Introdução
Ocupar-se consigo, dobrando-se sobre alguma dimensão da própria vida e existência em uma perspectiva de autoconhecimento que leva à uma consciência de si e, por conseguinte, à uma consciência respeitosa do outro; é algo que faz parte da educação a partir de uma perspectiva integral a qual abarca o fenômeno educativo de maneira transdisciplinar, contemplando o ser humano em suas múltiplas dimensões (física, sensorial, emocional, mental, espiritual etc.) e integralidade (Röhr, 2013).
É neste sentido que trazemos nosso objeto de pesquisa: as possibilidades da análise arqueológica do discurso - AAD - contribuir para instaurar práticas e processos educativos assentados na alteridade. Cabe ressaltar que embora dialoguemos com a alguns estudiosos, ao longo desse ensaio, a exemplo de Bourdieu e Passeron (1982), Weber (1994), Rosemberg (2006) e Freire (1981, 2011), nossas problematizações, a respeito da questão em tela, fundamentam-se na abordagem de análise do discurso apresentada por Foucault (2008) no livro A arqueologia do saber.
Ao pôr essa questão como objeto de nossa reflexão no âmbito da AAD, emergem alguns aspectos significativos. Um deles diz respeito ao fato de que a linguagem aparece como um pressuposto do domínio da AAD (Alcântara & Carlos, 2013), como uma espécie de lugar onde se encontra o objeto-discurso em sua dimensão enunciativa (Foucault, 2008) e que a AAD se ocupa em conhecer, em investigar a especificidade de seu modo de existir e de funcionar, a fim de percorrer o trânsito, superar seu limiar e operar a passagem do signo para o enunciado1.
Neste sentido, o objetivo desse artigo é refletir sobre a AAD enquanto uma abordagem teórica e metodológica, mas que também que se manifesta em um modo de vida, trazendo diversos aspectos de formação humana em uma perspectiva de cuidado de si e de cuidado do outro, que podem ser alternativas potentes contra a lógica individualista neoliberal. Dito isso, ressaltamos que, neste artigo, refletimos sobre a análise arqueológica do discurso - AAD - enquanto uma possibilidade de formação humana e educativa. Nossa problemática se insere na investigação de quais são as possibilidades de a AAD instaurar práticas e processos educativos assentados na alteridade, contraponto à lógica individualista neoliberal? O nosso objetivo específico é refletir e analisar essas possibilidades, pois entendemos que a AAD é, ao mesmo tempo, metodologia e possibilidade de se trazer a pesquisa para dentro da vida, no sentido de se pensar em caminhos que apontem para uma abordagem teórico-metodológica que pode ter uma práxis educativa de formação humana. Enquanto metodologia, podemos dizer que a AAD é um dos diferentes domínios do conhecimento que investiga a linguagem.
Reflexões iniciais
Em Hermenêutica do sujeito, Foucault (2006) discorreu sobre como a problemática do si apareceu desde a Grécia Antiga e, gradativamente, foi sendo erigida como um parâmetro cultural da sociabilidade das formações sociais e práticas educativas mais recentes de nossa história.
Sabe-se que a educabilidade do cuidado de si se expressa de múltiplas maneiras, como, por exemplo, nos cuidados referentes ao saber, aos valores cultivados, aos desejos, aos interesses, aos gostos, à emoção, à moralidade, à saúde, à sexualidade, às preferências, aos modos de se viver, etc.
Foucault (2006), ao analisar o conceito de cuidado de si na religiosidade antiga, sobretudo no pensamento grego do século IV a.C., revela a relação da questão filosófica com a prática da espiritualidade como um conjunto das condições das transformações de si que constituem a condição necessária para que se possa ter acesso à verdade.
Segundo o autor, na antiguidade grega, a vontade de ser um sujeito moral e a busca de uma ética da existência eram, também, um esforço para afirmar a liberdade (Foucault, 2006). Entretanto, vale realizar um contraponto que Foucault (2006) muito bem analisa e assume, ao dizer que a espiritualidade cristã se diferencia da posição vigente na antiguidade pagã greco-romana, vez que da antiguidade ao cristianismo, passa-se de uma moral que era voltada para a busca de uma ética pessoal para uma moral como obediência a um sistema de regras (Foucault, 2006).
Com efeito, o ‘ser governado’ é um aspecto enfatizado por pelo autor no que se refere às práticas de poder pastoral da igreja cristã: “Governar, ser governado, ocupar-se consigo, eis aí uma sequência cuja trajetória seria longa e complexa estendendo-se, até a instauração, nos séculos III e IV, do grande poder pastoral na igreja cristã” (Foucault, 2006, p. 57). Percebe-se, então, uma mudança do conceito de epiméleia heautoú (cuidado de si) nessa travessia entre a antiguidade greco-romana para o cristianismo.
Como ressalta Ferreira (2011), o conceito de cuidado de si na antiguidade indica uma postura caracterizada por constante ocupar-se consigo. Acrescenta que, longe de ser uma preocupação autocentrada, trata-se de uma atividade com a finalidade de aperfeiçoar o sujeito em sua relação com o outro, “[...] ao mesmo tempo que é o ponto central do que se costuma chamar de arte de viver” (Ferreira, 2011, p. 29). Finaliza descrevendo a necessidade de práticas para este cuidado, como “[...] a meditação, a escuta, o silêncio, o diálogo, a ascese e a escrita” (Ferreira, 2011, p. 30).
Segundo Foucault (2006) o cuidado de si, nessa perspectiva, se efetiva por meio de práticas racionais e voluntárias pelas quais os seres humanos “[...] não apenas determinam para si mesmos regras de conduta, como também buscam transformar-se, modificar-se em seu ser singular, e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e que corresponda a certos critérios de estilo” (Foucault, 2006 p. 199).
Diferentemente do cuidado de si evidenciado na antiguidade greco-romana retratado acima, a perspectiva neoliberal atual abarca a perspectiva do individualismo, praticado de maneira egoísta. O individualismo é característico de uma visão de mundo exploratória neoliberal, na qual a lógica se assenta na competição e na meritocracia. Na sociabilidade neoliberal, o ego se põe no lugar do ‘alter’ de tal maneira que a razão da existência do ‘alter’ passa a ser concebida, justificada e, até, explicada em função do ego: é um modo ensimesmado de conceber o outro.2
O neoliberalismo tipifica a ideia corrente de uma relação específica estabelecida com o próximo, mediada pelo critério do si mesmo, no qual a lógica que prevalece é a empresarial, que transforma o outro em coisa, em um mero número. Fazemos, aqui, uma analogia da lógica neoliberal com o cuidado de si no cristianismo, vez que esse elemento de análise de Foucault (2006), no medievo, toma a forma da confissão cristã, dentro de uma estrutura da relação diretor-dirigido, em termos do poder pastoral.
Neste sentido, as práticas da existência, na perspectiva da vida enquanto uma obra de arte (antiguidade), perderam parte de sua importância e de sua autonomia ao serem integradas ao cristianismo. “Passaram a ser práticas no exercício de um poder pastoral e, mais adiante, práticas de natureza educativa, médica ou psicológica, na medida dos regimes e códigos” (Wanzeler, 2011, p. 29). Em suma, pode se dizer que o cuidado de si nos gregos se refere à uma arte de viver e uma conexão do indivíduo à verdade. Por sua vez, na ascese da tradição cristã o cuidado de si se volta para uma renúncia de si, pela confissão, em uma perspectiva mais disciplinadora.
Retomando a reflexão específica sobre a lógica neoliberal, vale salientar que as raízes dessa lógica neoliberal na educação brasileira começam com a implementação das perspectivas tecnicistas e produtivistas na educação brasileira (Saviani, 2007). Isso aconteceu primordialmente na ditadura militar (1964-1985), período em que a escola deixa de ser uma instituição da sociedade para ser do mercado. Neste sentido, a escola passa a ter a função de preparar, não para a sociedade, mas para formar capital para o mercado. Dessa concepção surge a Teoria do Capital Humano, em que pessoas não são vistas como seres humanos, mas, sim, como capital.
O neoliberalismo se instaura no Brasil e, em particular, na educação, pós constituição de 1988 e, sobretudo, na década de 1990 e traz um retrocesso do retrocesso. Há neoliberalismo na educação, na economia, na sociedade, nas relações humanas e, assim, por meio dessa lógica desigual não há mais lugar para todos(as), somente para os mais competentes, aqueles que adquirem as competências exigidas pelo mercado.
Esse sistema imputa ao excluído o sentimento de culpabilidade, sendo o mesmo o responsável por sua exclusão. Esse aspecto é uma questão chave debatida por Florestan Fernandes (2020) ao discorrer sobre os desafios educacionais brasileiros.
Essa perspectiva se encontra cada vez mais presente no Brasil e isso pode ser evidenciado na atual contrarreforma do ensino médio. Atualmente, as modificações na educação, inclusive, por meio dessa contrarreforma, são influenciadas pela chamada agenda globalmente estruturada da educação que busca padronização, foco em língua materna e matemática, gestão por resultados, redefinição do trabalho do(a) professor(a) e padrão mínimo de financiamento educacional. Ou seja, as influências não se limitam ao campo nacional, mas se adentram nas concepções de valores globais por racionalidade, modernidade, individualismo, entre outros aspectos (Gomides, 2018).
Segundo Gomides (2018), essas diretrizes estão expressas em vários documentos de organismos internacionais como o BM. Tais valores estão intimamente relacionados com a chamada Teoria do Capital Humano. Esta teoria busca vincular, de forma dependente, a educação ao processo de desenvolvimento capitalista:
Segundo seu principal formulador, T. Schultz (1971), é a partir do processo educativo que o trabalho humano se qualifica e, consequentemente, possibilita ampliação da produtividade econômica e do lucro. Desse modo, a educação, de concepção tecnicista, obtém um valor econômico e não social, além de acabar por realçar uma concepção meritocrática em relação ao alcance do bem-estar social (Gomides, 2018, p. 3).
Relações assim são baseadas na exploração do outro e que a centralidade da relação intersubjetiva se encontra no ego, e não, no ‘alter’. Isso é possível de ser apreendido, quando aprofundando um pouco na relação ego-alter, do ponto de vista epistêmico, à luz da perspectiva concebida no domínio da Sociologia, expressa na noção de ação social cunhada por Max Weber (1994). Essa noção demonstra, de modo exemplar, a ideia do outro como premissa sociológica weberiana fundamental da análise das relações sociais, cujo conceito significa, resumidamente, uma ação realizada por qualquer indivíduo, que se efetiva, necessariamente, para se tomar o outro como referência. Sobre isso, esclarece Weber:
A ação social (incluindo omissão ou tolerância) orienta-se pelo comportamento de outros, seja esse passado, presente ou esperado como futuro (vingança por ataques anteriores, defesa contra ataques presentes ou medidas de defesa para enfrentar ataques futuros). Os 'outros' podem ser indivíduos e conhecidos ou uma multiplicidade indeterminada de pessoas completamente desconhecidas ('dinheiro', por exemplo, significa um bem destinado a troca, que o agente aceita no ato de troca, porque sua ação está orientada pela expectativa de que muitos outros, porem desconhecidos e em número indeterminado, estarão dispostos a aceitá-lo também, por sua parte, num ato de troca futura) (Weber, 1994, p. 13-14, grifo do autor).
Verifica-se que o sentido constitutivo dessa noção tipifica e informa sobre a especificidade do caráter social de uma ação determinada. Se considerarmos, por exemplo, o ato de alguém abrir o guarda-chuva para se proteger de uma garoa repentina, essa ação não seria social, pois a referência do ato não foi ao outro, mas a si mesmo. No entanto, se o guarda-chuva for aberto para evitar que uma pessoa qualquer se molhe, pode-se dizer que esse ato seria de outra natureza, vez que estaríamos diante de uma ação assentada no pressuposto social do agir em função do outro.
Para Weber (1994), a premissa epistemológica do outro como referência foi erigida como o critério objetivo e necessário para investigar e produzir conhecimentos e explicar as relações sociais, a organização e o funcionamento societário, enfim, as interações existentes entre os indivíduos em sua cotidianidade e circunstâncias. Assim, como entende Weber (1994), só seria possível entender a dinâmica social e a inteligibilidade de seus acontecimentos a partir dessa premissa epistemológica.
Ora, se considerarmos esses dois casos - a perspectiva individualista neoliberal e o da sociologia weberiana - podemos identificar, pelo menos, duas conotações: a primeira com um conteúdo semântico negativo, no qual o outro se desumaniza: é a negação de tudo o que constitui sua identidade cultural e existencial; a lógica neoliberal oprime o ser em sua própria subjetividade.
Na segunda perspectiva (ação social weberiana), o outro é tratado de forma a se aproximar de uma perspectiva do ‘alter’. Esse pressuposto relacional do ‘alter’ coloca o fazer educativo, em diferentes espaços sociais de aprendizagem, a possibilidade da amorosidade e do cuidado com o outro. Essa segunda conotação carrega um sentido de caráter positivo, pautado no reconhecimento do outro e de sua singularidade. Nesse caso, haveria o estabelecimento de uma relação ego/‘alter’, fundada no critério da diferença, que resultaria na valorização recíproca do ‘alter’, como ‘alter’, e do ego, como ego. Assim, instaura-se uma relação de alteridade em que o si e o próximo, o ego e o ‘alter’ serão definidos com o reconhecimento e pela valorização positiva da identidade e da diferença e do respeito mútuo. Isso desenha um campo de múltiplas possibilidades de aproximações, de encontros, de distanciamentos e de crescimentos assentados em compromissos, responsabilidades e cuidados recíprocos, sendo, inclusive, uma alternativa à relação competitiva e exploratória do outro estabelecida pela perspectiva neoliberal.
Podemos dizer, à luz de ponto de vista social e cultural, que a perspectiva neoliberal entranhada nas relações sociais promove a tessitura de processos e práticas socioculturais e educativas de encobrimento e colonização do outro, de sua assimilação e aculturamento, de controle e exploração. Na perspectiva defendida por Weber (1994), reconhece-se a diferença e a diversidade e, consequentemente, os processos e as práticas afirmativas da identidade, do respeito e da preservação da autonomia simultânea de ambos, como condição necessária à formação de pessoas amorosas e éticas, à criação de modos de viver, vinculados ao desenvolvimento da humanidade e da humanização dos sujeitos envolvidos.
No jogo das relações sociais e culturais objetivas, historicamente postas no cenário mundial contemporâneo, constata-se que o primado negativo da individualidade e da subjetividade egocêntrica, individualista e narcísica floresce. Sobrepondo-se ao princípio da alteridade, o primado da negatividade do si mesmo, da meritocracia, é erigido como o parâmetro hegemônico a partir do qual as pessoas acabam definindo suas concepções e condutas em relação umas às outras e, consequentemente, estruturando seus modos de viver, suas convivências intersubjetivas cotidianas, institucionais e internacionais e seus espaços e tempos sociais, políticos e culturais.
Marcado pela objetividade histórica e cotidiana da dimensão negativo-valorativa de um ego ensimesmado, que se realiza ao se sobrepor ao ‘alter’, a prática educativa que se desenvolve nesta perspectiva individualista fere a subjetividade do ser e acaba sendo tecida por meio de um modo hegemônico de viver que naturaliza a dominação do diferente, nega sua identidade e controla e governa sua subjetividade, efetivados com concepções e práticas empíricas e simbólicas violentas e repressivas, prejudiciais ao desenvolvimento humano e à subjetividade e à autonomia das pessoas.
Esse estado de coisas produz, em larga escala, a interdição da possibilidade do cuidado de si em sua dimensão positiva, isto é, da responsabilidade e do compromisso ético com o cultivo da humanidade do indivíduo e do aprender a ver a si mesmo e ao outro como simultaneamente ego e ‘alter’, pessoas em constantes processos históricos e sociais de vir a ser, de ser mais, expressão que Paulo Freire (1967, 1981), utilizava regularmente em seus escritos pedagógicos, a fim de especificar a natureza antropológica e ética da existência histórica e da educabilidade dos seres humanos, que se fazem homens a partir das próprias ações e das interações concretas.
A propósito, ao defender em seus escritos pedagógicos uma prática educativa libertadora e humanizadora, centrada na perspectiva da autonomia do sujeito, da amorosidade, do diálogo, da problematização da realidade e do compromisso com a superação das condições sociais e históricas de opressão, dominação e exploração que transformam os homens e mulheres brasileiros e latino-americanos em quase-coisa (tratado como máquina, instrumento, ferramenta, objeto). Freire (1967, 1981, 1987, 1996) concebe a educação, em geral, como um fenômeno histórico-cultural e uma prática social particular, cujo desenho assinala a intencionalidade do agir sobre o outro, tendo em vista formá-lo, posicioná-lo, governá-lo de um modo ou de outro, nesta ou naquela direção, libertadora ou opressora, ética ou colonizadora, como traço fundamental de sua constituição. Nesse sentido, Freire compreende que a educação é uma prática social intencionalmente implicada com a formação das pessoas.
Vale dizer que a diferença é necessária para entendermos que o outro existe e que não somos iguais. Freire (1987) aborda essa questão com maestria e também alerta a importância de uma educação libertadora para que o oprimido não se transforme em um opressor.
Parece-nos que, como profissionais e pesquisadores/as da área da Educação, comprometidos com processos e práticas pedagógicas formadoras das pessoas, poderíamos refletir sobre como esse acontecimento nos afeta e nos marca, quando estudamos e investigamos, quando optamos por tratar nossos objetos de estudos à luz deste ou daquele domínio epistemológico. Parece-nos pertinente pensar sobre a posição que assumimos em nossos estudos e investigações, devido aos condicionantes interpostos pela abordagem teórico-metodológica que assumimos e com a qual operamos nossas pesquisas.
O saber elaborado, a linguagem e o cuidado com o outro nas relações sociais
Dito do que foi dito, refletimos sobre a AAD enquanto uma abordagem teórica e metodológica, mas que também que se manifesta em um modo de vida, trazendo diversos aspectos de formação humana em uma perspectiva de cuidado de si e de cuidado do outro.
Embora possamos ter entendimentos específicos sobre o complexo social da linguagem, arqueologicamente falando, pode-se dizer que a AAD é abordada de modo singular, isso porque dispõe de um modo de funcionamento específico, como, por exemplo, ao invés de fazer interpretações, ela analisa e descreve os achados encontrados no campo discursivo.
Nesse processo, interessa-nos assinalar que a AAD abandona a vontade de saber sobre o objeto-discurso e sobre as fontes da pesquisa, assentada no crivo interpretativo, no princípio de quem olha para o outro, nesse caso, seu objeto e fontes, à luz de si, do lugar em que se encontra e do seu centro ou ponto de vista preferencial. Nessa perspectiva, a AAD renuncia a interpretação, porque, no cenário hegemonicamente interpretativo, entender o outro significa enquadrá-lo, subjugá-lo, dominá-lo, de modo que o outro não seria ele, mas o que o investigador-intérprete desejasse que ele fosse. Pressupostos que, no âmbito da formação humana, fundamentam e justificam práticas educativas autoritárias, dominadoras e colonizadoras.
Diferentemente desse tratamento, em que o objeto e a fonte se convertem no que o/a pesquisador/a deseja, no verso e reverso do que o/a intérprete pretende encontrar, na expressão do que determina seu saber prévio imposto aos achados de pesquisa, a AAD assume um procedimento de cunho analítico-descritivo, a partir do qual o/a pesquisador/a se coloca diante do outro-objeto, do outro-fonte, perscrutando-o, ouvindo-o, admirando-o, analisando-o a fim de que seu modo peculiar de ser ou de estar sendo possa ser explicitado na plenitude da particularidade de sua própria existência e riqueza singulares, descrevendo e explicitando o modo como se encontram postos na exterioridade de sua existência.
Inspirando-se no modus operandi arqueológico, definidor do nexo entre o/a pesquisador/a-objeto e o/a pesquisador/a-fonte, cogitamos a hipótese de que o deslocamento desse pressuposto para as relações intersubjetivas cotidianas de cunho interpessoal que define, por exemplo as relações ego/‘alter’ típicas do fenômeno educativo, propiciariam uma série de condutas e atitudes favoráveis ao cuidado com o outro e com instauração da alteridade como princípio e modo de viver de uma práxis educativa situada em um horizonte ético.
Em face do exposto e aprofundando no nosso objetivo refletimos, agora, um pouco sobre a AAD e seus processos educativos e socioculturais emancipatórios e humanizadores, codificados na expressão cuidado com o outro. Para isso, informamos que nossa análise se assenta no pressuposto de que a AAD contempla uma dimensão teórico-metodológica profundamente associada ao valor do outro (objeto e fonte), como primado de suas investigações analítico-descritivas.
Aprendemos, por meio da experiência da vida cotidiana ou da análise criteriosa das relações sociais mais gerais, que toda relação intersubjetiva sempre acontece com a mediação de algo e que, nas mais simples e nas mais complexas situações, algo sempre está posto na interação estabelecida entre as pessoas: palavras e coisas, interesses e desejos, ideias e valores, ideologias e concepções de mundo, passado, presente e futuro, frustações e expectativas, processos, práticas e instituições sociais, enfim, a cultura que nos constitui, a sociedade em que vivemos, a história que construímos.
Nesse ínterim, sabemos que a linguagem ocupa um lugar fundamental no rol de mediações existentes entre o ego e o ‘alter’, sejam elas mais genéricas, assentadas nas paisagens e nos horizontes históricos, sociais e culturais, como as definidas pela lógica do capital, do Estado democrático de direito, sejam mais imediatas, fincadas no chão das experiências e das circunstâncias cotidianas, como as práticas educativas vividas nos espaços familiares, escolares, comunitários, etc.
Assim, seja qual for a referência que erigimos como parâmetro de nossa reflexão e análise sobre a linguagem e seus nexos com a formação das pessoas - a história, o cotidiano ou os domínios do saber elaborado que se ocupam do assunto - poderemos afirmar, com um grau satisfatório de segurança, o caráter existencial da objetividade da linguagem como um fenômeno humano (Foucault, 1990, 2001; Palomo, 2001), que ela não só integra nossas vidas e existências cotidianas, como uma espécie de artefato cultural, como também forja nossas visões e concepções de mundo, estrutura nossas teorias e práticas, constitui a subjetividade das pessoas, codifica os saberes que temos e organiza nossos modos de dizer as coisas e de tratar os outros.
O interessante é que, embora a linguagem seja um complexo social que integra e constitui as relações sociais e as subjetividades das pessoas, do ponto de vista do saber elaborado, nem todos os domínios, distintos dos tradicionais, que se ocupam com o problema da linguagem, reconhecem-na como uma premissa teórico-metodológica fundamental de suas investigações, nem lhe confere o status que deveria ter no âmbito de suas abordagens.
Fugindo desse alinhamento, encontramos, de maneira explícita, no domínio da Teoria da Violência Simbólica (TVS), de Bourdieu e Passeron (1982), e da Comunicação Não Violenta (CNV), de Rosemberg (2006), não somente o problema da linguagem e da comunicação, como também do nexo entre linguagem e educação, implicados com a formação das pessoas no contexto de uma sociedade marcada pela hegemonia de relações sociais individualistas e violentas.
Em se tratando do domínio sociológico da TVS, que influenciou significativamente o entendimento de pesquisadores e de educadores brasileiros nas décadas de 1970 e 1980, constatamos que suas investigações demonstraram que, nas sociedades organizadas em função dos interesses dos grupos e das classes dominantes, como a sociedade neoliberal na qual vivemos, por exemplo, a violência simbólica é concebida como uma ação naturalizada, que se efetiva por meio de relações comunicativas específicas, instauradas socialmente com o exercício de um poder arbitrário que visa “[...] impor significações e impô-las como legítimas [...]” (Bourdieu & Passeron, 1982, p. 19).
Nesse sentido, as investigações dos referidos pesquisadores produziram um saber que ajuda a compreender esse acontecimento e a denunciar a existência do fenômeno cultural da dominação como uma espécie histórica de manifestação valorativa hegemônica, centrada no ego em detrimento do ‘alter’, cuja violência consistiria na dominação de um grupo ou de classe sobre a outra, com a imposição da cultura dos mais poderosos - econômica e politicamente - sobre os demais.
Nesse processo, o exercício da violência acontece tanto por causa da especificidade da arbitrariedade do conteúdo cultural comunicado quanto do caráter impositivo da comunicação estabelecida. Esse duplo aspecto elimina toda a possibilidade do diálogo, do reconhecimento das diferenças, do respeito à identidade cultural do outro e da possibilidade de práticas intersubjetivas mediadas por meio de um agir comunicativo ético e emancipatório.
No horizonte do paradigma hegemônico do individualismo e da dominação, a comunicação entre o ego e o ‘alter’ se assenta no uso estratégico da linguagem e do discurso manipulador, dissimulado, descomprometido com o conhecimento das reais condições de existir das pessoas e com as assimetrias e as estruturas inerentes às formações sociais vigentes.
Entendemos que uma das contribuições da TVS é a denúncia contundente que faz, ao apontar que uma das consequências da violência simbólica é a formação de uma opinião pública alienada, fundada no desconhecimento do funcionamento objetivo das relações sociais vigentes, na negação das possibilidades de se reconhecer a diversidade cultural e a naturalização da violência como algo legítimo e inevitável. Por essa via, encobre-se o fato de que esse estado de coisa é uma construção social e histórica, em que passou a ser imprescindível o exercício legítimo da violência simbólica praticada por pessoas revestidas de autoridade para representar e realizar, em distintos lugares e espaços sociais institucionais do Estado e da sociedade civil, o trabalho pedagógico necessário para defender os interesses dos grupos e das classes sociais dominantes econômica, política e culturalmente. Nas palavras dos autores:
Numa formação social determinada, o arbitrário cultural que as relações de força entre os grupos ou classes constitutivas dessa formação social colocam em posição dominante no sistema dos arbitrários culturais é aquele que exprime o mais completamente, ainda que sempre de maneira mediata, os interesses objetivos (materiais e simbólicos) dos grupos ou classes dominantes (Bourdieu & Passeron, 1982, p. 24).
Portanto, a violência simbólica que, para ser efetivada em sua plenitude, exige a instauração de relações de comunicação mediada pela linguagem, entre os sujeitos, grupos e classes sociais em jogo, constitui um sistema composto de instituições, arbitrários culturais, autoridades pedagógicas e trabalhos pedagógicos que compõem um sistema de violência.
Concluímos, a partir da TVS, que a linguagem que media o agir comunicativo do capitalismo e, por conseguinte, do neoliberalismo, se configura como um complexo social constituinte das condições culturais necessárias ao exercício do poder simbólico, ou seja, que incide sobre a imposição do universo dos significados tidos como legítimos, válidos e aceitos pelos grupos e classes sociais dominantes, próprio do paradigma da dominação social, as quais movem as relações intersubjetivas nas formações sociais contemporâneas entre o ego e o alter.
Outro domínio do saber elaborado que reconhece a importância da linguagem no âmbito das relações comunicativas, que nos ajuda a refletir sobre nossas práticas educativas, diz respeito à Comunicação Não Violenta (CNV), segundo a qual a comunicação será desprovida de alteridade sempre que, em uma conversa, instruímos, ameaçamos, aconselhamos, pregamos, interpretamos, avaliamos, aprovamos, desaprovamos, criticamos, insultamos, ridicularizamos e questionamos.
Na conjuntura da hegemonia de uma cultura da dominação, o tema não violência é importante para os dias atuais. Se fizermos uma auto-observação, perceberemos que, cotidianamente, muitos de nós agimos, em certa medida, de maneira violenta - obviamente, existem exceções. Não estamos nos referindo apenas à violência física, já que existem diversos tipos de violência, algumas tão sutis que nem a percebemos e que causam estragos tão grandes, ou até maiores, do que a própria violência física.
Há significativa violência na linguagem. Nossa forma de falar, muitas vezes, é carregada de julgamentos, imposições e falta de empatia. Há a violência psicológica, que tantos traumas geram no indivíduo que a recebe, e a violência simbólica, que oprime e inferioriza.
Dentre as diversas coisas que aprendeu com seu avô, Mahatma Gandhi, segundo seu neto Arun Gandhi (2006) disse que uma delas foi “[...] compreender a profundidade e a amplitude da não-violência e a reconhecer que somos todos violentos e precisamos efetuar uma mudança qualitativa em nossas atitudes” (Arun Gandhi apud Rosemberg, 2006, p. 14). Para fazer seu neto compreender esse aspecto de mudança qualitativa em nossas atitudes, Mahatma Gandhi lhe ensinou a desenhar uma árvore genealógica da violência:
Toda noite, ele me ajudava a analisar os acontecimentos do dia [...] - e a colocá-los na árvore, sob as rubricas ‘física’ (a violência em que se tivesse empregado força física) ou ‘passiva’ (a violência em que o sofrimento tivesse sido mais de natureza emocional). Em poucos meses, cobri uma parede de meu quarto com atos de violência ‘passiva’, a qual meu avô descrevia como mais insidiosa que a violência ‘física’. Ele explicava que, no fim das contas, a violência passiva gerava raiva na vítima, que, como indivíduo ou membro de uma coletividade, respondia violentamente. Em outras palavras, é a violência passiva que alimenta a fornalha da violência física. Em razão de não compreendermos ou analisarmos esse conceito, todos os esforços pela paz não frutificam, ou alcançam apenas uma paz temporária (Arun Gandhi apud Rosemberg, 2006, p. 14, grifo do autor).
Dentro desse contexto, Rosemberg (2006) apresenta os questionamentos que são as bases da comunicação não violenta e defende que é de nossa natureza interior gostar de dar e receber de forma compassiva. Assim, no contexto de tanta individualidade e em que uns exploram os outros, ele pergunta: “O que acontece que nos desliga de nossa natureza compassiva, levando-nos a nos comportarmos de maneira violenta e baseada na exploração das outras pessoas?” (Rosemberg, 2006, p. 19). A partir dessa pergunta, Rosemberg (2006) traz outra questão: “E, inversamente, o que permite que algumas pessoas permaneçam ligadas à sua natureza compassiva mesmo nas circunstâncias mais penosas?” (Rosemberg, 2006, p. 19). Sobre isso, destacamos uma assertiva do autor acerca da importância da linguagem para estabelecer a não violência:
Enquanto estudava os fatores que afetam nossa capacidade de nos mantermos compassivos, fiquei impressionado com o papel crucial da linguagem e do uso das palavras. Desde então, identifiquei uma abordagem específica da comunicação - falar e ouvir - que nos leva a nos entregarmos de coração, ligando-nos a nós mesmos e aos outros de maneira tal que permite que nossa compaixão natural floresça (Rosemberg, 2006, p. 21).
Na perspectiva de Pelizzoli (2012), o ato de se comunicar é o ápice do “[...] fato de a vida estabelecer-se como relação” (Pelizzoli, 2012, p. 5). Nesse sentido, o autor compreende que somos seres num mundo vital, sistêmico, onde os indivíduos encontram sentido quando estão em relação com seu corpo e alma - “Ich bin du wenn ich bin ich - Eu sou tu quando eu sou eu” (Pelizzoli, 2012, p. 4). Assim, o autor cita uma frase que ele considera como essencial e que resume bem essa visão: “Para além do certo e do errado, existe um lugar: somente ali nos encontraremos” (Pelizzoli, 2012, p. 5). Falar em ética remete à questão da alteridade - e quando isso acontece, ocorre algo dentro do ser - um sutil despertar de compaixão que, “[...] para além de nossa normose forçada, há possibilidade de amar e de ser amado” (Pelizzoli, 2012, p. 5).
Pelo exposto, ao levarmos em conta os pressupostos dos saberes elaborados no âmbito da TVS e da CNV, como parâmetro razoáveis de nossa reflexão sobre a pertinência da linguagem como fenômeno humano e de seus nexos com a educação de indivíduos e grupos sociais ao longo de suas vidas e existências, poderemos concluir que a linguagem é uma mediação das relações ego/‘alter’ e, por isso, constituinte dos processos educativos que visam a formação das pessoas.
A escuta do outro e o esvaziar-se de si
Considerando o que foi dito sobre a necessária construção social de relações intersubjetivas mediadas pela linguagem, assentadas no paradigma da alteridade, entendemos que o estabelecimento da comunicação e a realização de práticas educativas exige, em certa medida e modos distintos, a superação das múltiplas concepções e práticas centradas no ego. O que implica, ao fim e ao cabo, o exercício cotidiano de se pôr diante do outro com disposição e disponibilidade para se abrir para ele a fim de compreendê-lo a partir de seu modo de ser.
Nesse processo, ficamos a pensar sobre a necessidade de entender o significado construtivo do esvaziamento das concepções e das práticas sociais, a exemplo das educativas, que interditam nosso encontro com um modo de viver assentado no cuidado consigo mesmo e com o outro.
Nesse sentido, um exercício edificante do esvaziamento passa pela reflexão do status quo. Se analisarmos, por exemplo, a história do mundo capitalista, veremos que o acúmulo de bens materiais é uma característica marcante do status quo hegemônico, a ponto de aprendermos a nos ver e a vermos o outro a partir da posse. Na lógica do capital, somos o que temos e na lógica neoliberal a culpa do excluído é dele mesmo. No contexto do capitalismo/neoliberalismo, a cultura do consumo e do acúmulo de coisas produz um tipo de sujeito com grandes dificuldades de se desprender de certas coisas desnecessárias, de doá-las e/ou compartilhá-las.
Esse fato pode ser facilmente constatado empiricamente, quando observarmos, no cotidiano, por exemplo, nossas casas e nossos armários, a quantidade de coisas que estão ali há muito tempo, que não usamos e que, provavelmente, não usaremos mais. No caso da alimentação, notamos também o quanto de alimentos se perde e é jogado fora diariamente. Em geral, no mundo inteiro, acontecem desperdícios em diversos níveis e, por outro lado, há regiões onde muitas pessoas sofrem por causa da escassez de alimentos.
Ressalte-se, entretanto, que, nem sempre, nós nos damos conta de que precisamos abrir mão de algumas coisas para dar espaço às coisas novas, diferentes, que saiam da lógica do status quo que erige as coisas como essenciais à vida e à felicidade. Nas tradições que exercitam a prática educativa da meditação, como, por exemplo, o Zen Budismo, essa questão de se desprender de algo é uma aprendizagem de suma importância, já que nossa mente também tende a acumular coisas como indispensáveis, sejam elas positivas ou negativas.
No decorrer da vida, acumulamos opiniões, medos, julgamentos, traumas, tristezas, ideias, entre outras questões que obstruem nosso pensamento e acabam comprometendo nosso aprendizado e autoconhecimento, pois nos enrijecem e endurecem, cristalizando visões e comportamentos que, muitas vezes, tornam-se tóxicos: isso pode gerar doenças psicossomáticas.3
Weil, Leloup, e Crema (2003) abordam sobre o que denominam por “[...] normose, a patologia da normalidade”. Os autores conceituam a normose como um sofrimento que nos impede de sermos realmente nós mesmos, pois o consenso e a conformidade impedem o encaminhamento do desejo no nosso interior (Weil et al., 2003). Os autores citam Krishnamurti ao afirmarem que “[...] a liberação do conhecido, demanda muita coragem e maturidade. O medo de não ser como os outros desencadeia o medo de conhecer a si mesmo” (Weil et al., 2003, p. 72). Afirmam, ainda, que são muitos os medos que permeiam a presente sociedade, tal qual o de ser rejeitado, apontado por Rollo May como o medo do ostracismo: “Erich Fromm referia-se ao medo da liberdade; Eric Berne indicava o medo da intimidade; Alexander Lowen denunciava o medo da vida” (Weil et al., 2003, p. 98).
Há um poema escrito por Viviane Mosé que descreve e elucida o que queremos dizer quando falamos sobre a importância de aprendermos a nos esvaziarmos do acúmulo de bens materiais e simbólicos, de pensamentos e/ou padrões tóxicos:
A maioria das doenças que as pessoas têm são poemas presos. Abscessos, tumores, nódulos, pedras […]. São palavras calcificadas, poemas sem vazão. Mesmo cravos pretos, espinhas, cabelo encravado, prisão de ventre […]. Poderiam um dia ter sido poema, mas não […]. Pessoas adoecem da razão, de gostar de palavra presa. Palavra boa é palavra líquida, escorrendo em estado de lágrima. Lágrima é dor derretida, dor endurecida é tumor. Lágrima é raiva derretida, raiva endurecida é tumor. Lágrima é alegria derretida, alegria endurecida é tumor. Lágrima é pessoa derretida, pessoa endurecida é tumor. Tempo endurecido é tumor, tempo derretido é poema. E você pode arrancar os poemas endurecidos do seu corpo com buchas vegetais, óleos medicinais, com a ponta dos dedos, com as unhas. Você pode arrancar poema com alicate de cutícula, com pente, com uma agulha. Você pode arrancar poema com pomada de basilicão, com massagem, hidratação. Mas não use bisturi quase nunca. Em caso de poemas difíceis, use a dança. A dança é uma forma de amolecer os poemas endurecidos do corpo. Uma forma de soltá-los das dobras, dos dedos dos pés, das unhas. São os poemas-corte, os poemas-peito, os poemas-olhos, os poemas-sexo, os poemas-cílio [...] (Mosé, 2023).
A prática educativa milenar da meditação nos mostra que é preciso abrir a mente e esvaziá-la de ideias retrógradas, para que novas perspectivas possam ser observadas e aprendidas. Na sabedoria do Zen Budismo, o acesso ao conhecimento exige uma posição similar à condição de uma xícara de chá: é preciso esvaziá-la para que possamos derramar mais chá sobre ela. Uma xícara cheia não oferece espaço para mais nada. Por sua vez, uma xícara vazia não é uma oportunidade desperdiçada ou uma negação da xícara: é possível preenchê-la todos os dias e esvaziá-la, também, quando necessário.
Uma história do Século XIX traz esse ensinamento da sabedoria Zen Budista de esvaziar a xícara. Essa história é registrada por Miklos (2010), em sua dissertação, e Ribeiro (2016), em sua tese. Nessa história há o diálogo entre o mestre Zen budista, Nan-in, com um professor universitário que foi visitá-lo. O professor tinha interesse no Zen Budismo e já havia lido muitos livros a respeito, mas não entendia as razões pelas quais o mestre Nan-in era admirado por sua sabedoria e a maneira atenta como escutava o outro. Quando o professor encontrou Nai-in, começou um diálogo. Entretanto, no curso da conversa, o professor interrompia frequentemente o mestre, para expor suas convicções, demostrando sua dificuldade de ouvir e de aprender as lições que Nan-in procurava transmitir.
Na ocasião, o mestre ofereceu-lhe um chá e serviu-o calmamente. O interessante foi que, mesmo depois de a xícara ter ficado completamente cheia, Nan-in continuou derramando o chá sobre ela. O professor não se conteve e questionou se Nan-in não havia percebido que a xícara estava cheia e que o chá estava se derramando sobre a mesa. O mestre, então, parou de colocar o chá e disse que, assim como a xícara, o professor também estava cheio de opiniões e conceitos preestabelecidos. Nan-in perguntou como o professor poderia aprender um novo ensinamento, novas ideias e perspectivas, se não tinha espaço para elas. Em seguida, o mestre disse, compreensivamente, que a busca do conhecimento exigia que o professor sempre esvaziasse sua xícara. O professor olhou perplexo para o mestre, ao entender a profundidade do sentido que havia em suas palavras.
Em suma, a ideia principal que queremos frisar dessa história - da metáfora do esvaziamento da xícara do ensinamento budista - diz respeito ao fato de que a aprendizagem de algo, seja lá o que for, nos processos educativos que visam intencionalmente a formação das pessoas, a exemplo da meditação, implica que estejamos abertos, dispostos e disponíveis para escutar, o que exige, em certo sentido, o empenho de não permitir que nossos saberes prévios interditem o processo de escutar o outro.
Em face disso, consideramos que o cuidado com o outro, que pressupõe a capacidade e a atitude de escutá-lo e de entendê-lo, a partir de suas próprias condições de existir, é algo que se aprende. A formação do indivíduo que assume uma posição de escuta do outro, de esvaziamento de si, requer um trabalho pedagógico sistemático. Não é simples expressão ou resultado do acaso.
A AAD como um dispositivo de escuta
Com efeito, a metáfora budista da xícara cheia e vazia indica não somente uma estratégia retórica em favor de compreender a importância de escutar o outro, mas também se apresenta como um exemplo emblemático de ensinamento da prática educativa milenar oriental. Ressaltamos que a metáfora, enquanto uma figura de linguagem, é um dispositivo argumentativo muito utilizado para se dizer algo pretendido, no âmbito dos processos sociais de cunho educativo, que visam algum tipo de aprendizagem, a exemplo dos experimentadas na escola. Não obstante, reconhecemos seus limites, porque, em se tratando do saber produzido sobre algo específico, constituído por feixes de relações singulares, consideramos, aqui, como elucidativa da questão em tela.
Em outros termos, uma das características da metáfora consiste em falar de algo a partir de características de outra coisa. Assim, acabamos falando dessa outra coisa, em vez do algo que desejamos, de fato, tratar. No caso dos discursos, o apropriado é falar dele a partir dele e, não, de outra coisa. Isso significa dizer que um argumento analítico-descritivo deve evitar as similitudes típicas das metáforas. No ensino, o uso das metáforas é razoável; na pesquisa, não. Então, reconhecemos essas questões, mas acreditamos que essa metáfora específica é importante para entendermos o que queremos explicitar.
Em certo sentido, a metáfora budista da xícara cheia e vazia, essa pode representar o conhecimento objetivo de que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, simbolizando um dispositivo de superação dos elementos subjetivos e culturais que interditam nossa abertura para olhar e escutar saberes diferentes dos que temos, bem como a disponibilidade que teríamos de entender outras visões de mundo e outros modos de viver.
Certamente, o deslocamento do mim para o ele, do ego para o ‘alter’ implica, de um lado, reconhecer que o próximo não é, não pode nem deve ser uma extensão de si mesmo, o símile do ego, de outro, saber que, ao problematizar a questão do esvaziar-se, não estamos defendendo a negação ou o silencia mento de nós mesmos.
Esvaziar-se não significa anunciar o sacrifício de si em face do outro, um ritual de sofrimento em que morremos para que ele nasça, um jogo macabro no qual a morte de um seria a condição da vida do outro. Nada disso! A perspectiva assumida, aqui, é de aprendermos a se esvaziar dos ruídos da comunicação, a silenciar os signos que interditam - sem deixarmos de ser o que somos - a escuta do nosso entorno, a fim de nos colocarmos diante do ‘alter’, de tal modo que possamos admirá-lo na plenitude possível de sua existência.
Quando nos debruçamos na análise arqueológica do discurso, a partir da premissa do agir em função do outro orientado pela perspectiva da alteridade, com o intuito de refletir sobre sua possibilidade de contribuir para formar um/a pesquisador/a que assuma essa posição de sujeito da escuta do outro (objetos e fontes) em suas relações epistemológicas e arqueológicas e em suas relações interpessoais cotidianas, ficamos a pensar sobre os possíveis nexos existentes entre o domínio da análise arqueológica do discurso - AAD e o cultivo da formação de modos de viver que reconhecem e valoram, efetiva e positivamente, a questão da alteridade. Em outras palavras, cogitamos sobre o potencial educativo da pesquisa arqueológica sobre a pessoa do pesquisador.
Não obstante entendamos que não convém discorrermos, profunda e longamente, sobre a AAD, como teoria do discurso, vez que esse tema pode ser encontrado, acessado e aprendido em outros lugares mais apropriados, parece-nos necessário e relevante tocar resumidamente em, pelo menos, alguns pontos que podem nos auxiliar a elucidar a questão.
Primeiro, vale destacar uma aparente obviedade, a de que a AAD é uma abordagem teórico-metodológica que se ocupa exclusivamente de investigar o discurso, seja ele qual for. Ao erigir o discurso como objeto fundamental de suas investigações, a AAD o assume como sendo, a um só tempo, o objeto genérico de toda pesquisa que realiza e a categoria analítico-operativa central das formações discursivas singulares escolhidas e definidas como objeto das pesquisas.
Segundo, posta dessa maneira a palavra discurso, a AAD considera como necessário explicar a particularidade semântica e a singularidade teórica do termo e de seu uso especificamente arqueológico, a fim de que não seja confundido com outros significados, atribuídos e empregados por domínios distintos da AAD, que tendem a conceber o discurso como signo, isto é, como algo que se põe no lugar de outra coisa, e não, analisá-lo em sua própria instância, como alerta Foucault:
[…] não se trata, aqui, de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele, e sim, pelo contrário, mantê-lo em sua consistência, fazê-lo surgir na complexidade que lhe é própria. […]. (Foucault, 2008, p. 53, o grifo nosso).
Nessa assertiva, residem dois aspectos que podemos entender como importantes no contexto da relação entre a AAD e os modos de viver pautados na alteridade como princípio educativo. Um diz respeito à superação do limiar do signo, o que implica abandonar a ideia do discurso-signo e abraçar a ideia do discurso-enunciado (Carlos, 2017, 2021), o que, resguardando as devidas distâncias, instaurada a atitude edificante de se relacionar com o outro a partir de sua instância, evita o pôr-se no lugar do outro ou pô-lo em nosso lugar.
Ousamos dizer que, assim como não há possibilidades de o signo ser a coisa que representa, também nos encontraríamos diante de sérias dificuldades de entender o outro, interpretando-o à luz do lugar em que nos encontramos. Se o pressuposto formativo-educativo da alteridade se assenta no reconhecimento da identidade e da diferença, não teria como o ego se pôr no lugar do ‘alter’ e vice-versa, sem recorrer ao dispositivo interpretativo de reduzir o alter ao ego, o outro a mim, o tu ao eu. Tal redução seria, na verdade, uma estratégia para naturalizar a colonização, a dominação, o controle e a negação do outro e de sua própria instância sociocultural.
Em terceiro lugar, o termo discurso, quando entendido para além do saber corrente do discurso-signo, contempla séries complexas de elementos que delimitam e identificam o discurso como algo constituído de feixes de relações determinadas articulados entre si, que organizam ordens enunciativas particulares por meio de regularidades específicas. Esses aspectos da natureza arqueológica do discurso acarretam existências e funcionamentos distintos do que acontece com o signo e, consequentemente, de como ele é definido, analisado e descrito no domínio da AAD como enunciado.
Em quarto, interessa-nos, ainda, repisar que a ideia do discurso como enunciado requer uma análise centrada na própria instância do discurso, e não, em algo que ele sugere, lembra, a que se refere, guarda nas entrelinhas, esconde no jogo retórico e criativo das palavras e dos argumentos, que esteja à espera de alguém iluminado por sua inteligência e sabedoria, para ser descoberto, desvelado, acessado e revelado. Nesse sentido, o discurso-enunciado não é signo, porque sua semântica não inclui a ideia própria da noção de signo que seria a de algo que se põe no lugar de outra coisa.
Em quinto lugar, o contato com as fontes, movido pela vontade de saber do analista a respeito de determinados objetos, requer o ato de aprender a ler e a escutar o que a fonte diz. Essa ideia é fundamental para uma análise arqueológica do discurso. Nesse processo, desenvolvemos a prática educativa da atenção e do cuidado com o que lemos e escutamos. Essa escuta nos lança na instância do que está efetivamente dito, e não, no jogo de suposições do que consideramos que o outro quer dizer.
Em sexto lugar, por não considerar a interpretação como um dispositivo investigativo arqueológico, ou seja, o modus operandi que media a relação pesquisador(a)-objeto e pesquisador(a)-fonte, porquanto o procedimento assumido é analítico-descritivo, podemos dizer que, nesse ponto, a AAD contribui significativamente para o desenvolvimento da aprendizagem da paciência, do respeito, da tolerância, da disponibilidade e disposição de escutar o outro, fundamentais às perspectivas educativas de cunho democrático, libertador e humanizante.
Nesse sentido, se formularmos, pela via arqueológica, a pergunta esvaziar-se de quê?, a resposta poderia ser da interpretação. Ou seja, para a AAD, o esvaziar-se não é um acontecimento fortuito, mas um trabalho educativo diuturno de suspensão epistemológica da interpretação. No processo de análise do objeto mediado pelas fontes, colocamos em suspensão nossos saberes prévios para nos ocuparmos do que está posto, atravessando e constituindo os ditos e os dizeres registrados nas fontes. Desse modo, o esvaziar-se da interpretação se caracteriza como uma condição necessária para a prática educativa da escuta e da leitura arqueológica.
Em face do exposto, entendemos que o esvaziar-se de si expressa um pressuposto necessário e uma prática educativa voltada para o aprender a ‘ser mais’ pesquisadores(as) e pessoas melhores ao lidar com o devido respeito e cuidado, critério e método com nossos objetos e fontes, com o nosso entorno. Precisamos aprender a pensar diferente em certas situações e refletir, inclusive, sobre como poderemos cuidar melhor de nós mesmos no próprio movimento do cuidado que prestamos aos outros e vice-versa. No âmbito das investigações arqueológicas, a ruptura e a transformação fazem parte do processo analítico-descritivo do objeto-discurso e, consequentemente, dos modos de educabilidade do(a) pesquisador(a) situado(a) no domínio das investigações analítico-arqueológicas do discurso.
Considerações finais
Ao finalizar este texto, retomamos nossa problemática: quais as possibilidades de a AAD instaurar práticas e processos educativos assentados na alteridade, contraponto à lógica individualista neoliberal?
A partir da análise e reflexão feitas, podemos dizer que há, de fato, possibilidades interessantes nas quais a AAD contribui para a instauração de práticas educativas assentadas na alteridade. Nesse sentido, desejamos ressaltar, na linha da crítica e do anúncio da Teoria da Violência Simbólica (TVS) e da Comunicação não Violenta (CNV), que a AAD se caracteriza como um domínio promissor, uma alternativa teórica viável de análise da ordem discursiva da violência, instalada no agir comunicativo, porque pode ser apropriada e empregada como dispositivo teórico-metodológico de investigação dos elementos simbólicos e enunciativos que configuram a linguagem e seus usos e o discurso e suas práticas, que tenham assento na negação da alteridade, socialmente cultivada, naturalizada e posta em circulação no cenário das relações comunicativas intersubjetivas e institucionais neoliberais contemporâneas.
Considerando que o signo se apresenta como um pressuposto necessário ao aparecimento do discurso, a AAD trata a linguagem como o terreno onde o discurso se aloja, existe e funciona e reconhece o signo como o limiar da existência do enunciado. Por essa razão, embora o discurso seja, por excelência, o objeto da investigação arqueológica, o processo de análise e descrição de seu modo de existir requer, preliminarmente, um trabalho minucioso de escavação da escrita dos textos-fonte, dos significantes e dos significados que eles registram, da tessitura dos temas e dos argumentos que contemplam a fim de que sejam elucidados os saberes acionados, postos em circulação e utilizados pela mediação da linguagem.
Certamente, a AAD se ocupa de analisar o que está posto, seja por meio do signo, da fala, da escrita, da imagem ou dos gestos da comunicação corporal. Por causa disso, entendemos que seriam possíveis diferentes tipos de análises discursivas referentes ao pronunciado, à escrita, ao visual, à expressão corporal e ao acontecimento do cotidiano.
Todas as coisas efetivamente ditas sobre algo podem ser objeto do discurso, portanto, analisadas e explicadas, como apontara Foucault (1987), ao salientar as possibilidades de investigações que ele denominou de novas arqueologias, contanto que se saiba que o que se põe nos estudos e nas pesquisas das novas arqueologias sejam discursos e saberes, a partir dos quais emerge a possibilidade ou não de se dizer algo sobre alguma coisa. Essa ideia é, sem dúvida, fundamental para a AAD.
Situados na abordagem teórico-metodológica da AAD, ao analisar e descrever determinado discurso, visamos explicitar seu modo de existir e de funcionar. Nessa empreitada, a AAD rejeita a interpretação como um dispositivo de tratamento da linguagem e do discurso, porque, sempre que interpretamos, de um modo ou de outro, elidimos o discurso que, ao fim e ao cabo, passa a ser tratado como o signo, o qual é identificado como o discurso.
Diferentemente da interpretação, a descrição arqueológica objetiva explicitar como um discurso se põe como tal e como se organiza para dizer o que diz, e não, outra coisa. Nesse processo, não cabe colocar nossos olhares, opiniões, preferências, desejos, concepções, ideologias, enfim, o que gostaríamos que fosse ou devesse ser, condutas naturalizadas em quem interpreta.
A título de exemplo, podemos dizer, com base no exposto, que investigar uma narrativa qualquer significa, no âmbito da AAD, analisar o conjunto de elementos que são apresentados nas falas, suas correlações com determinados domínios, os conjuntos de noções que a pessoa ativa para dizer o que diz, a posição que ela, como indivíduo falante, assume em relação aos assuntos tratados, os campos de saberes acionados e suas instâncias específicas.
Os saberes ativados e postos em jogo em uma ordem discursiva por certas práticas discursivas podem utilizar, argumentativamente, tanto os saberes comuns quanto os elaborados, sejam eles afeitos a instâncias e a instituições sociais ou a práticas culturais diversas e não hegemônicas. Tudo isso pode estar misturado no conjunto de coisas que são pronunciadas e contempladas em certa narrativa. No domínio da AAD, as falas nos remetem ao discurso e ao saber efetivamente postos no agir comunicativo dos sujeitos falantes. Não há dúvida de que não existem relações sociais, sejam elas interpessoais ou institucionais, sem discurso. Esse fato pode ser facilmente verificável na constatação cotidiana da intensa proliferação de discursos que atravessam lugares e tempos diversos, circunstâncias e práticas distintas, instâncias e sujeitos dos mais variados tipos e posições.
No caso das relações comunicativas pautadas na linguagem da violência, podemos identificá-las explicitamente nos desenhos animados, nos filmes dos mais diferentes gêneros, nos jogos presencias e virtuais, nas novelas e nas séries, nas disputas políticas e judiciais, nas propagandas midiáticas, nos embates das redes sociais, nas narrativas históricas das tradições religiosos, nos livros didáticos e em suas políticas nacionais, enfim, nas falas cotidianas das pessoas quando se comunicam e se dirigem umas às outras.
Portanto, quando falamos, genérica ou concretamente, do ou sobre o discurso, não estamos falando sobre algo de outro mundo, fantástico, imaginário, sem assento na realidade. A todo momento, discursos impactam o modo como vivemos, como concebemos as coisas, como orientamos nossas ações, assim como em que acreditamos, o que consideramos verdadeiro, falso, certo ou errado. O discurso tece subjetividades, constrói verdades, razão por que Foucault (2008) diz que ele não é apenas objeto de análise e de estudo, mas também objeto de desejo, de disputa e de interesse dos mais diferentes tipos.
Pelas razões expostas, entendemos que a AAD compartilha o saber corrente de que, no seio das relações sociais vigentes, neoliberais e hegemônicas, tanto o dizer quanto as coisas ditas podem estar intimamente relacionados, de um lado, a um tipo de agir comunicativo, assentado e alimentado por práticas discursivas que enquadram o outro, o diferente, o desigual e o antagônico a partir de uma concepção de mundo egocêntrica, narcísica, meritocrática e dominadora; e, de outro, a um jogo discursivo alternativo, de resistência e de insurgência que se contrapõe à discursividade e à comunicação violenta e compromete-se em instaurar uma ordem discursiva pacífica de caráter ético, que funciona como matriz do reconhecimento, da valorização e do cuidado do outro e em favor de sua singularidade identitária e cidadã: isso se manifesta em um modo de vida.
Desalojar o signo da violência e suas discursividades enunciativas favorece tanto a produção sistemática do saber sobre o agir comunicativo, em geral, quanto o autoconhecimento dos nossos modos pessoais de dizer o que pensamos e queremos ou não queremos e não pensamos; dizeres que, de uma maneira ou de outra, efetivamente dizemos. O esvaziar-se de si e o cuidado de si e do outro exigem, portanto, no sentido arqueológico, conhecer o discurso que institui a linguagem que usamos nos diversos tempos e lugares em que estamos envolvidos nos processos de comunicação.
Nesse interim, emergem experiência da educabilidade do indivíduo-pesquisador que se vê implicado com a necessidade de aprender, no curso da pesquisa, modos de conceber, dizer e agir investigativos pautados na alteridade, premissa arqueológica fundamental que move e regula a relação epistemológica do pesquisador com seu objeto e suas fontes de pesquisa. As aprendizagens do ser paciente, respeitoso, tolerante, disponível, disposto, descentrado em face da escuta do outro e do que tem a dizer são desenvolvidas no desenrolar da educabilidade proporcionada durante o processo de concepção e execução da pesquisa arqueológica. Aprendizagens que, de um modo ou de outro, acaba por constituir o indivíduo que assume a posição de pesquisador. Aprendizagens, diga-se de passagem, sem as quais o pesquisador não conseguiria determinar a especificidade de seu objeto enunciativo e escolher adequadamente suas fontes de escavação, bem como não conseguiria analisar arqueologicamente a ordem discursiva pretendida. Nessa perspectiva, entendemos que a AAD se caracteriza como um domínio formativo das pessoas. Domínio no qual se aprende a alteridade através da realização da pesquisa.
Enfim, concluímos a partir da análise empreendida que, de fato, a AAD apresenta efetivas contribuições para a instauração de práticas e processos educativos assentados na alteridade.