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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.47  Maringá  2025  Epub 01-Dez-2024

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v47i1.66048 

HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

A condenação dos Begardos no Estado e pranto da Igreja de Álvaro Pais (Século XIV)

La condenación de los Begardos en el Estado y llanto de la Iglesia de Álvaro Pelagio (Siglo XIV)

Armênia Maria de Souza1  * 
http://orcid.org/0000-0002-5392-3824

Heverton Rodrigues de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0001-6593-1218

1Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Goiás, Campus II Samambaia, Av. Esperança, 900, 74690-265, Goiânia, Goiá, Brasil.


RESUMO.

Este artigo propõe a análise de dois artigos contidos na obra Estado e pranto da Igreja do franciscano galego Álvaro Pais (1275/80-1349), que versam sobre o tema da heresia dos begardos, condenada pela Ad nostrum no Concílio de Vienne de 1312. Nosso objetivo foi entender as proposições do autor sobre este grupo de heréticos e os argumentos apresentados por ele contra essa heresia. Metodologicamente, optamos por realizar uma pesquisa qualitativa a partir do fichamento e análise da fonte que se encontra em versão latim/português, utilizando a análise hermeneutica da mesma. Como resultados, esperamos trazer à tona um assunto pouco conhecido em Álvaro Pais que é a sua visão sobre um movimento herético de seu tempo, a cujas documentações ele teve acesso, especialmente por ser penitenciário do papa João XXII em Avinhão.

Palavras-chave: begardos; Álvaro Pais; heresia

RESUMEN.

Este artículo propone el análisis de dos artículos incluidos en la obra Estado y llanto de la Iglesia del franciscano gallego Álvaro Pelagio (1275/80-1349), que tratan sobre el tema de la herejía de los begardos, condenada por la Ad Nostrum en el Concilio de Vienne de 1312. Nuestro objetivo ha sido entender las proposiciones del autor sobre este grupo de heréticos y los argumentos presentados por él contra esta herejía. Metodológicamente, optamos por realizar una investigación cualitativa a partir de un registro de fichas y análisis de la fuente que se encuentra en versión latín/portugués, utilizando el análisis hermenéutico de la misma. Como resultados, esperamos sacar a la luz un asunto poco conocido en Álvaro Pelagio, que es su visión sobre el movimiento herético de su tiempo, a cuyas documentaciones tuvo acceso, especialmente por ser penitenciario del Papa Juan XXII en Aviñón.

Palabras clave: begardos; Álvaro Pelagio; herejía

ABSTRACT

ABSTRACT. This article proposes the analysis of two articles contained in the work The State and The Weeping of the Church by the Galician Franciscan Álvaro Pais (1275/80-1349), which deal with the heresy of the Beghards, condemned by Ad nostrum in the Council of Vienne in 1312. Our objective was to understand the author's propositions about this group of heretics and the arguments presented by him against this heresy. Methodologically, we chose to carry out qualitative research based on the filing and analysis of the source that is in Latin/Portuguese, using the hermeneutic analysis of this piece. As a result, we hope to broach a little-known subject in Álvaro Pais, which is his vision of a heretical movement of his time, whose documents he had access to, especially because he was a penitentiary of Pope John XXII in Avignon.

Keywords: beghards; Álvaro Pais; heresy

Introdução

Desde os primórdios do cristianismo, muitos movimentos religiosos expressaram interpretações que sugeriam a concepção de doutrinas contrárias à fé oficialmente declarada. Com o tempo, e com o fortalecimento de perspectivas religiosas dissidentes, no âmbisto das diversas formas de ‘vivências do sagrado’, a doutrina cristã, até então hegemônica, tornou-se frágil ante as diferentes tendências de pensamento. Estes confrontos foram responsáveis por inúmeras visões doutrinárias e a criação de várias tradições cristãs, muitas delas advindas de crenças populares. Tais correntes de pensamento reivindicavam para si a legitimidade das verdades da fé proferidas por Cristo e pelos primeiros Apóstolos e contidas nos Evangelhos. processo que forçou o estabelecimento de uma doutrina geral, cujas bases foram forjadas pela Igreja, responsável pela formulação de normas de fé em torno do cristianismo. As heresias medievais, como exemplo de pensamento divergente ao que a ortodoxia estabelecia, são um exemplo de subversão, não só no âmbito religioso, mas também social e político. Segundo Amores Bonilla (2019, p. 22), muitos grupos considerados heréticos eram acusados de ter algum tipo de desordem pisíquica, tendo sido categorizados no interior de alguma “[...]enajenación de tipo moral, religioso y mental”.

A forma como os autores cristãos conceberam sua relação com o mundo pagão talvez possa explicar as representações quase sempre condenadoras dos costumes considerados divergentes do pensamento ortodoxo católico que tentava impor-se doutrinalmente ante as filosofias pagãs (Mitre Fernandez, 2003). Nessa perspectiva, os principais concílios ecumênicos ocorridos nos primeiros séculos da Igreja, como o Concílio de Nicéia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e da Calcedônia (451), marcaram o esforço da instituição em reafirmar a doutrina cristã, formulando a ‘profissão de fé’ e confrontando as correntes heréticas. Nesse contexto, é possível arrolar uma multiplicidade de movimentos considerados heréticos, os quais avolumaram, de certo modo, as preocupações do clero com o surgimento de grupos contrários à ortodoxia. Frequentemente, as manifestações religiosas, quando não passavam pelo crivo da dogmática católica, eram rotuladas como heréticas.

A intensificação de movimentos dissonantes da ortodoxia cristã ocorreu em um contexto que pressionou a Igreja a estabelecer limites em relação às outras religiões politeístas e às tendências judaizantes radicais (Frangiotti, 1995), como é perceptível, por exemplo, em Irineu de Lião (130-202) Contra as Heresias, em Agostinho (354-430) Contra Faustum (2008) e Contra Mendacium (2008), na Doutrina cristã (1991) ou no De haeresibus (2008), bem como em Isidoro de Sevilha (560-636), nas Etimologías (2009), que enumera as 70 heresias mais perigosas em seu tempo. Um pouco antes de Isidoro, também Martinho de Braga (518-579) no seu De correctione rusticorum (2013), escrito no II Concilio de Braga (572), admoestava contra as idolatrias, as artes adivinhatórias e outros ritos desaconselhados pelos eclesiásticos.

A partir do século XII consolidou-se uma “[...] nova consciência religiosa” (Bolton, 1983, p. 73), o que levou os leigos a buscarem distintas formas de participação na vida religiosa por meio de experiências de espiritualidades individuais ou comunitárias, como os valdenses e os Humiliati. no século XIII, que almejavam um estilo de vida de acordo com a vita apostolica. O ideal da vita apostólica foi um elemento central da espiritualidade na Baixa Idade Média; este desejo de seguir o modo de vida dos apóstolos e de Jesus Cristo apontava como elementos fundamentais a pobreza, a penitência e a pregação.

Esse foi um período de intensas mudanças em vários âmbitos da sociedade, como o incremento das cidades e da vida urbana, que foi impulsionada por uma expansão demográfica. No aspecto político, destaca-se um poder menos fragmentado e mais organizado no âmbito administrativo. Neste contexto de intensas transformações, também a Igreja necessitou buscar respostas para os diversos grupos que ansiavam por uma maior experiência com o sagrado. Acentua-se a busca por uma vivência de fé individualizada, uma união mística com Deus e uma maior interiorização da concepção de pobreza evangélica (Bara Bancel, 2008). Entre o final do século XI e a primeira metade do século XII há o desenvolvimento de novas formas de vida religiosa adaptadas às necessidades dos leigos. Segundo Bernard McGinn (2017), em sua obra O florescimento da mística. Homens e mulheres da nova mística (1200-1350), o ano 1200 é significativo na história da mística ocidental, perspectivado em novas atitudes na relação entre o mundo e o claustro, entre homens e mulheres no itinerário místico e nas novas formas de linguagem e de apresentação das experiências místicas.

Nesse passo, as primeiras heresias diferenciaram-se daquelas que ocorreram entre os séculos XII a XIV, não apenas pelo seu caráter filosófico e teológico, mas sobretudo devido ao apelo popular desses movimentos. Num contexto de incertezas de todos os tipos, homens e mulheres expressavam seus medos, angústias e esperanças no fim último, a beatitude eterna. Movimentos espirituais começaram a surgir em várias regiões da Europa, a grande maioria de caráter popular e penitencial nos quais não havia clareza entre ortodoxia e heresia. Nesse âmbito, destacam-se as procissões de flagelantes na Itália, no Sul da Alemanha e Bohemia (1260, 1300, 1334, 1348, etc.), peregrinos e penitentes, beguinas e beguinos, seitas diversas como os Apostólicos de Gerardo de Segarelli, os Valdenses, os irmãos e irmãs do Livre Espírito, dentre outros (Bara Bancel, 2008), como também os cátaros, albigenses, e os begardos.

Os bergardos: algumas considerações

No interior dessa miríade de movimentos que colocavam em xeque a hegemonia da Igreja, a partir do século XIV o termo ‘begardo’ se converteu em sinônimo de herege. A vita apostolica, a pobreza voluntária, a mendicidade e a predicação foram adotados como princípios de vida desse grupo, cujas aspirações religiosas coincidiam com aqueles que se negavam a obedecer a hierarquia eclesiástica ou não tinham recursos para adentrar em uma ordem religiosa regrante. (Bara Bancel, 2008). Amparavam-se igualmente no forte sentimento de rejeição ao clero e seu modus vivendi, suscitado pela dominação temporal dos eclesiásticos, fator de adesão e sustentação de muitas heresias (Théry, 2012).

Em termos espirituais os begardos foram muito influenciados pelas ideias das beguinas, movimento feminino rechaçado pelo clero e que teve como expoente Marguerite Porete, queimada na fogueira por seu tratado herético O espelho das almas simples. De acordo com Miura Andrades (1999), constituíam-se em associações ou fraternidades de homens devotos, com vida religiosa em comum, sem submeterem-se à regra monástica ou conventual.

Como ressalta Miura Andrades (1999), esse grupo recebeu várias denominações: eram chamados de irmãos de vida pobre, irmãos da penitência, beatos, beguinos ou begardos, o que causava confusão em sua categorização, pois embora houvessem semelhanças com o movimento beguinal, de modo especial no caso renano, os begardos não tiveram por característica agruparem-se em beguinagens ou formarem paróquias. Tratou-se mais de uma denominação aplicada aos movimentos masculinos religiosos desde meados do século XIII. Homens que praticavam uma vida comum, sem reconhecer a disciplina eclesiástica e sua hierarquia, geralmente pertencentes a extratos sociais inferiores.

O begardismo, como o próprio Álvaro Pais (1275-1349) apontou, estendeu-se por várias regiões da Europa ao longo do século XIV. Por isso, salienta Miura Andrades (1999), ocorre uma confusão entre os historiadores quando se trata da origem dos begardos e beguinos, o que parece acontecer também em relação às suas ideias religiosas. Mañón Garibay (2003) assinala que os begardos surgiram cerca de 50 anos depois das beguinas. Sobre eles praticamente nada se sabe, pois não deixaram testemunho escrito. O que se tem de materialidade é o processo inquisitorial contra eles, no qual se apontaram os oito erros condenados pela Constituição Ad nostram ou compilações como a realizada pelo franciscano galego Álvaro Pais. Por isso, o seu testemunho torna-se tão relevante.

Os begardos, diferentemente de outros grupos considerados heréticos, não constituíam correntes de pensamento ou de doutrinas, mas simples formas de vida religiosa, sem conteúdos doutrinais uniformes (Miura Andrades, 1999). Eles muito raramente constituíram grupos sujeitos a uma regra. Movimentos como os dos begardos, beguinas e Irmãos do Livre Espírito, tanto em suas atividades de pregação quanto em suas ‘vivências do sagrado’, negavam a necessidade de mediação do clero para entrar em contato com a divindade. Essa negação da mediação sacerdotal1 afetava o sentido da própria instituição eclesiástica (Miura Andrades, 1999).

Quanto à influência dos escritos poreteanos no pensamento begardista, Saranyana (2007) ressalta que apesar de a Inquisição ter ordenado a destruição dos exemplares do Espelho para as almas simples, bem como a sua proibição sob pena de excomunhão, o Espelho continuou circulando em vários âmbitos, de forma anônima ou com pseudônimos “[...] servindo de pasto espiritual para vários cenáculos de Begardos e Beguinas, mesmo após a cremação de Poretes [...]” (Saranyana, 2007, p. 267, tradução nossa)2. A condenação dos begardos e das beguinas no Concilio de Vienne, em 1312, e dos Espirituais e outros grupos por João XXII, em 1318, bem como as censuras após a morte de Mestre Eckhart, também por João XXII, em 1329, não foram suficientes para impedir a difusão das doutrinas do Livre espírito e as de Porete (Saranyana, 2007).

Nesse contexto, ocorreram diversas tentativas de movimentos sociais e religiosos de se verem livres da tutela do clero e a esses a Igreja procurou submeter e colocar sob o crivo de sua autoridade. Trata-se, portanto, de uma busca por outro caminho ou espiritualidade, já que a própria liturgia não alcançava mais os fiéis, “[...] onde, em muitos casos, as cerimônias ficam em segundo plano porque não convencem” (Ortega Martín, 2020, p. 65, tradução nossa)3. Não se deve esquecer que para a Igreja a liturgia e as fórmulas religiosas eram essenciais para o ofício divino e para manter sob controle a população; daí todos aqueles que intentavam sua reforma ou eliminação serem declarados dissidentes ou hereges (Ortega Martín, 2020).

Em face desse cenário, examinaremos aspectos da heresia dos Begardos sob a ótica de Álvaro Pais no Estado e pranto da Igreja, a qual foi condenada pela constituição Ad nostrum no Concílio de Vienne, de 1312, durante o papado de Clemente V. Para tanto, consideramos importante destacar alguns aspectos biográficos desse prelado.

Álvaro Pais nasceu em Salnès, região da Galiza, norte da atual Espanha entre os anos de 1275-1280. Foi criado na corte do rei castelhano Sancho IV, o Bravo (1257-1295) e depois encaminhado à diocese de Santiago de Compostela, onde se tornou clérigo secular. Após receber a formação inicial como membro da nobreza foi para Bolonha, onde estudou Direito, tendo obtido o grau de doutor em direito civil e canônico, tornando-se pouco mais tarde professor universitário na mesma instituição em que se formou. Por volta de 1304, após contatos com os franciscanos, decidiu entrar para a Ordem dos Frades Menores cujos membros, naquele momento, se encontravam reunidos em Capítulo Geral na cidade de Assis. Na fase inicial de sua trajetória como franciscano, Frei Álvaro envolveu-se nas disputas internas da Ordem, consoante a problemática da pobreza de Cristo e dos Apóstolos. Acabou inicialmente por aproximar-se da corrente dos espirituais que defendiam uma posição mais rigorosa quanto à prática da pobreza; posteriormente optou pela vertente da Comunidade. Por volta de 1328, Pais se tornou penitenciário da Cúria papal em Avinhão sob o governo do papa João XXII e em 1334, por seus préstimos ao papa, foi nomeado bispo da diocese de Silves em Portugal. Morreu em 1349, em Sevilha.

Os begardos na visão de Álvaro Pais

Álvaro Pais, um hierocrata de formação, e um importante pensador político, começa a discorrer sobre os begardos no artigo 51 do Estado e pranto da Igreja, sua primeira grande obra. A descrição que fez sobre eles apresenta um caráter negativo acerca dos seus costumes, fazendo questão de diferenciá-los dos eclesiásticos, uma vez que estes pertenciam às ordens religiosas e obedeciam a uma regra de vida. Para ele, os begardos,

[...] vivem a seu bel-prazer comem e bebem, levantam-se e deambulam-se, e devido à liberdade, pois não temem ser corrigidos, nem castigados nem inquietados pelos homens, em geral poltronizam (termo vulgar em Itália), isto é, querem vida farta, com liberdade e sem trabalho, dando-se ao sono e contínuas divagações (Pais, 1996, p. 101)4.

As impressões do autor sobre esse grupo são importantes para compormos um recorte dos acontecimentos de seu tempo. Ele, que lidou com as heresias de sua época e que escreveu sua última obra por volta de 1344, intitulada O colírio da fé contra as heresias5, era versado na documentação sobre os movimentos dissidentes. O autor, ao tratar desse grupo caracteriza-o pela liberdade excessiva, pois como não obedeciam a nenhuma regra em vigor, tinham um caráter itinerante e se colocavam contra os preceitos estipulados pela Igreja ao usarem capuz curto, mantos e hábitos remendados, não praticarem o jejum, orações e outras observâncias; pelo contrário, agiam por liberdade própria, por isso, salienta o autor, mesmo que tivessem boas intenções esmoreciam ante “[...] o primeiro fogo quiçá divino que os abrasava, ficam piores do que se fossem frios no mundo [...] (Pais, 1996, p. 101)6.

Outro aspecto condenado é que se gabavam de praticar os votos de abstinência, silêncio e pobreza, o que para o autor não passava de um discurso vazio e sem fundamentação teológica, utilizado para confundir as pessoas simples e sem formação religiosa. A esse respeito, Pais é categórico:

Na realidade, a sua abstinência inicial muda-se em gastrimargia, a pobreza em pecúlio, a vigília em sonolência, o silêncio em multilóquio, a solidão em consórcio e familiaridade com seculares e mulheres. Alguns deles também vivem em cidades e vilas, e outros perto, e aceitam amiúde dos seculares convites para banquetes sob a capa de caridade [...]. Simplórios presunçosos, intrometem-se a aconselhar almas [...] (Pais, 1996, p. 103)7.

É preciso entender que as palavras de Álvaro Pais expressam a sua formação jurídica e sacerdotal, a qual se enquadra dentro de uma concepção que enxerga naquele que se desvia do caminho pre-estabelecido uma ameaça à ordem constituída, da qual não se pode fugir, nem interpretar de forma distinta da ortodoxia.

Alguns deles mesmo, os mais acima nomeados Apostólicos e Begardos, embora digam observar a pobreza evangélica por não terem bolsa nem trazerem nada consigo, são verdadeiramente giróvagos8 e verdadeiramente ribaltos, que correm mundo e comem nas praças.[...] Também não querem trabalhar, pois tem escrúpulos de fazer qualquer obra temporal. Dizem que o seu dever é orar continuamente para não cairem em tentação [...] (Pais, 1996, p. 117)9.

O autor refere-se aos begardos como ‘solitários fingidos’, que na sua missão junto ao próximo buscam apenas os seus próprios interesses. Uma vez que não obedecem a uma regra monástica ou conventual não podem permanecer reclusos, por isso se dedicavam aos “[...] seus próprios devaneios, lucros, gula e entretenimentos, cobrindo-se com o manto da caridade” (Pais, 1996, p. 107)10. Quanto a não observância de uma regra monástica, este foi um aspecto característico do estilo beguinal, podendo ser assinalado como uma inovação religiosa na Baixa Idade Média. Esta independência fora da vida claustral, possibilitou um caráter próprio destes novos movimentos religiosos.

Outro motivo de debate para o frade galego, e um erro condenado pela Ad nostrum de Clemente V, diz respeito à perfeição apostólica: “Mas, estes falsos apóstolos e begardos deste tempo desejam parecer mais perfeitos do que os verdadeiros apóstolos e os verdadeiros anacoretas que também foram varões apostólicos” (Pais, 1996, p. 119)11. Diante disso, o autor salienta que o fato deles não serem autorizados a pregar em nome da Igreja incide em uma relação demoníaca, possuindo assim o espírito maligno capaz de enganar a outrem (Pais, 1988-1998).

Um outro problema que o frade galego expõe no artigo 51 refere-se à maneira como os begardos e outros grupos agiam em relação à oração, uma vez que afirmavam praticar a oração mental, que naquele momento ainda não havia ganhado respaldo entre os eclesiásticos, pois levava a um estado extático e à contemplação, o que a Igreja não preceituava - mas que veremos posteriormente em Santa Teresa de Jesus (Silva, 1983) e em Francisco Suarez (Rodrigues, 2004) -, mas sim a “[...] oração vocal atenta em lugar e tempo oportunos” (Pais, 1996, p. 125)12.

Quanto a oração mental e sua combinação com um estado de contemplação extático, foi um modelo difundido entre as comunidades beguinas, tendo como uma das iniciadoras deste modelo de oração a beguina Maria de Oignes (1176-1213), apresentada por Tiago de Vitry na Vita Beatae Mariae Oigniacensis como praticante desta forma de oração com longos momentos extáticos diante do crucifixo. A beguina Maria de Oignes marca sua vida pela alternância de um apostolado público com a contemplação extática, algo que aparece posteriormente na vida de outras mulheres místicas como Catarina de Siena, Brígida da Suécia e Angela Foligno.

Para o autor, que os rotula como ‘falsos apóstolos e religiosos fingidos’, estes deveriam se dedicar ao trabalho manual e se contentar com a oração vocal do Pai-nosso, como outras pessoas simples e sem formação, a fim de não se perderem com a ‘simulada e imaginária oração’. Denuncia ainda que devido a esses ensinamentos incorretos muitos homens que tinham profissões como porqueiros, pegureiros, armentários, pedreiros, carvoeiros, ferreiros, dentre outras, deixaram-nas para seguir esse outro modo de vida e assim prejudicavam o sustento de suas famílias e o seu próprio, mudando de um hábito para outro. “[...] Não obstante, quase nenhum dos sobreditos sarrabaítas13 giróvagos, falsos apostolos, begardos, fraticelos e os de vida pobre, querem trabalhar com suas mãos, e vivem de esmolas [...]” (Pais, 1996, p. 125-127)14.

O autor aponta para um problema social, uma vez que abandonando seus ofícios para viverem outro estilo de vida, passavam a dedicar-se à mendicância mesmo não sendo aptos para tal, por não pertencerem a uma ordem religiosa com a devida autorização. Ressalte-se que a mendicância legal pautava-se em requisitos pre-estabelecidos, por isso não podia se dedicar à esta atividade quem tivesse de onde tirar os alimentos e o necessário à vida, ou aquele que possuísse condições de trabalhar e procurar alimento pela arte ou pelas próprias mãos; logo Pais acusa os fraticelos, begardos e falsos apóstolos de mendigar “[...]e, como podem trabalhar, e se não sabem aprendam, pecam mortalmente agindo contra as leis e os cânones se pedirem esmolas (Pais, 1996, p. 129)15.

O problema da mendicância, nesse caso, era reprovável porque agindo assim tiravam a esmola dos verdadeiros necessitados, os pobres, os enfermos ou os idosos e aqueles que não podiam trabalhar. “[...] E, porque, seguros do alimento que mendigam, negligenciavam o trabalho justo, deve-se-lhes, mesmo quando tiverem fome, tirar o alimento, mas não todavia, até à morte[...]” (Pais, 1996, p. 129)16. O modelo de comparação do frade é sempre o monástico, já que os monges com regras aprovadas como a de S. Bento, por exemplo, eram obrigados ao trabalho manual, bem como os Frades Menores, cuja regra também previa o trabalho com as mãos, embora os clérigos fossem liberados dessas tarefas, “[...] por causa da ocupação no labor espiritual, ofício divino, na leitura, no estudo, nas pregações, confissões e semelhantes [...]” (Pais, 1996, p. 131)17.

Após exposição sobre as origens dos begardos, conforme a historiografia e a introdução feita pelo autor no artigo 51, examinaremos os oito erros desse grupo e a argumentação condenatória alvarina sobre eles.

Os erros dos begardos e sua condenação

A partir das Clementinas (Clementinae, 1550, Liv. V, tit. III, cap. III, De haereticis, constituição Ad nostrum) delineadas no Concílio de Vienne pelo papa Clemente V e publicadas por João XXII (1316-1334), no início de seu governo, Álvaro Pais ponderou sobre os erros dos begardos condenados pela referida constituição. A enumeração dos erros pelo autor corresponde à do documento de Clemente V.

O primeiro erro dos Begardos apontado por frei Álvaro (anexo ao 4º erro) e condenado pelo referido Concílio fundamenta-se em que: “[...] na presente vida o homem pode adquirir tal e tamanho grau de perfeição, que se torne totalmente impecável, e não possa progredir mais em graça. Com efeito - dizem - se alguém pudesse progredir sempre, poderia vir a achar-se algum mais perfeito que Cristo” (Pais, 1996, p. 159)18.

A esse respeito, amparado nas Colações de João Cassiano (Colação Téona, intitulada De anamartício, isto é, impecabilidade), o prelado defende que não há entre os homens o viver sem pecado. Para o autor, a natureza humana por si só está exposta ao pecado, uma vez que à excessão de Cristo e Maria todos nasceram com a mancha do pecado original (Pais, 1988-1998).

Sob essa concepção, o erro a que os Bergardos incorrem está justamente em afirmarem, segundo os autos do concílio, que o homem, a partir do estilo de vida adotado, poderia crescer em graça o suficiente para não se preocupar mais em pecar, assemelhando-se às figuras de Cristo e Maria, o que é tido na interpretação do autor como falso e herético (Pais, 1988-1998). Para a teologia mística, nesta vida o místico percorre um caminho de purificação, mas alcança o estado mais alto de pureza apenas na Jerusalém celeste (Occhialini, 2003). Sendo assim, incorrem em erro os begardos ao afirmarem que ainda nesta vida poderiam se tornar puros e sem pecados.

É perceptível, também, a exaltação ao modelo mariano, quando o autor afirma que mesmo em sua existência terrena a Mãe de Deus chegou a esse grau de perfeição que não pode ser alcançado por nenhum homem ou mulher, pois “[...] nela sempre a graça e o mérito cresceram até a morte, porque sempre usava a graça vivendo recta e virtuosamente” (Pais, 1996, p. 165)19. Em sua visão não haveria ninguém mais perfeito que Cristo e nisso os begardos incorreriam em outro erro antigo, o dos Ebionitas (Orbe, 1979, 1993) que foram considerados hereges por Irineu de Lyon20 ao defenderem que Cristo se tornou ‘varão justo progressivamente’. Compara-os igualmente aos Catafrígios21 por se justificarem perfeitos e acharem-se na plenitude do Espírito Santo (Pais, 1988-1998).

Sobre a imperfeição do homem, Irineu de Lião afirma no IV Livro da obra Contra as heresias, que se alguém perguntasse:

Ora! Deus não podia fazer o homem perfeito desde o princípio? Saiba que no que diz respeito a Deus que é incriado e sempre igual a si mesmo, tudo era possível, mas as suas criaturas, enquanto receberam depois o início da existência, eram necessariamente inferiores a quem as fez. Com efeito, era impossível que seres criados há pouco fossem incriados, e, pelo fato de não serem incriados, estão abaixo da perfeição e pelo fato de serem subsequentes são como criancinhas e como tais não estão acostumados nem treinados para disciplina perfeita (Irineu de Lião, 1995, p. 504).

Para Irineu de Lião a perfeição neste mundo é impossível para o ser humano; assim Adão teria recebido a inclinação à perfeição, perdida com o pecado. Esta teria sido recuperada pela redenção de Cristo, mas seria alcançada em plenitude apenas na eternidade.

Na Colação sobre o anamartício (impecabilidade) Pais encontra argumento para rebater o erro mencionado. “Niguém pode limitar-se ao grau a que chegou, e quanto mais puro for alguém em seu espírito, tanto mais imundo se considera e mais causas encontra de humildade do que de orgulho [...]. Esta autoridade destrói completamente o dito erro” (Pais, 1996, p.169)22.

Aconselhava enfim os Begardos a reconhecerem que quanto menos pecadores se considerassem, mais pecadores se tornariam. Admoestava que estes apresentavam muitos pecados e que deviam se justificar como Davi ante seus erros e penitenciarem-se para que fossem iluminados, admitissem os seus pecados e voltassem ao seio da Igreja (Pais, 1996, p. 169)23.

Ainda seguindo a ideia de que eram perfeitos, o segundo erro atribuido aos Begardos era o de “[...] que o homem não precisa jejuar ou orar, depois de atingir o último grau da perfeição, porque então a sensualidade está tão submetida ao espírito e à razão, que o homem pode livremente conceder ao corpo o que lhe aprouver” (Pais, 1996, p. 171)24.

Para Alvaro Pais este erro funda-se em outro que é o da liberdade de espírito. Salienta que enquanto homens e mulheres vivessem, por mais perfeitos que fossem, estariam à mercê dos desejos da carne contra o espírito (Galatas 5:17). Assim, especialmente para os religiosos, sempre seriam necessários os jejuns e a abstinência para refrear os ímpetos da carne (Pais, 1988-1998).

Comparava esse erro dos begardos ao erro dos Jovinianistas25 “[...] que não fazem diferença entre os abstinentes e os que banqueteiam lautamente (C.XXIV, q. III, cap. Quidam, vers. Iouinianistae)” (Pais, 1996, p. 173)26. O problema aqui refere-se à própria identidade atribuida por esse grupo, afirmando que eram perfeitos, mortos para a carne, livres de abstinências e jejuns e vivendo vida comum, uma vez que venceram a gula. Isso contrariava completamente o pensamento dos eclesiásticos pelo fato de não terem regra específica e agirem fora da autoridade da Igreja.

Outra questão refere-se, como já enfatizado, à oração. Conforme o testemunho de frei Álvaro, havia uma contradição no agir dos begardos com relação à oração. Por um lado afirmava o dever de orar constantemente e que por isso não podiam se dedicar às atividades laborativas manuais; por outro, aquele que se considerava perfeito não precisava mais orar. Neste ponto, “[...] são contrários a Deus e a si próprios, e, portanto, não devem ser ouvidos” (Pais, 1996, p. 175-177)27.

O autor finaliza as considerações sobre esse erro afirmando que esse grupo era composto por mentirosos, além de possuírem o espírito de liberdade carnal e que, por essa razão, não eram capazes de alcançar as benesses da oração, uma vez que não estavam ligados ao Espírito Santo de Deus. Com base em Carta de S. Paulo aos Romanos (12:1), Pais é enfático: “Sacrifiquem-se, pois, estes malignos Begardos como hóstia santa e viva [...] macerando a carne com o jejum e a abstinência no átrio exterior [...]” (Pais, 1996, p. 179)28.

O terceiro erro dos begardos de acordo com frei Álvaro consistiria em “ [...] dizerem que aqueles que estão no predito grau de perfeição e espírito de liberdade, não estão sujeitos à obediência humana [...] E esse erro está também em dizerem que não são obrigados a alguns preceitos da Igreja[...]” (Pais, 1996, p. 183)29. A respeito desse erro o autor ressalta que ele contém três artigos, sobre os quais propõe discorrer eliminando um a um.

“Primeiro, digo que o erro de afirmarem que, depois de perfeitos, não são obrigados a obedecer aos homens, é um erro antigo dos hereges[...]” (Pais, 1996, p. 183)30, o que aparece tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Nesse ponto o autor predica sobre a obediência que devem aos membros da Igreja. Para ele, a questão da obediência à hierarquia eclesiástica era indiscutível. Deviam obedecer aos clérigos como representantes dos Apóstolos de Cristo e de modo especial ao Papa que, por analogia, representava Pedro, o primeiro e principal apóstolo de Jesus.

Ele atribuia o vício da desobediência dos begardos ao que os gregos chamavam de idioritimia, “[...] isto é, movimento, ordem, regra, forma, amor e complacência da vontade própria” (Pais, 1988-1998, EPI II, art. 52, v. VI, p. 189), e que se considerando os begardos e outros grupos sob a aparência de virtude enganavam a si mesmos - nesse aspecto, propõe São Francisco como modelo de obediência. “Dizia o venerável Francisco que, se um súbdito vir melhores coisas para a sua alma do que as que o prelado lhe ordena, sacrifique a sua vontade a Deus, e esforce-se por fazer o que o prelado manda” (Pais, 1996, p. 189)31. Outro exemplo é frei Egídio, companheiro do Poverello, para quem estar sob o jugo da obediência representava seguir o caminho da perfeição e estar fora dela significava um sinal de grande soberba (Pais, 1996, p. 191)32. Para o autor, um hierocrata convicto, os begardos agindo assim não estavam obedecendo a Deus como diziam a seu próprio respeito, “[...] uma vez que não querem por amor Dele obedecer aos prelados que regem o mundo” (Pais, 1996, p.191)33.

Além do mais, o fato de os membros desse movimento dizerem que depois de alcançar a perfeição não estariam mais obrigados aos preceitos da Igreja “[...] é sem dúvida, erro manifesto” (Pais, 1996, p. 191)34. Este segundo ponto levantado pelo autor diz respeito à comparação dos begardos com a doutrina do Livre Espírito. Nesse sentido, nos reportamos a Ortega Martín, assinalando que por volta de 1306 e 1308 Margerite Porete, uma beguina de Hainault, teve seus livros queimados a mando do bispo de Cambrai e nesse processo foi enviada a Paris acusada de difundir a doutrina do Livre Espírito a pessoas simples e em especial aos begardos, acusação que também Álvaro Pais fez no seu Estado e pranto da Igreja. Porete se negou a responder aos interrogatórios, “[...] mas a declaram culpada de heresia perante uma comissão de teólogos. Foi declarada relapsa e foi queimada na fogueira em Paris em 1310” (Ortega Martín, 2020, p. 69, tradução nossa)35. Ela foi condenada por misticismo herético, especialmente pelo conteúdo de seu livro O espelho das almas simples, cujo original circulou de forma anônima por muitos conventos e mosteiros chegando até a atualidade (M. Lambert, o.c., 194-195 apud Ortega Martín, 2020).

Por esse motivo, aqueles que aderiam aos movimentos místicos tiveram que limitar o conteúdo de suas pregações para não serem relacionados ao Livre Espírito. “Hubo por tanto una conexión de este movimiento de pobres, de personas que pensaban distinto y que buscaban la pobreza, que en parte quedaron marginados por su disidencia y modo de vida” (Ortega Martín, 2020, p. 68).

O terceiro ponto levantado diz respeito à forma como esses heréticos viam a liberdade, uma vez que se baseavam numa interpretação da Segunda Carta de S. Paulo aos Coríntios“ (3:17) “[...] onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade”, e da Epístola aos Gálatas (5:18): “Mas se vós sois guiados pelo Espírito de Deus, não estais sob a lei [...]”. O fato de interpretarem os Evangelhos literalmente, induzia, segundo Pais, a um equívoco em relação ao tema liberdade e sua significação para o homem, por isso os compara aos hereges do espírito de liberdade, grupo a que pertencia Marguerite Porete.

Segundo frei Álvaro, dentre os seus equívocos a interpretação errônea do que é a liberdade é o ponto mais perigoso, pois tem sua origem no exemplo de antigos hereges e referindo-se à sua época lembra-nos que se vivia em tempos sombrios acreditando na volta eminente do ‘Anticristo, filho da perdição’ e que estas coisas estavam acontecendo por obra do mesmo. E registra seu testemunho:

Um deles, que era do bispado tudertino (Todi), disse não há muito, como foi ‘provado por testemunhas estando eu lá’, que o inferno não era outra coisa senão o fazer em tudo a vontade própria, e o paraíso também não era outra coisa senão fazer em tudo a vontade própria e em tudo usar a liberdade (Pais, 1996, p. 193, grifo do autor)36.

Ressaltava que os begardos e outros hereges não possuíam consciência de seus erros ou pecados, incluindo o pecado da carne “[...]razão porque são todos imundos, como é manifesto pelas suas próprias confissões e ‘por depoimentos fiéis obtidos em meus dias’, especialmente nas partes da Lombardia37 e na província ducatana, que é a província de São Francisco” (Pais, 1996, p. 193, grifo do autor)38.

O autor pregava a reconciliação dos begardos com o que ele concebia como a verdadeira fé, afirmando: “Voltem, pois, estes Begardos, contra os quais discorri mais acima, ao espírito do Senhor, e não da carne, se desejam ter a verdadeira liberdade. [...] ‘como experimentamos nestes tempos do fim’, o tal espírito da liberdade que hoje corre é a carne e não o espírito” (Pais, 1996, p. 20739, grifo do autor)40.

O “Quarto erro dos Begardos é que o homem pode conseguir na vida presente a bem-aventurança final segundo todo o grau de perfeição, tal como a obterá na vida bem-aventurada” (Pais, 1996, p. 209)41. Essa concepção poderia levar ao questionamento: alguém pode tornar-se bem- aventurado nesta vida?

Segundo o autor, este erro não encontra apoio nas Sagradas Escrituras; baseando-se em Mt 11, 11 faz sua contestação utilizando o exemplo de João Batista, que pregou a vinda de Cristo, lembrando humildemente que mesmo sendo propagador da vinda do Redentor, tornara-se o menor entre os servos de Deus. Igualmente, com base em Agostinho, o prelado reafirmou que a respeito da ideia de reino dos céus, pregada pelos begardos, os humanos ainda não eram capazes de recebê-lo, uma vez que lá encontra-se a hierarquia celeste e é preciso lembrar que os homens trazem em seu corpo o peso do pecado “[...] porque este corrompe-se e torna a alma pesada, e esta morada terrena abate o espírito cheio de preocupações” (Sabedoria 9:15). Pais lembra, ainda, amparando-se em Jerônimo, que todo aquele que já se encontra com Deus é maior do que aquele que ainda se encontra no plano terreno. O que pode ser usado como argumento contra esse erro dos begardos.

Para o frade galego, toda a perfeição do homem no plano terreno encontra-se na virtude teologal da caridade (Carta de S. Paulo aos Colossenses, 3;14), se alguém quer se reconhecer maior, só o é de fato em relação ao amor a Deus e ao próximo. Segundo Carta de S. Paulo aos Coríntios (13:3) “[...] se eu não tiver caridade nada sou”. Entretanto, reafirma, rebatendo o primeiro erro dos begardos, que não existe neste plano uma caridade perfeita como no plano celeste: “[...] o fogo grande da caridade, está em Jerusalém, isto é, na pátria bem-aventurada e pacífica, que é o que significa Jerusalém” (Isaías 31:19). A esse respeito ressalta: “Nunca, portanto, aquele que vê Deus em enigma, pode gozar de tal e tamanha felicidade como o que vê Deus face a face” (Pais, 1996, p. 211)42.

Outro argumento contra este erro atribui-se à leitura que fez de S. Bernardo de Claraval (apud Pais, 1996, p. 213)43, à medida que “[...] o castigo divino não nos expulsou dum paraíso de delícias para a invenção humana arranjar aqui outro paraíso”. A visão dos begardos sobre a bem-aventurança é contestada pelos eclesiásticos, pela própria concepção de se criar um paraíso ainda em vida, descaracterizando a ideia do juízo final e eles reiteravam a necessidade de o cristão se manter fiel à instituição como única mediadora da salvação: “Pois, se nesta vida se pudesse chegar a uma felicidade tão grande como a da pátria (celeste), em vão se desejaria o outro paraíso, porque nada valeria, o que é herético sentir[...]” (Pais, 1996, p. 213)44.

Sobre ver Deus face a face ainda nesta vida, o autor cita os exemplo de Paulo, que devido aos impedimentos inerentes à carne e aos vários impulsos da alma não podia, como desejava, contemplar ao Senhor, bem como Davi: “Quando irei e aparecerei diante da face de Deus? (Salmos 46:3) Assim, se nem o Apóstolo ou Davi viram Deus face a face quando ainda viviam, quanto mais os hereges não podiam vê-Lo.

Conforme sua leitura sobre os doutores da Igreja, “[...] há duas bem aventuranças: uma pela graça, outra pela glória, uma na via, outra na pátria celeste” (Pais, 1996, p. 215)45. A bem aventurança pela graça consiste na glorificação da alma daqueles que já se encontram na Jerusalém celeste, ou seja, na elevação da alma a Deus. A outra é a do corpo, ou seja, daqueles que ainda estão peregrinando para a almejada cidade. Embora, salienta o autor: “[...] nesta vida, mesmo os corpos dos homens perfeitos não têm as qualidades que tem na outra vida” (Pais, 1996, p. 217)46. Seu raciocínio é de que é impossível aos homens perfeitos serem felizes na vida terrena, como o seriam na vida celeste, em que seriam bem aventurados na alma e no corpo. Ainda chama à sua narrativa Mt, 5, acerca das bem aventuranças, que por analogia seriam degraus para a salvação tanto da alma quanto do corpo. Sobre esta interpretação dos Evangelhos conclui: “[...]estes miseráveis, se não anularem estes erros, não têm nesta vida a bem-aventurança da graça, nem na outra a bem-aventurança da glória, etc...” (Pais, 1996, p. 217)47.

O quinto erro dos Begardos está em dizerem que qualquer natureza intelectual é por si mesma naturalmente feliz, e que a alma não precisa da luz da glória que a eleve para ver a Deus e ditosamente o fruir. Este erro é anexo àqueloutro dos pelagianos [...]48 (Pais, 1996, p. 217)49.

A esse erro Álvaro Pais reiterava que esta forma de interpretação era errônea, uma vez que a afirmação de que conheciam a natureza intelectual angélica era falsa, já que doutrinalmente, para o autor, “[...] ninguém é natural e essencialmente bom e feliz senão só Deus, o qual é essencial, originária, perfeita, efectiva e naturalmente bem-aventurado” (Pais, 1996, p. 219)50.

Se somente Deus é verdadeiramente bom, o homem não participa com ele da perfeição ou bondade absolutas porque na doutrina católica toda criatura é dotada de defeitos e por si “[...] tende ao nada, porque do nada foi criada” (Pais, 1996, p. 219)51. Deus é efetivamente bom porque sua origem é a bondade, pois não a recebe de outro, dado que ela provem de Si mesmo; Só Ele é perfeitamente bom porque não há Nele nenhum mal ou defeito; Todo bem deriva Dele “[...] visto ele ser a fonte indelével de todo o bem” (Pais, 1996, p. 219)52; Só Deus é naturalmente bom, já que a sua natureza é incomutavelmente boa e incorrupta. Mas se somente Deus é bom, o que dizer de suas criaturas? O autor parece contrariar o que preconizava as Escrituras a esse respeito, todavia deixou claro que o homem provinha de Deus, por isso tinha seu grau de perfeição; contudo não poderia igualar-se a Deus nem aos anjos. “A criatura é, pois, boa a seu modo, mas não de modo perfeito, porque, se fosse essencialmente boa como a natureza de Deus, nunca poderia perder esse seu ser boa, nem pecar como os anjos repróbos que cairam” (Pais, 1996, p. 219)53.

Sobre os bergardos que se afirmavam entendedores da natureza intelectual do homem, ou seja, da alma e que ela seria por si mesma bem-aventurada, contestou que esta afirmativa era falsa, citando o exemplo do primeiro homem, Adão, pois se ele tivesse sido “[...] criado bem-aventurado por Deus e fosse como Deus naturalmente bem-aventurado [...]”(Pais, 1996, p. 221)54 este não poderia cometer o pecado e nem estaria sujeito à morte. Adão, lembra o autor, foi criado com o livre arbítrio, podia pecar ou não, morrer ou não morrer. “[...] foi portanto Adão criado bom a seu modo como o anjo, mas não confirmado no bem da virtude nem inseparavelmente possuido do bem” (Pais, 1996, p. 221)55.

Em relação a afirmarem que “[...] a alma não precisa da luz da glória que a eleve a ver Deus e ditosamente O fruir, é falso [...]” (Pais, 1996, p. 221)56. Pais explicou que a luz da glória é o próprio Cristo e não a alma de qualquer santo; mesmo que a alma tenha a luz da graça, precisa da luz da glória para ser iluminada e não cair em erro. “Mas estes míseros e cegos Begardos dizem: Como pode ser que Deus seja visto pela criatura na sua luz inacessível sem Deus luz, quando entre Deus, que é a luz incriada, e a sua luz não há diferença porque a luz com que se vê Deus é Deus? (Pais, 1996, p. 223)57.

Para frei Álvaro, o quinto erro dos begardos estava ligado ao quarto, uma vez que nesta vida não se pode ter uma contemplação tão clara da face de Deus, a não ser por privilégio concedido. Além do mais, na vida terrena toda alma necessita da luz divina para ser elevada a Deus, visto que o ser humano tem em si a marca do pecado original (Pais, 1988-1998), pois “[...]pecando o primeiro homem e cegando com o pecado, arraigou-se o vício da natureza” (Pais, 1996, 225)58.

“O sexto erro dos Begardos consiste em “[...] afirmarem que o exercitar-se nos actos das virtudes é próprio do homem imperfeito, e que a alma perfeita licencia de si as virtudes” (Pais, 1996, p. 225)59. Esse erro assemelha-se ao que foi condenado no segundo processo contra Marguerite Porete, mostrando a influência do pensamento poreteano entre os begardos.

Conforme Josep Ignasi Saranyana (2007), com base em Romana Guarnieri, nas atas do segundo processo composto de duas das quinze proposições entregues aos peritos contra Marguerite Porete, a primeira confirma a nossa assertiva acerca da influência do pensamento da autora de Espelho das almas simples em movimentos como o dos begardos, mais especificamente no sexto erro a eles atribuidos:

1ª. Quod anima adnichilata dat licentiam virtutibus nec est amplius in earum servitute, quia non habet eas quoad usum sed virtutes obediunt ad nutum». (Que el alma aniquilada tiene licencia con respecto a las virtudes, en el sentido de que no hay en ella ninguna dependencia de tales virtudes, porque no tiene necesidad de apoyarse en ellas, pues las virtudes obedecen a la menor seña). Esta proposición, según Guarnieri, remite a los capítulos 6, 8, 13 y 21 del Speculum (Saranyana, 2007, p. 267).

Frei Álvaro ressaltava que tal afirmação seria errônea pois se confundia com os preceitos de Cristo e de todos os santos perfeitos que exercitaram as virtudes, como “[...] genuflectir, orar vocalmente, observar a pobreza corporal, pregar, praticar as obras de misericórdia e de disciplina[...]” (Pais, 1996, p. 225)60. Na verdade, o autor deixa claro que o erro dos begardos estava, como já colocamos anteriormente, em se aproximar espiritualmente das práticas sacerdotais sem, no entanto, fazerem votos ou subjugarem-se a uma regra de vida.

Quanto à questão de alma perfeita licenciar as virtudes, o autor reiterou que a virtude sem a prática “[...] é pura teoria, pois é impossível haver verdadeira virtude sem o exercício a seu tempo de obras virtuosas” (Pais, 1996, p. 225)61. A esse respeito lançou uma questão: “Quem de facto, sabe que é perfeito, para poder dispensar-se dos actos das virtudes? De certeza que ninguém (1ª Cor. 4:7)” (Pais, 1996, p. 227)62. Para a sua argumentação apontava a carta de S. Paulo aos Filipenses (3:12): “Não há que já tenhamos recebido o prêmio ou sejamos perfeitos”. Para o frade galego quanto mais o homem reconhecer-se imperfeito, mais perto da perfeição se encontraria. Paulo, ainda, aos Filipenses (3:12-13) afirmou: “[...] mas prossigo para ver se dalgum modo o poderei apreender, porque eu também fui apreendido por Jesus Cristo. Irmãos, eu não julgo ter já alcançado a meta”. Na concepção do autor, se Paulo, que era perfeito, progredia rumo às virtudes, quanto mais os heréticos que se afirmavam perfeitos e virtuosos e ressalta “[...] este texto destrói expressamente este erro” (Pais, 1996, p. 227)63.

Para ele era inconcebível que alguém pudesse se achar tão perfeito que viesse a se eximir da prática das virtudes. As virtudes são exercidas internamente ‘pelo desejo, pensamento e meditações santas’ ou externamente pela prática de obras santas.“Se não se exerce por nenhum destes modos, perde o nome de virtude, e a alma sem virtude fica nua, porquanto as virtudes são os véus da alma” (Pais, 1996, p. 229)64. Afirmava ainda que é impossível existir a imagem e semelhança de Deus nas almas que não praticam as virtudes. Segundo ele, esse comportamento dá vazão a entrada do demônio e não a de Deus “[...]saindo a virtude, sucede-lhe o vício” (Pais, 1996, p. 229)65.

O sétimo erro dos Begardos é dizerem que o beijo da mulher, visto a natureza não inclinar para ele, é pecado mortal, mas que o acto carnal, visto a natureza inclinar para ele, não é pecado, mormente quando quem o pratica é tentado (Pais, 1996, p. 229)66.

Para rebater esse erro, o autor discorreu sobre o pecado e em que condições ele seria venial ou mortal. Em relação ao beijo da mulher, se consistia em pecado ou não, informava que os beijos, os toques, os abraços não eram pecados nem veniais nem mortais, uma vez que podiam ser feitos com boa intenção, como, por exemplo, “[...] para saudar alguém, ou por costume, sobretudo entre parentes, como é de uso nos provinciais, ou quando o médico apalpa o pulso ou ferida duma mulher” (Pais, 1996, p. 229)67.

O pecado mortal, portanto, incidiria em causas desordenadas e más ou em consentir deliberadamente em ato pecaminoso. Explicava a esse respeito que se alguém desse um beijo ou tivesse contato com outrem com ânimo libidinoso, aí sim, cometia-se o pecado mortal,“[...] porque não só com o tacto, mas também com a vista, e com o afecto mesmo sem vista, apetece e é apetecida a concupisciência das mulheres (Mt, 5, 28) [...]”. Para ele, os pecados são cometidos a partir do “[...] consentimento criminoso do coração” [...] (Pais, 1996, p. 231). A esse respeito, Mateus (15:19) admoestou que “[...]do coração saem os maus pensamentos, homicídios , os adultérios[...]”. “Portanto, se o coração é ferido pelo dardo da sensualidade, o beijo é pecado mortal[...]” (Pais, 1996, p. 231)68.

Pais registrou ainda que os begardos proferiam falsidade quando afirmavam: “[...]que a natureza não inclina para o beijo, porque a seu modo inclina para ele como para o coito” (Pais, 1996, p. 231)69. Lembrava que o pecado nasce sempre da mente corrupta, pois “[...] não é a inclinação ou não inclinação da natureza [...] ” que traz o pecado, é a vontade própria baseada no livre arbítrio, pois “[...] mesmo que a natureza incline muito para o pecado da carne, aquele que peca por seu arbítrio não é menos culpado [...]” (Pais, 1996, p.231)70.

Quanto ao outro aspecto deste sétimo erro, de o ato carnal não ser um pecado porque faz parte da natureza humana, o autor assinalou que tais ideias seriam influenciadas pelo espírito de liberdade, baseando-se no Livro do Êxodo (20:14), no Decálogo, “[...] não cometerás adultério [...]”, para confirmar o erro dos begardos de que “[...] todo coito ilícito e o uso ilegítimo dos membros [...], porquanto a simples fornicação é pecado mortal [...]” (Pais, 1996, p. 233)71. Ainda sobre a fornicação, retomou Isidoro: “A fornicação é maior que todos os pecados. A fornicação antecede todos os males. É pois, melhor morrer que fornicar” (Pais, 1996, p. 233)72. A esse respeito o autor ressaltou que quanto à necessidade, pode-se desculpar um furto, um homícidio, mas em nenhum caso se desculpa a fornicação.

Sobre o terceiro ponto deste erro dos begardos

[...] que quando alguém é tentado com este pecado no seu parecer é desculpado, visto que uma coisa é ser tentado e outra coisa é consentir na tentação. Não ser tentado é impossível, porque toda a nossa vida sobre a terra é uma tentação [...] (Pais, 1996, p.235)73.

A tentação para o autor é uma forma de se vencer o pecado; nesse sentido ela se torna algo positivo, mas para que o homem combata a tentação deve estar em constante oração, especialmente a que Cristo ensinou a seus apóstolos. A tentação está interligada também com o pecado que para o autor se completa de três modos: “[...] pela sugestão, que é feita pelo diabo, pelo deleite, que é feito pela carne, e pelo consentimento que é feito pelo espírito” (Pais, 1996, p. 235)74. E retoma o mito do pecado original relacionando a serpente ao diabo que sugeriu o pecado, Eva com a carne que se deleitou dele e Adão como espírito que consentiu em pecar. Citando Crisóstomo, afirmou que aqueles que já estão em pecado não eram tentados pelo diabo, mas “[...] se resolveres ser continente, és tentado pelo espírito da luxúria; se resolveres jejuar, és tentado pelo espírito da gula; se resolves fazer esmola és tentado pela avareza; se resolves conservar a humildade, és tentado pelo espírito da soberba [...]” (Pais, 1996, p. 235)75. Na verdade, os cristãos estão sempre em luta contra o mal à espera da glória celeste. “Não se desculpem então estes Begardos por serem tentados na carne, visto que ninguém peca contra a vontade” (Pais, 1996, p. 237)76.

O oitavo erro dos Begardos devia-se à afirmação de que

[...] à elevação do corpo de Jesus Cristo, não deve erguer-se nem prestar-lhe reverência, afirmando que seria para eles sinal de imperfeição, se descessem tanto da pureza e altura da sua contemplação, que pensassem algo sobre o mistério ou sacramento da Eucaristia ou acerca da paixão da humanidade de Cristo (Pais, 1996, p. 237)77.

O autor contrapôs esse erro utilizando-se da Carta de S. Paulo aos Filipenses (2:10): “[...] ao nome de Jesus se dobre todo joelho”. Sobre o erro demonstra se está referindo ao corpo de Cristo na eucaristia, sacramento instituído por Ele antes de ser crucificado (Cf. Lc 22:14-20; Mc 14:22-25; Mt 26:26-29). Além do mais para a Igreja, desde o século XIII, todo fiel é obrigado a comungar pelo menos uma vez por ano, conforme o IV Concílio de Latrão (1215):

Todos os fiéis, de um e outro sexo, depois de terem atingido a idade da razão, confessarão pessoalmente e fielmente todos os seus pecados ao menos uma vez por ano a seu pároco, aplicar-se-ão, na medida de suas forças, a cumprir a penitência que lhes será imposta, recebendo com respeito, ao menos na Páscoa, o sacramento da eucaristia (Concílio de Latrão, IV, Cod II-1, p. 525, DzS 812, FC 797, 2005, p. 116).

A obrigatoriedade da confissão e do cumprimento da penitência imposta pelo confessor assegurava e regulamentava as práticas penitenciais, o que preparava os fiéis a receberem a eucaristia, devendo igualmente adorar a Cristo prestando-lhe culto: os reis magos que adoraram Jesus na manjedoura (Mt 2:10); o leproso que antes de pedir a cura prestou culto ao Senhor (Mt 8:1-4); e o cego que o adorou (Jo 9).

Trazendo à tona outro aspecto deste erro, o frade galego salientou que ao dizerem que cairiam do seu estado de perfeição em sua contemplação ao pensarem na paixão de Cristo “[...]é uma tolice de manifesta arrogância diabólica, porque, vendo o corpo de Cristo, vêem Deus pela fé e a sua divindade que está conjunta à carne de Cristo” (Pais, 1996, p. 239)78. Uma vez que sobre a presença de Cristo na eucaristia, ainda no século XI, o papa Gregório VII (1073-1085), definiu que

O pão e o vinho que estão sobre o altar são, pelo mistério da oração santa e pelas palavras de nosso Redentor, mudados substancialmente na verdadeira carne, própria e vivificante, e no sangue de nosso Senhor [...] não apenas em figura e pela virtude do sacramento, mas em sua própria natureza e em sua verdadeira substância (Gregório VII, 2005, p. 51).

A questão posta pelo frade galego questionava o fato de que diziam contemplar a divindade sem contemplar o próprio Cristo, que seria uma só essência com o Pai e é o mesmo Filho e homem nascido de Maria, como vem expresso no Concílio de Niceia (Pais, 1988-1998).

O problema doutrinário se faz presente, uma vez que para o frade galego o que está em jogo é a própria instituição eucarística ao não darem crédito à transubstanciação do corpo e sangue de Cristo na hóstia consagrada. “Ora, aquela sacrossanta carne que se confecciona no altar é a verdadeira carne deste Deus e homem. Donde Agostinho: ‘Recebeu a carne da carne de Maria, e deu a comer essa mesma carne para nossa salvação’” (Pais, 1996, p. 239)79.

Ressaltou que a carne é inseparável ao Verbo e que a adorando não descem da verdadeira contemplação, pelo contrário são ascendidos aqueles que contemplam aquele Deus que se fez humano e viveu como os homens. “Nada, realmente, é mais suave, doce e glorioso para o homem do que contemplar que é efectivamente verdade que o seu Criador está corporalmente unido à sua criatura e que é inseparavelmente um só com ela [...]”(Pais, 1996, p. 239)80.

De acordo com frei Álvaro, caso tais afirmativas fossem verdadeiras, igualmente a “Santa Virgem, os apóstolos, os evangelistas, os patriarcas e os profetas teriam sido sumamente imperfeitos [...]” (Pais, 1996, p. 241)81. Salientava ainda que o caminho mais acessível para alcançar a contemplação da divindade consistia justamente na contemplação da humanidade de Cristo.

A esse respeito alegou que os Begardos eram “ [...] piores que os demônios [...]”, por não quererem adorar a Cristo na carne, “[...] isto é, Cristo, que é nosso pela participação da natureza humana e pela redenção”[...]. Por conseguinte, se estes Begardos desejam na verdade comer a carne de Cristo, adorem de verdade essa carne [...]” (Pais, 1996, p. 243)82.

Por fim, o prelado registrou um relato importante, pois demonstrava que conhecia a doutrina dos Begardos e chegou a pregar contra ela, especialmente o oitavo erro sobre a elevação do corpo de Cristo durante a celebração da missa. Informou ele que “[...] num mosteiro de monges de S. Lourenço de Pansperne, onde naquele tempo ‘eu ficava’, havia um teutônico, na aparência muito espiritual. [...] Numa pregação a que ele assistia, ‘aludi’ a este erro contra os Begardos de cujo número ele era [...]”(Pais, 1996, p. 243, grifos do autor)83. Indica-nos ele que à medida em que pregava corrigia aquele homem de tal erro, mas ele mostrava-se inquieto e não o aceitava com prazer. “Cobria-se de hábito vil e vertia lágrimas, pois o diabo muitas vezes ministra lágrimas e êxtases aparentes [...]” (Pais, 1996, p. 243)84.

Considerações finais

Refletir sobre Álvaro Pais e o seu pensamento ainda se faz premente, uma vez que sua obra enseja muitos temas a serem examinados. O caso dos begardos é um deles. Um dos desafios encontrados para a composição deste artigo foi a escassez de trabalhos sobre Àlvaro Pais e seu pensamento sobre esse movimento herético. Na imersão que fizemos encontramos apenas um trabalho que cita a obra alvarina em seu compêndio bibliográfico, o que nos trouxe o desafio de apresentar, a partir da fonte, os oito erros atribuidos aos begardos pela constituição Ad nostram, de Clemente V.

Por serem erros doutrinários nos amparamos na perspectiva teológica para entendermos a concepção alvarina sobre o assunto. Não podemos esquecer que sua visão acerca desse movimento contava com uma preocupação em relação à salvação eterna dos fiéis. Fiéis estes que haviam, segundo sua perspectiva, se desviado do caminho reto e, pior que isto, além de estarem fadados à danação colocariam outros no mesmo rumo, ao desvalorizarem os ritos, a obediência à hierarquia eclesiástica e a desaprovação à liturgia eucarística. Por outro lado, movimentos considerados heréticos como o estudado aqui, buscavam maior liberdade religiosa e uma vivência baseada na pobreza de Cristo e dos Apóstolos. Com isso destoavam muito da realidade vivida pelos clérigos àquela época.

Para o autor, o modo de vida e de pesansamento desse grupo concorria com a dogmática constituída pela Igreja. Verdades de fé que não podiam ser questionadas e que traziam em torno de si uma movimentação tanto das forças da Igreja quanto laicas por conterem ideias dissonantes no seio da cristandade. Nesse sentido, se deu a condenação dos begardos e de outros movimentos heréticos que surgiram a partir do século XII, como elencado neste trabalho.

Deste modo, esperamos que este trabalho tenha sido um contributo para os estudos acerca das obras de Álvaro Pais no Brasil e sobre um tema pouco estudado que é a heresia begarda. No texto, optamos metodologicamente por comentar os oito erros a partir da própria fonte, uma vez que a bibliografia sobre o assunto é escassa e os begardos não deixaram escritos sobre seu pensamento; assim, a obra de Álvaro Pais se torna uma fonte necessária para compreender, mesmo que parcialmente, alguns baluartes desse movimento.

Referências

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171NOTA: Armênia Maria de Souza e Heverton Rodrigues de Oliveira foram os responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada

173Rodadas de avaliação: R1: cinco convites dois pareceres recebidos

174Revisor de normalização: Adriana Curti Cantadori de Camargo Vanêssa Vianna Doveinis

Recebido: 19 de Novembro de 2022; Aceito: 17 de Maio de 2023; Publicado: 10 de Dezembro de 2024

* Autor para correspondência. E-mail: armeniasouza@ufg.br

INFORMAÇÕES SOBRE OS AUTORES Armênia Maria de Souza: Professora Associada IV da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás. Atua no Programa de Pós-Graduação em História da UFG. Coordena o Sapientia:Grupo de estudos e pesquisas sobre Idade Média e Moderna. Possui Licenciatura, Bacharelado e Mestrado em História pela UFG, Doutorado em História Social pela UnB, Estágio Pós-doutoral na Universidade de Coimbra. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5392-3824 E-mail: armeniasouza@ufg.br

Heverton Rodrigues de Oliveira: Possui Graduação (2009) e Mestrado em História (2016) pela Universidade Federal de Goiás e Graduação em Teologia (2014) pelo Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás. Atualmente é doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás (PPGH/UFG). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6593-1218 E-mail: hevertonrodrigues@discente.ufg.br

Editor-Associado responsável

: Terezinhha Oliveira (UEM) ORCID: http://orcid.org/0000-0001-5349-1059 E-mail: teleoliv@gmail.com

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