisando o conteúdo presente na seção 1: “A principal lei de um páis se chama Constituição. O Brasil tem uma grande Constituição. Todos os brasileiros pecisam (sic) conhecer a Constituição para conhecer os seus direitos e deveres para com a Pátria” (D.N.P., 1938, seção 1). Pode-se dizer que este tom redacional vai transpassar sua textualidade, pois dá a entender que o poder era derivado do próprio regime. As normas jurídicas foram editadas porque o poder dos militares não poderia ser limitado pelas leis anteriores ao golpe, com a pretensão de retirar a base jurídica para a oposição às ações irregulares que aconteceram e que viriam no futuro. Observo que, na totalidade do conteúdo, o termo Constituição aparece 31 vezes, ou seja, com um eloquente e repetitivo apelo narrativo, que se supõe incorporaria a palavra ao vocabulário do menino.

Ao mesmo tempo em que se constata no texto uma narrativa sobre a existência de tais fundamentos legais, sublinho o trecho em que o Estado é definido conjuntamente de uma espécie de autorização para cometer abusos em relação aos direitos humanos: “Que é um Estado? Um estado, menino, é uma nação constituída (sic) e livre, ‘governando-se por um conjunto de leis próprias’” (D.N.P., 1938, seção 1, grifo nosso). Então, se permitiria que a ação do ditador, neste caso equivalente à do Estado, fosse posta acima da lei, em última instância sendo apresentada como a própria lei. Há uma coincidência entre o líder máximo e a Constituição, já que ambos são ‘grandes’. A mensagem ordena ao menino o que dele se espera como bom brasileiro: “Conhece o Brasil e respeita as suas leis” (D.N.P., 1938, seção 2).

Já no conteúdo da seção 14 as leis são associadas ao trabalho dos brasileiros, no sentido de que foram exaradas para assegurar-lhes direitos.

Antigamente, não havia leis regulando o emprêgo dos brasileiros nessas companhias. Hoje, ha leis. Os empregados teem o seu sindicato e o seu instituto de pensões e aposentadorias, bem como sua caixa de acidentes. Nenhuma emprêsa póde dispensar empregados sem causa justa e sem indenizá-los na proporção dos anos de serviço que prestou. O operario está, dêsse modo, protegido por uma sábia legislação trabalhista e por medidas de previdência social. O operario tem garantias. Essas garantias emanam dos seus direitos. Dos direitos que o govêrno lhe deu. O Brasil não era bom para os operarios. Isso foi ha anos atrás. Agora, o Brasil é bom (D.N.P., 1938, seção 14).

Na seção 17 a Constituição é novamente invocada, numa textualidade que a associa à centralidade de seu papel quanto aos direitos do trabalhador, ou seja, tratando das leis trabalhistas.

Tudo quanto está escrito na Constituição tem uma grande significação, um propósito, uma finalidade. Tudo quanto está escrito na grande lei do Brasil tem uma razão de ser.

Por exemplo: diz a Constituição que “[...] a todos é garantido o direito de subsistir mediante o seu trabalho honesto e êste, como meio de subsistência do individuo, constitúe um bem, que é dever do Estado proteger, assegurando-lhe condições favoraveis e meios de defesa”. Assim, o Estado protege o trabalhador, assegurando-lhe o emprêgo, por meio das garantias das leis trabalhistas. Porque todos teem direito á existência digna, provida pêlo trabalho honesto, é que o Estado de acôrdo com a Constituição, vai determinar a fixação, em cada zona do território nacional, do salario mínimo, capaz de satisfazer, de acôrdo com as condições de cada região, as necessidades normais do trabalhador, que compreendem casa, alimentação, roupa, higiene e educação da prole (D.N.P., 1938, seção 17).

Para compreender o porquê da presença de tais conteúdos entre as seções examinadas, é vital a comunicação com aquelas análises que destacam as questões trabalhistas. De acordo com Gomes (1999, p. 53), de fato as décadas de 1930 e 1940 são revolucionárias quanto à discussão do trabalho no Brasil, pois além da elaboração de toda a legislação que regulamenta o trabalho, “[...] estrutura-se uma ideologia política de valorização do trabalho e de ‘reabilitação’ do papel e do lugar do trabalhador nacional”. Coroando essa discursividade temos a relação com a Constituição do Estado Novo, que na sua forma pretensamente republicana seria tanto um fundamento da democracia. E ainda há uma alusão a um pressuposto espiritualista, fundamento da proteção da infância e juventude, que, ao invocar um fundo humanista, também irradiaria para um empenho na educação, nas artes, letras e ciências.

O Brasil é bom porque é uma democracia. Democracia é o govêrno do povo. No Brasil, o govêrno emana do povo. O Presidente da República é um delegado da confiança popular, exercendo o govêrno em nome do povo. A fórma republicana e representativa do govêrno, característica da democracia, faz parte dos fundamentos constitucionais. Outra característica do regime democratico é a temporariedade das funções governamentais, tambem inscrita na Constituição de 10 de novembro. Essa Constituição não é materialista, porque não coloca a ordem econômica acima de tudo, - princípio adotado nos sistemas fascistas e comunistas. É espiritualista, porque se preocupa com a pessôa humana e com os direitos dos cidadãos, encarando o individuo como uma expressão social e como um valor positivo, votando-se á proteção da juventude, da infancia e da maternidade, ao desenvolvimento da educação e ao estímulo ás artes, letras e ciências. Conservando no Brasil o espirito democratico, a nova Constituição suprimiu, no entretanto, males antigos que ameaçavam o Brasil, dando-lhe unidade, como jamais havia sido possivel (D.N.P., 1938, seção 25).

Quanto ao termo dever, está em outras 23 estruturas de narração. E na sequência, temos a constante repetição do termo ‘chefe’, indefectivelmente associado a Getúlio Vargas, o homem que inspira confiança, que sorri e que liderava legitimamente porque o fazia em função da vontade do povo, como doutrina o conteúdo da terceira seção d’O Brasil é Bom.

Si todos os Brasileiros são irmãos, o Brasil é uma grande familia. Realmente, uma grande familia feliz. Uma familia é feliz quando ha paz no lar. Quando os seus membros não brigam. Quando não reina a discórdia. O Brasil é e será uma grande familia feliz enquanto houver ordem e trabalho. O trabalho é um dever social. A ordem é outro dever social. Que é um dever social? É um dever comum a todos os individuos. É uma obrigação de todos os brasileiros. O Estado tem como base a organização da familia. Por isso, o Estado, isto é, o Brasil, resolveu proteger as familias numerosas, cujos chefes ganhem pouco. A Constituição, que é a grande lei do Brasil, estabelece essa medida. E essa medida será aplicada pêlo govêrno. O govêrno é a ação do Estado. O chefe do govêrno é o chefe do Estado, isto é, o chefe da grande familia nacional. O chefe da grande familia feliz. Por isso, o chefe do governo é o chefe nacional. Quem é o chefe nacional? É o chefe do govêrno. Quem é o chefe do govêrno? ‘O menino sabe’ que é Getulio Vargas. Getulio Vargas é um homem que sorri. Sorri porque tem confiança no Brasil. Todos os brasileiros devem ter confiança no Brasil. Getulio Vargas é o chefe nacional pêla vontade do povo brasileiro (D.N.P., 1938, seção 3, grifo nosso).

Como outros constantes no livro, este trecho constitui mais uma caracterização intrínseca tanto da ditadura como do autoritarismo, ao fazer uso de uma linguagem que seria simples e acessível ao leitor infantil. Temos um conteúdo tipicamente fascistizante, porque expressa a concentração e o caráter sem limites do poder nas mãos de uma única pessoa, o que também pode ser compreendido como uma tentativa de legitimar aquela espécie de ‘democracia subvertida’, já que o povo, como membro natural da grande, ordeira e pacífica família feliz, é conduzido a manifestar sua completa adesão à orientação política do ‘chefe’, a fim de que o ditador proclame que sua ação se apoia na vontade popular. Resulta que o conteúdo d’O Brasil é Bom estabelece relações com a literatura propagandística criada pelo Estado Novo, cujos efeitos saudosistas persistem na memória de muitos brasileiros, notadamente quanto à eficiente inoculação ideológica da imagem de Getúlio. Mas se para alguns o retrato de Vargas que ficou é positivo e está vinculado a um período de governo com benéficas realizações em prol do povo brasileiro, segundo as análises de Carneiro (1999), trata-se de ‘tempos sombrios’, marcados por condutas de repressão, censura, preconceito e abuso de poder.

Para muitos saudosistas, o Estado Novo deve ser visto como um Estado-nação, idealizado e realizado pela força de um só homem: Getúlio Vargas, um autêntico caudilho, representante da aristocracia pastoril gaúcha. Uma das primeiras lembranças a ser recuperada é a de que seu governo empenhou-se na luta contra o comunismo e, também, como não poderia deixar de ser, pelo apoio dado aos pobres, aos humildes e aos trabalhadores do Brasil. Essa expressão, aliás, ainda produz ecos, sendo até mesmo identificada pelas gerações que não viveram o Estado Novo. Mas, que ecos são esses?

Poderíamos dizer que são ‘vozes do silêncio’, traduzidas aqui como ‘tempos sombrios’. Tempos que, ao contrário do que muitos querem fazer crer, simbolizam um período negro na história do Brasil. Tempos difíceis, duros, marcados pela repressão, pela censura, pelo anti-semitismo, pelo abuso do poder, pelos acordos de bastidores (Carneiro, 1999, p. 327-328, grifos do autor).

Não bastassem as repetições, há uma nova exaltação do ‘Presidente’ na seção 29, na qual ele é apresentado como alguém que, por sua função, suplantaria inclusive a precisão da Câmara e do Senado, órgãos que até então não funcionavam, especialmente quanto à organização financeira do país.

O Presidente da República queria endireitar as coisas, equilibrando a despesa e a receita, no orçamento do país. Era preciso que as despesas do Brasil não passassem da sua receita, isto é, dos seus recursos próprios, das suas arrecadações, das rendas dos seus impostos. Mas não havia meio do Presidente conseguir o que queria. O Poder Legislativo, isto é, a Câmara e o Senado, onde eram fabricadas todas as leis do país, inclusive o orçamento, que é a chamada lei dos meios, não ajudava ao Presidente. Todos os esforços para estabelecer o equilíbrio orçamentário eram inúteis, eram em vão, porque a Câmara e o Senado agravavam sempre o montante das despesas, muitas vezes em benefício de iniciativas que nada tinham que vêr com o interêsse público. Isso é o mesmo que dizer que atiravam fóra, pela janela, dinheiro do Brasil, dinheiro de todos nós...

Havia, na Câmara e no Senado, é certo, e devemos proclamá-lo, por justiça, homens de cultura, de ilustração, devotados ao bem do país, inspirados em princípios de são patriotismo, aptos para o exercicio das mais importantes funções públicas, mas êsses eram impedidos de realizar obras de real mérito, ou pela indiferença com que eram recebidas suas idéas pelos seus colegas, ou em razão de defeitos da própria organização do Legislativo (D.N.P., 1938, seção 29).

O fundo ideológico ressurge, novamente, num conteúdo associado ao que seria um Brasil ordeiro e livre de divergências e brigas, mobilizando a construção de um ideário específico, por meio dos indicativos de que existiria igualdade, mesmo que maquiadas as diferenças de classe e os conflitos inerentes.

Hoje, todos os brasileiros são iguais. O patrão e o operario são do mesmo tamanho. O Estado, isto é, o Brasil, é que é maior do que ambos. E por isso tem a autoridade necessaria para resolver as divergencias entre os dois. O menino sabe o que é uma divergencia? Não, o menino não sabe. Já viu uma briga entre irmãos? Pois isso é uma divergencia. Todos os brasileiros são irmãos. O Brasil não quer que os seus filhos, irmãos brasileiros, briguem uns com os outros. O Brasil não quer coisas feias. O Brasil não quer divergencias. Aí está mais uma razão pêla qual O BRASIL É BOM (D.N.P., 1938, seção 2).

A alusão a divergências, brigas ou ‘coisas feias’ remete à análise de trechos do livro em que se vislumbram os aspectos que, conforme argumenta Stoppino (1998), ajudam a classificar os tipos de ditadura, ao focalizar especialmente a natureza do poder que se buscou estabelecer, ou seja, considerando os instrumentos de controle e o grau de sua penetração no tecido social. Vislumbram-se traços de uma ditadura totalitária, por empregar “[...] meios coercitivos tradicionais, [...] tendo assim condições de controlar completamente a educação e os meios de comunicação e também as instituições econômicas” (Stoppino, 1998, p. 375). Ademais, porque uma das marcas de um regime desta natureza é a forte e contínua presença de propaganda, que penetra de modo capilarizado, consorciada à ação de aparelhos políticos policialescos e aterrorizadores, os quais impõem à população a aceitação do regime. Tais alegações permitem, em diálogo com Santos (2012), uma caracterização de certas operações do Estado Novo a práticas de fascistização, pois ao analisar edições de um jornal escrito por crianças entre 1941 e 1944, documentos da legislação educacional, relatórios de inspeção escolar e atas, sua pesquisa identifica expressões fascistas inseridas no currículo de escolas elementares do sul brasileiro sob a ditadura: “Como atividade do currículo, o envolvimento infantil na elaboração do jornal escolar poderia colaborar para a formação dos cidadãos de que necessitava o Brasil. No Estado Novo, a educação escolar se prestou à construção nacionalista idealizada pelo projeto fascista de Getúlio Vargas” (Santos, 2012, p. 137). Em suma, quero dizer que:

Além disso, pode exercer uma pressão propagandística permanente e penetrar em cada formação social, e até na vida familiar dos cidadãos, suprimindo qualquer oposição e até as críticas mais leves, através de especiais aparelhos políticos, de polícia e de terror, impondo assim a aceitação entusiástica do regime a toda população (Stoppino, 1998, p. 375).

Emerge a coerção, que pode ser associada às violências de vários matizes, exposta no texto ou então tacitamente proposta e legitimada quando se vincula às instituições que teriam exatamente tal função na forma de governar apresentada à infância, o que na narração da seção 15 se traveste como ’defesa’ do Brasil.

O Brasil necessita, para a sua defesa, como acontece com todos os povos, de suas fôrças armadas. Quais são as fôrças armadas do Brasil? São o seu Exército e a sua Marinha. O Brasil tem, ainda, outras fôrças, que são as Polícias Militares dos Estados, os Corpos de Bombeiros, que constitúem reservas do Exército Nacional, e a Marinha Mercante, que é reserva da Marinha de Guerra, e a Aviação Civil, que é reserva da Aviação Militar.

O Exército e a Marinha constitúem instituições nacionais permanentes, organizadas sôbre a base da disciplina hierárquica e da fiel obediência á autoridade do Presidente da República, para a defesa da ordem, do regime e da integridade territorial da Pátria, em caso de agressão estrangeira (D.N.P., 1938, seção 15).

Aproveita-se ainda dessas afirmações para conformar um modelo de homem - o soldado - que por dever está afiliado à ordem estabelecida e, inclusive, é capaz de dar a vida em nome da segurança do Estado e da defesa da Pátria. A violência é tratada como um dever, como uma atitude tanto desejável como geradora de recompensas, além do que tal empenho geraria a heroicização.

O dever do soldado e do oficial é manter a ordem e empenhar a própria vida em pról da segurança do Estado e da defesa da Pátria. Si o soldado ou o oficial falta a êsse dever, é considerado traidor da Pátria e perderá a sua patente, ou pôsto, sendo julgado e punido pêlo seu crime.

O bom soldado do Brasil não pratica crime contra a segurança do Estado (D.N.P., 1938, seção 15).

Identifico aqui mensagens que orientam para a militarização do menino leitor. Aliás, na seção 16 d’O Brasil é Bom, a condição para se tornar um soldado da pátria está na narração que, de início, afirma que todos os brasileiros têm ‘encargos e obrigações’ com a segurança nacional, que é assim descrita: “Entende-se por segurança nacional a defesa do país. Para defender o seu país cada brasileiro deve estar pronto a pegar em armas, a sacrificar a sua própria vida [...]”, ao que se seguem as linhas em que se afirma que o Brasil não é um país ‘belicoso’ e nem ‘guerreiro’, já que “A nobreza das suas tradições está no que elas traduzem como expressão de pacifismo” (D.N.P., 1938, seção 16). Curiosamente, nesta mesma parte do livro, ressurge uma argumentação com terminologia rebuscada, pouco palatável para uma criança, em que o termo ‘arbitragem’ solicita explicações para o convencimento de que o Brasil é ‘pacifista’:

O Brasil sempre foi o campeão da arbitragem. Que se entende por arbitragem? É isto: a solução de uma questão internacional de maneira pacífica, sem apêlo ás armas. Dois países escolhem um árbitro, ou juís, que será uma nação igualmente amiga de ambos. Essa nação, por meio de um representante seu, resolve a questão. Essa doutrina do Brasil se tornou vitoriosa. E o seu triunfo valeu ao nosso país a fama de nação pacifista (D.N.P., 1938, seção 16).

E mesmo com o uso de redação que anuncia dificuldades para o entendimento do leitor infantil, a narrativa prossegue ao dizer que temos um país pacifista, que deseja manter uma política de boa vizinhança e cordialidade com todas as nações. Mas logo vem o alerta, com o uso do termo ‘soberania’, ou seja, mais uma novidade na linguagem indigesta no glossário do livro: “Mas o Brasil, mesmo animado dêsses propósitos de paz, não consentirá nunca que seja ofendida a sua soberania. Não tolerará nenhum dano moral nem territorial. Para fazer valer a sua soberania, dispõe das fôrças armadas e das suas reservas” (D.N.P., 1938, seção 16). A pedra de toque presente sob o invólucro ideológico é uma conclamação para que todos se tornem soldados, já que a condição de ser um bom brasileiro e de ser um soldado são equivalentes, e é um dever nos engajarmos na formação de caráter militar: “Cada cidadão brasileiro deve ser um soldado. Por isso mesmo, todos os bons brasileiros devem cumprir seus deveres militares, prestando o serviço regulamentar no Exército ou na Marinha, ou conquistando a carteira de reservista nos Tiros de Guerra e Escolas de Soldados dos estabelecimentos de ensino” (D.N.P., 1938, seção 16).

Se considerarmos que ser um soldado implica ‘pegar em armas’, o convite à luta e ao emprego da violência em nome da pátria e no combate aos inimigos estão num limiar, ou seja, num lugar dado como caminho de entrada para o menino brasileiro. Desta feita, associo tal conteúdo ao teor de Avventure e spedizioni punitive di Pinocchio, título que pode ser traduzido como Aventuras e expedições punitivas de Pinóquio, outra das pinocchiate, em que o boneco realiza um roubo e empreende uma caçada aos comunistas com um revólver em punho, condições para obter a carteirinha de fascista, ações entranhadas num enredo que possibilita interpretar tais feitos como evidências de patriotismo. Nessas situações, mesmo um boneco pode vir a ser um balilla.

O livro narra as ações do boneco, que vive com o pai adotivo, um sapateiro patriota, para conseguir a carteirinha de fascista. Em sua primeira ação ele impede a publicação de um periódico comunista roubando a máquina para impressão da gráfica do jornal e na segunda ele sai à caça de comunistas levando nas mãos um revólver de brinquedo construído pelo pai (Netto, 2019, p. 136).

E no caso dessa obra literária infantil italiana, o fundo ideológico das mensagens é reforçado pelo desenho da capa: “[...] mostra um Pinóquio que não esconde o sorriso enquanto enfia goela abaixo do barbudo um vidro de óleo de rícino. O revólver ficou de fora da ilustração, o que Pinóquio empunha é uma espada de pau” (Netto, 2019, p. 136). As aventuras do boneco destinado a punir, que são cuidadosamente retratadas, trazem ao receptor as sugestões de como agir diante de um dos primeiros alvos do regime fascista, o comunista. Segundo Curreri (2008), os personagens comunistas são apresentados como hipócritas, covardes e desinteressados quanto à sorte do povo, o que leva Pinóquio a se dedicar a traquinagens cada vez mais cruéis para aterrorizar os ‘vermelhos’. A caça aos comunistas equivale às brincadeiras de criança!

Na busca por elementos que possibilitam um cotejamento entre as tramas das pinocchiate e os conteúdos d’O Brasil é Bom encontro, na seção 8, uma correspondência significativa quanto a uma visão com traços em comum quanto aos ataques ao comunismo:

O comunismo é um extremismo. Mas nem só os comunistas são extremistas. Ha outros extremistas, tão perigosos como êsses. São os que querem implanta no Brasil o fascismo, copiado de partidos estrangeiros. O Brasil não precisa de regimes importados, porque o Brasil é quem manda na casa do Brasil. Por isso, êle tem um regime que é seu. Uma fórma de govêrno que é sua (D.N.P., 1938, seção 8).

As ações de Pinóquio, assim como as do menino brasileiro no devir de tornar-se soldado, buscam inspirar o heroísmo. Portanto, outro componente do texto do livro O Brasil é Bom dedicado à figura do soldado traz um rol de heróis nacionais a serem copiados.

O Exército tem seus grandes heróis, como Caxias, Osorio, Tiburcio, Villagran Cabrita, Sampaio, Camisão e Câmara, e a Marinha vultos gloriosos como Barroso, Tamandaré, Marcilio Dias, Greenhalgh e tantos mais. O soldado e o marinheiro dignos da farda que vestiram êsses heróis são fieis defensores da ordem, da lei e da Pátria (D.N.P., 1938, seção 15).

Fica evidente o apelo para que as crianças se tornassem pequenos soldados, perspectiva que, sob a ótica da fascistização, buscava se consolidar e ganhava força no contexto educativo. Temos exemplos disso nas muitas imagens de crianças e jovens empunhando armas que foram produzidas e veiculadas pelo fascismo italiano em fotografias, cartões postais e até mesmo no cinema. Pode-se assim conhecer, com detalhes, o processo de construção do cidadão-soldado na Itália fascista por intermédio da Opera Nazionale Balilla, que foi criada em 1926 e atuou até 1937 na educação militar, física, social e moral de crianças e jovens entre seis e 18 anos, sendo que dos seis aos 13 os meninos eram Balilla, dos 14 aos 18 integravam os Avanguardisti. Cabe recordar que, ao frequentar qualquer escola pública, todos estavam obrigatoriamente inscritos nas organizações do fascismo, já que se começaria desde cedo a empunhar o moschetto, um tipo de fuzil que para os mais novos era replicado em madeira, mas para os demais consistia numa arma de fogo portátil, de cano curto, leve e fácil de manejar:

A partir de 1930, os meninos passaram a realizar atividades com moschetto. Os Balilla, cuja idade não permitia o manuseio de armas de fogo, usavam réplicas em madeira, enquanto os Avanguardisti utilizavam armas de verdade. Com o acessório nos ombros executavam evoluções militares como marchar, correr, mirar, se colocar no chão com postura de tiro, etc. Os jovens do grupo dos Avanguardisti, cuja idade já permitia um treinamento militar mais avançado, tinham aulas de tiro e praticavam com metralhadoras de tipo leve (Rosa, 2009, p. 629).

A Opera Nazionale Balilla foi depois substituída pela Gioventù Italiana del Littorio, na qual “[...] os meninos italianos receberam uma educação militar voltada para a guerra e onde aprenderam a ser verdadeiros soldados” (Rosa, 2009, p. 623).

Dados tais aspectos constituintes do conteúdo d’O Brasil é Bom, pode-se afirmar de que tal literatura serviu às finalidades de inculcação ideológica do Estado Novo. Como ratifica Santos (2014), foi um período de investimentos na propaganda destinada à infância, também encontrada em escritos escolares tais como cadernos, livros, jornais, atas e panfletos, gerando condições de fascistização por meio do currículo. Infere-se, portanto, quanto à presença de âncoras do fascismo, que transmitem para o menino a naturalização da violência social e de suas expressões. Compreendo que esses conteúdos do livro O Brasil é Bom se assemelham àqueles das pinocchiate fascistas, que de acordo com Netto (2022) foram expressões de um projeto educativo com finalidade instrumental de dominar, convencer e doutrinar:

O projeto educacional se constituiu em dispositivo de dominação e veículo de reprodução do Estado, objetivado por meio de artifícios de convencimento que buscavam se adequar ao público ao qual se destinavam, as crianças, de forma a permitir que as mensagens fossem compreendidas e aceitas. Parte importante do instrumental mobilizado para a construção do ideário fascista se organizou no campo da linguagem, do discurso e da narrativa. Os espaços da infância foram tomados e em torno das crianças italianas foi sendo construído um rígido aparato de doutrinação (Netto, 2022, p. 315).

Há o predomínio de uma narração especialmente desenvolvida para o público infantil, cujo teor ideológico e doutrinador é dirigido ao menino para que atue como um protagonista, tendo como justificativa e orientação ideológica para suas ações a retórica da fascistização. Descortina-se O Brasil é Bom como uma das ferramentas de propaganda do Estado Novo, bem representada pela metáfora contida num estudo que analisa a formação escolar da infância sob o regime de Vargas, que compara o fascismo brasileiro a um remédio ministrado ‘gota a gota’ às crianças, com o que se esperavam resultados formativos alinhados aos propósitos do poder ditatorial: “Deste modo, no âmbito do Estado Novo brasileiro, a campanha elaborada sob a vigorosa condução de Getúlio Vargas chegou às escolas elementares do sul do Brasil como um remédio cuidadosamente ministrado ao menino doente, inoculando ‘gota a gota’ as ideias de um nacionalismo de cores fascistas (Santos, 2010, p. 336, grifo do autor, tradução nossa3) E um refinamento dessa inoculação de veneno fascistizante no menino é encontrada na parte do livro que justifica a existência, naquele momento da história do Brasil, da pena de morte, que estaria assentada na base constitucional estadonovista. Tal conteúdo, escancarado na seção 12, está calcado em comparações que auxiliariam a entender que a pena de morte foi naturalizada e que ela não é motivo de vergonha em outros países, mesmo que esses fossem estados liberais, fascistas ou comunistas.

A Constituição do Brasil diz que a lei póde prescrever a pena de morte para vários crimes. Pena de morte? Sim, senhor. O menino não fique espantado. A pena de morte não é para o bom cidadão. Não é para o bom brasileiro. Nada disso. A pena de morte é uma garantia para a ordem e para a vida de todos os brasileiros. Não podemos dizer que a pena de morte envergonha o Brasil.

Os Estados Unidos teem pena de morte e os norte-americanos não se envergonham disso. A Inglaterra tem a pena de morte e não se envergonha disso. A Alemanha tem pena de morte. A Italia tambem tem pena de morte. A Russia tem pena de morte também. Estados liberais, Estados fascistas e Estado comunista, todos teem pena de morte (D.N.P., 1938, seção 12).

Se não caberia ao menino ficar ‘espantado’, denuncio o espanto quanto a esse conteúdo embutido num opúsculo destinado à circulação entre a infância e que, por extensão, chegaria às famílias brasileiras. É uma das mais candentes amostras do instrumental linguístico empregado n’O Brasil é Bom que objetiva a elaboração do ideário fascista. Além de pregar que a adoção da pena de morte não deveria causar nem espanto nem vergonha, o texto refina ao argumentar que tal medida não se aplicava ao bom cidadão brasileiro. Contudo, se percebe uma contradição interna, possivelmente não perceptível a alguns leitores ao assegurar que “A pena de morte é uma garantia para a ordem e para a vida de todos os brasileiros” (D.N.P., 1938, seção 12). Além disso, é notória a busca por enaltecer e dar peso à argumentação que naturaliza a pena de morte, o que é feito com a inserção de uma lista de países onde matar para punir era permitido, cada um deles classificado conforme o respectivo regime de governo: os Estados Unidos e a Inglaterra, tidos como ‘Estados liberais’; a Alemanha e a Itália, os ‘Estados fascistas’; e como não poderia faltar, a Rússia, um ‘Estado comunista’. A questão da pena de morte é introduzida na narrativa como se o livro fosse um inocente e despretensioso texto ficcional destinado à infância, como seriam, sob a ótica fascista, as pinocchiate.

A força mais ou menos implícita dos escritos dessa natureza me faz retomar aspectos da discussão quanto à experiência literária infantil proposta por Soares (2015), o que estimo pode ao menos auxiliar a especular sobre como se dão os processos de formação do leitor criança, sobre que tipo de leitor se deve formar e ainda em relação ao papel do professor e de outros adultos na lida com a diversidade de textos gerados e utilizados no ambiente sociocultural, notadamente na escola. E ao lado disso, também conduz ao questionamento quanto ao potencial de imposição de modelos e de eventual dominação e submissão que a linguagem presente no texto literário destinado à infância pode suscitar. Por exemplo, se a pena de morte é apresentada ao menino brasileiro como uma solução razoável, qual o alcance dessa mensagem no processo de sua sensibilização? Arrisco-me, sem qualquer pretensão de esgotar as possibilidades responsivas, mas trazendo uma preliminar problematização, a mencionar o estudo de Amparo (2023, p. 10), que, embasado na teoria literária, mostra que os sentidos que a leitura ganha nas tramas do cotidiano depende das ações de professores e alunos, que revelam pontos de vista socialmente estruturados e que geralmente questionam os imperativos escolares, e conclui que o que estrutura a legitimidade na escola do conteúdo literário “[...] varia entre as posições docentes e discentes, pois as primeiras baseiam-se no valor da literatura por ela mesma, enquanto patrimônio e forma artística, ao passo que os alunos afirmam a legitimidade da ficção com base na possibilidade de evasão, entretenimento e circunstâncias de identificação com suas vidas”.

Sob uma perspectiva analítica mais ampla, estimo que cabe ainda ressaltar alguns dos aspectos da controversa política de relações exteriores de Vargas e seu grupo de comando durante o Estado Novo. Quanto aos Estados Unidos, numa retrospectiva em que apresenta um quadro sinótico da organização burocrática do Ministério das Relações Exteriores, Schwartzman (1983) sublinha o que chama de tradição secular das relações internacionais, que desde a Revolução de 1930, com a ação do Governo Provisório então liderado por Getúlio Vargas, teria deixado clara sua orientação quanto aos métodos de sua política exterior, o que acentuou uma colaboração mais íntima e particular com as nações americanas, na busca por conformar a união dos países do continente e organizá-la diante das ameaças da situação da Europa, o que fez com que o Brasil seguisse, no continuum histórico, “[...] de mãos dadas com os Estados Unidos” (Schwartzman, 1983, p. 290).

Chamo a atenção para o fato de que esse fator histórico escamoteia as aproximações de Vargas tanto com Mussolini como com Hitler, que precederam a sua total adesão aos Estados Unidos, em 1942, no decurso da II Guerra Mundial. E especialmente quanto às aproximações com o Reich nazista, e para ilustrar quanto à espécie de relacionamento que o líder do Estado Novo e seu staff desenvolveram com o império alemão, trago à luz o conteúdo memorialístico em que a filha de Getúlio Vargas transcreve o teor de cartas que escreveu ao pai sobre a visita feita à Alemanha em 1937:

Não tenho a menor dúvida de que este país se prepara para a guerra e guerra próxima. Dois gigantescos oficiais da Guarda Negra, às ordens de mamãe, nos acompanharam dia e noite e nos fazem visitar as obras do Führer. Fomos ao Ginásio de Hitler: os exercícios físicos a que se submetem meninos de 13 e 14 anos visam exclusivamente a adestrá-los para combater. Rastejam no chão como se estivessem se movendo em um campo de batalha, sob metralhadoras. Atravessam estreitos e longuíssimos tubos de ferro como para habituar os olhos à escuridão, os pulmões à precariedade de ar puro e o corpo à exigüidade de uma trincheira. Lançam pedras, pedaços de madeira e objetos pesados a grandes distâncias, como quem lança uma bomba. Escalam muralhas de 2 a 3 metros com a rapidez e o silencia de quem assalta uma posição fortificada (Peixoto, 1960, p. 283).

Ratifico também a argumentação de Santos (2014), que ao desvelar diversas das formas com que a infiltração fascistizante chegou às escolas primárias na ditadura getulista, tais como a promulgação de legislação educacional, as inserções de conteúdo alinhado ao regime nos livros adotado, a exigência e o controle de rituais cívicos de matiz nacionalista e o uso da ginástica, aponta a semelhança entre os projetos de formação infanto-juvenil do fascismo italiano e do nazismo alemão: “Do mesmo modo, o Estado Novo reservara um lugar à infância e juventude brasileiras às quais propunha conformar. [...] visavam incutir obediência e respeito, circunscritos numa perspectiva de militarização infantil” (Santos, 2014, p. 184).

Ainda sobre os alinhamentos e simpatias existentes entre o Estado Novo brasileiro e o fascismo italiano, assim como com o nazismo alemão, há ponderações a fazer. Opto, inicialmente, por referenciar um estudo que tem como uma variável central para a análise das bases relacionais entre o Brasil de Vargas e a Itália de Mussolini a grande quantidade de imigrantes italianos e de sua descendência na América do Sul. Neste caso, a extensa abordagem que Trento (2005) faz do potencial de expansão do fascismo italiano no Brasil evidencia que o fenômeno contou com esses expatriados não apenas como veículo de penetração comercial e cultural, mas também como instrumentos de política externa. Mostra-se que, apesar do inicial ataque de Mussolini à política imigratória dos governos precedentes, desde a segunda metade dos anos 1920, a simpatia e adesão ao fascismo italiano foram gestadas por vários caminhos, recordando que haviam, como base precedente, além da considerável quantidade de imigrantes que haviam se instalado desde as últimas décadas do século XIX: a implantação de um conjunto de empreendimentos associativistas ítalo-brasileiros, inclusive com a formação de Fasci em algumas partes do Brasil meridional, nutridos com generosas doações a frentes e institutos locais; a busca por impregnar o conceito de latinidade de origem romana para conformar uma grande família étnica que irradiaria da Itália de Mussolini para a América Latina, contrapondo-se ao pan-americanismo de Washington; o pequeno incremento das trocas comerciais; as atitudes benévolas da Igreja católica de além oceano e dos párocos imigrados; a conversão de membros do corpo diplomático e o crescimento das agências consulares; a adesão dos denominados ‘tios da América’, como os Matarazzo, Crespi, Morganti e Martinelli e sua liderança local; a liberação do complexo de inferioridade dos imigrantes italianos e de seus descendentes devido ao prestígio na cena internacional que o fascismo assumiu; a simpatia dos segmentos médios e da pequena burguesa comerciante de São Paulo, parcela que tinha acesso à imprensa periódica italiana que enaltecia o regime; o alcance que a campanha de expansão do fascismo teve entre massas populares urbanas e rurais; o uso da propaganda, com a criação de um mercado editorial com publicações em português e em italiano que circularam ilustrando a filosofia e as realizações fascistas; e, por fim, ao explicitar elementos do relacionamento entre Mussolini e Vargas, que, em certa medida, estava conectado à origem do integralismo:

A sintonia com Vargas explica porque o governo de Roma tardou tanto a apoiar a Ação Integralista Brasileiro, partido que reclamava para si o fascismo, seja nos sinais exteriores (camisas verdes, reuniões, etc) seja na doutrina política. Na verdade, somente em 1936 o corpo diplomático parece mais interessado em estabelecer o grau de fidelidade ao modelo de Roma do que a analisar qual podia ser o papel da AIB na cena brasileira (Trento, 2005, p. 42, tradução nossa)4.

Ocorria ainda que, segundo tal ótica, havia certa competição, com base numa questão identitária, entre o integralismo e a implementação dos Fasci com influência italiana no Brasil, pois mesmo que o primeiro funcionasse como uma descendente mais ou menos legítimo do fascismo, o integralismo atraía muito mais para suas fileiras os descendentes de italianos, inclusive com a obtenção de contribuições financeiras. Então, essa natureza constitutiva dos dois movimentos era objeto de atenção, dados os interesses de manutenção no controle de poder da parte de Vargas, o que criava uma situação fluida, senão de ambiguidade:

[...] ele decidiu se concentrar nos fundamentalistas, apoiando-os com uma contribuição mensal de 50.000 liras, mas esse novo endereço não afetou as relações cordiais com Vargas. De fato, a situação brasileira, naquela data, parecia bastante fluida e parecia que o chefe de Estado mantinha laços com os camisas verdes, a ponto de fazer pensar em uma colaboração futura, em relação a qual, aliás, havia expectativa do próprio Mussolini, que desejava que isso se traduzisse no surgimento, no subcontinente, de um grande Estado totalitário, oposto aos Estados Unidos. O regime podia, assim, manter boas relações com ambos, mas se a situação resultasse na ascensão ao poder apenas do integralismo, legalmente (as eleições seriam realizadas em 1937 e Vargas não poderia constitucionalmente participar delas) ou ilegalmente, era essencial para o fascismo ter crédito junto à AIB, para repelir a intromissão nazista e para excluir ou mitigar os riscos de uma política fortemente nacionalista, além, obviamente, de influenciar as diretrizes da política externa e para fortalecer a presença econômica e comercial da Itália (Trento, 2005, p. 43, tradução nossa)5.

Por conseguinte, cabe problematizar a presença no Brasil de um ambiente histórico em certa medida propenso a acatar orientações de fascistização, assim como existia o flerte de Vargas com as vertentes brasileiras do fascismo. Ao lado disso, considerem-se também as aproximações do Estado Novo com a Alemanha nazista, que foram percebidas desde o golpe que instalou a ditadura getulista.

Efetivamente, exatamente em novembro de 1937, Vargas e a cúpula das Forças Armadas puseram em ação um golpe e inauguraram o Estado Novo, que, para dizer com as palavras de um ex-embaixador, era um ‘Estado sindical, corporativo, autoritário’, apreciadíssimo por Roma e Berlim, cuja perplexidade dizia respeito, no mínimo, à falta de envolvimento da Ação Integralista Brasileira, da qual, em todo caso, parecia ser a derivação ideológica. (Trento, 2005, p. 43-44, grifo do autor, tradução nossa)6.

Acrescente-se que, de acordo com Trento (2005), a situação das relações comerciais entre Brasil e Alemanha esteve em crescimento desde o final dos anos 1920, o que implicou no fato de que as trocas entre os dois países, na segunda metade dos anos 1930, dobrassem de valores, o que traz mais elementos para entendermos um contexto em que o ideário nazifascista encontrava condições de se impregnar.

Sobre a alusão à Rússia, apresentada ao leitor menino como Estado comunista, pode ser analisada à luz de uma perspectiva sócio-histórica quanto à categoria comunismo, conjugada à compreensão da sua negação, o que foi manifesto pelo anticomunismo brasileiro. Quer dizer que o conteúdo do livro O Brasil é Bom é especialmente demarcado pela dimensão político-ideológica, naquele momento como reivindicação da liderança estadonovista absolutamente descomprometida com seu uso conceitual e que serviu como um aditivo às demais narrações ideológicas. De acordo com Oliveira (2021), os primeiros sinais de anticomunismo no Brasil estão situados na terceira década do século XX e apareceram como reação à criação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que se deu em 1922, e que estava vinculada à Internacional Comunista, embora não se possa vislumbrar qualquer possibilidade real de avanço do comunismo no Brasil à época. No entanto, há um entendimento de que foi exatamente durante a Era Vargas, compreendida entre 1930 e 1945 e que inclui o período ditatorial do Estado Novo, que aspectos contextuais contribuíram, com certo vigor, para o anticomunismo brasileiro, o que teria nutrido o discurso e a atuação anticomunista da parte do Estado Novo.

Um segundo momento histórico decisivo foi a Intentona Comunista de 1935. Personificada na liderança de Luís Carlos Prestes, capitão do Exército Brasileiro que aderiu ao comunismo, a Intentona foi um movimento contra o governo autoritário de Getúlio Vargas, que se conformou contando com, pelo menos, a Aliança Nacional Libertadora (ANL), o PCB e o apoio da Internacional Comunista [...]. Neste momento, diferentemente da década anterior, o movimento que buscava o comunismo no Brasil percebia chances reais de sucesso. Mesmo assim, por uma série de motivos, os intentos perderam forças e fracassaram (Oliveira, 2021, p. 148).

Como decorrência, posso acrescentar aos nutrientes ideológicos que estão postos no conteúdo destinado à infância n’O Brasil é Bom com a finalidade de construir a percepção do comunismo como um verdadeiro monstro. Trago um excerto em que se pretendeu tanto caracterizar o comunismo como uma forma de governo associada ao mal, à escravidão, à infelicidade e à miséria. E se tal adjetivação poderia penetrar no campo de compreensão da linguagem por parte da criança leitora, por outro lado é introduzida através de uma redação rebuscada e hermética, em que se emprega o termo organização e mais um conceito a ser compreendido, o de ‘regimes de importação’. Então, de acordo com a seção 7:

O Brasil é bom na sua organização atual. Essa organização não deve ser alterada nem substituida. O que é bom deve ser conservado. No Brasil não cabem regimes de importação. Que são regimes de importação? São fórmas de govêrno de outros povos, diferentes do nosso, com outros problemas que o Brasil não tem. O comunismo é um mal. No Brasil não ha logar para o comunismo. Que é comunismo? É o regime de escravidão que reduziu a Russia á miseria. A Russia é um país infeliz. Lá, impera o comunismo. O Brasil é um país feliz. Néle, o comunismo não encontra logar.

O comunismo foi implantado na Russia num momento de desespêro. País onde a fome reinava, nasceu um regime que visava dividir por todos, não só os bens como as terras. Mas, como o país era, pobre, os pobres não melhoraram e os ricos peoraram. O comunismo foi a divisão da miseria por todos. E o Estado passou, na Russia, a ser um patrão odioso e cruel de todos os homens, quando o fracasso do comunismo se patenteou (D.N.P., 1938, seção 7).

Fundamental é ainda lembrar que uma das alegações para o golpe que implantou a ditadura getulista no Brasil foi a suposta existência do Plano Cohen - uma ameaça terrível que conjugaria comunistas e judeus num atentado à segurança dos brasileiros -, apresentada em meio ao potente discurso ordenador do Estado Novo, e que, a exemplo do que se verifica no conteúdo d’O Brasil é Bom, outorgava ao regime autoritário a posição de “[...] intérprete dos sentimentos da pátria e do povo brasileiro [...]” (Carneiro, 1999, p. 329), ou seja:

Essa tenebrosa torrente foi apresentada à opinião pública no dia 30 de setembro de 1936 como um terrível monstro que, escondido nos subterrâneos da sociedade, planejava um violento golpe articulado com invisíveis forças internacionais. Batizado de Plano Cohen, esse monstro - inventado pelo Ministério da Guerra - colaborou para alimentar dois mitos políticos: o do ‘complô internacional comunista’ atrelado ao mito da ‘conspiração judaica internacional’ cuja essência havia sido inspirada nos ‘Protocolos dos sábios de Sião’, traduzido e comentado pelo anti-semita Gustavo Barroso (Carneiro, 1999, p. 329-330, grifos do autor).

Destaco, novamente, a frequência do termo trabalho, que nos trechos analisados é geralmente consorciado ao dever e é condição para a felicidade, exceto se a orientação política da nação fosse o comunismo. Aliás, a condição de vir a ser um trabalhador trazida no discurso para o ‘menino brasileiro’ é apresentada como liberdade de escolha profissional, em oposição ao que acontecia com o ‘menino russo’, já que este vivia num lugar em que tudo é negado ao indivíduo, inclusive ‘ser o que deseja’:

No Brasil, si o menino quer ser aviador, será aviador. Si o menino quer ser médico, será médico. Na Russia, o menino russo quer ser engenheiro, mas o Estado acha que já ha muito engenheiro e mando o menino trabalhar numa mina, cavando o chão. Um menino russo quer ser aviador, mas o Estado acha que já ha muito aviador e manda o menino contrariado, cuidar de um rebanho de carneiros. A liberdade de escôlha de profissão ou do gênero de trabalho é assegurada pêla Constituição do Brasil. Mas, na Russia, o comunismo nega tudo ao individuo e ele nem siquer consegue ser o que deseja.

Aí está mais uma razão por que o comunismo é máo e por que o Brasil é bom (D.N.P., 1938, seção 7).

Verifica-se mais um elemento em comum entre o teor anticomunista do livro O Brasil é Bom e o enredo de Pinocchio fra i balilla, traduzido por Pinóquio entre os balilla, uma das pinocchiate cujo enredo central é a luta contra aquele que era considerado o grande inimigo.

Pinocchio fra i balilla foi escrito por Cirillo Schizzo e publicado em 1927. A trama tem início com as estripulias de Pinóquio que acabam por levá-lo à prisão. O encarceramento, mais a insistência do amigo Succianespole, um orgulhoso balilla, fazem com que Pinóquio reflita sobre a possibilidade de se tornar ele também um jovem adepto ao regime. A distribuição de chocolate e o acesso gratuito ao cinema estão entre os recursos utilizados para o convencimento de Pinóquio (Netto, 2019, p. 136).

De acordo com Curreri (2008), essa é a história que mais se aproxima do conto de fadas original de Collodi, uma vez que traz a mesma estrutura de narração, em que o menino antes travesso se torna educado, em que o fantoche se transforma em criança, embora a trama traga todos os esforços, inventividade e inteligência de Pinóquio para que todos os seus companheiros se convertam em balilla, condição em que encontrariam a realização. Pinóquio se alinha ao fascismo e assim propõe sua contribuição para a educação das crianças menores.

Já no texto d’O Brasil é Bom, a pretensa liberdade de escolha do destino profissional pelo menino brasileiro, que pode sonhar em ser aviador ou médico, acena para a criança como uma possibilidade aventuresca, assim como o irreverente e também aventureiro boneco Pinóquio alcançou lugares inimagináveis e realizou feitos: “Foi domador, ciclista, corsário, boxeador, escritor, inventor. Viajou para o Polo Norte, para o continente africano, esteve no País das Maravilhas e até mesmo na lua” (Netto, 2019, p. 131). Felicidade significa o menino viver no Brasil e não na Rússia!

Essa linguagem, que pretende inocular a ideologia do contexto em relação ao mundo do trabalho, é encontrada em vários outros pontos, chegando a 52 ocorrências, em boa parte delas amalgamadas à representação do trabalhador. Destaco um excerto em que a condição de ser trabalhador, ou seja, de ser operário, está vinculada ao amor e ao respeito pelo país, assim como à defesa da ordem e da justiça: a condição para ser um bom brasileiro é, afinal das contas, aquela alcançável somente pelo brasileiro que trabalha: “Um bom brasileiro ama o seu país. Trabalha pêla grandeza do Brasil. Conhece o Brasil e respeita as suas leis. Defende a ordem e a justiça. Um operário (sic) é um bom brasileiro? Sim, ‘menino’, um operário (sic) é um bom brasileiro porque é um brasileiro que trabalha” (D.N.P., 1938, seção 2, grifo nosso).

Essa busca por retratar dado fundo social, que seria querido por todos, é um dos pressupostos da redação cujo intento doutrinador serviria para que o menino leitor naturalizasse o fato de que pertence a uma linhagem de operários, embora as condições para ser trabalhador no novo tempo que se anunciava possibilitariam que tanto o menino como seu pai partilhassem de um momento histórico com menos injustiças, pois agora havia ‘DIREITOS’, termo que será repetido ao longo do texto outras 29 vezes. Deste modo, tal realidade social, condicionada a regras de hereditariedade, seria aquela perceptível ao ‘menino’, conforme o seguinte:

‘O pai do menino é um operario. O pai do pai do menino tambem foi um operario’.

Quem é o pai do pai do menino? É avô do menino. O menino sabe que o avô foi pobre e se queixou de injustiças. Mas o pai do menino já não é tão pobre. Por que? Porque o pai do menino já tem DIREITOS. O direito é a riqueza do homem honesto e trabalhador (D.N.P., 1938, seção 2).

Destaco que durante o Estado Novo, especialmente no âmbito das idéias políticas vinculadas à questão do trabalho, é sobrelevado o tratamento das relações entre trabalho e riqueza e entre o trabalho e a condição de cidadão, com implicações quanto ao entendimento sobre ser pobre. Conforme explica Gomes (1999), criou-se uma estratégia político-ideológica voltada ao combate à pobreza, com foco em exaltar o valor das atividades laborais, que bebeu no liberalismo clássico a associação entre o trabalhar e a riqueza e cidadania:

É a partir daí que podemos igualmente detectar - em especial durante o Estado Novo (1937-45) - toda uma estratégia político-ideológica de combate à ‘pobreza’, que estaria centrada justamente na promoção do valor do trabalho. O meio por excelência de superação dos graves problemas socioeconômicos do país, cujas causas mais profundas radicavam-se no abandono da população, seria justamente o de assegurar a essa população uma forma digna de vida. Promover o homem brasileiro, defender o desenvolvimento econômico e a paz social do país eram objetivos que se unificavam em uma mesma e grande meta: transformar o homem em cidadão/trabalhador, responsável por sua riqueza individual e também pela riqueza do conjunto da nação.

O trabalho, desvinculado da situação de pobreza, seria o ideal do homem na aquisição de riqueza e cidadania. A aprovação e a implementação de direitos sociais estariam, desta forma, no cerne de uma ampla política de revalorização do trabalho caracterizada como dimensão essencial de revalorização do homem. O trabalho passaria a ser um direito e um dever; uma tarefa moral e ao mesmo tempo um ato de realização; uma obrigação para com a sociedade e o Estado, mas também uma necessidade para o próprio indivíduo encarado como cidadão (Gomes, 1999, p. 55, grifo do autor).

O Brasil é Bom também dedica uma de suas 30 narrações a ensinamentos relacionados à oferta de educação escolar, apresentada como responsabilidade do governo através do mantenimento de instituições com tal finalidade: frisa que o saber ler é um dever do bom brasileiro e que a ausência de instrução torna o homem infeliz e incapaz para atuar em profissões favoráveis, e que era necessário distanciar os brasileiros da ‘sua própria ignorância’:

O menino para ser um bom brasileiro deve tambem saber lêr. Um homem sem instrução é um homem infeliz, porque não possúe habilitação capaz para o exercicio de muitas profissões vantajosas e sofre constantemente com a sua própria ignorância. Por isso, o govêrno não quer que haja brasileiros que não saibam lêr. Porque o govêrno não quer? Porque o govêrno é amigo dos brasileiros e não gosta da ignorância. Porque o govêrno não gosta da ignorância é que mantém escolas e universidades, facilitando a educação da juventude. A Constituição do Brasil considera a educação integral da prole o primeiro dever e o direito natural dos páis (D.N.P., 1938, seção 9).

Curiosamente, esta parte do conteúdo estabelece uma corresponsabilidade quanto à educação dos filhos, ou nos termos do texto, da ‘prole’, entre o Estado e os pais. Neste caso, percebe-se ainda que, apesar das pretensões de apresentar um texto simplificado para o entendimento, em diversas ocasiões a redação recorre a explicar a terminologia empregada.

Que é a prole? O menino não sabe. A prole de um casal são os filhos. O menino e seus irmãosinhos são a prole de seus páis. Todos os páis teem o dever de educar os filhos. A educação é uma riqueza que o pai pobre transmite ao seu filho. É uma herança que vale mais que o dinheiro, porque a instrução habilita o individuo a vencer na vida.

O pai que não educa o seu filho é um máo pai. Um máo pai é um máo brasileiro. O pai que abandona seu filho á ignorância desrespeita a Constituição, cometendo uma falta grave. Ninguem deve alegar pobreza para justificar a falta de instrução. Si o pai é pobre, póde pedir o auxílio do Estado, isto é, do Brasil, para a educação de sua prole. A Constituição lhe garante êsse direito (D.N.P., 1938, seção 9).

Por sua vez, na última seção se encontra uma redação que busca dar um tom recapitulativo e, ao mesmo tempo, concludente. Os principais aspectos, que novamente vêm à tona, são: a riqueza e fortaleza do país; a existência do regime adequado e redentor do Brasil, o dito Estado Novo.

Eis aí um panorama da vida brasileira, um confronto do Brasil de ontem com o Brasil de hoje. O Brasil é rico. O Brasil é forte. O Brasil tem, por isso, direito a ser feliz, próspero, respeitado. Que faltava ao Brasil para isso? Um regime adequado ás suas necessidades. Uma fórma de govêrno que correspondesse aos anseios nacionais. Esse regime, essa fórma de govêrno, o Brasil a tem agora. O Estado Novo representa êsse ideal, com um imperativo de salvação do país (D.N.P., 1938, seção 30).

E logo na sequência, nos últimos parágrafos, encontra-se a alusão àquele homem tão necessário para a condução da pátria, que encarnava a figura suprema do regime ditatorial estadonovista: Getúlio Vargas, o Chefe.

Criado o novo regime, revelou-se, com êle, o Chefe de que necessitava o Brasil, o guia de que carecia a nacionalidade. Esse Chefe e êsse guia é Getulio Vargas, o homem que confia e crê no futuro da Pátria, que promove a felicidade dos brasileiros e que teve a coragem de romper com os êrros do passado, para reformar o sistema de govêrno do país num áto de alta significação, prestigiado pelas fôrças armadas, fortalecido pela opinião pública, dando orientação nova á vida brasileira.

Brasileiros!

Eis aí o regime que convém ao Brasil e o Chefe que convém ao regime: o Estado Novo e Getulio Vargas. O regime forte e o Chefe enérgico e sereno, o regime correspondendo aos reclamos da conciência nacional e o Chefe correspondendo ao espírito e ás necessidades do regime (D.N.P., 1938, seção 30).

Identifico nesse estilo redacional a mesma fórmula de expressão literária que é apresentada no livro Il Grande Nocchiero (Fiori, 1932), cujo título pode ser traduzido como O Grande Timoneiro. Adotada uma perspectiva de análise manualística - já que se trata de um impresso fruto da propaganda produzida no ambiente social do fascismo italiano e destinado ao uso nos meios escolares - aponto que este volume de 160 páginas, salpicado com algumas ilustrações relacionadas ao regime que o concebeu, apresenta uma textualidade que, especialmente quanto à linguagem, objetivava causar no leitor um complexo de emoções e sentimentos desejáveis naquele contexto histórico.

Portanto, conforme apontam Badanelli e Cigales (2020) na apresentação de um dossiê sobre as questões metodológicas concernentes à manualística, que o escrutínio dos manuais como objetos e fontes de investigação ajuda a questionar, tanto sob perspectiva histórica como sociológica, os processos educativos engendrados, à medida que se considerem conjugações metodológicas que incluam, entre outros aspectos, a análise de conteúdo e as disputas entre os diversos agentes sociais e políticos envolvidos na constituição do campo educacional. No caso desse manual italiano, a estrutura adotada e que justifica o seu título fica mais que evidente quando se analisa o índice, que é composto por três grandes partes, cada uma delas subdividida em várias pequenas lições, cujos títulos integram um conjunto harmônico de frases inexoravelmente associadas ao ideário fascista: La Nave Sbandata (O navio desorientado), Il Grande Nocchiero (O Grande Timoneiro) e Sulla Sicura Rotta (Na Rota Segura). Obviamente, tal roteiro sugere que, até a chegada do fascismo, a Itália era um navio sem controle, que a atuação do líder máximo funcionava perfeitamente no governo da embarcação e ainda que, como consequência, a nação tomou o rumo certo, passou a progredir com segurança. E é de acordo com tal lógica que a segunda parte é introduzida com uma ilustração que representa um musculoso Mussolini sem camisa, que segura vigorosamente o timão em meio a um mar bravio, ao que se segue o subtítulo Chi operò il miracolo?, ou seja, Quem operou o milagre?

Quem pode realizar o milagre de uma mudança tão rápida e profunda?

Um homem só: MUSSOLINI!

Um homem só! Os que virão depois de nós, mesmo as novas gerações do próximo século, lendo das glórias do Fascismo e do seu Duce, terão de pensar que temos, talvez por um fenômeno de sugestão coletiva, exaltado desmesuradamente o Homem e a sua obra: pelo tanto que esta parece superar as forças humanas e as possibilidades humanas. Então, quem é este Homem lendário?

Benito Mussolini, a grande figura de estadista e de líder dos povos que resume em si as mais altas virtudes da gente de estirpe itálica, que por mil cúbitos se agiganta sobre os mais ilustres homens de todas os países e de todos os tempos, Benito Mussolini que a Divina Providência quis dar à Itália para sua salvação imediata e para suas fortunas futuras, não é senão um autêntico filho do povo, embora se voltando no tempo se possam encontrar entre seus antepassados homens que tiveram origens nobres e que deram prestígio à Itália nas armas, nas letras e nas ciências (Fiori, 1932, p. 41-42)7.

Considerações finais

Com o desenrolar da aplicação da análise de conteúdo d’O Brasil é Bom, ficou evidente que apesar da pretensa intenção de se comunicar com o leitor infantil, o objeto do livro pressupõe que há um determinado tipo de leitor a receber o texto e um desejado conjunto de mensagens a ser assimilado. Todavia, cabe a ressalva de que a recepção deste texto literário está associada ao questionamento acerca de como uma criança produz sentido.

Devido ao contexto em que o livro foi produzido, a ditadura do Estado Novo comandada por Getúlio Vargas, em que foi criado um departamento de propaganda, a narração é marcada, em vários momentos, por uma complexidade fraseológica, apesar do fato de que o leitor seria o ‘Menino’ brasileiro. Ou seja, resulta um afastamento da estabilidade sintática e semântica que, em vários casos, se alia à impossibilidade de descrever com precisão ao leitor infantil o contexto e a intencionalidade com que uma palavra é utilizada, por vezes numa mescla de termos de difícil compreensão e que, por consequência, requer novas explicações para não tornar a redação incompreendida e gerar distanciamento do seu objetivo doutrinador.

Mesmo assim, a aplicação da metodologia da análise de conteúdo possibilitou identificar os termos de maior ocorrência, os quais também nutriram, em diálogo com o referencial teórico eleito, o conjunto de interpretações que me permite afirmar sobre equivalências entre a textualidade d’O Brasil é bom e as pinocchiate produzidas no ambiente do fascismo italiano. Isto porque se as tramas em que o boneco Pinóquio foi envolvido em nome da propaganda fascista são recheadas de mensagens para a infância italiana, que apelam para um embasamento constituído por violências e preconceitos de diversos tipos em relação aos inimigos do regime mussoliniano, em diversas das seções do livro brasileiro examinado se verifica que os conceitos, as explicações, assim como os alertas e as ordens em relação aos fundamentos da ação humana sugeridos ao menino brasileiro são nutridos por ingredientes igualmente fascistizantes.

Nas histórias italianas, diferentemente da versão original em que o boneco acaba mal, Pinóquio sai sempre vitorioso porque aderiu ao ideário fascista, caminho de sua redenção. Comparativamente, no livro O Brasil é Bom os conteúdos têm a pretensão de apresentar tudo aquilo que O menino quer saber, que O menino não sabe ou, em vários momentos, reitera o que O menino sabe! Mas sempre de acordo com a ideologia presente naquele contexto autoritário.

Concluo que, tanto quanto as pinocchiate fascistas, o livro O Brasil é Bom traduz um projeto educativo que pretendeu utilizar diversos materiais de uso escolar e orientados para o consumo infantil como dispositivos de dominação e de inculcação ideológica. A análise dos conteúdos presentes sinaliza para as pretensões de fascistização que as formas da linguagem construtoras dos discursos e das narrações buscavam alcançar à medida que as mensagens fossem compreendidas, aceitas e internalizadas pelo menino leitor e até mesmo por sua parentela. Se, de ou lado, as pinocchiate buscaram se legitimar enquanto literatura de ficção, com o objetivo de seduzir enquanto entretenimento e possibilidade de evasão, tudo isso associado à simpatia gerada pelo boneco aventureiro, o conteúdo do livro O Brasil é Bom necessita ser entendido como inoculador de um ideário hoje indesejado, mas que, à época, pretendia agir para a desconstrução de perspectivas de formação alinhadas à defesa dos direitos humanos, da justiça, da paz e da democracia. O Brasil é bom é expressão de um fascismo à brasileira.

Deixo esta contribuição como mais um elemento para a continuidade das discussões sobre a formação da infância, porque essa tem por base a busca pelo contínuo desenvolvimento de perspectivas sobre a literatura que, à luz do conhecimento histórico crítico, e enquanto pesquisadores, professores e famílias de todos os tipos, apresentaremos nos lares e nas escolas. Mais que isso, fica um alerta para aqueles descrentes da contínua ação histórica dos que levantam suásticas e outros símbolos vinculados às expressões contemporâneas do fascismo. Infelizmente, novas formas de atuação política vêm emergindo e tentam revigorar os mitos fascistas e suas bandeiras. O Brasil que entendo como Bom não é aquele apresentado por qualquer tipo de ditadura, e jamais se aproxima de qualquer forma histórica que o fascismo assumiu, quaisquer que sejam seus líderes!

Referências

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Recebido: 31 de Julho de 2023; Aceito: 10 de Outubro de 2023

*E-mail: ademir.santos@ufsc.br

INFORMAÇÕES SOBRE O AUTOR Ademir Valdir dos Santos: Pedagogo, Mestre (1999) e Doutor em Educação pela UFSCar (2003). Pós-Doutor em Educação pela Universidade Tuiuti do Paraná. Atualmente é Coordenador do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Gestão Universitária na Universidad de Alcalá de Henares, Espanha. Foi estagiário do Departamento de Sociologia da Universitá degli Studi di Padova, Itália. Interesses de pesquisa: campo da História da Educação, com ênfase na História de Instituições Escolares, embasado pelo tratamento teórico e metodológico da instituição escolar sob perspectivas histórica e etno-histórica, como nos estudos sobre escolas de imigrantes alemães. Outros objetos de pesquisa: cadernos escolares, livros escolares e história das disciplinas escolares. É membro do Instituto Memória e Direitos Humanos da UFSC. É líder do Grupo de Pesquisa GEPHIESC - Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação e Instituições Escolares de Santa Catarina. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5958-689X E-mail: ademir.santos@ufsc.br

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