Introdução
O presente trabalho tem como objeto de estudo a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor - Funabem, criada pela Lei nº 4.513 (1964), no período da Ditadura Militar, que esteve vigente até os anos 1990, quando foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei nº 8.069, 1990).
Temos como objetivo principal compreender a relação entre trabalho e educação na ação socioeducativa da Funabem. Para tanto, buscamos identificar os fins e os meios educativos apontados nos documentos da Funabem; analisar a relação existente entre a proposta da Funabem e a Ideologia da Segurança Nacional que ampara as políticas de Estado no período do Regime Militar; e desvelar o vínculo ideológico existente entre as propostas de assistência e educação para crianças e adolescentes pobres e a preparação de mão de obra barata para o mercado de trabalho.
O estudo desenvolvido nos permitiu compreender a relação entre as categorias Trabalho, Educação e Pobreza, tendo como recorte temático a educação da infância pobre, e como recorte temporal o período do Regime Militar no Brasil. Entendemos que a análise detalhada da proposta de educação para crianças tidas como desvalidas e delinquentes no âmbito da Funabem nos permitirá compreender o caráter limitado, esvaziado e perverso da educação para pobres que acena para a mais explícita negação da formação humana
Trata-se de uma pesquisa de caráter teórico e documental e está amparada nos pressupostos teóricos e metodológicos do Materialismo Histórico e Dialético. Nessa perspectiva, o indivíduo é considerado como ser de múltiplas determinações, constituído na relação entre objetividade e subjetividade. Os problemas em análise precisam ser tratados como fenômeno cuja essência não se revela facilmente, por isso, a necessidade de se considerar as contradições e a historicidade, partindo do real para se chegar ao concreto, que é a elevação desse real ao nível mais elaborado da consciência, para em seguida retornar ao real, agora em condição qualitativamente superior.
Dessa compreensão, decorreu a necessidade de realizarmos um estudo teórico sobre as bases ontológicas do trabalho e da educação, tendo como suporte a obra Para uma ontologia do ser social, de Georg Lukács (2007, 2013), o que nos permite afirmar que realizamos uma análise onto-histórica. De acordo com a Ontologia de Lukács, o trabalho é o fundamento do ser social. Todas as sociedades, desde as comunidades primitivas até o capitalismo mais desenvolvido, foram organizadas a partir do trabalho, entendido como a atividade que sintetiza a expressão subjetiva dos indivíduos, que articula aquilo que foi planejado na sua consciência com a objetividade material do mundo e dá origem a um produto antes inexistente. Logo, o trabalho é o ato de produzir o novo. Entretanto, nas sociedades de classe, o trabalho, o ato gênese do ser social, por ser explorado, tornou-se uma atividade penosa, degradante e aniquiladora das potencialidades humanas.
Com base nessa perspectiva, buscamos a gênese ontológica do fenômeno em estudo, o que nos levou a começar pela compreensão da origem e função do Estado moderno (Engels, 2009; Mészáros, 2011, 2015). Empreendemos estudo, também, sobre os elementos históricos que marcaram a criação da Escola Superior de Guerra (ESG), no Estado Novo de Vargas e durante o Regime Militar, período de criação da Funabem (Germano, 2011; Becher, 2011; Bazílio, 1985; Rossato, 2008), bem como sobre a história da infância pobre, com base em Rizzini (1997), Venâncio (1999), Marcílio (2006) e Santos (2017).
No que se refere à segunda etapa da pesquisa, qual seja, a análise documental, analisamos o discurso de autoridades políticas, jurídicas e religiosas na ocasião do I Fórum Nacional do Menor, realizado no Estado de São Paulo, em 1965, cujos Anais foram publicados em 1966, para compreendermos o vínculo ideológico estabelecido entre a proposta educativa da Funabem e sua relação com o mercado de trabalho. Como técnica de análise desse material, optamos pela análise textual orientada por Moraes (2003), por se configurar em uma técnica organizada com base nos seguintes elementos: a desestruturação dos textos, o agrupamento de partes semelhantes, a definição de relação entre os elementos agrupados e a categorização.
No processo de desmontagem dos textos, realizamos leitura a fim de desmembrar partes que interessam ao estudo, na medida em que isso nos permite fazer interpretações e construir significações, considerando o objeto de estudo. Em seguida, procedemos com a unitarização dos dados, etapa que se refere a um processo de aglutinação dos recortes que expressam o conteúdo em investigação, considerando os objetivos que nos propomos a alcançar. Após a unitarização, realizamos o processo de organização das informações colhidas em grupos caracterizados pela aproximação de ideias e significado, para possibilitar a etapa seguinte, que é a de categorização. Essa etapa constitui-se como momento de confrontamento entre as unidades determinadas no início do processo de análise e, posteriormente, direciona-se para os agrupamentos de componentes semelhantes. Desse modo, o agrupamento de elementos que se aproximam forma as categorias, que necessitam ser nomeadas e bem delimitadas, de forma que no percurso de construção seja de fácil visualização a ideia constituída pelos elementos, seus sentidos e significados, sendo gradativamente estruturada com maior rigor e precisão (Moraes, 2003).
As categorias analíticas da presente pesquisa foram divididas em duas, sendo a primeira nomeada de ‘Concepção construída a respeito da criança pobre denominada ‘menor’’, e a segunda de ‘Educar a criança pobre (tida como ‘menor’) para quê?’. Ambas foram estruturadas a partir da aproximação semântica dos discursos centrados no ‘menor’, com o apoio de duas vertentes de elementos que apresentaram similaridade. O resultado desse processo foi a elaboração de quadros demonstrativos que nos permitiram realizar a análise e a interpretação dos dados, situando-os no contexto histórico devido, sempre recorrendo à teoria previamente definida. Isso nos permitiu, de ponto de partida, entender o que representou a Funabem e sua relação com a ideologia dominante no período dos ditos anos de chumbo.
A FUNABEM e a ideologia da segurança nacional
Para compreendermos os fins de uma educação de caráter estatal ofertada a crianças e adolescentes pobres, inseridos em um ambiente de privação de liberdade, faz-se necessário estudarmos a origem do Estado e sua função nas sociedades de classes, bem como sua relação com as situações de pobreza.
A esse respeito, Engels (2009) explica que o surgimento do Estado coincide com o surgimento das classes sociais, com o período de dissolução das comunidades gentílicas, e está vinculado desde o início com a necessidade de regulamentar a propriedade privada e validar os interesses de alguns indivíduos que, pela força e pelo convencimento, buscam se sobrepor aos demais. Assim, o Estado centraliza o poder e toma as decisões que antes, nas comunidades tribais, eram definidas de forma coletiva.
Nesse sentido, o Estado, nas diversas sociedade e momentos históricos distintos, considerando todas as especificidades, assume a função de garantir os privilégios de poucos em detrimento de muitos. Conforme Mészáros (2011, 2015), o Estado atua buscando uma aparente conciliação dos interesses da maioria trabalhadora e da minoria exploradora, no sentido de garantir a ordem e a paz social. Para tanto, age pelo convencimento, tentando equilibrar interesses antagônicos, ou pela coerção, usando de todos os instrumentos, inclusive da violência, para abrandar os conflitos e estabelecer a ordem vigente. Isso explica por que em momentos de crise o Estado é chamado a dar respostas, de modo que pode oscilar entre os formatos mais democráticos ou os ditatoriais.
No que se refere ao Brasil, Germano (2011) explica que a adoção de modelos ditatoriais é algo recorrente. O uso das Forças Armadas em momentos de crises é utilizado desde meados do século XIX, de modo que o exército se travestiu de diversas roupagens durante a história, assumindo diferentes características em cada momento de mudanças muito bruscas vividas em nosso país. Em um primeiro período, que compreende os acontecimentos de intervenção militar de 1888-1889 e de 1930, assumiu um caráter mais progressista. Já as intervenções de 1937 e de 1964 trazem consigo um perfil antidemocrático (Germano, 2000).
Em épocas anteriores a 1964, a intervenção militar tinha caráter emergencial, com pouca duração. A partir desse momento, os militares viram a possibilidade real de se instalarem de forma direta e duradoura no governo, e implantaram um regime autoritário e violento com duração de 21 anos (1964 a 1985).
A crise política e social que culminou com o golpe teve seu momento de agravamento no início dos anos 1960, com o aprofundamento da crise econômica, o agravamento da separação entre capital e trabalho, o aumento da pobreza e o acirramento da luta de classes. Isso foi determinante para a organização e mobilização dos trabalhadores urbanos e rurais. Vários movimentos surgiram e o país mergulhou no caos. Esse cenário coloca em alerta não apenas a burguesia, mas também a classe média e o alto comando militar, que passam a agir em várias frentes, tentando frear o congresso e barrar as reformas consideradas de base (Germano, 2011).
Jânio Quadros, a essa época presidente, tentou superar a crise com o apoio do Fundo Monetário Internacional. Realizou arrochos salariais, depreciou o valor da moeda, entre outras medidas que tiveram efeito inverso ao pretendido, o que provocou revoltas e protestos populares (Mazzeo, 1995).
Nesse contexto de crise, vários acontecimentos foram relevantes para o golpe, dentre eles: a revolta dos sargentos em setembro de 1963, a inflação que subia vertiginosamente, o combate à reforma agrária, o recrutamento de aliados fardados pelas classes dominantes, o movimento conhecido como ‘Marcha da Família com Deus pela liberdade’ e a incorporação da ideologia da segurança nacional. Esses acontecimentos culminaram na intervenção militar de 1964 (Germano, 2000).
Trata-se de um período fortemente marcado por censura, perseguições, torturas, exílios e assassinatos. A inflação chegou a 80% ao ano, o crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB) alcançou apenas 1,6% ao ano, as taxas de investimento no país foram quase zero. Com isso, o governo passou a adotar várias medidas, dentre elas, a política de recessão, diminuição do ritmo das obras públicas, redução dos subsídios do petróleo e dos itens da cesta básica, o que diminuiu as oportunidades de crédito interno e levou muitas empresas à falência (Germano, 2000).
Apenas no governo de Castello Branco (1964-1967) a inflação baixa, chegando a 23%, porém, o custo de vida ainda é alto. Entre 1968 e 1973, o país experimentou o chamado milagre econômico. Grandes obras foram iniciadas como indicativo do crescimento do Brasil e de sua economia. Empresários e burguesia de modo geral experimentaram um momento de grande crescimento.
Entretanto, permanece gritante a concentração de renda, visto que apenas 4% da população brasileira, no eixo Rio de Janeiro e São Paulo, chegava a ganhar acima de 6 (seis) salários-mínimos, o que desencadeou uma absurda desigualdade social. Portanto, os ricos ficaram mais ricos e os pobres ainda mais pobres (Germano, 2000).
Tudo isso repercutia no campo da educação e da cultura, assim como da comunicação e da assistência social. Nesse momento ocorre um maior investimento em cursos técnico-profissionalizantes, pondo em evidência uma educação de caráter tecnicista. Isso evidencia o que Saviani (2008) denomina de vinculação entre a educação pública e os interesses e necessidades do mercado.
Impactavam a educação os ideais da Escola Superior de Guerra (ESG), alicerçados na ideologia da segurança nacional. A ESG havia sido criada em 1949, um período também marcado por conflitos ideológicos e instabilidade política no Brasil. Ressaltam-se as ideologias militares na qual uma primeira corrente defendia a atuação das forças armadas apenas no âmbito externo, ficando, assim, alheios aos problemas políticos internos nacionais; enquanto outra corrente acreditava que, em certos momentos, a intervenção militar se fazia necessária na política nacional. Essa vertente não tinha ligação com as classes dominantes do país, e propunha um intenso programa de reformas econômicas, políticas e sociais no âmbito nacional. Por fim, havia um terceiro viés, que estava voltado para uma atuação mais popular das forças armadas nas questões políticas e sociais. Essa corrente era composta de militares mais radicais (Oliveira, 2010).
A ideologia da Segurança Nacional difundida pela ESG buscava garantir a prevalência dos objetivos de desenvolvimento nacional que, por estar embasada no modelo estadunidense, estava comprometida com o capitalismo, portanto, oponente do comunismo. Assim, qualquer grupo que professasse ideias contrárias ao modelo adotado no país e aos objetivos traçados deveria ser reprimido ou aniquilado. Aí reside o poder intervencionista das forças armadas para garantir a ordem preestabelecida.
O intuito era garantir o controle de todos os setores sociais como forma de se ter uma unidade de pensamentos e ações por parte de todos os cidadãos a partir do modelo de desenvolvimento proposto. Esse processo seria dirigido pelas elites nacionais, pois, para os pensadores da ESG, somente aquelas seriam capazes de conduzir a nação ao alcance dos Objetivos Nacionais Permanentes que resultariam no bem-comum. Assim, consolida-se o processo de desenvolvimento econômico elitista nacional garantido institucionalmente pela ESG, que procurava coibir, suprimir ou liquidar qualquer forma de manifestação contrária ao modelo de desenvolvimento adotado no país, isso quer dizer: combate à propaganda comunista e às práticas consideradas subversivas.
O trabalho de consolidar a imagem do regime vigente após o golpe de 1964 foi massivo, tanto na área da Assistência Social, Educação e Comunicação Social, inclusive com contratação de profissionais e agências de propaganda para mobilizar a opinião pública a fim de perceber o modelo vigente como forte e uno, quanto fazendo uso da mídia para divulgar a imagem de um ‘Brasil Grande’, ou seja, um Brasil forte, próspero e indivisível (Bazílio, 1985).
A ideologia da segurança nacional disseminada pela ESG influenciou diretamente as políticas sociais implementadas para dar estabilidade ao regime, sobretudo no que se refere à assistência. Isso porque, concomitantemente ao desenvolvimento econômico e ao crescimento da desigualdade social, cresce, conforme Becher (2011), o número de crianças e jovens vivendo nas ruas dos grandes centros urbanos. Foi nesse contexto que se instituiu a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), pela Lei nº 4.513 (1964), vinculada ao Ministério da Previdência e Assistência Social, cuja política de bem-estar do ‘menor’ estava vinculada às políticas de Desenvolvimento Nacional e de Segurança Nacional. A fundação se propunha a atender ‘menores’ submetidos a situações de desamparo social e/ou atos de delinquência. Ela propõe atendimento aos ‘menores’ imersos em situação de marginalização. Considerando o período de 1967 a 1972, cerca de 53 mil crianças foram atendidas em regime de internato em todo o país (Becher, 2011).
Conforme Bazílio (1985), os primeiros documentos importantes relacionados à política da Funabem são ‘a Nova Política do Bem-Estar do Menor’ e as ‘Diretrizes e Normas para Aplicação da Política do Bem-Estar do Menor’, datados de 28/01/1966 e 10/06/1966, respectivamente. Os documentos buscam superar o improviso e implantar uma lógica profissional na Fundação. Conforme o pesquisador, “[...] as necessidades básicas do ‘menor’ agora são definidas como saúde, amor, compreensão, educação, recreação e segurança social” (Bazílio, 1985, p. 50). Utilizam constantemente termos médicos para explicar os fenômenos sociais, visto ser mais conveniente para o sistema optar pela compreensão do problema e apontar soluções de base terapêutica.
Um dos objetivos da Funabem era formar um ‘conhecimento modelo’ sobre a problemática do ‘menor’, desse modo, desempenhava atividades, ainda que teoricamente, sob dois vieses fundamentais: a reparação e prevenção das situações que levavam o ‘menor’ a apresentar comportamento indesejado por meio de medidas terapêutico-pedagógicas, com o intuito de reintegrá-lo ao convívio social (Becher, 2011).
O desenvolvimento da ordem social, para os ideólogos da Fundação, era percebido como uma deformidade causada pela evolução do processo industrial e pela modernização da sociedade, de modo que se enxergava o ‘menor’ como vítima desse processo, por estar à margem do que se considera coerente (Becher, 2011).
Pressupõe-se, então, um atendimento individualizado, e embora os problemas de ordem econômica fossem apontados, toda a base do discurso se assentava na ideia do fortalecimento da família. As causas do abandono do ‘menor’ são compreendidas como sendo provocadas pela desestrutura e desorganização familiar, pela promiscuidade etc. Nesse sentido, afirma Bazílio (1985, p. 50),
A família, em última análise, é apresentada como a principal responsável pelo processo de desagregação e o consequente abandono dos filhos. Em nenhum momento questões fundamentais como distribuição de renda, mobilidade social, bem-estar social, acesso a emprego, educação, hospitais, são colocados como alternativas para explicação do problema. A proposta, além de moralista, revela um profundo desconhecimento da realidade de vida e dos valores das classes sociais dominadas, na medida em que pretende criar os cursos ou outros mecanismos para preparar para o casamento.
Essa perspectiva moralizante comumente presente em governos ditatoriais é denunciada por outros pesquisadores que se dedicaram a estudar a Funabem. Segundo Becher (2011), as ações da Funabem sustentam-se no tripé ‘pátria, Deus e família’. Permeiam seus documentos a visão funcionalista de sociedade, cuja organização social é compreendida como o corpo humano que precisa ser tratado e curado do problema da marginalidade, tomado como distúrbio, enfermidade. Compreende-se que a sociedade é boa, a doença está no indivíduo marginal, uma vez que o fundamento do seu processo de marginalização está na incapacidade de se adaptar à sociedade (Bazílio, 1985). Desse modo, as medidas paliativas, a assepsia e a adaptação dos desajustados são apontadas como solução para o problema da crescente violência nos grandes centros urbanos.
Os pressupostos propagados pela Funabem tinham como base um caráter de devoção e sacrifício, amparados na fé, por meio de discursos moralizantes com o objetivo de propagá-los sobre todo o território nacional, de maneira a dar a entender que havia uma grande preocupação com a delicada problemática do ‘menor’ (Becher, 2011).
A ideia da imersão do ‘menor’ no mercado de trabalho, por meio de oficinas profissionalizantes, amparava-se na justificativa de que o trabalho serviria como ferramenta de reinserção social dos adolescentes, para que a partir disso se tornassem sujeitos relevantes para a nação. Nesse sentido, as unidades de atendimento deveriam garantir escolaridade e preparação para o mercado de trabalho, de modo a deixar claro, por meio dos discursos, que a Fundação possuía um caráter educacional, e não prisional (Miranda, 2017).
Durante o período e 1964 a 1974 foram assistidos pela Funabem 290.000 casos sob o comando estadual; e entre 1971 a 1973 foram atendidos 157.201 ‘menores’, por meio de 2.430 órgãos de atendimento. Desses, mais da metade encontrava-se no Sudeste do Brasil, curiosamente a parte mais rica e desenvolvida economicamente (Rossato, 2008).
Esses números expressivos, relacionados aos atendimentos oferecidos, levou ao entendimento de que seria necessário um aparato mais estruturado para dar continuidade aos serviços. Desse modo, em meados de 1970, o discurso proferido dava conta de que se deveria reformar o Código do Menor de 1927. Com o passar do tempo este foi ganhando visibilidade e adeptos, com a finalidade de buscar melhores meios para precaver e corrigir os agentes da marginalização juvenil (Rossato, 2008).
O novo Código de Menores, promulgado pela Lei nº 6.697 (1979), evidencia a Doutrina da Situação Irregular, de modo que a partir disso crianças e adolescentes, classificados em situação ilegal, passam a ser sujeitos suscetíveis a sofrer intervenção do Juizado de Menores, que não fazia sequer discriminação entre o ‘menor’ infrator e o ‘menor’ abandonado (Silva, 2011). As políticas estatais desenvolvidas a partir de então, tendo como foco as crianças e os adolescentes pobres, estavam amparadas nesse código e caminharam em duas direções: uma de perspectiva preventiva e outra de caráter interventivo, apresentadas a seguir.
As concepções de infância pobre no discurso das autoridades: perigosa ou imprestável
A análise bibliográfica e documental nos permite afirmar que a política nacional do bem-estar do ‘menor’ desdobra-se de forma gradual por meios de duas linhas de ação. A primeira é a terapêutica, constituída por um conjunto de ações interventivas destinadas a atender os ‘menores’ definidos como carentes e os de condutas consideradas antissociais. A segunda é a preventiva, composta por programas que visavam atender crianças e adolescentes que se encontram em vias do processo de marginalização. A linha interventiva é de âmbito mais restrito, uma vez que os programas assistencialistas não comportavam grande quantidade do público considerado marginalizado. Já a linha preventiva era de maior amplitude, pois as ações desenvolvidas na comunidade permitiam o alcance de um maior número de beneficiados. Com base nessas duas linhas, a Funabem classifica os seus programas como interventivos e preventivos.
Seguindo uma tendência comum, predominante em outros momentos históricos, a proposta da Funabem que assume a responsabilidade pelo problema do ‘menor’ ou pelo ‘menor-problema’ dá continuidade à perspectiva higienista prevalente nas políticas de assistência e de educação destinadas a crianças pobres.
Historicamente, as ações direcionadas à criança pobre, em especial àquela tida como desvalida ou delinquente, mostram-se efetivamente insipientes, esvaziadas e, em muitos momentos, extremamente perversas. A carga ideológica que se expressa nessas ações e nos discursos das autoridades adota a lógica de culpabilização do indivíduo, própria da perspectiva liberal. Nesse cenário, culpa-se os miseráveis por suas misérias, uma vez que se apresentam como incapazes e desajustados, às vezes vítimas, às vezes culpados, de modo que precisam ser vigiados, moldados, contidos, e a sociedade, por sua vez, precisa ser saneada, para conter a ameaça que esses indivíduos representam.
A visão que se tem sobre a criança são ideias instituídas sob o viés histórico que, em consequência, vem se modificando ao passar dos anos e apontando perspectivas diferentes de acordo com os interesses e intenções sociais acerca do que se deseja obter, dando a elas tratamentos assistenciais de acordo com sua classe social. No caso da criança pobre, dita desvalida, a ideia de assistencialismo aponta para medidas compensatórias, desprovidas de quaisquer ações que visem a emancipação humana (Dorigo & Nascimento, 2007).
No contexto de criação e implantação da Funabem, construiu-se uma concepção de criança pobre perigosa, nomeada como ‘menor’, sem discutir as situações que a levaram a se tornar um indivíduo à margem das condições de vida digna em sociedade, e quais seriam as soluções que canalizariam para a resolução do problema.
A Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor - Funabem surge no contexto da ideologia da segurança nacional, em que as políticas sociais estavam atreladas a ela, pois à medida que o país se desenvolvia economicamente, a sociedade crescia em número e em desigualdade. O quantitativo de jovens e de crianças nas ruas só crescia nos grandes centros urbanos, contexto que propiciou a criação da Lei nº 4.513 (1964), que institui a Funabem com o intuito de atender aos ‘menores’ em condições de desvalimento social, associados ou não a práticas delituosas.
Durante todo o período da ditadura militar, o tratamento e as políticas assistencialistas destinadas à criança pobre tiveram caráter meramente auxiliar, excludente e discriminatório, por meio das quais o Estado estabeleceu uma relação de objetificação do ‘menor’. Acreditava-se que o dito ‘menor’ era objeto de posse da segurança nacional, visto que crianças pobres eram desprovidas de cultura, conforme o modelo de sociedade convencionado da época (Guimarães, 2017).
Essa perspectiva de inferiorização da criança pobre está contida nos documentos da Funabem. No I Fórum do Menor, realizado em 1964, os discursos das autoridades também apontaram nessa direção. A análise revelou que dos 11 discursos publicados, 6 apresentaram a criança pobre como perigosa, enquanto 5 a apresentaram como carente ou imprestável.
A criança tida como perigosa
Dentre as concepções sobre a criança pobre, expressas nos discursos das autoridades durante o I Fórum do Menor, a que aparece de forma mais expressiva é a ideia de criança perigosa. Dos seis discursos que apontam nessa direção, selecionamos três para representar, conforme segue:
Vivendo em extrema penúria, muitas vezes sendo testemunha de graves problemas morais dos seus pais como a embriaguez e o adultério, resultantes das próprias condições de indigência, sem oportunidade de se educarem, essas crianças se transformarão em futuros marginais, quando a morte não os ceifa prematuramente (João Roma - Secretário do Interior e Justiça do Estado do Pernambuco apud Governo do Estado de São Paulo, 1966, p. 23).
É evidente [...] favelas e ‘cortiços’ são foco fecundo de ‘menores’ desajustados, desvalidos e delinquentes (Virgílio Távora - Governador do Estado do Ceará apud Governo do Estado de São Paulo, 1966, p. 60, grifo nosso).
[...] o Governo do Estado quando olha para uma criança que está em abandono ou se transviou, para uma criança que é um ‘delinquente juvenil’, procura olhá-lo em função do que pode ser amanhã, como ser útil à sua comunidade (Alberto Carlos de Azevedo Klumb - Diretor Geral de Assistência Social do Rio Grande do Sul apud Governo do Estado de São Paulo, 1966, p. 88, grifo nosso).
Para essas autoridades, as crianças pobres são potencialmente indivíduos perigosos, marginais, desajustados, transviados, delinquentes, por isso, precisam ser moldados a fim de não contaminarem ou ameaçarem a ordem social. Demonstram compreender as condições de privação em que se encontram, o fato de viverem em locais periféricos, carentes de serviços básicos como saneamento, saúde, segurança, dentre outros elementos que os tornam muito vulneráveis. Tal perfil é apresentado como problema não apenas para o presente, mas, sobretudo, para o futuro. Um dos maiores receios dessas autoridades é que esses ‘menores’ fossem motivo de custos a longo e ininterrupto prazo para o Estado. Por essa razão, revelam uma preocupação em transformar essas crianças ‘delinquentes’ em adultos economicamente ativos, de forma a exercerem uma atividade lucrativa não apenas para si, mas, principalmente, para a nação.
Na contramão do que afirmam, a proposta da Funabem mais se aproxima de um modelo de cunho prisional do que educativo. Não se percebe interesse em recuperar essas crianças e adolescentes por meio de propostas educacionais que lhes garantam algum tipo de elevação intelectual. A ideia não é inseri-los no mercado de trabalho por meio de atividades que lhes possam garantir posições econômicas e sociais confortáveis.
Além do perigo iminente relacionado a essas crianças, João Roma, à época Secretário do Interior e Justiça do Estado do Pernambuco, afirma que o desajustamento é caracterizado não apenas pelos comportamentos delituosos ou pelo ambiente familiar hostil. Também são retratados de forma depreciativa os locais em que essas crianças estabelecem domicílio, como favelas e cortiços, pelo fato de estarem desamparadas pelas políticas sociais do Estado.
Do mesmo modo, Virgílio Távora, então Governador do Estado do Ceará, afirma que as condutas sociais, como embriaguez e adultério, presentes nesses ‘lares desajustados’, são causadores de deformação do caráter dessas crianças e adolescentes. Por essa razão, tornavam-se delinquentes, infratoras e consequentemente perigosas.
O suporte destinado a essas crianças, conforme Guimarães (2017), apresenta um caráter assistencialista e discriminatório, de forma que o poder estatal considera o ‘menor’ como objeto de posse do Estado. A segurança nacional o possuía, portanto, cabia ao Estado articular ações de seu interesse e sob sua ótica, o que desconsidera a particularidade de cada criança, como também negligencia a causa matriz do problema.
Pela ideologia da segurança nacional, disseminada pela ESG, que tinha como intuito assegurar ao Estado o controle de todas as instâncias sociais, de modo a unificar ideias e pensamentos, o ‘menor’ que se encontrava nessas condições corresponde a uma fração da sociedade que vive em desacordo com o que se presume como ideal. A dita ‘criança delinquente’ ultraja toda e qualquer ordem estabelecida, torna a sociedade heterogênea, o que contraria chefes de Estado e religiosos.
Como afirma João Roma, Secretário do Interior e Justiça do Estado do Pernambuco, o ‘menor’ é um indivíduo em estado de penúria, que mesmo em situação desfavorável, apresenta-se como ameaça por ser testemunha dos imbróglios familiares ao presenciar más condutas morais. Tal cenário criava os condicionamentos para o ingresso dessas crianças no mundo do crime, portanto, eram potencialmente marginais.
Além de personalidades políticas, líderes religiosos utilizavam trechos bíblicos para se referir a essas crianças como criaturas miseráveis, que somente com o amparo do Estado e de instituições ligadas a correntes religiosas teriam oportunidade de superar essa situação de desamparo. Embora essa situação se devesse à própria estrutura social desigual em que as famílias se encontravam, isso não se expressa nos discursos desses líderes. Pelo contrário, o que fica evidente é que tal situação é negada com base em argumentos rasos, desconsiderando importantes fatores e reafirmando a proposta do governo vigente.
Em meio a ideia de que a criança em situação de rua já havia recebido o estigma que a coloca como perigosa, infratora, ameaçadora da ordem social, também lhe foi atribuído mais um adjetivo criado e internalizado no período ditatorial, qual seja, a denominação de sujeito sem valor, carente e imprestável.
A criança tida como carente ou imprestável
Trata-se de uma concepção construída acerca da criança pobre que a concebe como um ser destituído de valor. Essa perspectiva foi registrada nos discursos de cinco autoridades, dentre as onze que se manifestaram no I Fórum do Menor. Destes, destacamos dois fragmentos que melhor a representa.
O ‘menor’ desamparado, o ‘menor’ desprotegido, o ‘menor’ excepcional que nada entende de política, mas que de tudo necessita (Júlio D’Elboux Guimarães - Secretário de Justiça apud Governo do Estado de São Paulo, 1966, p. 10, grifo nosso).
Possam aqui vir aquêles que sabem amar os que não prestam. Dr. Mário certamente se enquadram no rol dêsses eleitos, que sabem dedicar uma vida inteira ‘aos que não prestam’, como dizia o Padre Américo (Sérgio Muniz de Souza - Representante do Instituto Nacional de Estudos - INES apud Governo do Estado de São Paulo, 1966, p. 35, grifo nosso).
A análise nos permitiu identificar que, apesar de o estado de São Paulo concentrar boa parte das crianças que se encontravam em tais condições, a movimentação de autoridades das diversas regiões do país nos fornece indícios para compreender que se trata de um problema de grande extensão no país.
Esses discursos nos apresentam outra ideia construída sobre a criança pobre, sobretudo aquela em situação de rua, que se refere à personificação de um sujeito desvalido, carente, desprotegido e, sobretudo, imprestável. Esses indivíduos desamparados são ingênuo e desconhecem as causas do seu infortúnio, por isso, necessitam de intervenções estatais no sentido de lhes encaminhar a um futuro adequado. Isso seria articulado por meio da Funabem, instituição responsável pela correção e adequação desses indivíduos à ordem social posta.
Outro importante fator constatado nos discursos foi a culpabilização das famílias, acusadas de serem socialmente desviadas. Uma das alternativas apresentadas por Adhemar Pereira de Barros, então governador do estado de São Paulo, seria encaminhar essas crianças a lares mais dignos que os de sua origem, a fim de amenizar o problema. Isso revela o caráter rasteiro presente nessas medidas, que não apenas desconsideram as situações econômicas e sociais desiguais que lançaram essas famílias nesse contexto de vulnerabilidade social, mas buscam mascarar o fato de elas serem vítimas de um modelo de sociedade que tem na sua essência a desigualdade e a exclusão. A sociedade capitalista não pode existir sem pobres laboriosos, ao mesmo tempo em que uma quantidade excessiva de miseráveis pode pôr em risco o próprio sistema, por isso, a assistência comumente se dá como meio de mitigar os problemas da pobreza, jamais eliminar (Marx, 2011).
Nesse processo de mascaramento dos fatores que desencadeiam os problemas sociais, a religião torna-se ponto de apoio para o Estado, uma vez que serve de amortecedor do sofrimento dos indivíduos flagelados. Por essa razão, a presença de representantes religiosos nesse evento foi necessária para dar, em certa medida, um caráter humanizador à proposta de governo que procurava, por um lado, ocultar as causas, por outro, corrigir e punir os comportamentos indesejados.
Nessa proposta, a educação também foi colocada em pauta, não como instrumento de formação do pensamento crítico desses sujeitos sociais, mas como ferramenta de modelação dos desajustados. Isso se daria por meio de proposta oscilante entre o assistencialismo e a formação para os ofícios manuais, visando garantir que eles pudessem transitar de uma situação de penúria extrema para sua inserção no mercado de trabalho, mesmo que sob condições pouco valorizadas.
A finalidade socioeducativa da FUNABEM: o ajustamento social por meio do trabalho
Imbuídos das ideias do que seria uma sociedade ideal, pautada em uma ideologia homogênea, no sentido da normalidade e dos valores morais, as autoridades responsáveis pela estruturação das diretrizes educacionais da Funabem, conforme os discursos analisados, evidenciaram uma educação com caráter compensatório e de readequação. A intenção educativa respalda-se na ideia de instruir para os ofícios manuais, para atender ao mercado de trabalho com oferta de mão de obra barata, bem como para o ajustamento ao modelo definido como aceitável.
A escolha por essas propostas são reflexos não só da imagem construída sobre as crianças pobres, mas também da ideia construída acerca de suas famílias e da classe a qual pertencem, destinando a eles apenas um lugar de inferioridade no que se refere à ocupação a ser desenvolvida e o espaço social a ser ocupado.
Uma das intencionalidades educativas mais evidentes expressa na proposta da Funabem está pautada no ensino de ofícios manuais para os internos. Trata-se de ofícios de pouco prestígio no rol das profissões socialmente referendadas. Esse pensamento foi apontado pela maioria das autoridades que participaram do I Fórum do Menor, como revelam os excertos apresentados a seguir:
Nesses estabelecimentos, bem como nas demais obras existentes, dar-se-á ênfase especial ao ensino industrial, ou seja, das chamadas ‘artes nobres’. [...] Que possibilitará a formação de futura mão-de-obra enquanto promoverá, concomitantemente, a integração do ‘menor’ na Sociedade, despertando-lhe o gôsto e a dignidade do trabalho e as vocações para ofícios (João Roma - Secretário do Interior e Justiça do Estado do Pernambuco apud Governo do Estado de São Paulo, 1966, p. 25, grifo nosso).
[É necessário que] aprendam trabalhos manuais, aprendam a ser úteis a eles próprios, aprendam um ofício (Arthur Reis - Governador do Estado do Amazonas apud Governo do Estado de São Paulo, 1966, p. 112).
Para esses representantes, o trabalho consolidava-se como a melhor alternativa na recuperação dessas crianças e adolescentes, pois isso os dignificaria e traria retorno social e financeiro para o Estado, garantiria o controle desses indivíduos e a manutenção da ordem. A escolha pelo ensino de ofícios manuais estava estreitamente ligada à intenção de solucionar a problemática e realizar uma limpeza social. Segundo Celestino (2015), o trabalho possui cunho disciplinador e corretivo, contribui para aceitação dos ditos ‘menores’ por meio da ideia de que podem ser cidadãos que constroem riqueza, não para si, mas para a nação.
Desse modo, segundo Virgílio Távora, na ocasião governador do Ceará, o trabalho daria a eles condição necessária para se tornarem homens de bem, com integridade física e mental proporcionada por meio de treinamentos para o mercado de trabalho. Isso lhes garantiria a possibilidade de serem provedores de suas vidas. Muito embora o princípio seja a educação por meio do trabalho, estas ideias estavam atravessadas por outras intencionalidades, como a higienização social e a transformação do indivíduo que deixa de ser inútil.
O Estado apoiava-se no Código de Menores de 1927, que regulamentava o trabalho de crianças e adolescentes e inferia que as emergências do ‘menor perigoso’ eram causadas por sua condição de pobreza. Esse marco legal foi responsável pela regulamentação de ações punitivas para os ‘menores’ que tivessem atitudes ‘desviantes’, além de recorrer às igrejas para garantir as ações caritativas e atribuir ao trabalho a função de salvar crianças e jovens do ócio e do vício, mantendo-os longe da marginalidade e preparando-os para a vida adulta.
Bomfim (1987) ajuda-nos a compreender a complexidade disso quando afirma que, a fim de reforçar o estabelecimento dessa prática, o Projeto de Lei nº 712 aprovado pela Câmara dos Deputados propõe ao dito ‘menor’ acessibilidade ao mercado de trabalho, como forma de lhe oferecer as possibilidades de construir uma vida honesta. Seria esse o fator indispensável à manutenção e preservação da segurança nacional, transformada em uma maior possibilidade da manutenção desses jovens no trabalho até sua vida adulta. Em suas palavras:
Existindo oficinas profissionalizantes, são utilizadas pelos alunos, de acordo com seus estágios de desenvolvimento: ajustagem e tornearia mecânica, serralheria, solda elétrica e oxiacetilêncica, mecânica automóvel, lanternagem e pintura a pistola, enrolamento de motores e transformadores, composição tipográfica, desenho mecânico e arquitetônico, instalação elétrica, artefatos de couro, refrigeração de ar condicionado, marcenaria, tornearia em madeira, eletrônica básica e auto escola (Bomfim, 1987, p. 73).
Como se percebe, os cursos oferecidos não revelam interesse na formação dos educandos no sentido da elevação intelectual, mas apenas no adestramento para os ofícios manuais. O cunho educativo da Funabem era posicionado de modo a solucionar os problemas comportamentais, sob o controle do Estado, não apenas pela reclusão, mas pela reclusão a partir da educação, com o objetivo de transformar aquele indivíduo em um ser apto a conviver em sociedade. Nesse sentido, os internos seriam preparados por meio do trabalho para a sociedade, não necessariamente como participante crítico do processo de construção social, mas como tarefeiro que se adapta ao modelo social posto.
Nessa perspectiva, educar para o convívio em sociedade nada mais seria que a união dos dois propósitos: formar para o trabalho manual e proporcionar a internalização de valores morais produzidos pelos grupos hegemônicos. A educação, além de ensinar e direcionar o jovem para o trabalho, também servia para lhes educar com vistas ao que entendiam como convivência em sociedade.
Dentre os discursos analisados, apenas o procurador da república Alcino de Paula Salazar faz referência à necessidade de formar a criança para sua inserção ativa na sociedade. Embora ele faça referência de forma tendenciosa, entendendo essa atuação ativa como relacionada à produtividade, ao menos revela não conceber a criança como ser passivo, inútil, que precisa ser ajustado. Os demais propõem uma educação que conduza a práticas sociais pautadas na obediência ao Estado e à correção de atitudes antissociais que venham a ferir os objetivos da ideologia da Segurança Nacional. Assim, coibir as anomalias sociais provocadas pelo dito ‘menor’ carente, delinquente e perigoso.
Nessa direção, Arnaldo Prieto, então Secretário do Trabalho e Habitação do Rio Grande do Sul, propunha utilizar das metodologias militares para readequar o jovem e reintroduzi-lo na vida em sociedade, considerando dados e experiências anteriores que, segundo ele, foram exitosas.
Para Alcino de Paula Salazar, Procurador-Geral da República, representante do Presidente da República, a proposta era tornar a sociedade harmônica, porém isso apenas seria possível conforme duas condições. Uma seria preparar esse ‘menor’ para adentrar ao mercado de trabalho, pois, somente assim, ele poderia conquistar sua dignidade; e a outra seria internalizar as ideias governamentais para manutenção e preservação da ordem.
Como afirma Becher (2011), essa prática educacional, baseada na assistência integral do menor, tinha a pretensão de transformar o cenário de violência que assolava regiões periféricas e formar jovens habilitados a viver em sociedade, mediante condutas de respeito à ordem.
Por considerar os ‘menores’ abandonados como bandidos em potencial, não bastava apenas ensinar-lhes ofícios que trariam retorno financeiro a eles e, principalmente, ao Estado, mas também seria necessário ensiná-los a como se comportar na vida social, por meio de projetos educativos orientados a partir de estratégias de cunho militar. Essa educação apresenta viés corretivo, pois propõe a adequação do ‘menor’ ao fazer com que ele aceite passivamente a posição social que lhe cabe ocupar, sem contestação.
Considerações finais
O presente trabalho, que propôs o aprofundamento acerca do projeto educacional da Funabem, possibilitou-nos compreender a relação estabelecida entre trabalho e educação, além de subsidiar reflexões acerca das intencionalidades educativas do governo ditatorial. Entendemos que sua relevância está no fato de se constituir como instrumento teórico que nos permite refletir sobre a função que a educação para infância pobre assumiu no referido contexto social, que se apresentou como um dos mais perversos na história do nosso país, implantado no período de 1964 a 1985.
Nosso estudo revelou que está contida na proposta da Funabem toda lógica prevalente na Ditadura Militar, qual seja, a ideia de desenvolvimento econômico e a garantia da segurança nacional. Desse modo, após a análise do documento que reúne os discursos de autoridades políticas e religiosas das diversas regiões do país, proferidas durante o I Fórum Nacional do Menor, pode-se compreender as concepções sobre crianças e adolescentes pobres expressas por esses representantes do Estado, bem como compreender o que se pretendia ensinar a esses sujeitos quando recrutadas por instituições nos moldes das Febens.
Foi constatado que há duas perspectivas acerca da criança pobre, dita desvalida. Uma diz respeito à compreensão de que o ‘menor’ é um ser carente, destituído de valor, o que o torna um necessitado de intervenções políticas por meio do Estado. A outra concepção dava conta de compreender o ‘menor’ como sujeito perigoso, delinquente, como ameaça à ordem social, de modo que nos dois casos, para reparar tais danos, a educação entraria como protagonista e conseguiria solucionar o problema.
Quanto à finalidade da proposta educacional, entendida como necessária pelas autoridades, ela estava vinculada a duas perspectivas. A primeira seria a preparação do ‘menor’ para o mercado de trabalho, sobretudo por meio do ensino dos ofícios manuais, atividade de pouco prestígio social; e a segunda tratava-se de, por meio da educação, ensiná-los a viver em sociedade, aprender noções de civilidade, obediência ao Estado e aceitação das suas condições de existência, ou seja, indivíduos de ‘menor’ valor.
A Funabem não problematiza de forma radical o projeto societário da época e nem poderia, pois se assim o fizesse, estaria condenando a própria existência do Estado, âmbito de atuação das classes dominantes. A ênfase é na subjetividade, pois pretendem modificar os sujeitos, porém, mantendo o ordenamento social que contribui para o surgimento da marginalidade. Nesse sentido, tanto as desigualdades sociais, que são próprias da sociedade capitalista, quanto o poder estatal, aparecem de forma naturalizada, como instâncias que devem ser conservadas, com parciais modificações apenas para garantir a reinserção dos sujeitos marginalizados. Isso significa inserir os excluídos no sistema de exclusão.