Introdução
Atualmente o corpo é utilizado como uma vitrine na qual o indivíduo faz a propaganda de si mesmo e pensa que está se destacando da maioria das pessoas e afirmando a sua individualidade. No entanto, a compreensão do indivíduo no contexto da sociedade administrada - na qual as relações capitalistas ampliam-se para todas as esferas da vida - não se isenta do reconhecimento de que ele, apesar de ser o representante da oposição das pressões da socialização (da força integradora da sociedade), reflete “[...] em sua individualização, a lei social preestabelecida da exploração, por mais que esta esteja mediatizada” (Adorno, 1993, p. 131). Nesses termos, o indivíduo que aspira se destacar do mundo por meio do seu corpo - daquilo que veste, da sua forma física ou do seu comportamento - não faz apenas a sua autopromoção, mas também a propaganda do mundo em que vive.
Sendo assim, o adensamento das relações sociais tende a enfraquecer a individualidade, já que a ‘socialização’ de um número maior de indivíduos e grupos humanos arrasta todos em direção ao contexto funcional da sociedade. O enredamento social, na concepção de Horkheimer e Adorno (1978). afeta os seres humanos, envolvendo-os em sua individualidade, cuja ampliação da racionalidade do mundo pressupõe uma regressão progressiva, na medida em que
Pela mediação da sociedade total, que engloba todas as relações e emoções, os homens se convertem exatamente naquilo contra o que se voltara a lei evolutiva da sociedade, o princípio do eu: meros seres genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento na coletividade governada pela força (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 47).
Além disso, a exacerbação do narcisismo coincide com a despotencialização dos indivíduos, presas capturadas pela rede do consumo, que oferta os mais diversos produtos, nos quais é possível identificar a promessa da felicidade e a consolidação da nova ontologia social, cuja existência remete ao ter e aparecer.
Sob essa condição, a exploração do corpo vai além da esfera do trabalho e da apropriação de suas forças físicas e mentais, pois ele também é objeto de exploração, quando tratado como um investimento, que alimenta a maquinaria da exploração estética. Assim, torna-se um corpo reificado, aprisionado pelas malhas da lógica do mundo das mercadorias em vários momentos da vida: nas horas de lazer, na escolha das roupas e da alimentação, na relação mais íntima que os indivíduos têm com seus corpos.
Uma reflexão absorta das condições do corpo na sociedade atual apresenta o desafio de pensarmos a ubiquidade da indústria cultural na definição de nossas relações com nossos corpos. Na mira desse desafio, este texto objetiva refletir, com base na Teoria Crítica, sobre o processo civilizatório no âmbito da sociedade burguesa, cuja organização é ampliada por meio da indústria cultural, que se constitui em uma referência preponderante na construção da imagem corporal dos indivíduos, pois institui modelos de beleza, de dieta, de exercícios e de comportamentos. A indústria cultural não planifica apenas a cultura, mas a vida que, sob sua orientação, tende a instituir padrões de normalidade, os quais, de acordo com Adorno (1993), no aforismo ‘Saúde para a morte’, assemelham-se com o que está morto, já que se afastam de toda característica orgânica, encontrada na constituição primeva da vida.
A característica do processo civilizatório é discutida no primeiro momento do texto, que também aborda a relação entre o referido processo e a natureza, a qual se constitui em objeto de uma razão dominadora e autocrática, impassível à esfera sensível da vida e da possibilidade de uma relação aconchegante entre os seres humanos e a natureza. Essa possibilidade, de acordo com Adorno e Horkheimer (1985), não conhece propriamente o gozo ou necessita prolongá-lo para além de sua necessidade - o que aponta para a característica social e alienada do prazer no âmbito das relações humanas. Assim, o prazer que transgride a ordem fixa, ignorando-a, expressa o desejo de retornar à natureza da qual a civilização pretende se proteger.
O sacrifício que o processo civilizatório exige do eu, recai sobre o corpo, cuja discussão é objeto do segundo momento deste texto. O corpo, segundo Vaz (2007), expressa nossa natureza primitiva, sem controle e desgovernada. Dessa forma, é possível afirmar que a reconciliação com a natureza é corolária da reconciliação com o próprio corpo e com o corpo alheio. Também, que o encontro com a natureza alude à mimese, na qual é possível vivenciar uma relação de proximidade e de aconchego com o ambiente, cuja característica é recalcada pelo processo civilizatório, que tende transformar a mimese primeira em mimese controlada, administrada e a serviço do sistema social.
A administração da tendência mimética, entendida como uma tendência orgânica dos seres vivos que os levam a se aproximar da natureza e a estabelecer relações de semelhanças entre si, incide sobre a discussão acerca da indústria cultural e se constitui no objeto do último momento desta reflexão. A indústria cultural consiste em um fenômeno emblemático da tecnificação ampliada da vida e da pressão social, que o processo civilizatório exerce sobre o indivíduo. Ela promove a espetacularização e a reificação do corpo e, sob essas condições influencia a constituição identitária e a imagem corporal dos indivíduos, motivando um debate profícuo no campo da educação, para o qual pretende-se desencadear uma aproximação introdutória nesta seção, assim como, nas reflexões que se situam no âmbito das considerações finais.
O processo civilizatório e a racionalidade burguesa
Segundo Adorno e Horkheimer (1985), o objetivo do esclarecimento, entendido como desencantamento do mundo e emancipação intelectual do homem por meio do uso de sua razão, consistia em evitar o medo e o desamparo em relação aos poderes da natureza. Na tentativa de livrarem-se do medo, os seres humanos investiram-se da posição de senhores, sobrepondo seus interesses ao das demais coisas e seres. Eles agiram não apenas sobre a natureza externa, mas também contra a natureza interna, cuja elucidação é encontrada na Dialética do esclarecimento (Adorno & Horkheimer 1985), na figura prototípica de Ulisses, o personagem da Odisseia, que em sua jornada épica precisa resistir aos encantos das deusas hetairas e ao canto das sereias. Para tanto, Ulisses comporta-se racional e estrategicamente, procurando conciliar o irreconciliável, o prazer e a execução de suas metas. Nesse ponto, ele personifica o disfarce e a renúncia que constitui o processo civilizatório, já que o esclarecimento trilhou o caminho da obediência e do trabalho, no qual não se deve sucumbir à sedução, mas se autocontrolar, guiando-se pela praticidade e pelo logro, cuja expressão se encontra na lógica dos equivalentes.
O recurso do eu para sair vencedor das aventuras: perder-se para se conservar, é a astúcia. O navegador Ulisses logra as divindades da natureza como depois o viajante civilizado logrará os selvagens oferecendo-lhes contas de vidro coloridos em troca de marfim. O presente da hospitalidade homérica está a meio caminho entre a troca e o sacrifício (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 57).
Para dominar o mundo, os seres humanos optaram por explicá-lo, nomeá-lo e torná-lo inteligível. Ao fazê-lo, converteram-no em abstração, constituindo um processo que amplia gradativamente a separação entre a coisa e o nome. O esforço dispendido no processo de relato e nomeação das coisas desse mundo, de acordo com Adorno e Horkheimer (1985), também era parte do mito. Tal fato incide sobre a assertiva de que os mitos já eram produto do esclarecimento. No entanto, diferentemente desse último, os mitos continham distinções, pois a imagem da coisa, a sua representação resguardava a semelhança ao invés de sua substituição e a fungibilidade universal, conforme os parâmetros da ciência.
Como a ciência, a magia visa fins, mas ela os persegue pela mimese, não pelo distanciamento progressivo em relação ao objeto. Ela não se baseia de modo algum na ‘onipotência dos pensamentos’, que o primitivo se atribuiria, segundo se diz, assim como o neurótico. Não se pode haver uma ‘superestimação dos processos psíquicos por oposição à realidade’, quando o pensamento e a realidade não estão radicalmente separados (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 25, grifo do autor).
De acordo com Adorno e Horkheimer (1985), a magia persegue seus fins por meio da mimese (imitação, semelhança) não pelo distanciamento progressivo em relação ao objeto. Ela não superestima os processos psíquicos em detrimento da realidade, pois o pensamento e a realidade não estão radicalmente separados. Os pensamentos não são autônomos em relação aos objetos, o que pode ser explicado na atitude do feiticeiro que se torna semelhante aos demônios para assustá-los e atenuá-los.
No entendimento dos referidos autores (Adorno & Horkheimer, 1985), a ratio ao recalcar a mimese, não se constitui no seu contrário, uma vez que assume a forma necrófila dessa última, assemelhando-se ao que está morto, pois “O espírito subjetivo que exclui a alma da natureza só domina essa natureza privada da alma imitando sua rigidez e excluindo-se a si mesmo como animista” (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 62). O desencantamento do mundo a que se referem esses autores, pressupõe a destruição do animismo, no qual é possível reconhecer que a natureza possui uma alma e que é constituída de vontade e de sensibilidade. Ao eleger a abstração como o instrumento do conhecimento, o esclarecimento suplanta a sensibilidade e, por meio da razão, converte as coisas no mesmo denominador comum, classificando-as, nomeando-as e antecipando-se à ordem sensível das coisas.
Para Adorno e Horkheimer (1985), o esclarecimento radicaliza a angústia mítica, uma vez que não deixa nada de fora, buscando igualar o mundo por meio do pensamento, a fim de obter maior controle sobre a as coisas. Assim, a ciência busca penetrar em todos os seres e capturá-los, mas o que ela captura não é o ser, apenas o atributo nominalista e a convenção lógica instituída como a representação do ser.
O esclarecimento pressupôs a autoconservação, ou seja, a sobrevivência material. No decorrer de seu processo de desenvolvimento até a constituição da racionalidade burguesa, as necessidades materiais cada vez mais exigiram que a razão convergisse com os interesses produtivos e com os objetivos exteriores às necessidades espirituais. Por meio da matematização e do cálculo antecipatório acreditava-se estar a salvo do retorno mítico e poder penetrar no ser das coisas. No entanto, segundo Adorno e Horkheimer (1985), a ciência não conseguiu conhecer o ser, porque reificou-se e optou pela unidade e pela classificação do mundo a partir de esquemas predeterminados.
No livro Eclipse da razão, Horkheimer (2002) afirma que a vida se submete cada vez mais à racionalização e ao planejamento, inclusive na esfera mais individual, onde os indivíduos poderiam preservar a sua singularidade e sua privacidade. Nessas condições, a preservação dos indivíduos requer o seu ajustamento ao sistema, de cujo poder não conseguem escapar, pois é da capacidade inercial dos sujeitos que o sistema sobreviva, conforme Adorno (2008).
O poder regulador da razão potencializa a coerção contínua, a qual ocorre mesmo quando o indivíduo pensa que desfruta de um acréscimo de liberdade - o que, segundo Horkheimer (2002) implica a mudança no caráter da liberdade. A exemplificação desse fato é feita pelo autor, por meio da comparação entre a carruagem e o automóvel, cuja rapidez, eficiência e facilidade de manobra esbarram em leis, normas e instruções, às quais devemos nos submeter. Os limites de velocidade, as advertências, as faixas do tráfego e a sinalização exigem a atenção e a substituição de nossa espontaneidade “[...] por uma disposição de espírito que nos obriga a descartar-nos de qualquer emoção ou ideia que possa diminuir nossa atenção às exigências impessoais que nos assaltam” (Horkheimer, 2002, p. 103).
A civilização ocidental, segundo Horkheimer (2002), protagoniza uma atitude pragmática com relação à natureza, que se manifesta de maneiras diferentes. Enquanto os antigos caçadores, ao observarem as montanhas e os campos, aspiravam ao sucesso na caça, os homens modernos olham para as paisagens intencionando o lucro - a comercialização da terra, a oportunidade de utilizar aquele espaço para colocar um cartaz de cigarro. Com relação ao destino dos animais, o autor utiliza como exemplo uma reportagem sobre a aterrissagem de aviões na África, cuja dificuldade era causada pela horda de elefantes e de outros animais selvagens, considerados obstrutores do tráfego pelos seres humanos. Na concepção de Horkheimer (2002), a Bíblia dá testemunho desse fato, pois o livro Gênesis, aponta para a superioridade humana, diante da posse de uma alma, a qual lhe garante o poder sobre todas as demais criaturas, desobrigando os seres humanos do cuidado e do respeito para com elas.
Com esses exemplos, o referido autor mostra que a razão pragmática não é nova e que ela expressa sua característica instrumental, atualmente mais bem formulada e aceita do que outrora. A ampliação do poder humano sobre a natureza é resultante da estrutura da sociedade e de seu desenvolvimento histórico, na qual as necessidades físicas são subjugadas pelas necessidades artificiais, de segunda natureza, que remontam ao mundo das mercadorias.
Contudo, a natureza é hoje mais do que nunca concebida como um simples instrumento do homem. É objeto de uma total exploração, que não tem objetivo estabelecido pela razão e, portanto, não tem limite. O domínio da espécie humana sobre a Terra não tem paralelo naquelas outras épocas da história natural em que outras espécies animais representavam as formas mais altas de desenvolvimento orgânico. Seus apetites eram limitados pelas necessidades de existência física. Na verdade, a avidez do homem para estender o seu poder em duas infinidades, o microcosmo e o universo, não emerge diretamente da sua própria natureza, mas da estrutura da sociedade (Horkheimer, 2002, p. 112-113).
De acordo com Horkheimer (2002), existe uma inter-relação entre a história da subjugação da natureza e a história da subjugação do homem pelo homem, sendo que o desenvolvimento do conceito de ego reflete essa dupla história. O ego é entendido pelo autor como o princípio do eu, voltado para a dominação e organização do mundo. Nesses termos, ele confronta-se com a natureza em geral, contra as outras pessoas e contra os seus próprios impulsos.
Para Horkheimer (2002), o ego interior de cada sujeito personifica o líder e assim como esse último classifica e categoriza as experiências, planejando a vida dos indivíduos. O ego se caracteriza pela indulgência em relação às emoções agradáveis e pela austeridade em relação ao que provoca tristeza, uma vez que objetiva preservar-se das emoções e dos juízos oblíquos.
Paralelamente à racionalização ampliada da sociedade, ocorre o aumento de um ressentimento consciente e inconsciente nas pessoas contra a civilização, cujo locus se situa no ego, pois a repressão dos desejos imposta pela sociedade por meio dele, é insensata não apenas para o indivíduo, mas para a população como um todo (Horkheimer, 2002).
A civilização oprime o sujeito desde o momento de seu nascimento, sendo que os pais representam para a criança o poder avassalador e a desobrigação da natureza, sobre a qual se exerce o poder. Nesses termos,
O ódio pela civilização não é apenas uma projeção irracional de dificuldades psicológicas pessoais no mundo como se interpreta em alguns escritos psicanalíticos. O adolescente aprende que as renúncias aos impulsos instintivos que dele se espera não são adequadamente compensados; que, por exemplo, a sublimação dos impulsos sexuais que a civilização exige não traz para ele a segurança material em nome da qual é pregada. O industrialismo tende cada vez mais a submeter as relações de sexo à dominação social (Horkheimer, 2002, p. 115).
A negação da natureza no homem é, de acordo com Adorno e Horkheimer (1985), o núcleo de toda racionalidade civilizatória e a célula da proliferação da irracionalidade mítica. O ser humano, ao negar a natureza que existe nele, torna confuso e opaco o telos da dominação externa da natureza e o telos da própria vida. Na busca por sua autoconservação, o ser humano satisfaz suas necessidades de forma objetualizada, ou seja, por meio do mundo das mercadorias. Sob essa condição dominadora, a vida é dissolvida, quando deveria ser conservada. Sendo assim, “[...] a anti-razão do capitalismo totalitário, cuja técnica de satisfazer necessidades, em sua forma objetualizada, determinada pela dominação, torna impossível a satisfação de necessidades e impele ao extermínio dos homens” (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 61).
A vida se resume, de acordo com Horkheimer (2002), a um esforço contínuo de supressão e degradação da natureza, tanto interna quanto externamente. A energia dos desejos naturais é direcionada para a identificação como os seus substitutivos: a pátria, o líder, os ídolos, a tradição, as facções políticas, dentre outros. Esse processo se expressa tanto na sobreposição dos interesses mais amplos sobre os individuais, quanto na sobreposição da reificação sobre uma visão mais orgânica e lúdica, na qual é possível pensar o corpo na sua constituição mais original, antes de ser amplamente administrado pelo projeto burguês de sociedade.
O processo civilizatório e o corpo
No aforismo ‘interesse pelo corpo’, publicado nas notas e esboços da Dialética do esclarecimento (1985), Adorno e Horkheimer mencionam que os instintos e paixões humanos ocupam um lugar subterrâneo na história, uma vez que são recalcados e desfigurados pela civilização, cuja orientação priorizou a natureza externa em detrimento da natureza interna dos seres humanos. Nesses termos, os autores relacionam a civilização ao terror, pois foi sob o signo do carrasco que se realizou a evolução da cultura. Assim, não é possível abolir o terror e conservar a civilização.
Nesta passagem do texto ‘O mal-estar da civilização’ (2010), Freud desvenda a relação conflitiva entre os impulsos sexuais e a civilização.
[...] ao derivar a antítese entre civilização e sexualidade do fato de que o amor sexual é uma relação entre duas pessoas, na qual uma terceira é talvez supérflua ou importuna, ao passo que a civilização repousa sobre os vínculos entre muitas pessoas. No auge de uma relação amorosa não há interesse algum pelo resto do mundo; o par amoroso basta a si mesmo, não precisa sequer um filho para ser feliz. Em nenhum outro caso Eros revela tão claramente o âmago do seu ser, o propósito de transformar vários em um [...] (Freud, 2010, p. 71).
Na concepção de Freud (2010), as paixões movidas por instintos tendem a sobressair aos interesses ditados pela razão e esse fato ameaça a desintegração da sociedade, que contra-ataca inibindo os instintos agressivos dos seres humanos e as suas manifestações, promovendo formações psíquicas reativas, na medida em que as relações amorosas são inibidas em sua meta e dirigidas para interesses mais amplos: os interesses sociais.
Devido a essa hostilidade primária entre os homens, a sociedade é permanentemente ameaçada de desintegração. O interesse do trabalho em comum não a manteria; paixões movidas por instintos são mais fortes que os interesses ditados pela razão. A civilização tem de recorrer a tudo para pôr limites aos instintos agressivos do homem, para manter em xeque suas manifestações através de formações psíquicas reativas. Daí, portanto, o uso de métodos que devem instigar as pessoas a estabelecer identificações e relações amorosas inibidas em sua meta, daí as restrições à vida sexual e também o mandamento ideal de amar o próximo como a ti mesmo, que verdadeiramente se justifica pelo fato de nada ser mais contrário à natureza humana original (Freud, 2010, p. 78).
A constituição da subjetividade no contexto do processo civilizatório requisitou, segundo Vaz (2007), a quebra do sujeito com o seu vínculo natural e primitivo. Dessa forma, a mimese constitui-se em uma tentativa de reencontrar a felicidade prototípica original, cuja reconciliação com a natureza era possível. O corpo também é a expressão dessa natureza primitiva, sem controle, sendo que o ser humano, também faz parte dela. Dessa forma, a reconciliação com a natureza que nos circunda pressupõe uma relação abrangente, que acolhe o ambiente, os outros corpos humanos e o próprio corpo. Para Vaz (2007), toda mimese é uma forma de encontro com a natureza, mesmo que prototipicamente.
No entendimento desse autor (Vaz, 2007), o tema da mimese em Adorno e Horkheimer é compreendido a partir da relação com a autoconservação, na qual a tendência civilizatória pressupõe o rompimento com a relação orgânica e aconchegante da mimese. Nesse processo, o corpo torna-se objeto de controle e de dominação. Se o esclarecimento pressupõe o sacrifício e a renúncia, o prazer administrado pela sociedade se realiza como logro, já que a civilização tende a nos distanciar de nossa marca original e dirigir-nos para o âmbito de uma felicidade de substitutivos, cuja consecução se realiza pelo mundo das mercadorias. “Por isso permanecem na relação perturbada e patogênica com o corpo, os traços sádicos reprimidos que vivificam tendências ao descontrole e à violência corporal” (Vaz, 2007, p. 190).
A relação da mimese com o corpo também remete à relação entre ódio e identificação. Nesses termos, a mimese é vivida em seu sentido oposto, já que a aproximação ocorre com intenções dominadoras, configurando a mimese recalcada ou a falsa projeção. Assim ela é racionalizada, organizada e a individualidade é diluída no establishment e se torna incapaz da alteridade: “Para a massa que assiste aos comícios são apresentadas as novas figuras identitárias, com as quais a identificação deve ser imediata, não-reflexiva, orgânica. Gestos e posturas devem imitar o Führer, para cujo ideário a adesão será, antes de tudo, ‘corporal’” (Vaz, 2007, p. 192, grifo do autor).
A busca pela racionalização do corpo a partir do controle de seus movimentos e de sua redução à mera fisiologia, conforme destaca Vaz (2007), faz parte da constituição da sociedade moderna e o esporte apresenta-se como uma categoria do entendimento dessa sociedade, na qual se cultua a violência, a obediência, o autoritarismo e o sacrifício. Além disso, o esporte é visto pelos indivíduos como a possibilidade de devolver ao corpo um pouco do que lhe foi roubado pelo sistema capitalista, que é adepto à maquinaria e à automação e ao desgaste da vida. O corpo reificado, carrega uma condição análoga à da máquina. Assim, ele precisa ser indiferente à dor e ao sofrimento - o que significa dizer que o desenvolvimento da corporeidade requer a sua anulação, a destituição de sua vida e de sua sensibilidade.
A submissão do corpo ao poder tecnocrático, com o intuito de aperfeiçoar a raça humana, é retratada no filme Wakolda, o qual é analisado por Galak, Gomes e Zoboli (2018). Para eles, o filme da cineasta argentina Lucía Puenzo, lançado em 2013, expressa a racionalidade moderna, que pensa o ser humano como objeto da ciência, como um laboratório, no qual é possível experimentar técnicas de correção e melhoramento do corpo. O filme, conforme os autores, retrata a modernidade a partir da relação do homem com a ciência e com o saber. Além disso, tensiona a relação entre diferença e homogeneização dos corpos e a relação entre o corpo natural e o corpo artificial.
O nome Wakolda, que serve de título para o filme analisado, coincide com o da esposa de um famoso chefe indígena da Patagônia. Esse nome é utilizado para se referir a uma boneca, que precisa assumir nova configuração, na qual a sua singularidade é substituída pela produção em série, característica da racionalidade técnico-científica e de seu poder de atuar sobre os corpos, homogeneizando-os.
Por esse motivo a boneca Wakolda representa o ‘motor’ da narrativa, pois é ela que deve ser ‘transformada’ em outra coisa para romper com sua singularidade e se enquadrar num processo de homogeneização (em outras bonecas que serão fabricadas em série) via projeto da ciência moderna (Galak et al., 2018, p. 5, grifo do autor).
O artesão da boneca Wakolda é pai de Lilith, cuja estatura abaixo da média para a sua idade, chama a atenção do médico Helmut Gregor, o qual aplica hormônios de crescimento na menina, acompanhando a evolução de seu crescimento por meio de anotações em uma caderneta. Essa narrativa, conforme Galak et al. (2018), integra a discussão do filme acerca do corpo que, no contexto do dilema vivido por Lilith, torna-se objeto de investigação e de experimentação de Helmut Gregor, cujo codinome foi utilizado por Josef Mengele. Esse último concebe o corpo de Lilith no âmbito do projeto de raça e população pura, por ele defendido. Dessa forma, Helmut acredita na ciência como uma forma de corrigir o corpo, uma forma de livrá-lo da ameaça mítica por meio do controle, da dominação e da experimentação. Paradoxalmente à atitude de Helmut, o pai de Lilith não deseja para a sua filha o mesmo fim a que foram submetidas as suas bonecas.
No filme visualiza-se o confronto entre esses dois saberes: mito x ciência. O médico alemão pergunta para Eva, a mãe de Lilith: ‘Nunca ‘estudaram sua filha’ para ver se ainda estava a tempo?’ Ela, sem entender totalmente o que ele sugere, responde com outra pergunta: ‘A tempo do quê?’. ‘De crescer’, responde o médico, o que leva a Eva a uma imediata e afirmativa resposta: ‘Isso não é algo que decide a medicina’ (Galak et al., 2018, p. 4, grifo do autor).
Adorno e Horkheimer (1985) apontam a relação de amor e ódio pelo corpo que impregna a cultura moderna, na qual o corpo é inferiorizado e escravizado, reificado e desejado na mesma medida em que é proibido. Os autores ressaltam o papel da cultura na constituição do corpo enquanto coisa, enquanto posse, pois enquanto tal, ele se distinguiu do espírito, “[...] quintessência do poder e do comando, como objeto, coisa morta, corpus” (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 217).
Os referidos autores ressaltam uma mudança formal referente à virilidade do corpo, que se delineia na dominação burguesa, no comércio, na indústria e nos meios de comunicação. A publicidade, voltada para a divulgação do uso de vitaminas, de cremes para a pele ou para propaganda fascista comunga com a atuação racional e programada sobre o corpo. Essa racionalização incide sobre uma visão objetiva e matematizada do corpo, na qual os alimentos se reduzem a quantidade de calorias e o passeio se reduz ao à quantidade e intensidade de movimento.
Os que na Alemanha louvavam o corpo, os ginastas e os excursionistas, sempre tiveram com o homicídio a mais íntima afinidade, assim como os amantes da natureza tiveram com a caça. Eles veem o corpo como um mecanismo móvel, em suas articulações as diferentes peças desse mecanismo, e na carne o simples revestimento do esqueleto. Eles lidam com o corpo, manejam seus membros como se esses já estivessem separados. A tradição judia conservou a aversão de medir as pessoas com um metro, porque é do morto que se tomam as medidas - para o caixão (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 219).
Vaz (2004) argumenta que o esporte reflete a estrutura capitalista, na medida em que trata o corpo como se fosse uma máquina, fundamentando-se na premissa do rendimento, do treinamento esportivo voltado para o aperfeiçoamento da técnica, da performance e para o alcance de movimentos perfeitos.
A relação entre as estruturas de treinamento corporal e os instrumentos utilizados para dominar a natureza, encontram no esporte, de acordo com Vaz (2004), uma de suas formas de expressão, especialmente nos esportes de alto rendimento e nas academias de ginástica e de musculação. O autor lembra a afinidade do esporte com a técnica, a qual foi destacada por Adorno, para quem o esporte seria uma adaptação clandestina ao maquinário.
No esporte o instrumento técnico por natureza é o próprio corpo, de forma que é ele que deve ser dominado, treinado e funcionalizado para os fins que se procuram. Se os instrumentos técnicos devem facilitar o domínio da natureza que nos circunda, o corpo tornado instrumento (técnico) é ele próprio expressão da natureza dominada (Vaz, 2001, p. 92).
Simbolicamente, de acordo com Vaz (2004), o esporte proporciona a realização de uma das utopias mais primitivas - a aspiração ao prolongamento da vida e a resistência à sua finitude. A relação entre o corpo e o esporte, mediada pela aceleração tecnológica no âmbito da vida humana, incita a capacidade de suportar a dor e o sofrimento e, nesses termos, celebra a morte em detrimento da vida.
O desenvolvimento tecnológico, na concepção de Türcke (2010), contribui para o desencadeamento da vergonha e da ira prometeica, as quais expressam a condição de impotência vivida pelos sujeitos sob essas condições. Türcke (2010) também identifica na tatuagem e no piercing uma revolta contra a intangibilidade do mundo da microeletrônica e uma válvula de escape para a ânsia por experiências táteis. Essas e outras carências do mundo atual são avidamente captadas pela indústria cultural, que está sempre apta a oferecer a compensação para as agruras da vida.
A conduta humana em relação ao corpo é abordada por Türcke (2010), no âmbito da discussão sobre o uso da tatuagem e do piercing, os quais expressam uma nova ontologia: sentio, ergo, sun (eu sinto, então eu sou). O referido autor estabelece relação entre a tatuagem e uma primeira forma de escrita, representante da ‘cicatriz talhada pela assinatura da divindade’, uma manifestação da força divina. Na atualidade, a tatuagem é infligida pelo homem que aspira mostrar o seu poder sobre si e afirmar a marca de sua identidade.
O verbo infligir revela o sentido de penitenciação e castigo, que o autor utiliza para se referir ao uso desses ornamentos sobre a pele. Sendo assim, a afirmação da identidade dos sujeitos que os utilizam, remete ao sacrifício, cuja intensidade aumenta na mesma proporção em que a vida se torna planificada e regulada pelos valores de consumo.
A indústria cultural e a exploração planificada do corpo
A pseudoindividuação é uma característica da indústria cultural, que manifesta seu intento de reconciliar as necessidades individuais com as do sistema, pois a autoconservação na sociedade das mercadorias demanda a anulação da subjetividade, das nossas idiossincrasias, cuja espontaneidade cede lugar à direção do esquematismo.
A indústria cultural dita a forma dos nossos corpos, a dieta que se deve seguir, a roupa, a maquiagem da moda e os movimentos que nossos corpos devem executar para tornarem-se veículo da propaganda do mundo e para estabelecerem o seu lugar no mundo das mercadorias. Assim, o corpo valorizado pela sociedade é aquele que adere à generalidade e à semelhança, ou seja, aos padrões estabelecidos pela sociedade.
A repetição incessante e veloz de palavras e modelos, no entendimento de Adorno e Horkheimer (1985), liga a publicidade à ordem totalitária. Assim como essa última, a publicidade cultiva a frieza e a heteronomia, necessárias para manter a roda do consumo girando.
A indústria cultural dirige a espontaneidade do público, antecipa as suas reações e planeja a oferta de seus produtos em torno de suas expectativas e necessidades. Na verdade, a indústria cultural fabrica nossos gostos e nossa forma de nos comportarmos, agindo em prol da destruição da individualidade. O esquematismo é próprio da indústria cultural e, segundo Adorno e Horkheimer (1985, p. 115), “[...] é o primeiro serviço prestado por ela ao cliente”. Esse, por sua vez, deve contentar-se com a leitura do cardápio.
Sob a pressão da publicidade universal, o pó-de-arroz e o batom, rompendo com sua origem hetáirica, transformam-se em produtos para a proteção da pele, o maiô em uma exigência de higiene. Impossível escapar. A simples circunstância de que tudo isso se passa no sistema totalmente organizado da dominação é suficiente para imprimir no próprio amor a marca da fábrica (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 233).
A indústria cultural, conforme Adorno e Horkheimer afirmam (1985), funciona como um filtro e os recursos técnicos potencializam essa tarefa por meio dos recursos de edição, de som e de imagem. Esse fato permite a espetacularização da vida e do corpo, cuja imagem apresentada na maioria das vezes, não corresponde ao ideal de perfeição veiculado, tendo em vista a possibilidade de alteração das imagens por meio dos programas de computador. Esses recursos corroboram para reforçar a ideia de que a condição da vida na sociedade é o desgaste contínuo e o esmagamento da individualidade (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 130). Em outras palavras, a busca constante por um corpo perfeito e por uma autoimagem positiva constitui-se em uma promissória do prazer, em um recalcamento da satisfação, uma vez que, sob a égide da indústria cultural, ela é constantemente adiada e atrelada à busca da próxima novidade e tendência.
A imitação é colocada como algo absoluto pela indústria cultural, cuja configuração oscila entre a pornografia e o puritanismo. Ela oferece e priva na mesma medida, analogamente ao mito de Tântalo. Dessa forma, os consumidores insaciáveis estão sempre em constante busca por uma realização que é adiada a cada novo produto lançado pela indústria cultural. Esta confirma a lógica da civilização, que oferece algo ao indivíduo, ao mesmo tempo em que o priva do que lhe foi oferecido. A única realização que a indústria cultural permite é a de característica substitutiva e falsa.
A natureza libidinal que vincula o indivíduo à massa, é lembrada por Adorno e Horkheimer (1985), quando eles ressaltam que a indústria cultural não sublima, mas reprime, administrando a libido a seu favor - o que ela faz por meio da identificação com os ídolos e com os produtos que ela oferece. Ao se identificarem com esses elementos, os indivíduos afagam a sua impotência diante do mundo e alimentam o seu narcisismo.
Vaz (2003) estabelece uma relação de shoppings centers como templos de consumo, assim como as academias de musculação e ginástica com templos de celebração do sacrifício corporal.
O sofrimento do corpo não se exige mais para purificar a alma, mas o próprio corpo tornado alma deve purificar-se de seus piores males: a gordura, a flacidez e a feiura. Não é à-toa que o quesito, boa aparência se torna um distintivo importante no mercado, que começa a excluir os obesos, vítimas preferenciais da fúria persecutória dos modelos idealizados ou aceitáveis de corpo. Na sociedade brasileira, na qual a visibilidade do corpo é a própria presença da alma, essas questões atingem proporções dramáticas (Vaz, 2016, p. 67).
Na televisão, na internet e na publicidade de forma geral é possível identificar atores, cantores e outras personalidades externando sua imagem alinhada com o modelo padrão de corpo estabelecido pela sociedade. Graças a eles as academias de musculação e ginástica estão cheias, pois todos querem estar de acordo com os padrões físicos hegemônicos.
Vaz (2016) destaca que nesse processo, fotos do corpo de mulheres são destinadas a outras mulheres para que possam ser admiradas e copiadas através de uma receita de dieta ou exercícios e até mesmo recomendações para o espírito.
A propensão dos jovens à veiculação de imagens corporais perfeitas, lisas e plásticas é destacada por Dias (2010), para quem os corpos exibidos em jornais, revistas, televisões, outdoors, panfletos, vitrines e espelhos de academias de musculação influenciam no ambiente escolar e na educação física. Dias (2010) destaca que os meios de comunicação de massa contribuem para a postura antiformativa, viabilizando e garantindo a percepção do corpo como máquina tanto de performance quanto de beleza. Tal percepção ganhou força notadamente com o regime político-econômico do capitalismo. O corpo na sociedade atual, de acordo com Dias (2010), é como natureza morta - passível de manipulação e construído como se constroem objetos; dessa forma é possível cortar, diminuir, aumentar disfarçar, por silicone, bronzear natural ou artificialmente.
Os desfiles de tendências corporais que influenciam as massas são mencionados por Dias (2010), que exemplifica citando a mulher glamourosa, que fabrica o corpo, tomando como referência as atrizes de televisão e de cinema. Na produção hollywoodiana, estão presentes estereótipos corporais, como por exemplo, o gordinho como figura cômica, as estrelas principais com corpo malhado e o aluno estudioso com um físico incomum. Frente a essa realidade, ele destaca a necessidade de se problematizar a constituição do corpo na sociedade atual.
A relação da indústria cultural com o corpo define-se pela exploração e, consequentemente, pela injustiça social, pela frieza e pelo utilitarismo do sistema econômico, pois é como parte dessa engrenagem que se concebe a corporeidade. Cada vez mais as pessoas querem fabricar seus corpos, ainda que o preço seja alto, tanto no sentido financeiro quanto em relação ao sofrimento pelo qual é preciso passar diante de uma ação invasiva sobre o corpo. Assim, atualizam os esquemas arcaicos da autoconservação e “[...] a vida paga o tributo de sua sobrevivência assimilando-se ao que é morto” (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 168).
A fragilidade egoica e a impotência das pessoas diante de um mundo que nos coloca cada vez mais em exposição alimenta o narcisismo. O trabalho da indústria cultural consiste em gerenciar a nossa economia psíquica, de modo que ela sucumba às pressões do sistema, aderindo à totalidade social simbolizada pela mentalidade do ticket. Nessas condições, os produtos da indústria cultural e os seus ídolos constituem-se em válvula de escape a todos aqueles que estão cansados e aspiram à felicidade, embora se encontrem, conforme Adorno e Horkheimer (1985, p. 179), “[...] no abismo de sua falta de sentido”.
A indústria cultural promove a espetacularização do corpo, tornando-o cada vez mais objetivado, ou seja, cada vez mais submisso às condições de produção e às necessidades econômicas. Tal fato é compreensível na medida em que o espetáculo, segundo Debord (1997),
[...] é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é um suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do irrealismo da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares - informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos -, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade (Debord, 1997, p. 14).
Para Debord (1997), o espetáculo é o produto de uma sociedade que amplia a fetichização para todas as esferas e, com isso, favorece a alienação, pois quanto mais a vida se torna uma produção humana, mais ela tende a separar-se de si mesma, tornando-se cada vez mais abstrata e falsificada. É nesse sentido que Debord (1997) também define o espetáculo como uma relação social entre as pessoas, cuja mediação é feita pelas imagens, as quais se confundem com a realidade, criando um pseudomundo.
No aforismo 92, da Minima moralia (Adorno, 1993), intitulado ‘livro de figuras sem figuras’, Adorno reflete sobre a relação entre o esclarecimento e o pensamento imagético, uma vez que o desenvolvimento da razão, ao se livrar de sua autocrítica, não trouxe nenhum ganho subjetivo ao pensamento. Nessas condições, as imagens se apresentam de forma simplista, abreviada e esquematizada. A representação separa-se da coisa representada, o que torna as imagens onipresentes e, como tal, não são imagens, porque, segundo Adorno (1993), limitam-se a representar o universal, o mediano e o padronizado, consistem mais em uma provocação ocular para que o indivíduo manifeste adesão à imagem que lhe é apresentada.
A ideia do referido autor torna-se provocativa no âmbito da condição ontológica atual, edificada sobre a aparência e sobre o universo digital. Nesse último, ocorre uma inflação de imagens, nas quais os indivíduos investem e expõem os seus corpos. A obsessão pelo corpo perfeito e pela juventude não permite nenhum relaxamento e reproduz a fraqueza do paranoico, que não admite nenhum pensamento além daqueles preconcebidos nos moldes do esquematismo da indústria cultural. A paranoia é o sintoma do indivíduo semiformado, aquele que adere ao espírito das mercadorias; ela é usurpadora do reino da liberdade e ameaça o sentido inerente do trabalho educativo: a humanização.
Santos e Zanotti (2013) destacam que o incentivo à busca por esse ideal de beleza, provém principalmente da mídia, dos meios de comunicação e da publicidade, os quais propagam medidas e padrões estéticos condizentes com a cultural atual. A partir disso, as intervenções corporais buscarão nada menos que o encontro da felicidade e do sucesso. Os referidos autores também destacam que a felicidade do sujeito contemporâneo se orienta pela idealização do corpo, porém ela é uma felicidade restrita e pouco duradoura, na qual o ideal de beleza está acompanhado de insatisfação, pois a cada momento novos procedimentos são descobertos para a conquista do corpo perfeito.
Os adolescentes, conforme Santos e Zanotti (2013), representam uma fração significativa dos indivíduos que buscam o corpo perfeito, tendo em vista as diversas transformações corporais advindas da puberdade, o que contribui para que eles experimentem uma sensação de estranhamento em relação ao próprio corpo. Para lidar com a angústia do corpo temido e estranho, característica dessa fase, os adolescentes buscam referência na imagem do corpo idealizado e perfeito, que é veiculada pelos meios de comunicação.
Para Frois, Moreira e Stengel (2011), a construção da imagem corporal pressupõe a relação do sujeito com o mundo. Eles defendem a necessidade do rompimento com a visão fragmentada das funções do corpo biológico e do corpo afetivo, de maneira que a relação do adolescente com sua percepção corporal e relacional contribua para o entrelaçamento das dimensões biológicas, psíquicas e sociais como constituintes do indivíduo.
No entendimento dos referidos autores (Frois et al., 2011), a imagem corporal compõe o processo identitário e formacional do adolescente e as experiências vivenciadas auxiliam na compreensão de como o indivíduo constrói e reconstrói a imagem do seu corpo ao longo da vida, de como ele se vê e de como ele se relaciona com o mundo. Dessa forma, os cuidados na infância, bem como as relações estabelecidas com o seu núcleo familiar e com os demais indivíduos, atuam na construção da imagem corporal, possibilitando ao indivíduo definir-se como gordo, magro, alto ou baixo.
Para Frois et al. (2011), o conflito entre a busca por uma identidade adulta e o desejo de prosseguir no amor e dependência, característico das crianças, pode ser externado pela insatisfação do jovem em relação ao seu corpo. Além disso, os adolescentes se veem frente às novas demandas de ordem afetiva, hormonal e física e, consequentemente, a imagem corporal precisa ajustar-se a elas. Frois et al. (2011) destacam que na adolescência ocorre um luto típico do corpo infantil, o que permite uma mudança significativa do posicionamento do corpo no mundo.
Nessa medida, como o jovem poderá construir uma identidade corporal satisfatória para si, uma imagem corporal congruente com suas vivências, percepções e subjetividades, se não tem padrões estáveis, sobretudo parentais, para se contrapor, apropriar-se e se definir numa corporeidade? Como poderá construir uma identidade, se as referências não são estáveis? (Frois et al., 2011, p. 75).
O dilema constante entre imagem corporal e corpos-imagem, segundo Frois et al. (2011), atinge a todos os segmentos, desde as crianças, passando pelos jovens, pelos adultos e pelos idosos. Esse fato tem relação com o contexto da sociedade, na qual se exige a readaptação constante dos corpos e a oportunidade de todos vivenciarem o conflito que é característico da adolescência e que implica o ajustamento e o alcance de uma estabilidade da imagem corporal. De acordo com os autores, o conflito entre a imagem corporal e o corpo imagem torna-se problemática quando uma característica transitória se torna padrão corporal, sendo que a inexistência de padrões corporais estáveis, sobretudo parentais, dificulta a construção de uma identidade corporal satisfatória para o jovem. A fragilização dos marcos sociais, sejam eles políticos, familiares ou institucionais não permite uma base segura sobre a qual o adolescente possa se contrapor e definir marco estruturais de sua identidade em direção ao mundo adulto. Diante disso, Frois et al. (2011) questionam como os adolescentes podem definir-se e garantir uma certa estabilidade corporal na ausência de um modelo estável de adulto, no qual possa se espelhar.
O fenômeno da ‘adolescentização’ é utilizado por Frois et al. (2011) para descrever a valorização dos atributos da juventude, que afeta a todas as idades. A dificuldade relacionada à construção da identidade adulta a partir da idealização do corpo jovem é acompanhada pela valorização do imediatismo, do consumo e da experimentação sem compromisso, característicos da juventude.
Não obstante, o que dizer de um contexto no qual todos os segmentos - crianças, jovens, adultos e idosos - seguem num dilema constante entre imagem corporal e corpos-imagem?; de um contexto no qual a todo instante todos precisam readaptar seus corpos sem se encontrarem num ajustamento e estabilização da imagem corporal e continuam vivendo um conflito típico e característico da adolescência? O conflito entre imagem corporal e corpoimagem, que acarreta o desejo por um corpo diferente do que se possui, não é um fato novo e também em si não constitui um problema. A questão é quando uma característica, a princípio necessariamente transitória, perpassa como padrão. Nessa medida, como o jovem poderá construir uma identidade corporal satisfatória para si, uma imagem corporal congruente com suas vivências, percepções e subjetividades, se não tem padrões estáveis, sobretudo parentais, para se contrapor, apropriar-se e se definir numa corporeidade? Como poderá construir uma identidade, se as referências não são estáveis? Essas questões denotam a fragilização dos marcos sociais - referenciais políticos, familiares, institucionais - para que o adolescente possa se contrapor e construir suas próprias marcas estruturais e definidoras da sua identidade em direção ao mundo adulto. Como definir-se garantindo certa estabilidade corporal sem ter um modelo adulto baseado na estabilidade para espelhar-se? A perspectiva transitória e de experimentação de situações e identidades é uma característica típica dos adolescentes, mas ela tem se apresentado na contemporaneidade como estereótipo valorizado, aceito e perseguido por pessoas de todas as idades. Nesse sentido, como tornar-se um adulto definindo-se enquanto figura mais estável, de referência para o jovem? Este tipo de questão parece sustentar um convite à reflexão sobre novos paradigmas para os conceitos de identidade, adolescência e idade adulta que, por extrapolarem os objetivos desse artigo, não serão aqui melhor explorados. Faz-se necessária, não obstante, uma breve análise desse processo de ‘adolescentização’ da sociedade contemporânea, pois a valorização desses atributos típicos do jovem, ao estender-se às demais idades de vida, acaba por trazer outros complicadores para além das dificuldades de construção da identidade adulta a partir da idealização do corpo jovem. Aponta também para uma busca constante de outros atributos adolescentes, tais como experimentações sem compromisso, imediatismo e consumo (Frois et al., 2011, p. 75, grifo do autor).
Kehl (2007) é referendada por Frois et al. (2011) para lembrar que a indústria cultural e o consumo contribuem para a valorização da juventude, pois se valem dos atributos físicos dessa fase da vida para promover os seus produtos. As referências corporais orientadas pelo imediatismo e pela efemeridade suscitam nas pessoas a insatisfação com o próprio corpo, já que a existência de referências estáveis é fundamental para o processo de reorganização saudável da imagem corporal. Nesse sentido, a mídia atua inversamente a esse processo, perturbando a construção da imagem corporal na medida em que seus padrões oscilam frequentemente.
Na adolescência, a construção da imagem corporal desloca-se da esfera parental para outras esferas. Apesar disso, o referencial familiar, de acordo com Frois et al. (2011), contribui para a aquisição de padrões estáveis, os quais servem de base para a contraposição, apropriação e definição da corporeidade, a qual é confrontada pela influência das mídias e pelo círculo de amizades.
A condição da vida organizada pela indústria cultural, conforme Adorno e Horkheimer (1985), é o desgaste contínuo, é um contínuo rito de iniciação, no qual o indivíduo afirma a sua identificação com o opressor e se realiza na generalidade. Sendo assim, o indivíduo é ilusório. Ele só é tolerado na medida em que se identifica com o universal e colabora para a manutenção da lógica na qual a diferença absoluta é a semelhança perfeita. Trata-se de uma pseudo individualidade, cuja constituição se atrela a detalhes relacionados à vestimenta, ao comportamento, entre outros, que são comuns às demais pessoas submersas na personalidade reguladas pelo mundo das mercadorias.
As particularidades do eu são mercadorias monopolizadas e socialmente condicionadas, que se fazem passar por algo natural. Elas se reduzem ao bigode, ao sotaque francês, à voz grave da mulher de vida livre, ao Lubitsch touch: são como impressões digitais em cédulas de identidade que, não fosse por elas, seriam rigorosamente iguais e nas quais a vida e a fisionomia de todos os indivíduos - da estrela do cinema ao encarcerado - se transformam, em face do poder do universal. A pseudo-individualidade é um pressuposto para compreender e tirar da tragédia sua virulência: é só porque os indivíduos não são mais indivíduos, mas sim meras encruzilhadas das tendências do universal, que é possível reintegrá-los totalmente na universalidade (Adorno & Horkheimer, 1985, p. 145).
Passos, Gugelmin, Castro, e Carvalho (2013) realizaram uma pesquisa com estudantes do 9º ano (entre 13 e 18 anos - porém com maior concentração em torno de 14-15 anos) do ensino fundamental da rede privada e municipal (27 adolescentes de escolas públicas e 26 de escolas privadas) de ensino do Rio de Janeiro. O estudo cujo objetivo era conhecer as representações sociais sobre o corpo, constatou que para a maioria dos alunos a beleza é sinônimo de corpo bonito, descrevendo um modelo de beleza: corpo definido por músculos para os jovens e corpo magro e curvilíneo para as jovens.
A pesquisa realizada por Passos et al. (2013), menciona que segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), 6% das cirurgias plásticas com fins estéticos realizadas de setembro de 2007 a agosto de 2008 foram feitas por pessoas entre 13 e 18 anos de idade. Esses dados apontam que os jovens recorrem às cirurgias na tentativa de se adequarem aos padrões estéticos ditados pela sociedade.
Devido à pressão que sofrem para ter um corpo belo e se aproximarem do padrão estético disseminado como ideal, as jovens sentem-se obrigadas a seguir as dietas milagrosas com a finalidade de perder peso rapidamente, mas, por outro lado, são bombardeadas com propagandas de alimentos ricos em calorias e altamente processados. Cria-se então uma zona de conflito entre alcançar o corpo desejado e o sentimento de culpa em se render à indústria de produtos calóricos (Passos et al., 2013, p. 2390).
Na visão de Passos et al. (2013), as representações sociais sobre o corpo possibilitam a reflexão sobre a prática escolar e sobre as insatisfações corporais dos adolescentes diante do padrão estético veiculado pela indústria cultural. Esta, no âmbito da teoria crítica, constitui-se em uma categoria fundamental para a análise do poder que a sociedade exerce sobre os corpos.
A indústria cultural assim como a medicina e a Educação Física é utilizada como um dispositivo de governo, como parte de uma maquinaria que opera sobre os corpos, direcionando para eles o seu poder, o qual não se limita à esfera política, abrangendo a esfera econômica e estética. Esta última seduz as pessoas em busca de uma imagem idealizada do corpo, cuja possibilidade de conquistá-lo perpassa pelo consumo dos produtos veiculados pela mídia.
Atualmente fala-se muito no protagonismo e na evidência da cultura juvenil, no entanto, a constituição dessa cultura ocorre cada vez mais sob a intensa irradiação midiática, proporcionada pelas tecnologias digitais. Essa conjuntura coloca a problemática acerca da constituição consciente dessa cultura e, consequentemente, da identidade juvenil.
A indissocialidade entre a prática corporal e a prática cultural é problematizada por Maroun (2021), para quem os grupos se relacionam de uma maneira específica com seus corpos, expressando-a por meio de aspectos relacionados ao nascimento, ao sono, aos movimentos, à higiene, ao consumo e à alimentação. A referida autora trata da construção da identidade quilombola a partir do corpo, pois acredita que é possível afirmar uma identidade cultural por meio dele. Essa assertiva tem o seu fundo de verdade, mas requer uma compreensão conflitiva do território ao qual a autora denomina de corpo. Nesse território observa-se “[...] uma variedade de técnicas corporais ensinando, expressando costumes próprios e revelando traços particulares do indivíduo e da coletividade” (Maroun, 2021, p. 3).
O corpo não é apenas um território no qual se expressam as técnicas corporais. Ele é um território de tensão, cujas práticas culturais não se apartam das condições sociais, políticas e ideológicas, ou seja, das condições objetivas relacionadas à divisão do trabalho, a qual promove uma relação fria e calculista com a corporeidade, promovendo a cisão entre o corpo e a mente, entre a matéria e a consciência.
A exploração da heteronomia da consciência, que resulta na sua forma dominante e na onipresença do espírito alienado, de acordo com Adorno (2010), conforma os produtos culturais à vida real, convertendo-os em semicultura e, consequentemente, em semiformação, uma vez que, para o referido autor, a cultura é corolária da formação.
O contraponto desse processo exige, conforme Adorno (2010), lacunas de socialização e proteção contra as atrações do mundo exterior. Para que isso se concretize, a família e a escola precisam falar sobre a imagética corporal promovida pela sociedade - o que pressupõe um exercício de autocrítica e de abertura.
O espaço escolar, por meio de atividades curriculares (de temas transversais) e da interdisciplinaridade pode oportunizar o debate acerca da identidade corporal e da pressão que a sociedade exerce sobre ela.
Uma escola comprometida com a transformação social não pode compactuar com nenhum tipo de opressão, ainda mais quando esta se apropria das esferas mais íntimas dos indivíduos, promovendo uma relação paranoica com a vida, a qual não é exclusividade dos adolescentes, pois o seu círculo familiar afeta diretamente a imagética corporal. Sendo assim, o Projeto Político Pedagógico em consonância com uma gestão democrática precisa oportunizar atividades extracurriculares que coloquem na ordem do dia essa questão, a fim de promover a autoconsciência, que é imprescindível para a constituição de identidades fortalecidas.
Considerações finais
O sacrifício, a renúncia e o logro são inerentes ao processo civilizatório e são partes da relação que este estabelece com o corpo. Essas características, no âmbito da sociedade burguesa, orientam um processo identitário, cuja pressão social tende a tornar a adaptação uma força imperativa, incitando os indivíduos à anulação de suas particularidades e à identificação com o agressor, representado pela tendência social reificante. Nessas condições, as possibilidades sociais de individuação são reduzidas e cedem lugar para comportamentos sadomasoquistas, nos quais tudo é válido para se alcançar o padrão de beleza desejado. Assim, a indiferença contra a dor em geral, tanto aquela que se refere a si próprio, quanto a que se refere à dor alheia, segundo Adorno (1995), contribui para que o indivíduo se vingue do sofrimento que precisou ocultar e reprimir.
A frieza constituinte das relações sociais e o enfraquecimento da autodeterminação constituem o mesmo lado da personalidade amorfa e apta à generalidade, características que instigaram Adorno a pensar em uma educação que se recuse a premiar a dor e a capacidade de suportá-la. Para o autor, não se deve reprimir o medo, mas permitir que ele venha à tona, assumindo a proporção que a realidade impõe - o que permitirá o desaparecimento “[...] dos efeitos deletérios do medo inconsciente e reprimido” (Adorno, 1995, p. 129).
A não repressão do medo, no contexto da relação do indivíduo com o próprio corpo, pressupõe o enfrentamento e a não aceitação da imagem corporal hegemônica, mediante a crítica imanente dos discursos sobre o corpo, cujas falsas promessas de perfeição, afastam os indivíduos de sua corporeidade primeira e orgânica, que é de característica acolhedora e de amor ao próprio corpo, o que permite resguardá-lo dos sacrifícios em nome da beleza e da perfeição.
A assunção da constituição corporal por parte de cada indivíduo pressupõe o fortalecimento da formação do eu. Essa formação, nos termos adornianos, remete à educação para a autorreflexão crítica, caracterizada por um duplo movimento, no qual o indivíduo quanto mais reflete sobre si, mais é capaz de refletir sobre o outro, autoprotegendo-se da possibilidade de torná-lo alvo de suas frustrações e de sua infelicidade.
Ao falar sobre a autoconsciência para Hegel, Torres (2003) percebeu que, para o referido filósofo, ela pressupõe um movimento duplicado, no qual a consciência precisa se perder para encontrar a si mesma em outra consciência. Assim, o autorreconhecimento da consciência requer o reconhecimento mútuo.
Adorno (1995) assume ser um velho hegeliano, portanto seu entendimento acerca da autorreflexão crítica e da autoconsciência se insere em um movimento duplo, em um movimento de transcendência e de tensão entre o pensamento e a realidade, no qual é possível encontrar a abertura para a diversidade e para uma forma mais plural e orgânica de se relacionar com a vida e com o corpo.