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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.47  Maringá  2025  Epub 01-Dez-2024

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v47i1.65696 

HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Educação para a paz e novas tecnologias: desafios e possibilidades no Brasil contemporáneo

Educación para la paz y nuevas tecnologías: desafíos y posibilidades en el Brasil contemporâneo

Luís Fernando Lopes1  * 
http://orcid.org/0000-0001-7925-9653

André Luiz Moscaleski Cavazzani1 
http://orcid.org/0000-0003-1512-3639

1Programa de Pós-graduação em Educação e Novas Tecnologias, Centro Universitário Internacional Uninter, Av. Luiz Xavier, 103, 80020-020, Curitiba, Paraná, Brasil.


RESUMO.

Este estudo, de caráter bibliográfico, tem como objetivo apresentar algumas reflexões sobre a temática da educação para a paz e as novas tecnologias, considerando os desafios e as possibilidades de promover a educação para a paz, a integração das novas tecnologias de informação e comunicação e o seu potencial enquanto suportes para a promoção do diálogo, da comunicação e do intercâmbio, atividades necessárias para que a concretização da cultura da paz seja possível. As fontes utilizadas consideram dados de documentos exarados pelo(a): Credit Suisse Research Institute (2022), Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022), Foundation for Young Australians (2017), Stockholm International Peace Research Institute (2022) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2018, 2019). As tecnologias de informação e comunicação possuem um inegável potencial conectivo enquanto suportes de mediação nos processos formativos e informativos que demandam a circulação de informações. Ressalta-se a importância da temática diante de uma contradição gritante existente entre as necessidades humanas atuais e o que se aplica financeiramente em instrumentos tecnológicos que promovem a violência e a destruição humana em massa. Nesse sentido, a questão que orienta o desenvolvimento das reflexões problematiza em que medida as novas tecnologias podem contribuir para a promoção da educação para a paz, diante de um contexto marcado por episódios constantes de violência e violação dos Direitos Humanos. O aporte teórico considera, sobretudo, as contribuições de Hobsbawm (2012), Latour (2020), Harari (2020), Francisco (2020) e Guimarães (2011). Os resultados indicam que, ancoradas em fundamentos ético-filosóficos e critérios metodológicos adequados, as novas tecnologias, não obstante ao seu caráter ambíguo, podem contribuir efetivamente enquanto suporte para comunicação, experiências comunitárias, formação e desenvolvimento de ações para concretização da educação para a paz.

Palavras-chave: tecnologias digitais; humanização; cultura da paz

RESUMEN.

Este estudio bibliográfico tiene como objetivo presentar algunas reflexiones sobre el tema de la educación para la paz y las nuevas tecnologías considerando los desafíos y posibilidades de promover la educación para la paz considerando la integración de las nuevas tecnologías de la información y la comunicación y su potencial como soportes para la promoción del diálogo, la comunicación y la intercambio, actividades necesarias para la realización de una cultura de paz. Las tecnologías de la información y la comunicación tienen un innegable potencial conectivo como soportes de mediación en los procesos formativos e informativos que demandan la circulación de la información. Las fuentes utilizadas consideran datos de documentos emitidos por: Credit Suisse Research Institute (2022), Brazilian Public Security Forum (2022), Foundation for Young Australians (2017), Stockholm International Peace Research Institute (2022) e Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2018, 2019). Se destaca la importancia del tema frente a una flagrante contradicción entre las necesidades humanas actuales y lo que se aplica financieramente en instrumentos tecnológicos que promueven la destrucción y la violencia humana masiva. En ese sentido, la pregunta que orienta el desarrollo de las reflexiones problematiza en qué medida las nuevas tecnologías pueden contribuir a la promoción de la educación para la paz, en un contexto marcado por constantes episodios de violencia y violación de los Derechos Humanos. La contribución teórica considera principalmente las contribuciones de Hobsbawm (2012), Latour (2020), Harari (2020), Francisco (2020) y Guimarães (2011). Los resultados indican que ancladas en fundamentos ético-filosóficos y criterios metodológicos adecuados, las nuevas tecnologías, a pesar de su carácter ambiguo, pueden contribuir efectivamente, como soporte para la comunicación, las experiencias comunitarias, la formación y el desarrollo de acciones para la realización de la educación para la paz.

Palabras clave: tecnologías digitales; humanización; cultura de paz

ABSTRACT.

This bibliographic study aims to present some reflections on the theme of education for peace and new technologies, considering the challenges and possibilities of promoting education for peace considering the integration of new information and communication technologies and their potential as supports to encourage dialogue, communication, and exchange, activities necessary for a culture of peace. The sources used consider data from documents issued by: Credit Suisse Research Institute (2022), Brazilian Public Security Forum (2022), Foundation for Young Australians (2017), Stockholm International Peace Research Institute (2022) and I Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2018, 2019). Information and communication technologies have an undeniable connective potential as mediation supports in the formative and informative processes that demand the circulation of information. The importance of the theme is highlighted in the face of a glaring contradiction between current human needs and what is applied financially in technological instruments that promote mass human violence and destruction. In this sense, the question that guides the development of reflections problematizes the extent to which new technologies can promote education for peace, in a context marked by constant episodes of violence and violation of Human Rights. The theoretical contribution mainly considers the contributions of Hobsbawm (2012), Latour (2020), Harari (2020), Francisco (2020) and Guimarães (2011). The results indicate that anchored in ethical-philosophical foundations and adequate methodological criteria, the new technologies, despite their ambiguous character, can effectively contribute, as a support for communication, community experiences, training, and the development of actions for the realization of education for peace.

Keywords: digital technologies; humanization; culture of peace

Introdução

Não obstante os sérios problemas enfrentados globalmente com a Pandemia de Covid19 nos últimos dois anos, segundo um levantamento publicado pelo Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), em 2021, o gasto militar ultrapassou dois trilhões de dólares, ou seja, nesse ano, 2,2% do PIB global foi destinado ao setor militar. Por outro lado, a meta de arrecadação estabelecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para combater a emergência sanitária global é praticamente dez vezes menor que esse valor.

Diante de uma contradição gritante entre as necessidades humanas atuais em todo o planeta e o que se aplica financeiramente em instrumentos tecnológicos que promovem a violência e a destruição humana em massa, analisar os desafios e possiblidades de contribuição das novas tecnologias de informação e comunicação na promoção da educação para paz pode parecer um tanto paradoxal à primeira vista. Entretanto, para além da reflexão a respeito da neutralidade ou não das tecnologias em si mesmas, é preciso reconhecer que as atuais tecnologias de informação e comunicação possuem um inegável potencial conectivo enquanto suportes de mediação nos processos formativos e informativos que demandam a circulação de informações.

Entre esses processos, não obstante seu caráter singular, é preciso considerar a relevância da educação, enquanto processo social, histórico e cultural de humanização. Nesse sentido, a paz é, ao mesmo tempo, condição e objetivo na concretização de processos humanizadores. A partir dessa compreensão, este estudo apresenta algumas reflexões a respeito da temática da educação para a paz e as novas tecnologias, considerando os desafios e as possibilidades no cenário educacional brasileiro contemporâneo.

As linhas que seguem avigoram a necessidade de proporcionar acesso e oferecer preparação técnica para o uso de tecnologias digitais no processo de escolarização. Nesse processo, considera-se fundamental o investimento em formação humana, ou seja, em educação numa perspectiva integral e integradora, que ultrapasse o mero tecnicismo, enquanto condição imprescindível, embora não única, para a consolidação da paz concretamente. Humanizar no contexto das novas tecnologias digitais de informação e comunicação é um dos grandes desafios que se colocam para a escola na atualidade. As reflexões aqui apresentadas, se pretendem, portanto, como um subsídio teórico para contribuir nessa perspectiva.

Defesas para a paz: descolonizando o pensamento conflituoso

As novas tecnologias de informação e comunicação são um advento do século XX. Eric Hobsbawm denominou esse século de breve e o qualificou como contraditório. Ora, num processo inédito de acúmulo multissecular de saberes, o engenho humano disciplinarizou o conhecimento, identificou e controlou patologias que adoentavam e varriam populações, chegou aos estertores da atmosfera terrestre, à órbita e, depois, à superfície lunar e, aí a contradição, por sua vontade, introduziu a espécie à morte em escala industrial:

[...] no Breve Século XX mais homens tivessem sido mortos ou abandonados à morte por decisão humana que jamais antes na história. Uma estimativa recente das ‘megamortes’ do século menciona 187 milhões [...], o equivalente a mais de um em dez da população mundial total de 1900. Na década de 1990 a maioria das pessoas era mais alta e pesada que seus pais, mais bem alimentada e muito mais longeva [...]. O mundo estava incomparavelmente mais rico que jamais em sua capacidade de produzir bens e serviços e na interminável variedade destes (Hobsbawm, 2012, p. 21, grifo no original).

Mas, por que, de acordo com Hobsbawm, o século XX foi breve? A resposta é paradoxalmente simples e complexa: porque o tempo começou a acelerar. Causa e consequência desta ‘interminável variedade de bens e serviços’, as novas tecnologias da comunicação, à medida que se consolidavam na segunda metade do século XX, abreviariam distâncias, amplificariam, com ineditismo, a capacidade de trocas de informações. Esse cenário transbordou para o nosso século XXI e se aprofunda de forma vertiginosa. Fato que contribui para uma crise característica daquilo que muitos pesquisadores têm chamado Antropoceno (Latour, 2020).

Os grandes desenvolvimentos tecnológicos que salvam passam, também, a ameaçar. A humanidade contemporânea se vê diante da insegurança econômica, de mercados conectados e flutuantes; da obsolescência de antigas profissões e da surpresa diante de outras que surgem inesperadamente; da intranquilidade psíquica gerada pela exposição das domesticidades, inadvertida ou voluntariamente, numa profusão alucinante de posts em redes sociais (efêmeros e duradouros ao mesmo tempo) e das sequelas daí resultantes; é gravemente afetada pelas pandemias que se alastram ainda mais rapidamente num mundo conectado; se coloca em perigo diante das ameaças ambientais e da percepção, mediada por catástrofes, de finitude dos recursos naturais. Diante de um futuro em suspensão ou, pior, em ameaça tangível de inexistência acentua-se um clima de insegurança, medo e presentismo (Turin, 2022).

Como isso nos toca? Afora a questão inevitável das múltiplas idiossincrasias - de temperamento - das personalidades humanas postas em jogo no tabuleiro de complexidade infinita da história, pensadores contemporâneos, tais como Freud Baumer (1970) “[...] tendem a relacionar medo e insegurança como variáveis constantes da equação que tem como produto a violência em sua expressão coletiva” (Delumeau, 1999, p. 38).

Com efeito, no século XX, o mais assassino de que temos registro (Hobsbawm, 2012), é impossível compreender a violência do השואה HaShoá (holocausto), por exemplo, sem relacioná-la ao medo do judeu/outro incutido de forma sistemática, no currículo escolar, inclusive, que instruiu uma geração de alemães cúmplices desse crime contra a humanidade. E mesmo depois das experiências das conflagrações mundiais, do próprio HaShoá, a violência continuaria e continua seguindo insistentemente a trilha de pólvora acesa pelos processos de oposição/temor eu versus outro - “[...] explodindo um pouco por toda parte em xenofobia; feminicídios; violência racial; bullying escolar; racismo; genocídios étnicos. Uma civilização do medo produz uma civilização da ira” (Gauer, 2013, p. 93).

Yuval Nohal Harari, em seu livro bestseller Sapiens, numa proposta de síntese histórica de longa duração, remonta à nossa filogênese para salientar as características violentas da espécie humana:

[...] a tolerância não é uma marca registrada dos sapiens [...] nos tempos modernos uma pequena diferença em cor de pele, dialeto ou religião é suficiente para um grupo sapiens a tentar exterminar outro grupo sapiens. Os sapiens antigos teriam sido mais tolerantes para com uma espécie humana totalmente diferente? É bem possível que, quando os sapiens encontraram os neandertais, o resultado tenha sido a primeira e mais significativa campanha de limpeza étnica da história (Harari, 2020, p. 28).

É verdade que, ultimamente, o autor tem apontado que, num processo chamado civilizador, por Norbert Elias, a sofisticação das estruturas estatais teria coibido em níveis crescentes a violência humana a ponto de que hoje “[...] em muitas sociedades há mais pessoas correndo o risco de morrer de obesidade do que de inanição” (Harari, 2020, p. 285). Harari tem sido bastante criticado por suas posições, algumas tidas por apressadas outras por serem taxativas demais. De nossa parte, a crítica vai no sentido de que, intencionalmente ou não, esse tipo de elaboração é mais uma, entre tantas, que colabora para um modelo de pensamento que, tomando Hobbes de empréstimo, essencializa a guerra e a violência como sendo estados naturais de nossa espécie. Propaga-se, assim, uma cultura da guerra e da violência; afinal, se esse é nosso estado natural, não há como e, o pior, nem por que evitá-lo. Resignamo-nos à ideia de que Lupus est homo homini lupus.

Essa resignação produz consequências. Nas salas de aula brasileiras, por exemplo, estudantes secundaristas comemoram, ao saber que serão abordadas as guerras mundiais no plano de ensino anual. Dos filmes, das conversas com os pais, das pressões dos meios de comunicação pautadas pelas lógicas vigentes da chamada hipermodernidade - tecnificação do cotidiano, globalização, individualismo de mercado, exacerbação do eu -, adquirem uma compreensão de valoração irreal da violência bélica, tornando-a fetiche (Brephol, 2013). A guerra, além de ser inevitável, é, também, na concepção de muitos estudantes, aventura, emoção, superação; é, por fim, divertida de se apreender. Os piores genocidas da história, por sua vez, aparecem como figuras pérfidas nos discursos que os alunos trazem de fora, porém, desagravadas pelo fato de possuírem inteligência dita ‘fascinante’.

Junte-se a isso os métodos escolares que, embora haja inúmeras discussões e implantações curriculares inovadoras, na prática, ainda são claudicantes quando se trata de ultrapassar as antigas raízes do modelo prussiano fundamentado no militarismo uniformizador, classificatório, segregador, competitivo (Coen & Karnal, 2018). Assim, tornam-se delicadas e porosas as fronteiras da paz frequentemente devassadas pela violência física e simbólica.

Apesar disso, em outra perspectiva, o território da paz, ainda que protegido por fronteiras muito porosas, tende a ser maior que o da violência. Consideremos, numa rápida observação, quase banal, um fato atinente à violência urbana... “[...] para cada assalto terrível e tão frequente que ocorre em uma cidade grande como São Paulo, há milhares de pessoas que foram trabalhar e voltaram para casa sem terem sido assaltadas. Mas o que estampa o jornal é o assalto” (Coen & Karnal, 2018, p. 33).

O mesmo poderia ser dito acerca dos assassinatos, ou outros tipos de violência. Contudo, corroborando a deixa dos autores acima, a repercussão para os momentos de explosão de ira e de conflitualidade, em detrimento aos de saídas pactuadas e de resolução de conflitos de forma não violenta tendem a ser maiores. Talvez porque, na verdade, a violência, de certa forma, seja - depois do longo processo de internalização e simbolização dos impulsos de violência observados pelo autor já mencionado, Norbert Elias - de fato, algo extraordinário, incomum, em favor de uma certa habitualidade da paz. Ou, talvez, porque incutir medo nas pessoas é algo estratégico às mais diversas instâncias dos poderes constituídos.

[...] interessa muito o medo porque ele é a melhor forma de controlar as pessoas ...o medo é o primeiro dos quatro gigantes da alma [...] uma das coisas enormes a induzir a nossa capacidade de agir como os outros querem que a gente haja. Entregamos a liberdade se sentimos que nossa vida está em risco (Coen & Karnal, 2018, p. 40).

Diante dessa espécie de ‘colonização’ do pensamento para a essencialização da violência, o apelo levantado em 1945 pela nascente Constituição da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (2022) de que se ergam ‘nas mentes humanas os baluartes da paz’ mantém, lamentavelmente, atualidade.

Erguer baluartes da paz significava, na época, ao calor, ainda, das labaredas que queimavam em Berlim, uma tentativa multinacional, de evitar uma nova conflagração, diante de uma nova ordem mundial que já nascia com a marca da rivalidade atômica entre o polo liberal capitalista (EUA e OTAN) e o polo socialista (URSS e Pacto de Varsóvia).

Pouco antes do nascimento da Unesco, a historiografia ocidental vivenciara um projeto renovador iniciado na França. Autores como Lucién Febvre e March Bloch (este último, vítima do nazismo) lançavam propostas disruptivas em relação à análise dos fenômenos históricos tal qual se fazia no século XIX. Não se tratava mais de estudar o ‘passado’; antes, e mais do que isso, tratava-se de compreender a complexidade humana ao longo do tempo. Compreender essa complexidade pressupunha a eleição de novos objetos de atenção por parte do historiador. A história política, dos heróis masculinos e suas guerras, dava lugar a abordagens mais amplas que reconheciam e privilegiam a participação das populações anônimas, das mulheres, dos escravizados, dos ‘perdedores’ silenciados, das crianças.

O ensejo aberto, por estes historiadores, às novas abordagens interpretativas dos fenômenos históricos e a novas possibilidades de eleições de sujeitos e problemas históricos pode e deve instrumentalizar a disciplina Estudos da Paz. Esta, que inicia seu percurso acadêmico, a partir de 1950, definindo-se, de partida, como um campo transdisciplinar que incorpora um compromisso claro e explícito com a não violência, possui um papel estratégico no erguer dos baluartes da paz no pensamento humano. Isso porque, antes de privilegiar a história da conflitualidade, das guerras e de conflitos como grandes momentos históricos separados por momentos - contingentes - de paz, pode, justamente, propor o oposto em perspectiva histórica (Oliveira, 2017).

Ou seja, sem que se ignore o problema do conflito, pode-se, de forma disruptiva, enfatizar uma agenda de estudos e ensino dos diversos momentos históricos em que se optou pela resolução pactuada de conflitos, por estratégias de resistência pacífica (o caso das mães e avós da Praça de Maio, os princípios do Satyagraha, imperativos de consciência), a desmobilização, a reconciliação e a reconstrução pós-bélica, em lugar de se escalar a violência, lembrando - a partir de constatações históricas - de que a paz não foi e, portanto, não precisa ser um ideal utópico, mas um fenômeno concreto e presente na duração. Trata-se de operar uma descolonização do pensamento que essencializa a violência como fenômeno humano e, portanto, histórico.

As novas tecnologias da comunicação e seu enorme potencial conectivo, por sua vez, têm papel mais do que estratégico nesse contexto. Se é verdade que muitas vezes este potencial é mal aproveitado, acreditamos, como lembramos abaixo que elas podem e devem ser ocupadas, colonizadas, pelas ideias de paz.

O mundo digital e a educação para a paz: diálogo, comunicação e intercâmbio

Apesar das novas possibilidades de conectividade e circulação de informação proporcionadas pelo advento e aperfeiçoamento das tecnologias digitais, a necessidade do estabelecimento de diálogos verdadeiramente humanizadores tem se mostrado cada vez mais patente. O mundo digital com seus múltiplos recursos, entre os quais se pode destacar as redes sociais, que entre outras possibilidades permitem o compartilhamento de textos e imagens e, ainda, a realização de transmissões ao vivo, têm sido palco de conflitos intermináveis em razão dos mais diversos motivos.

Nesse contexto, ideias consideradas no mínimo questionáveis, que até pouco tempo circulavam restritas em determinados grupos sociais, agora alcançam diferentes públicos e encontram apoiadores que se identificam com elas e as compartilham, desconsiderando as consequências de suas ações. O problema se torna ainda mais grave quando se constata que alguns conteúdos, em sua maior parte, por questões políticas, são produzidos deliberadamente com o intuito de desinformar e difundir o ódio entre grupos.

Muitas vezes confunde-se o diálogo com algo muito diferente: uma troca febril de opiniões nas redes sociais, muitas vezes pilotada por uma informação mediática nem sempre fiável. Não passam de monólogos que avançam em paralelo, talvez impondo-se à atenção dos outros pelo seu tom alto e agressivo. Mas os monólogos não empenham a ninguém, a ponto de os seus conteúdos aparecerem, não raro, oportunistas e contraditórios (Francisco, 2020, n. 200).

Além de terem se tornado um dos principais espaços de trabalho e entretenimento, atualmente, as redes sociais computacionais têm se constituído como um palco de disputas políticas, entre outras, marcadas pela presença de memes, fake news, cultura do cancelamento e todo tipo de informações que podem ou não ter relevância para quem as acessa.

Com frequência, o debate é manipulado por determinados interesses detentores de maior poder que procuram desonestamente inclinar a opinião pública a seu favor. E não me refiro apenas ao governo vigente, porque um tal poder manipulador pode ser económico, político, mediático, religioso ou de qualquer outro género. Às vezes, é justificado ou desculpado quando a sua dinâmica corresponde aos próprios interesses económicos ou ideológicos, mas mais cedo ou mais tarde volta-se contra esses mesmos interesses (Francisco, 2020, n. 201).

É fato que milhões de pessoas no Brasil e bilhões em todo o mundo ocupam um tempo considerável de suas vidas navegando pelas redes sociais, e o advento da pandemia provocou um aumento do tempo de permanência nessas redes, inclusive em razão de motivos relacionados ao próprio trabalho remoto, para o qual as redes sociais computacionais são utilizadas como canal de comunicação. Seja para venda de produtos, prestação de serviços, compartilhamento de informações, vagas de emprego, aulas, divulgação de notícias, realização de shows, entre outros, as redes sociais passaram a fazer parte da vida de pessoas, inclusive as que tinham e provavelmente ainda têm uma atitude mais reservada diante dessas redes e do que elas possibilitam.

Esse engajamento cada vez maior nas redes sociais computacionais tem provocado mudanças nas relações humanas e impactado consideravelmente o âmbito educativo. Conforme explicitado por Santos (2002, p. 2):

O mundo contemporâneo está permeado de distrações, intrusões, alheamentos e outros elementos que tornam a capacidade de concentração de nossos alunos cada vez mais difícil, bem como parece ser cada vez mais complexo descobrir se uma informação é ou não verídica na rede mundial de computadores, além da dificuldade promovida pela radicalização de pontos de vista na sociedade. Boa parte destes problemas que urgem à nossa volta são promovidos em parte ou na totalidade pela disseminação das redes sociais computacionais, que por meio de seus algoritmos e suas estratégias de engajamento realizam uma mudança nas relações humanas.

As redes sociais computacionais, apesar dos benefícios que possam nos proporcionar, têm sido utilizadas como canal para disseminação do ódio como estratégia de controle e manipulação. Propõe-se um jogo de vale tudo para fazer prevalecer o interesse particular ou do grupo a que se pertence. A alteridade e o bem comum são desconsiderados, da mesma forma que o respeito à dignidade humana e aos próprios dispositivos legais.

Nesse contexto, é preciso considerar a questão dos objetivos comerciais e, consequentemente, da busca por engajamento dos usuários, por meio da utilização de algoritmos, que são a base para a sustentação desse modelo de disseminação de informações nas redes sociais. O poder das empresas que controlam essas redes sociais computacionais alcançou patamares tão elevados a ponto de começarem a ameaçar os pilares da democracia ao redor do globo. A esse respeito, podem ser consultados os resultados das pesquisas de O’Neil (2016), Castells (2018), Sumpter (2019), Lanier (2018), entre outros.

Para alcançar, sobretudo, objetivos econômicos e políticos, impostos por grandes corporações e seus investidores, nesse espaço que se torna cada vez mais parte de nossa vida cotidiana, apela-se, entre outros elementos, para o aspecto emotivo: exalta-se a defesa do direito de liberdade de expressão, forjam-se situações, desacredita-se a ciência, deturpa-se a religião, desconsideram-se os valores, criam-se factoides para induzir o ódio que, não raro, leva a consequências drásticas. Indivíduos e grupos são lançados nas ‘fogueiras virtuais’ e sofrem as consequências de armadilhas algorítmicas, criadas para ofender, insultar, calar e destruir aqueles que se manifestam em favor da dignidade humana e contra todo tipo de preconceito.

A falta de diálogo supõe que ninguém, nos diferentes setores, está preocupado com o bem comum, mas com obter as vantagens que o poder lhe proporciona ou, na melhor das hipóteses, com impor o seu próprio modo de pensar. Assim a conversação reduzir-se-á a meras negociações para que cada um possa agarrar todo o poder e as maiores vantagens possíveis, sem uma busca conjunta que gere bem comum. Os heróis do futuro serão aqueles que souberem quebrar esta lógica morbosa e, ultrapassando as conveniências pessoais, decidam sustentar respeitosamente uma palavra densa de verdade (Francisco, 2020, n. 201).

Esse contexto de intolerância, expandido e potencializado pelas redes sociais computacionais, faz recordar Voltaire (1694-1778) que, no Tratado sobre a tolerância, afirmou: “O direito da intolerância é, portanto, absurdo e bárbaro; é o direito dos tigres, sendo bem mais horrível também, porque os tigres dilaceram suas presas para comer, enquanto nós nos exterminamos por causa de alguns parágrafos” (Voltaire, 2015, p. 36).

Diante dessa realidade, a educação para a paz apresenta-se como uma necessidade urgente. Contudo, conforme explicita Guimarães (2011), não se trata de tematizar um modismo pedagógico, mas enfatizar a relevância de um instrumento importante para a concretização de uma cultura de paz, que se relaciona diretamente com a questão do sentido da humanidade e da finalidade da educação.

Não se trata, portanto, de buscar um objetivo inatingível, mas de um processo que já se encontra em curso, ainda que esteja, em grande parte, escondido pela permanência de uma cultura de violência que preenche grande parte de nossos noticiários e de nossas produções culturais, com destaque para as cinematográficas. Educar para a paz, nesse contexto, torna-se um desafio ainda mais complexo.

A educação para paz tem aparecido como um instrumento importante para a concretização de uma cultura de paz, emergindo na interlocução da comunidade internacional, não apenas como uma nova área de pesquisa ou um campo relevante, mas também como expressividade da ideia de bem, onde se joga a própria questão do sentido da humanidade e da finalidade da educação (Guimarães, 2011, p. 254).

Dessa maneira, no próximo tópico, nosso esforço será direcionado a analisar os desafios e as possibilidades de promover a educação para a paz no contexto brasileiro, considerando a integração das novas tecnologias de informação e comunicação e o seu potencial enquanto suportes para a promoção do diálogo, da comunicação e do intercâmbio, atividades necessárias para que a concretização de uma cultura de paz seja possível.

Educação para paz e novas tecnologias: desafios e possibilidades na realidade brasileira atual

No contexto brasileiro, abordar os desafios e as possibilidades relativas à promoção da educação para paz, considerando a presença cada vez mais intensa das novas tecnologias, especialmente as digitais, em nosso dia a dia, requer dedicar atenção para alguns elementos de nossa realidade que, geralmente, não recebem o cuidado necessário.

Nesse sentido, conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2022), ainda que tenha apresentado uma frágil redução nos números, o Brasil é o país com o maior número absoluto de homicídios do mundo. A taxa de morte violenta em nosso país é de 22,3 por 100 mil habitantes. Em 2021, tivemos 47.503 vítimas, das quais 76% provocadas por armas de fogo. Dessas vítimas, mais de 91% eram homens e, em 78% dos casos, as pessoas eram negras, 50% eram adolescentes e jovens entre 12 e 29 anos (FBSP, 2022).

A Figura 1, apresenta as mortes violentas intencionais em nosso país, em 2021, considerando o tipo de instrumento utilizado.

Fonte: FBSP (2022, p. 17)

Figura 1. Mortes violentas intencionais por tipo de instrumento utilizado - Brasil, 2021 

Ainda, de acordo com o FBSP (2022, p. 5), é sobretudo no comparativo internacional que fica mais explícito “[...] o quão distante estamos de qualquer referência civilizatória da humanidade e que, por trás da ideia de nação pacífica, vivemos uma profunda e covarde crise de indiferença e de embrutecimento das relações sociais cotidianas”.

Nesse sentido, não obstante a frágil redução das mortes violentas intencionais no Brasil e, ainda, a falta ou insuficiência de informações relacionadas a alguns grupos específicos, é preciso reconhecer a gravidade da situação de nosso país no que diz respeito à promoção da sociedade pacífica e inclusiva para o desenvolvimento sustentável, conforme proposto por um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)161, assim delineado: “Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis” (Naciones Unidas, 2015, p. 36).

Conforme explicitado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2019, p. 7) a implementação desse objetivo no Brasil requer o enfrentamento de quatro desafios: 1) O primeiro é a violência; 2) O segundo é o acesso à cidadania; 3) O terceiro é a situação do Estado brasileiro; 4) O quarto é que a Agenda 2030 seja de fato priorizada pelos governos e suas instituições.

Com relação ao primeiro desafio, especificamente, ainda de acordo com o IPEA (2019), registra-se que se a violência mencionada se trata de:

[...] violência, fatal ou não, física, psicológica e sexual, incluindo abuso, exploração, tráfico de pessoas, tortura, violência policial, principalmente contra negros, mulheres, crianças, adolescentes, jovens, LGBTs, indígenas e defensores de direitos humanos (sindicalistas, ativistas de movimentos sociais, jornalistas, policiais). O Brasil possui um complexo de justiça criminal, com participação e envolvimento dos três entes da Federação e dos três poderes, para enfrentar estes problemas. No entanto, os dados apontam que muitas violações de direitos e violências são cometidas pelas próprias instituições policiais, judiciais e de privação de liberdade (IPEA, 2019, p. 7).

De acordo com a Naciones Unidas (2015), conforme explicitado na Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável, fatores abordados nesse documento que dão origem à violência estão relacionados com insegurança e injustiça, desigualdade, corrupção, governança e os fluxos financeiros e de armas ilegais. Tais problemas são parte integrante do contexto brasileiro.

A título de exemplo, com relação à desigualdade, conforme dados apresentados pelo Global Walth Report - 2021, elaborado pelo Banco Credit Suisse (Credit Suisse Research Institute, 2022), no ano de 2020, quase a metade da riqueza do Brasil (49,6%) foi para as mãos do 1% mais rico da população. É preciso destacar, ainda, que esse número aumentou consideravelmente em apenas um ano, pois, em 2019, esse grupo mais rico detinham 46,9% desse total de riqueza do país. Com um índice de 58% de riquezas concentradas nas mãos do 1% mais rico, apenas a Rússia supera o Brasil que, entre grandes economias, fica à frente nesse quesito de países como os EUA, com uma taxa de 35%, e a Índia, onde o número chega a 40%. Essa tendência de aumento de desigualdade no Brasil fica ainda mais acentuada quando considerado o índice Gini2, pois nosso país aparece como líder em desigualdade, em 2020, conforme apresentado na Tabela 1.

Tabela 1 Tendências da desigualdade de riqueza, 2000-2020, países selecionados. 

Coeficiente de Gini Participação na rirqueza dos 1% mais ricos
2000 2005 2010 2015 2019 2020 2000 2005 2010 2015 2019 2020
Brasil 84,7 82,8 82,2 88,7 88,2 89 44,2 45,1 40,5 48,6 46,9 49,6
China 59,9 63,6 69,8 71,1 69,7 70,4 20,9 24,3 31,4 31,5 29 30,6
França 69,7 67 69,9 70 69,9 70 25,7 21,1 21,1 22,5 22,4 22,1
Alemanha 81,2 82,7 77,5 79,3 77,9 77,9 29,3 30,5 25,9 32,3 29,4 29,1
Índia 74,7 81 82,1 83,3 82 82,3 33,5 42,2 41,6 42,5 39,5 40,5
Itália 60,1 59,5 63 67,1 66,4 66,5 22,1 18,3 17,3 22,8 21,8 22,2
Japão 64,7 63,2 62,5 63,5 64,2 64,4 20,6 19,1 16,9 18,2 17,8 18,2
Russia 84,7 87,2 90 89,5 87,3 87,8 54,3 60,3 62,6 63 57,1 58,2
Inglaterra 70,7 67,7 69,2 73,1 71,4 71,7 22,5 20,8 23,8 25,2 22,4 23,1
Estados Unidos 80,6 81,1 84 84,9 85,1 85 32,8 32,7 33,3 34,9 35 35,3

Fonte: Credit Suisse Research Institute (2022, p. 24).

Como se pode notar, um dos principais problemas de nossa sociedade, que tem como consequência um sem-número de mazelas que assolam nosso país, é a desigualdade social. Nesse sentido, a Agenda 2030 evidencia o caráter interdependente das decisões tomadas, bem como a necessidade de propor soluções integradas, uma vez que:

O desenvolvimento sustentável reconhece que a erradicação da pobreza em todas as suas formas e dimensões, o combate às desigualdades dentro dos e entre os países, a preservação do planeta, a criação do crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável e a promoção da inclusão social estão vinculados uns aos outros e são interdependentes (Naciones Unidas, 2015, p. 5).

Entre essas condições necessárias e interdependentes para a concretização do desenvolvimento sustentável estão a paz e a segurança, uma vez que “[...] o desenvolvimento sustentável não pode ser levado a cabo sem paz e segurança; e paz e segurança estarão em risco sem o desenvolvimento sustentável” (Naciones Unidas, 2015, p. 9).

Um segundo desafio para concretização da paz, da justiça e de instituições eficazes, no contexto brasileiro, diz respeito ao acesso à cidadania, pois:

O Brasil ainda enfrenta problemas para garantir o acesso à identidade civil, a liberdades fundamentais, à justiça, a informações públicas, ao nome social por travestis e transexuais, bem como o acesso de negros e indígenas às políticas públicas de educação, ao mercado de trabalho e à representação política (IPEA, 2019, p. 7).

No tocante a esse segundo desafio para a promoção da paz, da justiça e de instituições eficazes em nosso país, destaca-se que ele está diretamente relacionado com a necessidade do acesso à educação e às novas tecnologias. Nesse ponto, embora a primazia deva ser dada à promoção do acesso à educação de qualidade, enquanto direito garantido pela Constituição, os elementos são mutuamente complementares.

O terceiro e quarto desafios dizem respeito, respectivamente: 1) à situação do Estado brasileiro; 2) à necessidade de os governos e suas instituições em todas as esferas priorizarem a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável. Entretanto, algumas práticas presentes em nossa sociedade e, mais especificamente, em nossas instituições, amplificam esses desafios, pois:

De um lado, o Estado é enfraquecido pela sonegação fiscal, pela corrupção de agentes públicos (políticos e servidores públicos) e pelo seu envolvimento com o crime organizado [...]. De outro lado, conta com um processo de decisão pouco inclusivo, participativo, representativo e responsivo e com instituições ainda pouco transparentes, efetivas e responsáveis (IPEA, 2019, p. 7).

Acrescente-se a esses problemas que, a partir de 2019, as instituições participativas federais brasileiras sofreram um processo de encolhimento. Assim, se essa participação representativa de conselhos e colegiados, entre outras instituições, já encontrava dificuldades para se concretizar efetivamente, agora, ela ficou ainda mais desafiadora.

Diante desses desafios, que também integram a realidade de outros países, de maneira semelhante ao que ocorre no Brasil, a Agenda 2030 para o desenvolvimento Sustentável considera que:

A disseminação da informação e das tecnologias da comunicação e interconectividade global tem um grande potencial para acelerar o progresso humano, para eliminar o fosso digital e para o desenvolvimento de sociedades do conhecimento, assim como a inovação científica e tecnológica em áreas tão diversas como medicina e energia (Naciones Unidas, 2015, p. 6)3.

Nessa perspectiva, especificamente no que diz respeito à contribuição das novas tecnologias ao processo de educação para a paz, Guimarães (2011), com base na reflexão de elementos metodológicos, apresenta cinco critérios que podem ser considerados como subsídios norteadores 1) capacidade de contribuir para um consenso de paz; 2) capacidade de formar para a competência comunicativa; 3) capacidade de criarem comunidades; 4) capacidade de oportunizarem expressão da palavra; e 5) capacidade de capacitarem para a ação.

Com relação aos elementos metodológicos, eles dizem respeito especificamente a:

1.Estabelecer a questão fundamental da educação e da cultura de paz, discernindo seu objetivo e escopo fundamental. 2.Delinear a habilidade fundamental a ser desenvolvida no processo de educação para a paz, a formação da competência comunicativa. 3. Descrever as características fundamentais da metodologia da educação para a paz: a formação de comunidade, o espaço do debate e a ação para a paz. 4. Finalmente, relacionar esses aspectos da educação para paz com as novas tecnologias (Guimarães, 2011, p. 255).

Na sua abordagem, Guimarães (2011) adverte sobre o cuidado de evitar aproximações simplistas entre educação para a paz e as novas tecnologias. Nesse sentido, ao tratar dos critérios para fundamentar a abordagem da educação para a paz, considera contribuições de importantes pensadores, tais como Immanuel Kant (1989), Jürgen Habermas (2002), Hannah Arendt (1999), Emmanuel Levinas (1990), Rollo May (1974), Boaventura de Souza Santos (2002), Patricia White (1993), Walter Wink (1984), entre outros. De modo geral, o que fica patente nessas contribuições, não obstante as suas diferenças e o caráter singular de cada uma delas, é a questão fundamental de chegarmos a um acordo. Para tanto, a formação da competência comunicativa e, consequentemente, o uso da palavra são fundamentais.

Nesse sentido, “[...] uma educação que não efetiva o discurso e a ação, onde os sujeitos são protagonistas, isto é, detentores da palavra e autônomos, é uma educação que perpetua e reitera a violência dentro e fora dela” (Guimarães, 2011, p. 262). Diante de tantas possibilidades de comunicação trazidas com o advento e o desenvolvimento das novas tecnologias digitais, vivenciamos paradoxalmente uma perda da capacidade comunicativa, ou seja, da capacidade de comunicar e de comunicar-se, que se constitui em obstáculo no processo de educação para a paz. “Se não há paz sem processo argumentativo, não haverá processo comunicativo sem a formação da competência comunicativa” (Guimarães, 2011, p. 262). Não se trata, portanto, de um processo que irá ocorrer naturalmente, mas que demanda compromisso ético e participação coletiva.

Com relação à preparação técnica para o uso das tecnologias digitais no contexto brasileiro é preciso mencionar a aprovação da Lei nº 14.533 de 11 de janeiro de 2023, que institui a Política Nacional de Educação Digital (PNED). Um dos eixos estruturantes dessa legislação é a Educação Digital Escolar. Entre outros elementos, conforme destaca o Art. 3º, esse eixo engloba:

[...] III - a cultura digital, que envolve aprendizagem destinada à participação consciente e democrática por meio das tecnologias digitais, o que pressupõe compreensão dos impactos da revolução digital e seus avanços na sociedade, a construção de atitude crítica, ética e responsável em relação à multiplicidade de ofertas midiáticas e digitais e os diferentes usos das tecnologias e dos conteúdos disponibilizados (Lei nº 14.533, 2023).

Nesse contexto, da necessidade de formação da competência comunicativa, é preciso se apropriar das novas tecnologias de informação e comunicação, enquanto suporte de mediação visando a convivência pacífica. Com efeito, para além da necessidade de proporcionar acesso e oferecer preparação técnica para o uso dessas tecnologias, é fundamental o investimento em formação humana, ou seja, em educação humanística, pois “[...] se educação não é a única condição para a paz, ela é uma condição imprescindível, tal qual formulam os membros da Campanha Global de Educação para a paz: não há paz sem educação para a paz” (Guimarães, 2011, p. 262).

Conclusão

Ao fim e ao cabo dessas reflexões acerca da educação para a paz e novas tecnologias, considerando, sobretudo, os desafios e as possibilidades no contexto brasileiro contemporâneo, é possível ponderar que, não obstante os problemas complexos que caracterizam nossa sociedade, nos encontramos diante de uma necessidade urgente. Educar para a paz, nesse contexto, significa, inclusive, colaborar com a possibilidade de continuação da atividade educativa enquanto processo social, histórico e cultural de humanização.

O histórico da educação para paz revela paradoxos e ambiguidades constitutivos do que pensadores contemporâneos, como Hanna Arendt (1999), por exemplo, identificam como a condição humana. Nesse sentido, conforme explicitado ao longo deste estudo, a educação para a paz e, mais especificamente, a educação para a paz a partir da e com a integração das novas tecnologias é um processo não natural, caracterizado por ambiguidades e potencialidades, cuja realização demanda compromisso ético e participação coletiva. Assim, um dos resultados mais patentes deste estudo de caráter bibliográfico foi evidenciar a necessidade do estabelecimento de consensos para que o processo de educação para a paz possa ser concretizado. Nessa empreitada, não obstante o seu caráter ambíguo e paradoxal, as novas tecnologias de informação e comunicação poderão contribuir de maneira muito efetiva enquanto suportes de mediação.

Ainda que algoritmos possam ser programados para promover engajamento e provocar as mais diversas reações em diferentes públicos, conforme abordou-se no caso das redes sociais computacionais, é preciso desatacar a necessidade de formação da competência comunicativa, tal como proposta por Habermas (2002) e explicitada por Guimarães (2011), enquanto condição necessária para a concretização do processo de educação para a paz.

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9Nota: Os autores foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

11Rodadas de avaliação: R1: dois convites; dois pareceres recebidos

12Revisor de normalização: Adriana Curti Cantadori de Camargo Vanêssa Vianna Doveinis

Recebido: 03 de Novembro de 2022; Aceito: 26 de Janeiro de 2023; Publicado: 06 de Dezembro de 2024

* Autor para correspondência. E-mail: fernandocater@gmail.com

INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES Luís Fernando Lopes: Doutor em Educação pela UTP. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e Novas Tecnologias (PPGENT) e da Área de Humanidades do Centro Universitário Internacional UNINTER. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7925-9653 E-mail: luis.l@uninter.com | fernandocater@gmail.com

André Luiz Moscaleski Cavazzani: Doutor em História pelo programa de História Social na Universidade de São Paulo, com período sanduíche na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Pós doutor no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná. Atualmente é professor do curso de História e do programa de mestrado e doutorado profissional em Educação e Novas Tecnologias (PPGENT) do Centro Universitário Internacional UNINTER. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1512-3639 E-mail: andre.ca@uninter.com | andrexcava@gmail.com

Editor-Associado responsável

: Terezinhha Oliveira (UEM) ORCID: http://orcid.org/0000-0001-5349-1059 E-mail: teleoliv@gmail.com

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