Introdução
Uma escrita que inicia e se movimenta pelas micropolíticas da vida e do desejo
Esta escrita visa potencializar um convite-desejo em prol de uma docência trajetiva na e pela vida na educação de surdos. Entendemos o contexto educacional como uma trama de forças macro e micropolíticas que afetam e produzem incessantemente as subjetividades, diante das tentativas históricas e ainda contínuas de colonizar a vida e o desejo. Urge um pensar e um agir pedagógico outro que possa re-existir para:
[...] multiplicar vozes dissonantes e insurgências no mundo colonial capitalístico contemporâneo para escapar aos agenciamentos do cientificismo moderno que solidificam o pensamento em torno de sociedades, coletividades, individualidades, subjetividades, tempos e espaços políticos, sociais, culturais. Criar, dentro e fora desses estratos, forças e fluxos como outras linhas e formas de pensar (re)existências, outros mundos possíveis nesse mundo presente, é o desafio em construção (Voss, 2020, p. 222).
Neste contexto, entendemos ser necessário pensar as relações de docência e educação de surdos em prol da resistência da presença-vida surda na escola comum, distanciando-nos do “[...] sujeito racional, [d]as causas únicas e universais, [d]as metanarrativas, [d]a linearidade histórica, [d]a noção de progresso, [d]a visão realista de conhecimento [...]” (Meyer & Paraíso, 2012, p. 26), entendendo-o como um sujeito cultural produzido constantemente em meio aos assujeitamentos sociais e educacionais. Nesse viés, intencionamos transgredir os universalismos e essencialismos de uma docência com surdos na escola comum, acolhendo a perspectiva pós-estruturalista como força epistemológica e metodológica para fazer pesquisa, pois essas lentes:
[...] tem nos lembrado constantemente de que podemos sair do aprisionamento, da fixidez, do essencialismo metodológico, e tem nos mobilizado a buscar, a encontrar novos modos de fazer pesquisa em educação. Já é possível suspeitar das práticas e dos saberes instituídos e dos sentidos produzidos pelos conceitos fixos e estáveis; já é possível desnaturalizar o que se apresenta como natural e absoluto e estranhar o que se apresenta como familiar e normal (Tedeschi & Pavan, 2017, p. 13).
Sob a perspectiva pós-estruturalista, com as contribuições dos filósofos Foucault, Deleuze e Guattari, junto a outros autores intercessores de seus pensamentos, lançamo-nos a encontrar um itinerário de pesquisa em que pudéssemos problematizar a docência com surdos na escola comum, construindo um caminho que nos permitisse resistir e re-existir às “[...] experiências educativas dos claustros fundamentalistas que circunscrevem a subjetividade humana ao esteio dos limites das verdades que pretendem refletir e reproduzir o mesmo” (Carvalho, 2010, p. 139).
Fomos instigadas a acolher a perspectiva pós-estruturalista pela possibilidade de subverter e transgredir a lógica moderna e estruturalista, com seus discursos e verdades, e pela “[...] potencialidade dessa perspectiva epistemológica e metodológica para a pesquisa em educação [...]” (Tedeschi & Pavan, 2017, p. 13), proporcionando, pelo pesquisar, problematizações outras, sempre multiplicadoras, desviantes, rizomáticas.
Nesse sentido, elegemos “[...] o pensamento como estratégia [...]” (Deleuze, 1992, p. 119-120) “[...] para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga” (Deleuze, 1992, p. 176), acolhendo a trajetividade como itinerário de uma vida-pesquisa. Operamos com a trajetividade (Virilio, 1993) porque ela mobiliza o meio, o entre, sendo potência porque se irrompe a “[...] possibilidade não apenas de trajetos, porém, de novos trânsitos entre o que se tem - o objetivo - o que se pode extrair do que se tem - o subjetivo” (Carvalho, 2021, p. 49). Exploramos a trajetividade como possibilidade teórico-metodológica para que a professora-pesquisadora1 pensasse sobre o vivido nos processos de escolarização de surdos na escola comum a partir de suas experiências-marcas, que serão exemplificadas ao longo desta escrita, como oportunidade de produzir-se outra pelo encontro, no momento presente e de produção de pesquisa, com esses acontecimentos e suas problematizações.
A professora-pesquisadora, a partir da trajetividade, compôs uma vida-pesquisa entre o objetivo e o subjetivo, o passado e o presente, entre si e com outros-juntos2 na educação, distanciando-se dos aprisionamentos e relações binárias para mobilizar a insurgência da vida na e pela coexistência. Neste sentido, o objetivo central deste artigo é apresentar a noção de trajetividade como um operador teórico-metodológico, alinhada a uma perspectiva pós-estruturalista, enquanto potência na composição de uma escrita-vida-pesquisa que se ocupa de pensar os modos de produção de uma docência e educação outra com surdos na escola comum.
Encontramos pistas interessantes na trajetividade para pensá-la como possibilidade de libert(ação) com relação aos trajetos já instituídos e legitimados do pensar, pesquisar e estar na educação. Entendemos a trajetividade como uma força estratégica para uma problematiz(ação) da “[...] consolidação naturalizada dos trajetos [...] pelos quais passamos a viver, a sentir, a querer, [...] rumos pelos quais aceitamos as coisas como se não fossem invenções históricas e como se não pudessem ser diferentemente do que são” (Carvalho, 2016, p. 4).
Desejamos pesquisar na e pela perspectiva pós-estruturalista pela liberdade de composições e bricolagens metodológicas outras que ela possibilita e também pela tentativa de desconstruir as epistemologias que visam fixar e homogeneizar saberes e sujeitos. Afinal, conforme Corazza (2007), nas teorizações pós-estruturalistas não encontramos:
[...] nenhum critério que autorize alguém a selecionar esta ou aquela metodologia de pesquisa. Justo porque não é por tal ou qual método que se opta, e sim por uma prática de pesquisa que nos ‘toma’ no sentido de ser para nós significativa. E como nos toma? Ora (e é aí que estamos a pleno no labirinto ‘pós’), cada prática de pesquisa é uma linguagem, um discurso, uma prática discursiva, que sempre está assimilada pela formação histórica em que foi constituída. Formação histórica esta que marca o lugar discursivo de onde saímos; de onde falamos e pensamos; também de onde somos faladas/os e pensadas/os; de onde descrevemos e classificamos a(s) realidade(s) (Corazza, 2007, p. 120-121, grifo do autor).
Acolhendo a trajetividade como uma prática de vida-pesquisa, propomo-nos a apresentar, na seção seguinte deste artigo - ‘A trajetividade: o que pode este movimento teórico-metodológico?’ -, sua força ética e estética pela trajetividade de si, com os outros e junto à educação e à escola. Na segunda seção, ‘Escrita ensaística: a (de)formação de eu trajetivo’, destacamos a importância da escrita ensaística operando neste movimento. E, por último, compartilhamos um convite-desejo para seguir pensando, pela potência que encontramos na trajetividade, na composição de uma escrita-vida-pesquisa imprevisível e incessante.
A trajetividade: o que pode este movimento teórico-metodológico?
As pesquisas em educação são produzidas a partir da escolha entre diversas perspectivas epistemológicas, teóricas e metodológicas. Nesta escolha, traçamos nosso itinerário de pesquisa decidindo operar com a trajetividade enquanto um movimento teórico-metodológico, a partir dos estudos de Virilio (1993), ao explicar que:
[...] entre o subjetivo e o objetivo parece não haver lugar para o trajetivo, este ser do movimento do aqui até o além, de um até o outro, sem o qual jamais teremos acesso a uma compreensão profunda dos diversos regimes de percepção do mundo (Virilio, 1993, p. 107).
A esse respeito, vale salientar que a pesquisa ancorada na perspectiva pós-estruturalista permitiu-nos eleger a trajetividade como um itinerário de pesquisa que acolheu e conversou com a experiência da professora-pesquisadora como material empírico.
Compor o viver-pesquisar como um “[...] caminho que se abre ao tempo em que se caminha [...]” (Larrosa, 2003, p. 112) é abrir a possibilidade de estar à espreita do que se é para acolher o que se está tornando, reconhecendo o imprevisível na educação e na vida pelos encontros. Assim, o pesquisador, ao escolher o movimento teórico-metodológico que opera pela trajetividade, permite-se viver-pesquisar pelo entre:
[...] entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio (Deleuze & Guattari, 2014, p. 49).
Nessa atmosfera, a problematização da pesquisa “[...] seria menos da ordem de uma solução e mais de um horizonte de maquinação [...]”, ou seja, a possibilidade de “[...] maquinar um problema, abri-lo em suas forças, multiplicar as possibilidades de conexões, de contágios entre essas forças” (Ribeiro, 2020, p. 177). Assim, acolhem-se também outras leituras, outras compreensões, outras novas inquietações na e pela pesquisa, distanciando-se da produção de verdades universais para pensar os problemas educacionais.
A maquinação do problema de pesquisa passa a configurar-se “[...] não como um ajustamento de representações, mas como um trabalho do pensamento [...]” (Foucault, 2014, p. 227) que possibilita ao pesquisador ser e estar sendo produtivo, criativo, inventivo no e pelo processo de pesquisa. Um modo de pesquisar que o coloca vigilante aos caminhos metodológicos já instituídos e também crítico aos saberes que produz e que o produzem. Além disso, o instiga a ser desviante, uma vez que força o pensamento na e pela empiricidade dos acontecimentos de sua pesquisa, não indicando
[...] aonde pesquisador e pesquisa devem ir, muito menos de que modo, mas aguça-se o desejo de que se coloquem e se percebam em movimento de pesquisa, o mais breve possível. Colocar-se em movimento, como condição de possibilidade de esgotamento de um desejo de pesquisa, que transborde pelo que lhe sobra em potência (Araujo & Corazza, 2017, p. 237).
Neste viés, percorremos os caminhos investigativos na pesquisa de mestrado por meio do seguinte problema de pesquisa: como o professor pode funcionar na função-educador com a presença do surdo na escola comum? Afinal, conforme Corazza (2007, p. 119), o problema de pesquisa nasce de “[...] atos de rebeldia e insubmissão, das pequenas revoltas com o instituído e aceito, do desassossego em face das verdades tramadas, e onde nos tramam”.
Pela trajetividade, o pesquisador produz e vai produzindo-se pelo que se passa no meio, no entre de uma existência-docência. Vai constituindo-se sujeito da experiência, “[...] esse sujeito que temos caracterizado já como aberto, vulnerável, sensível e ex/posto” (Larrosa, 2011, p. 18). A professora-pesquisadora-trajetiva permitiu-se pensar nas práticas de educação experienciadas, nas posições que ocupou e ocupa no cenário educativo, nas maneiras de escolar com os sujeitos envolvidos.
A escolha pela trajetividade também aconteceu pela leitura-encontro da professora-pesquisadora com a obra literária brasileira Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Pela narrativa, é possível colocar-se em travessia de si, pois é este o movimento que o personagem principal - Riobaldo - experimenta para pensar o vivido, à medida que conversa com um interlocutor que não se manifesta aberta e explicitamente. Uma conversa não sobre “[...] uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas [sobre] a matéria vertente [...]” (Rosa, 2019, p. 77), pois Riobaldo retoma os acontecimentos do passado, não com o intuito de compreendê-los, mas sim de produzir-se com estes acontecimentos, pela possibilidade de novos encontros, afetamentos e significados. Este movimento possibilita a matéria-vertente para outros possíveis de si, numa subjetividade que se coloca permanentemente em travessia.
Acreditamos que “[...] entre si e si mesmo, abre-se a distância de uma obra de vida a ser realizada” (Gros, 2006, p. 135). Assim, a pesquisa pela trajetividade assume um movimento ético e estético que funciona como tentativa de colocar-se sempre em experimentação e, consequentemente, no encontro subjetivo com a invenção de outros possíveis de si, enquanto uma afirmação de obra de vida a ser continuamente realizada. Também, a trajetividade com o outro favorece o encontro como potência para novas relações e a afirmação de suas singularizações e multiplicidades, que se movimentam pelo coletivo. Por meio desse exercício de trajetividade de si e com o outro, cunhado no contexto da docência, elegemos como materialidade da trajetividade as experiências-marcas. Ao articulamos as noções ‘experiências’ e ‘marcas’, dos autores Jorge Larrosa (2016) e Sueli Rolnik (1993), respectivamente, conseguimos fazer operar uma força enunciativa capaz de transformar os achados empíricos em monumentos discursivos. Nesse sentido, as experiências de docência no campo da educação de surdos, os acontecimentos ocorridos no cotidiano da sala de aula, a relação entre professora, intérprete de Língua Brasileira de Sinais (libras) e estudantes (surdos e ouvintes) se constituíram nas materialidades discursivas da pesquisa.
No contexto deste estudo, a noção de experiência cunhada por Larrosa (2016, p. 28, grifo do autor) é apresentada como “[...] aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e, ao nos passar, nos forma e nos transforma [...] o sujeito da experiência está aberto à sua própria transformação [...]”, sendo compreendida enquanto um caminho de passagem, por isso, singular, provisório, cambiante pelo movimento de exteriorização consigo e com os outros e/ou junto a outras coisas.
Já o conceito de marcas, para Rolnik (1993), são estados inéditos produzidos em nossa existência por meio das composições que vamos vivendo. Para ela, “[...] cada um destes estados constitui uma diferença que instaura uma abertura para a criação de um novo corpo, o que significa que as marcas são sempre gênese de um devir” (Rolnik, 1993, p. 242). Portanto, compreendemos as marcas como afetamentos na/pela potência da experiência, que instauram a abertura de um devir.
Escolhemos maquinar as experiências-marcas enquanto um movimento de pensar o vivido por meio de alguns acontecimentos de uma docência na escola comum, entendendo que “[...] um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois” (Benjamin, 1986, p. 37). Os questionamentos foram o caminho escolhido como disparador para maquinar as experiências-marcas. Elegeram-se, para tanto, algumas problematizações de acontecimentos da docência da professora-pesquisadora com surdos na escola comum para pensar e problematizar o que foi vivido.
Para ilustrar o modus operandi pelo qual transitamos no contexto da pesquisa, destacamos uma das experiências-marcas:
[...] ‘um novo estudante surdo: que alegria!!! Meu Deus, como ele não sabe LIBRAS? E agora?’ Alegria. Espanto. Pode a escola comum ser a única referência surda desta existência? Pode sim! A experiência com o estudante surdo mostrou-me isso e me trouxe um novo desafio: a alfabetização em LIBRAS. Junto a isso a oportunidade de enxergar este estudante como uma vida singular, o que não aconteceu de imediato. Penso o vivido nesta experiência-marca, reconhecendo o processo de sujeição e a condução de conduta desta vida surda que produzi. Desde a chegada desse novo estudante, fiz comparações com a estudante surda pela sua relação com a língua de sinais, pela sua relação com outros surdos. Ainda, constituída pela produção discursiva, engessei-o a partir da identidade surda, entendendo que todo surdo deve saber LIBRAS e ter pertencimento cultural com a comunidade surda. Conforme Lunardi (2003, p. 1), quando o sujeito surdo passa a ser “descrito, mensurado e comparado a outros e a si em sua própria individualidade, ele é passível de ser classificado, treinado, recuperado e normalizado” e, acrescento, colonizado. Assim, destaco a LIBRAS enquanto um dispositivo maquínico que produz o governamento e que normaliza os corpos surdos. A forma como eu fui sendo capturada por esta produção discursiva mostra o “susto” que tive ao saber que o novo estudante surdo não conhecia a LIBRAS. Foi conhecendo-o melhor, não pela anamnese, mas sim pelas relações com ele no cotidiano escolar, no exercício de sua alfabetização em língua de sinais, que o compreendi como uma vida, logo, singular. Revivo esta experiência-marca, percebendo todas as subjetividades na escola comum enquanto ‘matéria-prima viva e mutante a partir da qual é possível experimentar e inventar maneiras diferentes de perceber o mundo e de nele agir’ (Mansano, 2009, p. 112). Pelo que já pude compartilhar, destaco que as subjetividades surdas na escola comum podem estar mais facilmente expostas a assujeitamentos e suas diferentes formas de produção. Esta experiência-marca também me acionou a questionar como estar à espreita de estratégias pedagógicas de normalização. Como produzir outros possíveis na educação de surdos que rompam com a lógica da classificação e normalização? Como identificar, problematizar, transgredir quando está tão naturalizado? (Dell’ Osbel, 2022, p. 46-47, grifo nosso).
Percebe-se, neste fragmento da experiência-marca, que a professora-pesquisadora pensa sobre o vivido, compreendendo as tramas e as produções de saber-poder-verdade em que esteve e está implicada, em um movimento de problematização que, segundo Foucault (2003, p. 390), “[...] é sempre uma classe de criação”. Desse modo, a materialidade das experiências-marcas possibilitou colocar-se à espreita de si, do outro e das relações que acontecem/aconteceram na escola para outros possíveis pela insurgência do que foi problematizado. Conforme Carvalho e Gallo (2022), faz-se necessário e urgente que:
[...] voltemos à prática fundamental da filosofia: fazer indagações. Começamos a renunciar à pobreza de nossa condição subjetiva quando indagamos pelas conexões que nos fizeram chegar até aqui, sendo o que somos, pensando o que pensamos, querendo o que queremos, fazendo o que fazemos. Calar a força da indagação, isso não desejamos (Carvalho & Gallo, 2022, p. 162).
A perspectiva pós-estruturalista, ademais de todo o já mencionado, reforça a potência da indagação, elemento que possibilitou à professora-pesquisadora-trajetiva encontrar caminhos para “[...] exercitar a suspeição sobre a própria formação histórica que nos constituiu e nos constitui, e interrogá-la sobre se tudo o que dizemos é tudo o que pode ser dito, bem como, se aquilo que vemos é tudo o que se pode ver” (Corazza, 2007, p. 119). As experiências-marcas mobilizaram um encontro-problematizador enquanto matéria vertente para compreensões outras de docência e de relações educativas, para a constituição de saberes outros sobre a educação com surdos e entre outros-juntos na educação.
Deste modo, a pesquisa acontece, com a possibilidade de poder retornar e pensar novamente, de sentir novamente, não como forma de atualizar uma forma; mas como um modo de modificar outro modo, inclusive ele mesmo; um vir a ser recorrentemente possível a cada momento;variáveis em uma variação contínua em uma alternância de estados, em que cada rabisco pode traçar a diferença que puder inventar. Investimento em um olhar de cuidado com a pesquisa e com o pesquisador, no sentido de aproximar como estes se tornam o que são a cada instância da relação; e como e porque uma diferença acontece (Araujo & Corazza, 2017, p. 244).
Assim, foi possível problematizar e produzir sentidos outros pelo entre, pelos fluxos de uma existência-docência que se colocou trajetiva, “[...] pois o trajetivo pressupõe o escape, a fuga, o deslizamento” (Carvalho, 2018, p. 124). Compreendendo que a trajetividade se faz pelo meio, as experiências-marcas foram operadas entre os pensamentos, sem a marcação de quadros e/ou um início e fim analítico, mas mostrando o transbordamento pelo meio, que se fez possível também por uma escrita ensaística.
Pela maquinação das experiências-marcas, a professora-pesquisadora foi envolvida pelo movimento da hipercrítica que possibilitou “[...] cortar a própria carne, puxar o tapete que está sob nossos próprios pés” (Lopes & Veiga-Neto, 2010, p. 160). Nesse movimento, colocou-se trajetiva a um passado que ganhou força vital, “[...] não pelos anos que se já passaram, mas pelas astúcias que são certas coisas passadas - de fazer balancê, de se remexerem dos lugares” (Rosa, 2019, p. 136).
Ao envolver-se em uma escrita ensaística “[...] para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga [...]” (Deleuze, 1992, p. 176) para si e para o outro, a pesquisadora-professora problematizou a presença-vida dos estudantes surdos pelas experiências-marcas de sua docência. Na experiência-marca compartilhada neste estudo, é possível reconhecer os efeitos da produção discursiva e a colonialidade ouvinte no fazer pedagógico com surdos na escola comum.
No exercício trajetivo de pensar o vivido, percebemos nesta experiência-marca a constituição de uma poderosa rede discursiva que produziu e ainda produz em sua docência um regime de verdade sobre a escolarização de surdos. Como efeito, tem-se a ‘libras’ com seu forte acento linguístico pela educação bilíngue que, muitas vezes, é vista como a única garantia de qualidade dos processos de escolarização com surdos. Reiteramos que ela precisa estar presente, e de forma viva, nas relações e em seus multiletramentos, mas, além da língua de sinais, outros atravessamentos acontecem neste coletivo, atravessamentos singulares, múltiplos, vivos, culturais que também precisam ser considerados nos processos de ensino e de aprendizagem com surdos. Pela engrenagem discursiva, a ‘libras’, muitas vezes, passa a funcionar como um dispositivo maquínico que governa os corpos surdos ao colocar-se como uma verdade inquestionável.
Ainda, percebemos que se deixa de reconhecer o surdo e sua experiência singular com a língua e a cultura para engessá-lo em um ‘ideal’ identitário e de sujeito cultural; deixa-se de aventurar-se no encontro com esta singularidade e com outros-juntos na educação para traçar um caminho já desejado, instituído e previsível, destruindo a potência da multiplicidade e criação. Para tanto, temos o desafio de “[...] possibilitar a entrada em cena de uma educação outra, ou de transformações, saindo da mesmidade discursiva que teorizamos há tanto tempo sobre a educação de surdos” (Martins, 2016, p. 720). Percebemos que reconhecer o estudante surdo como uma singularidade e enquanto outros-juntos na educação, pela ótica da filosofia da diferença, é uma tentativa de libertação dos fluxos de forças e verdades que produzem a normalização e a exclusão do surdo na educação com práticas coloniais e de governamento, aniquilando suas distintas formas de vida.
A colonialidade ouvinte, tramada pelo projeto universal e essencializado de sujeito moderno, visa lugarizar, hierarquizar existências, línguas e saberes. Por isso, entendemos que a escola comum possa ser um espaço-tempo em
[...] que a sujeição e a normalização do surdo podem [...] ganhar fortalecimento pela constituição discursiva da colonialidade ouvinte, uma vez que ela se mantém com suas estruturas de poder dominantes, com seus modos hegemônicos de produção do saber e pelas estratégias de condução da vida surda (Dell’ Osbel, 2022, p. 40-41),
como o disciplinamento e a normalização que coloca em funcionamento.
[...] quando operamos em nossas pesquisas com a leitura desconstrutora das categorias que foram fixadas, naturalizados e universalizadas - como é o caso da verdade, do discurso, do sujeito, do poder, das identidades e das diferenças- Abrimos possibilidades de produzir em incentivar a diferença, a invenção de outros significados e/ou de outras imagens de pensamento. Abrimos possibilidades de visibilizar o que foi invisibilizado pelo discurso hegemônico. A desconstrução, nesse caso, age no interior dos discursos educacionais hegemônicos, que, em certa medida, ainda sustenta um pensamento moderno ocidental, como uma forma de interrogá-los, de desestabilizá-los e, por conseguinte, de ampliar os seus limites, de ampliar as possibilidades de pensar os processos educativos (Tedeschi & Pavan, 2017, p. 5).
Pensando na problematização desses efeitos na produção discursiva em que está assentada a educação escolarizada-colonizada de surdos e a necessidade de apresentar a operacionalização da trajetividade, na pesquisa de mestrado foi possível compreender como o professor pode funcionar na função-educador com a presença do surdo na escola comum, a partir das trajetividades. A função-educador, noção intercessora da função-autor, de Foucault, é defendida por Carvalho (2010) como um exercício docente que, na sua postura e prática, coloca-se aberto, exposto, alterável, contribuindo como força estratégica de libert(ação) para romper com os continuísmos pedagógicos, com as verdades ditas sobre os modos de se fazer docência e educação, a favor de uma subjetivação mais ativa de si e também do outro.
Compreendemos que a função-educador opera com a trajetividade e tem a possibilidade de
[...] firmar o que escapa, de modo que passagens de ar perpassem um corpo que experimenta a docência, bagunçando os papéis e modelos que a palavra docência aglutina em torno de si, [...] para que se possa dizer, escrever, pensar, inventar docências outras, singulares (Garlet, 2018, p. 13),
Ou seja, como possibilidade de artistar um docência trajetiva em meio às relações de saber-poder-verdade em que somos produzidos e que também produzimos.
Portanto, compreendemos a trajetividade enquanto matéria vertente (Rosa, 2019) para “[...] desautomatizar as percepções, os gestos, os modos de fazer. Desautomatizar as pedagogias dominantes. Fugir aos automatismos que combatem a criação, a variação [...]” (Tóffoli & Kasper, 2018, p. 91), para inventar docências singulares na e pelo movimento trajetivo com outros-juntos na educação.
Entendemos que a trajetividade produz três grandes movimentos em uma existência-docência, estes não reconhecidos como separáveis, mas cofuncionantes: a trajetividade de si, a trajetividade com os outros e a trajetividade junto às coisas. Vemos, na trajetividade e em seus movimentos, indícios importantes para ensaiarmos o convite a que Deleuze nos instiga (1992, p. 124): “[...] será que temos maneiras de constituirmos [...], como diria Nietzsche, maneira suficientemente artista, para além do saber e poder?”.
A trajetividade de si envolve “[...] operações de si sobre si mesmo [...]” (Foucault, 2004, p. 199) como possibilidade de pensar, indagar, deformar e transformar a sua existência em um movimento de subjetivação constante de si. Ao valorizar as experiências-marcas de sua docência e ao aventurar-se em uma escrita ensaística entre elas, a pesquisadora mobilizou seus processos subjetivos em um movimento de ir-se a si.
A trajetividade com os outros mobiliza as relações com o outro. Assim, no contexto da pesquisa, buscou-se pensar nas relações com estudantes, com colegas professores e também com a intérprete na educação em meio aos (des)encontros. A trajetividade com os outros permite afetar e ser afetado “[...] pelo nosso interesse uns pelos outros, por ouvir a voz um dos outros, por reconhecer a presença um dos outros” (Hooks, 2017, p. 17). Ainda, ela possibilita romper com os “[...] tipos de ligações estabelecidas entre o poder, a verdade, o discurso e o cotidiano à medida que leva em consideração todo o tipo de relação que está em jogo na constituição de subjetividades [...]” (Carvalho, 2010, p. 103), valorizando a vida singular, provisória, pulsante.
A trajetividade junto às coisas, por sua vez, é a andarilhagem pelo processo junto às relações e saberes. No contexto de pesquisa sobre educação com surdos na escola comum, foi possível pensar sobre a trajetividade entre línguas e culturas diferentes e as relações de saber-poder-verdade. A trajetividade junto às coisas também valoriza o acontecimento vivo da sala de aula, permitindo que o educador e seu coletivo coloquem-se trajetivos ao cotidiano, visto como um universo múltiplo, híbrido e fronteiriço. Esta trajetividade ganha força nos afetos e desejos, valorizando a presença-vida de cada envolvido no processo, mobilizando:
[...] os seus sujeitos a pensarem de modo diferente, a quererem se relacionar pelos fluxos de afetos sensíveis mais próximos às singularidades e às multiplicidades humanas, a indagar o conhecimento fora do eixo das verdades meramente aplicadas e lucrativas, e, não menos importante, a produzir condições para que a vida pudesse se afirmar pela via do desejo (Carvalho & Gallo, 2022, p. 638).
Nesse sentido, pensamos a trajetividade no plural, pela potência de produções que seus movimentos implicam, como modos outros de pesquisar, pensar e estar na educação. O exercício trajetivo entre suas experiências-marcas e a experimentação investigativa em que a professora-pesquisadora esteve imbricada produziu modos outros de pesquisar, contribuindo para a produção de “[...] uma singularidade própria na existência das coisas, dos pensamentos e das sensibilidades [...]” (Guattari & Rolnik, 2005, p. 213) sobre sua docência e a educação com surdos, distanciando-se dos caminhos metodológicos educacionais impostos, costumeiros e aceitos, para aventurar-se em novas (com)posições de pesquisar e, consequentemente, ser e estar na educação.
Neste movimento de pesquisa, a mobilização do pensamento também acontece, por isso, compreendemos modos outros de pensar como possibilidade,
[...] primeiramente, [de] ver e [de] falar, mas com a condição de que o olho não permaneça nas coisas e se eleve até as visibilidades, e de que a linguagem não fique nas palavras ou frases e se eleve até os enunciados [...] Além disso, pensar é poder, isto é, estender relações de força, com a condição de compreender que as relações de força [...] constituem ações sobre as ações, ou seja tais como “incitar, induzir, desviar, facilitar ou dificultar, ampliar ou limitar, tornar mais ou menos provável [...] (Deleuze, 1992, p. 119-120).
A professora-pesquisadora anunciou pelas experiências-marcas também a trajetividade como um modo outro de estar na educação, uma vez que sua docência, pela força do encontro de outros-juntos na educação, potencializou a formação de um coletivo. Um coletivo que, nas suas multiplicidades, foi envolvido por relações éticas e estéticas consigo e com o outro e a favor da diferença na educação e pode despertar saberes e relações outras, tomando distância das formas de ver, pensar, ser, viver e conviver presentes na matriz moderna/colonial em que fomos produzidos.
Dessa forma, entendemos que a trajetividade mobiliza a fuga, o deslize e as cocriações pelas forças do meio para novas relações e produções outras, de vida e de educação. Afinal, “[...] resistir é re-existir, existir de novo, afirmar as potências da vida [...]” (Gallo, 2017, p. 91), de modo que possamos recusar os assujeitamentos e o uno, para nos constituirmos a partir de novas formas de subjetividade e pelas múltiplas formas de vida.
Escrita ensaística: a (de)formação do eu trajetivo
A perspectiva pós-estruturalista “[...] não apenas questiona essa noção de verdade; ela, de forma mais radical, abandona a ênfase na ‘verdade’ para destacar, em vez disso, o processo pelo qual algo é considerado como verdade” (Silva, 2007, p. 123-124, grifo do autor). Dessa maneira, movimentamos, na pesquisa de mestrado, o exercício de hipercrítica de uma professora a fim de problematizar discursos e verdades de um cenário educativo de educação colonizada-escolarizada de surdos.
Entendemos essas verdades, a partir das contribuições de Foucault, como constituição de uma forte e perversa produção discursiva, na medida em que “[...] o discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos [...]” (Foucault, 2014, p. 46) que produz modos de educar e relacionar-se com surdos.
Buscando percorrer essas verdades na produção da docência, encontramos conexão com a escrita ensaística porque ela “[...] negligencia a certeza indubitável, como também renuncia ao ideal desta certeza [...] pela marcha de seu pensamento, que o leva para além de si mesmo” (Adorno, 2003, p. 32). Assim, decidimos ensaiar resistências aos claustros fundamentalistas de saber-poder-verdade a que estamos submetidos por uma escrita ensaística que coloca em suspensão, a priori, verdades inquestionáveis em prol de uma mobilização de pensamento.
Além disso, Bell Hooks nos instigou a pensar que “[...] não pode haver intervenção [na/pela vida] que desafie o status quo se não estivermos dispostos a questionar o modo como não só nosso processo pedagógico, mas também nossa autoapresentação costumam ser moldados” (Hooks, 2017, p. 245). Para tal, vislumbramos uma educação outra de surdos que (de)forma sua existência-docência pela escrita ensaística e pelas experiências-marcas vividas com estudantes surdos na escola, constituindo-se imprevisível a partir de um movimento trajetivo de pesquisar.
A partir dos estudos de Larrosa (2003) e Adorno (2003), entendemos a escrita ensaística como uma experimentação do pensamento, uma escrita-vida em ensaio de si mesma, que permite uma imersão subjetiva e trajetiva na e pela escrita na primeira pessoa, já que “[...] escrever é traçar, é devir sempre outro. Escrever é esculpir com palavras a matéria-prima [...]” (Rolnik, 1993, p. 246).
O ensaio, em sua escrita-devir, possibilita borrar as fronteiras entre ciência, filosofia, literatura e arte, oportunizando maior liberdade ao pesquisador. Conforme Larrosa (2003, p. 111), “[...] o ensaio é fragmentário, parcial e seleciona fragmentos como sua matéria. O ensaísta seleciona um corpus, uma citação, um acontecimento, uma paisagem, uma sensação, algo que lhe parece expressivo e sintomático, e a isso dá uma grande expressividade”.
Destacamos que a professora-pesquisadora realizou uma escrita ensaística que acolheu trechos da obra literária Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, afinal, “[...] sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar” (Rosa, 2019, p. 25). Além disso, ela utilizou registros fotográficos em cenários de seu cotidiano como experimentações de arte para pensar os movimentos do presente com as teorizações de sua pesquisa, produzindo encontros subjetivos potentes com essas diferentes linguagens e suas trajetividades.
O ensaio surge quando se abre a possibilidade de uma nova experiência do presente. Primeiro, quando o passado perdeu toda a autoridade e, portanto, volta a ser lido a partir do presente, mas sem nenhuma reverência, sem nenhuma submissão. Segundo, quando o futuro aparece como algo tão incerto, tão desconhecido, que é impossível se projetar nele. Terceiro, quando o próprio presente aparece como um tempo arbitrário, como um tempo que não foi escolhido, como um tempo que só pode ser tomado como uma morada contingente e provisória, na qual sempre nos sentiremos estranhos; como um tempo que escorre constantemente das nossas mãos, resistindo a qualquer uma das nossas tentativas de fixá-lo, de solidificá-lo, de traçar a sua forma e o seu perfil (Larrosa, 2004, p. 33).
As fotografias escolhidas para compor a escrita ensaística experimentada na pesquisa de mestrado retratam espaços não convencionais para pensar a educação, mostrando a trajetividade sendo vivida pelo que é possível produzir “[...] nas relações, no ‘entre’, seja entre as imagens e o pesquisador, entre as imagens e o texto, entre as imagens e o leitor, nos atravessamentos dos modos de leituras e produções de sentidos” (Neuscharank & Barin, 2018, p. 55, grifo do autor). Desse modo, selecionamos duas experimentações fotográficas para compartilhar neste estudo (Figuras 1 e 2).
A escolha pela escrita ensaística aciona um movimento de micropolítica de vida e de desejo, uma vez que se propõe a “[...] problematizar o modo como as políticas da verdade e as imagens do pensamento e do conhecimento, dominantes no mundo acadêmico, impõem determinados modos de escrita e excluem outros, entre eles o ensaio” (Larrosa, 2003, p. 102). Assim, entendemos que a escrita ensaística pode constituir-se como uma escrita-combate dos modelos metodológicos dominantes de se fazer pesquisa e a favor de uma subjetividade mais ativa do pesquisador pela movimentação da experiência e do pensamento:
Por isso, no ensaio, a crítica é, indiscutivelmente, um exercício de liberdade ou de libertação, uma ascese da liberdade. O ensaísta só pode confiar-se criticamente à própria experiência, só lhe resta experimentar, ver e fazer ver até onde é possível falar e pensar de outro modo, até onde é possível viver de outro modo. Por isso, não se trata, no ensaio, de cotejar a realidade com a ideia, mas de cotejar a experiência em relação à verdade do poder e ao poder da verdade (Larrosa, 2004, p. 39).
Aquino (2011, p. 633) nos provocou a esse exercício de liberdade ao defender “[...] uma escrita-combate que desafiasse determinações de múltiplas ordens, que alterasse destinos já traçados, que transformasse vidas indelevelmente. Uma escrita-arrebentação, por assim dizer [...]”, de um eu (de)formando-se em seu próprio processo de escrita, com uma movimentação constante pelos encontros com os sujeitos e acontecimentos de sua pesquisa. Também uma escrita arrebatação que, na sua coragem, forja novas possibilidades metodológicas pela capacidade de “[...] desterritorializar o pensamento, isto é, arrancar o pensamento da dimensão do pensável em que ele se encontra e lançá-lo em busca de outras dimensões [...]” (Lopes & Veiga-Neto, 2010, p. 159) não pensadas, não vividas, mas emergentes pela força do meio, do encontro de uma existência trajetiva e, por isso, aberta a novos trânsitos, a travessias.
Nesse sentido, a escrita ensaística contribuiu para que pudéssemos ensaiar a liberta(ação) de uma subjetivação mais ativa, afinal, na e pela pesquisa foi possível “[...] abandonar as marcas que nos constituem, mesmo que por alguns instantes, permitir que outras forças venham a nos compor, desfazendo o ‘eu’ soberano e detentor da verdade que nos habita, tomando a escrita como devires crianceiros e velocidades arteiras” (Olegario & Munhoz, 2014, p. 157, grifo do autor). A partir disso, foi possível cavar novos encontros conosco e com o(s) outro(s) pela desterritorialização de um pensamento que encontrou força na trajetividade.
Uma escrita ensaística compõe um devir-pesquisa, constituindo-se pelo entre e seus entrelaçamentos com os pensamentos e afetamentos do percurso investigativo. Um devir-pesquisa corrobora a resistência “[...] como insistência em existir vivo, re-existir em movimentos criadores de significado, moventes, renitentes [...]” (Aspis, 2012, p. 74) aos caminhos metodológicos sustentados por regimes de verdade que, epistemologicamente, nos direcionam a certos olhares e jeitos de fazer pesquisa.
Uma vez que “[...] o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia [...]” (Rosa, 2019, p. 53), entendemos a escrita ensaística enquanto movimento de travessia de si, um eu trajetivo que vai descobrindo-se pelo meio, traçando o percurso investigativo, (de)formando-se, transformando-se pelo devir-pesquisa que vai compondo.
Por fim, acreditamos que a escrita ensaística possibilita, junto à trajetividade, transgredir as normatizações e as prescrições dos modelos metodológicos dominantes, já que para “[...] mover-nos escrevemos e para escrevermos nos movemos” (Kohan, 2002, p. 124). Ou seja, uma escrita ensaística que vai constituindo um eu trajetivo que se descobre sempre imprevisível nos encontros consigo, com os outros e com os saberes que vai produzindo.
Considerações finais
Convite-desejo para seguir pensando: trajetividades e a composição de uma escrita-vida-pesquisa
Para as considerações - que esperamos que não sejam - finais deste artigo, propomo-nos a compartilhar um convite-desejo. Um convite porque a perspectiva pós-estruturalista nos instiga a expandir, fraturar e abrir-se para novos modos de pesquisar e estar na educação. Um desejo porque anunciamos a potência de uma docência trajetiva como um pensar e agir pedagógico para novas relações com surdos, a favor de suas subjetividades vivas, ativas e mutantes, transgredindo uma produção discursiva hegemônica e colonial sobre o surdo e seus processos de escolarização. Afinal, o desejo implica “[...] todas as formas de vontade de viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma outra sociedade, outra percepção do mundo, outros sistemas de valores” (Guattari & Rolnik, 2005, p. 261).
Encontramos nas palavras de Corazza (2007) força para apresentar este convite-desejo, que foi resultado de uma prática de pesquisa vivida por nós como:
[...] modo de pensar, sentir, desejar, amar, odiar; uma forma de interrogar, de suscitar acontecimentos, de exercitar a capacidade de resistência e de submissão ao controle [...]; de nos enfrentar com aqueles procedimentos de saber e com tais mecanismos de poder; de estarmos inseridas/os em particulares processos de subjetivação e individuação. Portanto, uma prática de pesquisa é implicada em nossa própria vida. A ‘escolha’ de uma prática de pesquisa, entre outras, diz respeito ao modo como fomos e estamos subjetivadas/os, como entramos no jogo de saberes e como nos relacionamos com o poder (Corazza, 2007, p. 121, grifo do autor).
De modo a potencializar este convite-desejo, retomamos o objetivo desta escrita - apresentar a noção de trajetividade como um operador teórico-metodológico, alinhada a uma perspectiva pós-estruturalista -, reconhecendo-a pela composição de uma escrita-vida-pesquisa que produz e é produzida a partir de um movimento ético e estético do pesquisador. A professora-pesquisadora pode maquinar seu problema de pesquisa, problematizando acontecimentos vividos na sua docência com surdos. Compreendemos que a trajetividade “[...] não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda” (Deleuze & Guattari, 2014, p. 43). Um meio potente para seguir pensando entre o objetivo e o subjetivo, para buscar novas experimentações, para produzir-se diferente do que se é. O pesquisador, pela trajetividade, potencializa as insurgências por transgredir aos trajetos já indicados, legitimados e verdadeiros de se fazer pesquisa, para arriscar-se a novos trânsitos.
Assim, a escrita ensaística torna-se um elemento importante de produção de trajetividades enquanto possibilidade de travessia de vida consigo, mas também travessia de vida com o outro. Conforme Aquino (2011, p. 647), a escrita ensaística possibilita “[...] o ponto exato de culminância entre escrita e vida, em que a primeira se oferece como modo e ocasião para a vertiginosa multiplicação de formas da segunda”. Nesse sentido, no contexto da pesquisa, tal escrita potencializou travessias na e pela vida por subjetividades ativas de si e do outro, pelas possibilidades do vir a ser, buscando problematizar as determinações de várias ordens, os assujeitamentos que já são/estão traçados, os processos educativos e seu mainstream.
Pelo movimento teórico-metodológico trajetivo, foi possível identificar na pesquisa de mestrado experiências-marcas de um processo educativo colonizador-ouvinte na docência com estudantes surdos na escola comum, reconhecendo marcas que provocam assujeitamentos aos modos de existência surda e aos modos de docência no contexto escolar. Entretanto, também foi possível reconhecer experiências-marcas que potencializam outras formas de convívio, de cumplicidade e de partilha de uma comunidade no território escolar, movidas pelas trajetividades.
Desta forma, acreditamos que a trajetividade enquanto movimento teórico-metodológico de fazer pesquisa vai ao encontro da afirmação de Deleuze acerca das contribuições nietzschianas para a filosofia: “[...] os modos de vida inspiram maneiras de pensar, os modos de pensar criam maneiras de viver. A vida ativa o pensamento, e o pensamento, por seu lado, afirma a vida [...]” (Deleuze, 1994, p. 17-18), constituindo-se um modo outro de pesquisar.
No encontro com a perspectiva pós-estruturalista como grade teórico-metodológica deste estudo, sentimos ressonância naquilo que nos faz “[...] trilhar caminhos diferentes dos estabelecidos, faz-nos resistir a práticas e saberes que se colocam como permanentes, a sentidos que se apresentam como fixos, a tempos e espaços que parecem lineares demais” (Tedeschi & Pavan, 2017, p. 13). A perspectiva pós-estruturalista nos mobilizou a “[...] uma coragem necessária para, em nossas [pesquisas], metodologias, encontrarmos saídas contra o aprisionamento e a fixidez de sentidos, os essencialismos, o ‘é isso’ ou o ‘deve-se fazer assim’” (Meyer & Paraíso, 2012, p. 32, grifo do autor), uma coragem de fazer pesquisa, de pensar e estar na docência e na educação em uma composição de vida sempre imprevisível e incessante.
Buscando também pensar a trajetividade como produção de uma docência e de uma educação outra com surdos na escola comum, apresentamos alguns recortes da andarilhagem da professora-pesquisadora em sua produção de mestrado que, em um movimento trajetivo, sinalizou modos outros de viver e estar na educação com surdos na escola comum. Compondo uma escrita-vida-pesquisa em que a vida foi ativando o pensamento, a professora-pesquisadora encontrou a oportunidade de vasculhar sua docência, mergulhar em seu processo de subjetivação, cavando fissuras no dado, no instituído.
Concomitante a isso, o pensamento afirmou a vida para “[...] deseternizar as maneiras como as coisas se dão a conhecer e podem ser conhecidas, como também tentar reposicionar o sujeito em relação a si mesmo e aos outros - seu destino malhado nas tramas do saber-poder-verdade” (Carvalho, 2010, p. 64). Assim, foi possível operar na e pela trajetividade de uma existência-docência vivida pela professora-pesquisadora através da matéria vertente, a fim de buscar respiros para docências outras na afirmação da presença-vida surda e nas trajetividades enquanto outros-juntos na escola comum.
Operamos com a presença-vida de surdos e outros-juntos na educação, na escola comum, como efeitos e relações emergentes das trajetividades. As trajetividades incitam a coexistência, a possibilidade de horizontalizar as relações, pluraliversalizar os saberes e, por meio disso, afirma-se uma educação ‘com’ surdos e não ‘de’ surdos na escola comum. Através deste movimento, resiste-se às sujeições e produções pelas relações de saber-poder-verdade, para que possamos lutar em prol de micropolíticas com o surdo, pois “[...] se ampliamos o horizonte do nosso olhar para abranger a superfície do mundo tal como [...] se configura na atualidade, constataremos que estamos diante da micropolítica de uma vida, individual ou coletiva, que logra reapropriar-se de sua potência” (Rolnik, 2018, p. 65).
Vislumbramos, assim, a produção de trajetividades como resistência e (re)existências que vazam incessantemente, desterritorializando, afetando e sendo afetadas, (de)formando os seus envolvidos e produzindo outras invenções de si, do outro e de educação, provocando fissuras na maquinaria das relações de saber-poder-verdade e suas formas macropolíticas de combater a diferença e as multiplicidades.
A trajetividade na e pela escrita-vida-pesquisa convida a novas formas de uma existência-docência, a uma educação outra de surdos, pelas micropolíticas da vida e do desejo. Ela contribui para alcançarmos “[...] outros modos de educar, outras maneiras de nos relacionar com e na educação; [...] de rascunhar intenções que se movem para arriscar a fazer o novo, a fazer-se de novo” (Carvalho & Gallo, 2022, p. 156-157). Assim, convidamos a pensar: quais trajetividades produzimos e podemos ainda produzir? E também reafirmamos o desejo: o que pode uma vida-docência-pesquisa movida pela trajetividade?