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História da Educação

versão impressa ISSN 1414-3518versão On-line ISSN 2236-3459

Hist. Educ. vol.23  Santa Maria  2019  Epub 07-Mar-2019

https://doi.org/10.1590/2236-3459/76717 

Artigos

SOB O GOVERNO DE HIGIA: OS SABERES MÉDICO-PEDAGÓGICOS E A CONSTRUÇÃO DE UM CORPO HÍGIDO NA PARAÍBA (1930-1940)1

EL GOBIERNO DE HIGIA: LOS SABERES MÉDICO-PEDAGÓGICOS Y LA CONSTRUCCIÓN DE UN CUERPO HÍGIDO EN LA PARAÍBA (1930-1940)

UNDER THE GOVERNMENT OF HIGIA: THE MEDICAL-PEDAGOGICAL KNOWLEDGE AND THE CONSTRUCTION OF A HYGIENE BODY IN PARAÍBA (1930-1940)

SOUS LE GOUVERNEMENT DE HIGIA: LA CONNAISSANCE MEDICO-PEDAGOGIQUE ET LA CONSTRUCTION D'UN CORPS D'HYGIENE A PARAÍBA (1930-1940)

Azemar dos Santos Soares Júnior2 
http://orcid.org/0000-0003-0015-415X

2Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal/RN, Brasil.


RESUMO

Esse artigo tem por objetivo analisar como os manuais pedagógicos, colocados em circulação pelo Estado da Paraíba para os professores, trataram de orientar as diretrizes para as disciplinas de Educação Física e Higiene, nas décadas de 1930 e 1940. Metodologicamente, a análise dos discursos impressos nesses periódicos - Revista do Ensino, Boletins da Educação -, e, no livro didático - A fada Higia -, possibilitaram entender o modelo de corpo que o discursos médico-pedagógico quis formar nos anos da Era Vargas. Trata-se de um discursos eugênico, que visou criar cidadãos fortes, saudáveis e obedientes ao Estado. Os conceitos de norma e disciplina são discutidos a partir da perspectiva foucaultiana. Conclui-se que a legislação educacional incumbiam aos docentes essa tarefa.

Palavras-chave: corpo; higiene; educação física

RESUMEN

En este artículo se pretende analizar cómo manuales de enseñanza, puestos en circulación por el Estado de Paraíba para los profesores, trataron de llevar las directrices para las disciplinas de Educación Física y Salud, en los años 1930 y 1940. En cuanto a la metodología, el análisis de discursos impresos en estas revistas - Revista do Ensino, Boletins da Educação - y, en el libro de texto - A fada Higia - hicieron posible entender el modelo de cuerpo que el discurso médico-pedagógico quería formar en los años de Vargas. Este es un discurso eugenésico, que se pretendía crear ciudadanos fuertes, sanos y obediente al estado. Los conceptos y los estándares de disciplina se discuten desde la perspectiva de Foucault. Llegamos a la conclusión de que la legislación educativa profesores titulares a esta tarea.

Palabras clave: cuerpo; salud; educación física

ABSTRACT

This article aims to analyze how teaching manuals, put into circulation by the Paraíba State for teachers, tried to steer the guidelines for the disciplines of Physical Education and Health, in the 1930s and 1940. In terms of methodology, the analysis of printed speeches in these journals - Revista do Ensino, Boletins da Educação - and, in the textbook - A fada Higia - made it possible to understand the body model that medical -pedagogical discourse wanted to form in the years of Vargas. This is a eugenic discourse, which aimed to create strong, healthy citizens and obedient to the state. The standard concepts and discipline are discussed from Foucault's perspective. We conclude that educational legislation incumbent teachers to this task.

Keywords: body; health; physical education

RÉSUMÉ

Cet article vise à analyser comment les manuels pédagogiques, mis en circulation par l'État de Paraíba pour les enseignants, ont essayé de guider les lignes directrices pour les disciplines de l'éducation physique et de l'hygiène dans les années 1930 et 1940. Méthodologiquement, l'analyse des les discours imprimés dans ces périodiques - Revista do Ensino, Boletins da Educação - et dans le livre didactique - A fada Higia - ont permis de comprendre le modèle corporel que les discours pédagogiques-pédagogiques ont voulu former dans les années de Vargas Era. C'est un discours eugénique visant à créer des citoyens solides et sains et obéissant à l'Etat. Les concepts de norme et de discipline sont discutés du point de vue Foucaultien. On a conclu que la législation sur l'éducation était la responsabilité des enseignants.

Mots-clés: corps; hygiène; education physique

INTRODUÇÃO

“A educação physica prepara a criança para a vida, dando-lhe a força de resistência e sobre tudo a saúde. É o melhor preservativo de moléstia” (REVISTA DO ENSINO, 1937, p. 69). A fala é do médico Seixas Maia, lida em alto e bom som para os participantes da Semana Pedagógica do ano de 1937. Atendendo ao convite do Mons. Pedro Anísio para falar sobre “assumpto médico ou hygienico que interessa a classe dos professores” (REVISTA DO ENSINO, 1937, p. 69), o sanitarista não se fez de rogado e logo escreveu o que ele chamou de uma palestra “scientífica, sobre educação physica e sanitária”. Falava para um público de professores das escolas públicas sobre a necessidade em realizar intervenções nas horas de divisão do trabalho escolar entre “desenvolvimento intelectual do alumno e a educação physica” (REVISTA DO ENSINO, 1937, p. 69), especialmente nas escolas que ainda não atendiam as exigências da legislação recentemente instituída sobre a obrigatoriedade da cultura física.

Em seu discurso, reiterou a importância que a atividade física e os preceitos de higiene possuía na vida dos escolares: “o exercício physico para as crianças é de uma necessidade imprescindível, porque se considera como condição excencial ao seu desenvolvimento” (REVISTA DO ENSINO, 1937, p. 69). Noutras palavras, as crianças que não realizassem os exercícios físicos nas escolas sofreriam mais tarde problemas no sistema nervoso, podendo tornar-se “um neurastênico incapaz de esforços e inútil a si próprio e a sociedade”. A criança que não realizava a ginástica era considerada doente. Questionou ainda os professores que não possuíam o conhecimento acerca do “ser criança”. Para esse médico, não era preciso apenas saber como ministrar o tempo e escolher as modalidades, mas entender a criança.

Maria Stephanou (2011, p. 53) revelou em seus escritos que essa preocupação ocorria na maioria dos estados brasileiros. Os médicos faziam severas críticas aos professores que desconheciam a realidade psicofisiológica do “ser criança”, fato que conforme a autora tornava-os incapazes de escolher um tipo de ginástica ou desporto para cada indivíduo e, muito menos, o adequado para as crianças, seja na prática dos exercícios físicos, seja nas matérias que requeriam as habilidades intelectuais, os mestres usavam da mesma medida educativa para todos os ânimos infantis, e a consequência inevitável é que os estáveis, movediços, deixavam-se conduzir erroneamente, reagindo com mentiras e simulações para fugir aos castigos.

O trabalho de escolha das atividades aplicadas aos discentes deveria ser individual. Ora, se nas palavras do médico Seixas Maia (1937, p. 70) a higiene do corpo e os exercícios físicos serviam para manter em igual equilíbrio entre o estado físico de nossos órgãos e o desenvolvimento das faculdades cerebrais, seria verdadeiro afirmar que cada criança possuía um ritmo, um metabolismo, uma necessidade específica. Particularidade que deveria ser levada em consideração na hora de escolher a melhor tarefa.

Foi garimpando discursos sobre a medicalização dos escolares na primeira metade do vigésimo século que cheguei a Revista do Ensino2 e aos Boletins da Educação3. Periódicos dedicados a discutir a educação paraibana a partir do que estava em voga. As falas acerca dos cuidados com o corpo, com a higiene e com a educação física eram publicados nos principais manuais pedagógicos oficiais do Estado da Paraíba que traziam no seu interior discursos em defesa do corpo limpo e saudável, portanto, fundamentais para a construção de um corpo “physicamente vigoroso”. Quando o assunto era a educação da saúde, não faltavam páginas para debater os temas, dentre eles, o livro didático utilizado nessas matérias: A fada Higia4. Assim, esse artigo tem por objetivo analisar como os manuais pedagógicos adotados pelo Estado da Paraíba trataram as orientações médico-pedagógicas nas matérias de Higiene e Educação Física. Problematização possível graças ao crescimento do campo da História da Educação e seu diálogo com a História Cultural, viabilizando novos objetos e trazendo a vida sujeitos antes presos as páginas dos periódicos, já amareladas pelo tempo.

Metodologicamente, tomei de empréstimo a “análise do discurso” proposta por Michel Foucault para problematizar as falas ditas médico-pedagógicas que circulavam na Paraíba nas décadas de 1930 e 1940. Assim, analisar esses discursos, significa colocá-lo sob suspeita. Espremê-los. Ouvir seus sussurros. Questionar. Assim, entendo que o discurso nada mais é do que um jogo, de escritura, no primeiro caso, de leitura, no segundo, de troca, no terceiro. Quando nos deparamos com um discurso, no caso dos jornais, eles nos chegam em forma de escritos, ao pôr os olhos sobre esses escritos fazemos leituras. Essa associação culmina com a troca, com o diálogo daquilo que leio com aquilo que compreendo. Para Michel Foucault (1996), nesse momento o discurso se anula e é elaborado um outro discurso na ordem do significante, ou seja, na forma como entendemos e elaboramos. É isso que faremos com as fontes: leituras de “verdades”, para construir outras “verdades”. Ou como o próprio Foucault chamou atenção: “a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos” (1996, p. 49).

NOÇÕES PARA AS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA

“Uma bôa educação physica”. Era o slogan ofertado pelo Estado paraibano. Para tanto, fazia-se imprescindível oferecer modelos de corpos forte e saudáveis. Exigia-se que os professores conhecessem “as leis do desenvolvimento e as necessidades da criança”. A preocupação presente no discurso do Estado não era exclusivamente com o desenvolvimento físico dos alunos, mas próprio de um discurso eugênico, no sentido de regeneração. Observe com atenção o trecho abaixo:

Estas leis nascem de factores múltiplos que vão ifluir, tanto sobre seu desenvolvimento physico como sobre sua evolução intelectual e moral. A herança mórbida dos ascendentes, a raça, o sexo e o clima vão ter uma influencia enorme; enfim a condição social dos paes da criança, ao menos ter acção salutar sobre sua evolução. A educação physica deve suprir, tanto quanto possível as desigualdades hereditárias ou sociaes e dar a criança o máximo de saúde que possa adquirir (REVISTA DO ENSINO, 1937, p. 71, grifo nosso).

Expressões como “herança mórbida”, “a raça”, “sua evolução”, são consideradas próprias ao discurso eugênico de melhoria da espécie. Nesse caso, a criança era o alvo, ou melhor, o corpo da criança. A educação física tornou-se uma forma de assegurar os interesses da eugenia. Assim, o trabalho era meticuloso. Exigia máxima atenção. Olhos atentos sobre as características físicas das crianças. Atenção clínica. Só seria possível assegurar a melhoria da raça através das individualidades, daquilo que cada criança precisava aperfeiçoar. Nesse sentido, o médico Seixas Maia, indicou aos professores três modalidades de atividade física: a ginástica, os jogos e os trabalhos manuais.

A ginástica, primeiro modelo de cultura física adotado nas escolas da Paraíba, continuou na década de 1930 ocupando seu lugar fortemente guardado no pódio do discurso médico-pedagógico. Considerada “a sciencia do aperfeiçoamento do corpo humano”, tinha a finalidade de dar “ao corpo da criança força e saúde, e, além disso, facilitava todos os movimentos e agilidade de uma maneira feliz sobre o desenvolvimento das faculdades intellectuais e moraes”. Dentre as principais benfeitorias atribuídas a sua realização estava a de aumentar as funções do pulmão, ativar a circulação, facilitar o desenvolvimento do esqueleto, aumentar a força muscular e ensinar a criança a coordenar seus movimentos. Os jogos, ocuparam o segundo lugar no pódio. Neles, os movimentos deveriam ser naturais para não deformar o corpo. Sempre utilizados no lugar e medida correta. Para Seixas Maia (1937, p. 72) deveriam ser apropriados à idade e à força das crianças que praticavam a educação física. Assegurou que os jogos precisavam ser desenvolvidos nas escolas para que as crianças pudessem ganhar mais agilidade, rapidez, gracilidade. Elencou como jogos mais aplaudidos o foot-ball para os rapazes e o volley-ball para as moças. Apesar, de serem ainda pouco praticados nas aulas de educação física, os professores deveriam aos poucos ir introduzindo a prática, pois além de fazer parte da alegria dos alunos, eram fundamentais na hora de melhorar fisicamente o corpo. O terceiro lugar foi ofertado aos trabalhos manuais. Esses receberam uma dupla finalidade: desenvolver a agilidade da criança, pondo suas mãos ao serviço da vontade; e, fazer com que adquiram mais gosto pelas prendas domésticas. Ressaltou o sanitarista que esses trabalhos eram pedagógicos e tinham

[...] seu lugar nas escolas como um fator de educação geral. O fim não é formar artistas; porém contribuir ao desenvolvimento physico dos alumnos, ensinando-lhes a ordem attenção e continuidade no trabalho [...] quando possível esse trabalho deve ser substituído pela jardinagem e horticultura (REVISTA DO ENSINO, 1937, p. 72).

O ideal de educação defendido por Seixas Maia visava preparar a criança para a vida construindo um corpo resistente e saudável, portanto, capaz de impedir a entrada de doenças. Porém, a tarefa não parecia simples. Não é certo afirmar que os professores estavam aptos a tal empreitada. No ofício particular da educação física era exigido do docente saber escolher a melhor atividade individual para o desenvolvimento do aluno, como realizar corretamente todos os exercícios ginásticos, jogos e trabalhos manuais, e, ter conhecimento científico dos princípios que disciplinavam o corpo da criança aos moldes da eugenia.

A educação física clamava por reforço. Os mestres não estavam preparados para ensinar os hábitos higiênicos, afirmava Seixas Maia. Solicitações de formação de professores tornaram-se pontos de exclamação: “Sejam criados cursos facultativos de Hygiene e propaganda sanitária e enquanto não obtivemos número sufficiente de mestre habilitados, façamos dos educadores sanitários escolares professores de hygiene prática”. Mais uma vez, os médicos tinham ingerência nas escolas. Ora, é sabido que a higiene e a educação física faziam parte do programa escolar como proposta médica, portanto,

[...] as disputas pelo poder de dizer a verdade de cada um e de todos, ou ainda, a busca pelo reconhecimento para conduzir a humanidade a um estado hígido e civilizado, passou a determinar uma tarefa imperativa a medicina: educar o povo, condição imprescindível para a saúde e a preservação da vida. Sem educação a saúde completa é impossível; sem saúde não se aprende (STEPHANOU, 2011, p. 155).

Dentre as responsabilidades assumidas pelos médicos estava a formação da consciência sanitária dos professores, e, por conseguinte dos escolares. Não cabia ao médico apenas distinguir os alunos doentes dos sadios, mas fazer circular um saber capaz de disciplinar a sociedade, incutindo os novos hábitos para com o corpo e para com a saúde. Era sua tarefa ministrar a formação de professores preparando-os para o exercício da educação da saúde. O médico assumia o lugar de pedagogo. Estava presente nas reivindicações em defesa de uma educação da saúde, na elaboração do programa de ensino, na fiscalização das escolas, na orientação de edificação dos prédios, no exame físico de funcionários e alunos, no controle da alimentação, nos livros didáticos utilizados, nas fichas preenchidas contendo dados biológicos dos alunos.

A Revista do Ensino, que cedeu páginas inteiras para os escritos médicos, publicava a intervenção médica na educação. Além da legislação, os médicos celebravam as mudanças ocorridas nos programas das escolas. Prova disso, foi a publicação sobre uma proposta para o Ensino Normal contendo os novos parâmetros pedagógicos nas escolas do Norte do país. A novidade aparecia na defesa da matéria de Esporte. O programa de ensino proposto nos escritos de Manuel Florentino (1934, p. 66), contemplou a prática esportiva do primeiro ao quinto ano do curso, todos eles com carga horária semanal de seis horas, além das aulas educação sanitária contemplada no prazo de dois anos de curso.

A prática de esportes deveria acontecer de forma diária “nas primeiras horas escolares, ser reservado uma hora para esportes [com a intenção] de incutir nos alunos o hábito salutar dos exercícios físicos cotidianos” (REVISTA DO ENSINO, 1934, p. 68); já para a cadeira de Educação Sanitária a orientação do programa era possuir o caráter “mais prático possível, compreendendo o estudo da higiene e arte de enfermagem, a higiene rural, a higiene infantil e a da alimentação merecendo atenção especial” (REVISTA DO ENSINO, 1934, p. 68). A proposta central da prática de esportes no programa de ensino da Escola Normal era formar professoras para o Ensino Primário capazes de orientar corretamente os exercícios físicos, seja na ginastica sueca, seja nos jogos ou nos trabalhos manuais. Mais uma vez, a Revista do Ensino corroborava com a proposta médico-pedagógica em defesa da arquitetura de um corpo forte. Não seria verdadeiro afirmar que a proposta foi levada a cabo. As publicações seguintes silenciaram acerca dela.

Silenciavam por um lado, gritavam por outro. As propostas sobre as aulas de educação física ganhavam corpo, normas, gestos, movimentos, atividades, sensibilidades, desejos. Textos e imagens receberam formas nas páginas da Revista do Ensino. Os corpos eram esculpidos e reesculpidos pelo discurso médico. O corpo tornava-se mais fortemente objeto de educação e de cuidado, de intervenção, de controle, de desejo. Na primeira metade do século XX, conforme postulou Carmen Lúcia Soares (2009, p. 64), ocorreu uma cruzada para fazer o desejo desejar, para estimular cada indivíduo a modelar seu corpo diariamente, a limpar as carnes de todo vício, tornando-as, indivíduos policiais não apenas de si, mas do grupo do qual faziam parte, da casa onde habitavam, do local em que trabalhavam, da cidade onde viviam. A escola passou a ser defendida como o lugar por excelência para a construção de carnes fortes. A preocupação com o corpo, com a saúde, com o bem-estar, passou a fazer parte de uma pedagogia vigilante.

O conceito de disciplina postulado por Michel Foucault (2008) atrelado a ideia de vigiar e punir ganha destaque na hora de analisar os detalhes que se instalavam sobre os corpos. Formar os soldados da saúde, donos de corpos belos foi sinônimo de instituir os vigilantes à insalubridade, vigilantes da moral, vigilantes da falta de educação, vigilantes do peso, vigilantes do fumo e do álcool, vigilantes da civilização. As atenções miravam-se para o corpo. Esmiuçado, detalhado, observado em retalhos. Pedaço por pedaço. Vigiados, os corpos das crianças precisavam ser submetidos às normas, à disciplina. Precisavam seguir os padrões eugênicos da época. Precisavam ser exercitados. Para isso não faltaram manuais. As prescrições médico-pedagógicas tratavam de ensinar uma a uma.

Em “Educação Physica”, artigo escrito por Aluísio Xavier e publicado na edição de 1936 da Revista do Ensino, foram apresentadas as regras gerais para a execução dos exercícios físicos nas escolas públicas da Paraíba. A abertura do texto remete a importância da “gymnastica diária para educação do corpo” (REVISTA DO ENSINO, 1936, p. 9), da cultura física como “matéria superior de regeneração physica, moral e intelectual dos indivíduos” (REVISTA DO ENSINO, 1936, p. 9), e, a exaltação aos esforços empreendidos pelo governo estadual de “nos últimos tempos ter voltado as vistas para o desenvolvimento da educação da juventude encarando-a em todos os seus aspectos physico, moral e intellectual” (REVISTA DO ENSINO, 1936, p. 9). Era o primeiro artigo publicado pela revista após a organização do novo plano da instrução pública para o ensino primário em que se incluiu a educação física. A regra era: combater a moleza. Para isso, todos deveriam adotar como mandamentos de vida ações como “Praticar os exercícios pela manhã depois de uma leve refeição”; realizar os exercícios “sempre ao ar livre, e sendo dentro de casa com as janelas abertas”, usar “roupas folgadas e leves, de preferência um calção acima dos joelhos”; executar os movimentos com “perfeição, com cuidado [..] cada contração muscular deve ser levada ao máximo possível, com decisão, mas sem movimentos bruscos”; acabar as atividades sempre com “o sentimento de bem estar, fazer repousos entre cada série de exercícios e lembrar de fazer exercícios respiratórios”; lembrar de “respirar francamente e não reter a respiração”; após a realização das atividades “tomar banho frio”; e claro, “começar e terminar cada lição por uma marcha rytmada” (REVISTA DO ENSINO, 1936, p. 9-10).

A realização dessas lições era indicada pelo professor para serem cumpridas em casa. Na escola, o exercício da gymnastica era considerada metódica e educativa. A prática da ginástica nas aulas de educação física não visava “a transformação das crianças em athletas ou acrobatas e tão somente robustecel-as, adextral-as, embellezal-as, consolidando nos pequeninos organismos a hygidez integral conhecida pelo aforismo mens sana in corpore sano” (KEHL, 1923, p. 338).

Podemos observar na fotografia a seguir (Fig. 1) uma turma de vinte e nove meninas na aula de ginástica do Jardim de Infância Santa Terezinha. Padronizadas pelo uniforme composto de camisa, saia e sapatilha branca, as meninas abrem os braços para exercitá-los. Em ambiente aberto em que o ar podia circular livremente, provavelmente no pátio da escola, e, seguindo a orientação dos médicos da época essas meninas exercitavam seus corpos.

Fonte: Revista do Ensino, 1936, p. 35.

Figura 1 Fotografia da aula de gymnastica do Jardim de Infância Santa Terezinha

Além disso, a fotografia acima (Fig. 1) não apresenta a utilização de nenhum instrumento na realização dos exercícios, fato que me permite inferir que mesmo em tempos que os jogos esportivos ganhavam espaço nas escolas e nas aulas de educação física, o principal modelo de atividade física adotado nas escolas públicas primárias era a ginástica sueca.

Os exercícios indicados para as aulas de educação física visavam “pontencializar as funcções orgânicas beneficiadas, multiplicando-se os potenciaes physicos, entellectuaes e moraes” (KEHL, 1923, p. 338). Eram exercícios que foram considerados por Afrânio Peixoto (1925, p. 381) desenvolvimento da cultura corporal, promovedor do movimento enquanto função elementar da vida. A execução dos movimentos significava uma finalidade útil ao corpo, por vezes, despertados pela vontade e tornados depois automáticos. Os exercícios, eram “necessários á saúde e podem agraval-a, se mal feitos ou abusivos; daí a intervenção da higiene nesse propósito” (PEIXOTO, 1925, p. 380); para tanto, indicava-se a orientação do médico ou do professor formado pelo médico. Sob a orientação dos esculápios, o corpo tornará “impulso notável, apresentará attitudes corretas, os músculos se desenharão com maior nitidez. Tudo em suma, concorrerá para dar aspecto de belleza e robustez a criança” (KEHL, 1923, p. 338).

A série de exercícios educativos propostos por Aluísio Xavier (1936, p. 10-14), mostra uma sequência capaz de movimentar todo o corpo trabalhando-o por retalhos: exercícios respiratórios; movimentos dos ombros e dos braços, exercícios para as pernas, atividades físicas do tronco; exercícios combinados e a indicação de marchas sobre as pontas dos pés (Fig. 2).

Fonte: Revista do Ensino, 1936, p. 11-13.

Figura 2 Exercícios educativos. 

A imagem apresentada pela Revista do Ensino também pode ser apreciada no livro A cura da fealdade, publicado em 1923 pelo médico eugenista Renato Kehl. Da posição 1 a posição 19 era explicado pelo corpo do homem como realizar cada um dos movimentos ginásticos. Vale ressaltar que o corpo em exposição segue os padrões da época: forte, definido, elástico, ágil, capaz de realizar os movimentos indicados para se alcançar a saúde desejada.

Explicados em detalhes, a orientação deveria ser executada pelos professores em sala de aula. É interessante notar, que dentre os vários exercícios corporais, a marcha aparece em dois deles. Esse tipo de atividade era considerado “Um excelente exercício, próprio para todas as edades e ambos os sexos; activa todos os músculos dos membros inferiores, influenciando beneficamente as funcções circulatórias e respiratórias” (KEHL, 1923, p. 342). Algumas dessas marchas possuíam um caráter cívico, a exemplo da “marcha João Pessoa”, explicada por Soares Júnior (2011) como sendo adotada na década de 1930, na qual, as crianças ficavam com o busto inclinado ligeiramente para frente, caminhavam mantendo o corpo constantemente suspenso nas pontas dos pés e pronunciavam vivas ao presidente João Pessoa. Um casamento entre a cultura física e cívica.

Com a publicação da Reforma do Ensino no ano de 1942, a Revista do Ensino renovou seu interesse pela educação física publicando um artigo intitulado “Educação física infantil. Método prático para a realização das lições de educação física”. Nas primeiras linhas podia ser lido o papel da educação física em tempo de Estado Novo:

A educação física nos dois primeiros graus do ciclo elementar não visa um desenvolvimento sistemático dos músculos, mas procura um objetivo mais importante, que é o de promover a eficiência das grandes funções e, particularmente da respiração por meio de exercícios adequados e atraentes (REVISTA DO ENSINO, 1942, p. 67).

A orientação era racionalizar as aulas de educação física. O professor, segundo a orientação da Superintendência de Educação Física do Estado da Paraíba, deveria organizar suas aulas lançando mão dos artifícios que respondessem as atividades infantis, procurando utilizar-se de sua tendência natural de imitar tudo quanto lhe desperte interesse, assim, o docente

introduzirá os exercícios preconizados pelo método, seguindo as regras por ele: estabelecidas para a organização de uma aula sequenciada de educação física; [assim] o trabalho da criança consiste em imitar os movimentos que o professor irá executando enquanto lhes conta histórias (REVISTA DO ENSINO, 1942, p. 67).

A proposta consistia em realizar dramatizações. Sincronizar as histórias contadas aos exercícios físicos propostos. A edição da Revista do Ensino de 1942 trouxe várias histórias que poderiam ser utilizadas pelos professores para dramatizar com os alunos em sala de aula ou no pátio da escola. Vejamos o Quadro 1, a seguir:

Quadro 1 Dramatizações e exercícios para as aulas de educação física. 

Dramatizações e exercícios físicos
Evolução Marcha em serpentina
Roda Ciranda, cirandinha
Marchar O pato (exercício mímico)
Trepas O caranguejo (exercício mímico)
Saltar O sapo (exercício mímico)
Levantar e transportar Os remadores (exercício mímico)
Correr Corrida de 30 a 40 metros
Lançar O moinho de vento (exercício mímico)
Atacar e defender-se A briga de gatos (pequeno jogo)

Fonte: Quadro elaborado pelo autor a partir de informações disponíveis na Revista do Ensino (1942, p. 68).

A instrução da educação física, também aparecia em forma de história narrativa:

Vamos fazer um passeio no sítio do tio Joãozinho; lá vocês encontrarão o tio Joaquim e seus filhos que ficarão muito alegres com esta visita. Iremos ver as suas plantações, sendo necessário andar por caminhos cheio de curvas (evolução); teremos que afastar o galho dos arbustos para facilitar a nossa passagem (flexionamento dos braços); e muitas vezes levantar e estender as pernas para atravessar as árvores caídas sobre o caminho (flexão e extensão das pernas). Chegamos na praia do Jacaré, onde mora o tio Joaquim, o vento com muita força e os coqueiros balanças para um lado e para o outro (flexão lateral do tronco). Fomos surpreendidos pelos silvos dos foguetes e os estouros das bombas soltadas pelo tio de Joãozinho para recepcionar a nossa visita (exercícios respiratórios) (REVISTA DO ENSINO, 1942, p. 68-69).

Cada ação física - rodar, marchar, trepar, saltar, etc. -, foi acompanhada de uma historieta capaz de prender a atenção das crianças e “efetivar o exercício físico com empolgação”, afirmou Aluísio Xavier. Os movimentos são os mesmos descritos pela Revista em 1937, a diferença é que agora estava adaptado à realidade da criança, ao mundo infantil. Uma atividade lúdica capaz de movimentar o corpo e talhá-lo nos instrumentos da educação física. Passa a existir uma preocupação pedagógica que ocupa lugar privilegiado na Revista do Ensino.

Produzir alunos e alunas higienizados, como defendeu José Gondra (2011, p. 534) era modelar o corpo com o estilete da higiene. Para tanto, deveriam levar a cabo os cuidados lúdicos nas escolas com os movimentos, com os exercícios de ginástica para o corpo, seguindo sempre as prescrições dos médicos. Os exercícios invadiam a educação da infância: estavam presentes nos recreios, na codificação do tempo escolar e na indicação dos exercícios que deveriam ser privilegiados nessas ocasiões: a música, o canto, a dança, as histórias, as marchas, os ritmos. Com o passar dos anos, o tempo escolar foi se adequando àquilo que importava ao discurso do Estado: o combate à moleza de lesma, as decrepitudes físicas, a fraqueza, a doença.

Uma educação que também passava pela proposta do trabalho, como aponta Vera Regina Beltrão Marques (1994): as crianças deveriam ser educadas para o trabalho, procedendo à higienização social dos excluídos, ensinando-os a bem viver em sociedade, buscaria, ao fim e ao cabo, construí-los à imagem de bons trabalhadores. O que implicava: alterar hábitos, costumes e modos de ser e estar; inseri-los no tempo e no espaço da produção; incutir o hábito do fazer, do realizar racionalmente tarefas cotidianas desenvolvidas por meio de técnicas pedagógicas, cuidadosamente elaboradas que, para além de educar, servissem para adestrar, controlar. Enfim, cabia incorporá-los no mundo das práticas higienizadoras e moralizantes.

Esses aspectos pareciam estar contemplados nos propósitos da Revista do Ensino em divulgar a educação física. Eles pareciam ir além da constituição de um corpo forte e saudável. Estava inscrito em seu índice uma preocupação com a beleza característica também pertencente à eugenia. Seria também atributo do ensino de educação física a preocupação com a beleza, com a estética. A escola era considerada, portanto, um “centro estético de atração, onde o asseio, a ornamentação simples, o trabalho construtivo e os jogos se prendem ao corpo das crianças logo que se adapta ao ambiente escolar” (REVISTA DO ENSINO, 1933, p. 35).

O professor Mario Gomes (1933, p. 36) postulou que era possível conhecer o prazer que sente a criança pelos exercícios físicos, paradas militares, exercícios escoteiros, tertúlias de classes e disputas de prêmios. A criança, seria portanto, o primeiro indício da beleza no movimento, expressão reveladora de força. Aquela que deseja a atividade física como a coreografia e a ginastica. Movimentos capazes de estabelecer linhas ao corpo. Músculos torneados. Um corpo exaltado, desejado e que deveria ser lapidado desde a infância.

A criança, de acordo com o professor Mario Gomes (1933, p. 38), já possuía características físicas naturais capazes de fazê-las pertencentes a educação estética, a exemplo da força e do desejo; era preciso apenas incutir nelas sentimentos como altruísmo, abnegação, heroísmo. Sentimentos que precisavam ser cultivados na intenção de despertar o desejo de ter um corpo forte, belo e saudável. Desejo que se transformava em suor, trabalho, exercícios, jogos. Desejo que visava formar o cidadão aspirado pelo Estado brasileiro: ordeiro, obediente, distante das mazelas, dos ataques das enfermidades, vigorosos, robustos, bonitos. Ou como ressaltou Vera Regina Marques Beltrão (2003, p. 66) ao afirmar que a infância não poderia ser descrita no singular. Não havia a criança-padrão. Haviam crianças ricas, pobres, abandonadas, órfãs, infratoras. Essas crianças poderiam sob a ação médico-pedagógica ter a chance de educarem-se para o trabalho nas instituições reformadoras. O disciplinamento, a normalização, implicava iniciá-las no aprendizado de alguma atividade. Para isso, a Revista do Ensino não mediu esforços.

Que educação e saúde deram as mãos não há mais dúvidas! Especialmente no que diz respeito à divisão dos espaços nas páginas da imprensa a serviço dos professores. Médicos e docentes faziam circular o saber considerado moderno e em voga para assegurar a saúde do corpo do paraibano. Foi durante as primeiras décadas do século XX que a imprensa da Paraíba passou a defender os interesses da Higiene. Tornou-se uma constante. Estetoscópios, medicamentos, enfermidades, disciplina, corpos, educação... são exemplos de palavras que ocuparam as principais metáforas presentes nos discursos da época. Foram costuradas, entrelaçadas na hábil pena dos profissionais da saúde e da educação.

Conforme Marta Maria Chagas Carvalho (1998) a educação passou a ser um dever, já que trouxe aos considerados incultos e incivilizados a sua salvação enquanto nação. Afirmou ser preciso educar para moralizar os costumes, organizar a população dentro do território, homogeneizar escolas e salas de aula, sanear e unificar as massas, construir corpos sadios e aptos para o trabalho - e assim conseguir o que realmente se pretendia: atualizar o Brasil em relação aos valores requeridos pela organização racional do trabalho que surgia no pós-guerra.

Portanto, a Paraíba não esteve desamparada quando o assunto eram os manuais pedagógicos responsáveis por fazer circular os saberes médico-educativos. Além dos jornais, que fizeram essa tarefa desde o século XIX, as revistas financiadas pelo Departamento de Educação também desempenharam esse papel de forma a garantir o espaço em defesa da educação sanitária. A Revista do Ensino é um exemplo prático de um imprenso que se prestou a propagar discursos em defesa da medicalização da escola. Na Era Vargas, vozes de médicos, dentistas, professores e engenheiros gritavam nos periódicos brados retumbantes que ecoavam no meio escolar. São marcas de uma cultura que viu na educação a possibilidade de reformar a saúde. Vislumbrou o desejo de assegurar aos cidadãos paraibanos um corpo saudável, forte, disciplinado, belo, perfeito. Não sei se o modelo de corpo/cidadão perfeito foi alcançado, mas sei que discursos em defesa desse sujeito, existiam em grande quantidade. Eles se libertavam das páginas da imprensa e ganhavam corpo em outros escritos: os livros didáticos. A imprensa anunciava no programa escolar a “Fada Higia” e suas lições mágicas. Um livro didático que mais parecia um manual didático.

A FADA HIGIA : APONTAMENTOS PARA O CÓDIGO DO BOM TOM

A carência do ensino da higiene nas nossas escolas é um fato tão sabido, quanto lamentável. Raras, mui raras mesmo as que apresentam, nos seus programas letivos, essa importantíssima disciplina. Algumas há que a incluem apenas no sentido figurativo. Nisso consiste uma das mais notáveis falhas do nosso sistema educativo (KEHL, 1925).

As palavras acima abrem o texto de apresentação do manual de higiene A fada Higia, escrito pelo farmacêutico e eugenista Renato Kehl. Uma apresentação destinada às mães e aos professores. São palavras que chamam a atenção para a importância da matéria de higiene no programa escolar, bem como, da sua real efetivação. O sanitarista colocou a higiene como parte fundamental da educação que visou “preparar-nos para a vida completa, para a vida no sentido lato da palavra, constituindo na cultura do espírito e do corpo, no robustecimento do caráter, na elevação do civismo” (KEHL, 1925, p. 7). Para esse esculápio, a higiene era vetor da educação, via capaz de formar cidadãos conscientes de seus deveres e gerações futuras de homens equilibrados. A higiene era a porta voz da eugenia. Aquela que salvaria os brasileiros da ignorância; que libertaria os súditos da fada do abandono.

A obra A fada Higia (Fig. 3), para Vanderlei Sebastião de Souza (2006, p. 63) é considerado o primeiro livro sobre educação higiênica e moral dirigido às crianças. De acordo com esse autor, a cartilha de higiene, como ficou conhecida posteriormente, foi adotada como material didático para o ensino de higiene em escolas públicas de diversos estados brasileiros, incluindo a Capital Federal. Renato Kehl defendia que a higiene deveria ser considerada a matéria mais importante nas escolas primárias, pois ensinaria as crianças a preservar e defender a saúde, “melhorando e preparando a constituição física em evolução” (KEHL, 1925, p. 12).

Fonte: A fada Higia (KEHL, 1925).

Figura 3 Capa do manual didático A fada Higia

Dentre as funções atribuídas ao ensino de higiene, Renato Kehl salientou tornar as crianças obedientes, civilizadas, adequar o seu estado mental, auferir rudimentos de higiene, estabelecer regras do bem viver com as exigências da natureza, os cuidados com o organismo e os meios de tornar-se um “bom animal”, a praticar as boas normas e fazer o bem. “Tudo depende da higiene”, afirmou o sanitarista. Tudo estava escrito “nesse livrinho [...] em que se encontram conselhos e noções de higiene agradáveis as crianças” (KEHL, 1925, p. 9). Um manual capaz de retirar as crianças da condição de abandono e conduzi-las a civilidade. Um pequeno compêndio capaz de “ministrar noções de hygiene aos nossos meninos com o fim de vel-os sãos e cheios de um vigor sadio, minorar o soffrimento da nossa gente; dar conforto e bem estar aos que se acham ankilosados e nada produzindo para o engrandecimento da nação” (REVISTA DO ENSINO, 1932, p. 40-41); ou mesmo constituir “obra de patriotismo e amor ao próximo” (REVISTA DO ENSINO, 1932, p. 40-41).

Joaquim Santiago (1932, p. 41) escreveu endereçado aos pais e professores uma carta que foi publicada pela Revista do Ensino alertando-os sobre o não consentimento de permanência na ignorância, pois não estar em acordo com os novos princípios de higiene correspondia a ausência de conhecimento, a estupidez, as trevas. Não estar antenado com o ensino de higiene representava “está concorrendo para a infelicidade physica e moral do nosso povo” (REVISTA DO ENSINO, 1932, p. 41). Para libertar-se da falta de conhecimento, conforme o professor paraibano, era preciso:

[...] matricular seus filhos nas escolas primárias do nosso Estado que [vai] propagando pelo livrinho didactico e bem feito do notável hygienista patrício Dr. Renato Kehl, noções e conhecimentos dos nossos alumnos das moléstias e dos meios capazes e eficazes de combatel-as e evitar sua propagação (REVISTA DO ENSINO, 1932, p. 41).

A Revista do Ensino, veículo oficial do Departamento de Educação do Estado da Paraíba se incumbiu da missão de divulgar A fada Higia para os professores como material didático apropriado para as aulas de higiene. Mas não foi só isso! Divulgou na edição de 1936 o Programma de Ensino de todas as matérias do Ensino Primário. O que não era difícil de imaginar, a matéria de Hygiene apresentava aos docentes das turmas do primeiro ao quinto ano “leitura e interpretação do livro A fada Higia de Renato Kehl” (REVISTA DO ENSINO, 1936, p. 98). Isso mesmo: leitura, interpretação, recapitulação, observação, contemplação, obediência. Estava instituída a bíblia da matéria de higiene.

A fada Higia foi o livro didático escolhido para compor os ensinamentos de higiene nas escolas públicas da Paraíba. Foi escrito no ano de 1925, e, os primeiros volumes utilizados nas escolas públicas paraibanas datam de 1932, fato que se deu graças a publicação da “segunda edição em 1930, com tiragem de 2.297 exemplares” (BARRETO, 2010, p. 74). Foi adotado como manual de higiene em vários estados brasileiros, dentre eles, a Paraíba. Para tanto, não faltaram referências da educação e na saúde para festejar a escolha. Nas últimas páginas do livro didático A fada Higia, é possível ler a palavras de Carneiro Leão (apud KEHL, 1925, p. 169) ao afirmar ser o livro “um belo serviço prestado ao Brasil”, uma necessidade, uma carência de tempos, um livro que “é o primeiro volume de uma biblioteca que precisamos possuir para a cultura da infância escolar e das mães brasileiras”. Um livro “cheio de ilustrações expressivas e interessantes, este primeiro livro de higiene há de construir, além de uma excelente lição de higiene e profilaxia, um verdadeiro prazer para a criança que o manuseie e estude” (LEÃO, 1925 apud KEHL, 1925, p. 169); repleto de capítulos no qual o autor

[...] discorre com singeleza, pelos pontos mais fundamentais da higiene e profilaxia aplicáveis á vida corrente [...] sobre o ar, a água, o alimento, a habitação, o asseio, os exercícios físicos, os bons e maus hábitos, as doenças, os perigos que nos ameaçam, advertências e conselhos, melhoria da raça (LEÃO, 1925 apud KEHL, 1925, p. 169).

Belisário Penna, no momento em que dirigiu o Departamento Nacional de Saúde Pública escreveu:

[...] é bom sistema de educação de pequenos e grandes. Este livrinho é além do mais, um atestado valioso da vitória da propaganda pelo saneamento do Brasil, da transcendente criação da coincidência sanitária que redimirá a nossa gente do opróbrio, da incapacidade, da preguiça e das doenças (PENNA, 1925 apud KEHL, 1925, p. 170).

Já Osório Duque, representante da Academia Brasileira de Letras, tratou de imprimir sua apreciação sobre o livro:

Nada mais louvável, nem mais digno de aplauso, dada a grande escassez da literatura didática na nossa terra [...] o mais natural e salutar incentivo para obter, entre as crianças a atenção e aquisição de conhecimentos, é associar a recreação ao ensino (DUQUE, 1925 apud KEHL, 1925, p. 171).

Flávio Maroja, já afastado da política e da medicina devido à cegueira, fez questão de exaltar a circulação do livro de seu amigo e companheiro de luta sanitária: “A fada Higia é responsável pela educação hygienica dos nossos jovens escolares [...] é responsável por orientar a formação de uma raça forte, capaz e digna de nossa estremecida Pátria; antídoto contra o analfabetismo” (A UNIÃO, set. 1927).

Quantas escolas foram contempladas com o manual? Não me foi possível saber. A documentação oficial na qual me debrucei - Revista do Ensino, Boletins da Educação e o jornal A União5 - afirmam que o livro didático foi adquirido com recursos do Estado e distribuído para as escolas públicas de ensino primário. Acreditamos que o número de livros adquiridos no início da década de 1930 na Paraíba não foi muito significativo, pois como afirmei acima, a segunda tiragem publicou pouco mais de dois mil exemplares que foram vendidos para os doze estados que haviam adotado o livro. Como o livro continuou sendo reivindicado nos programas do ensino até o início da década de 1940, é possível inferir que com o passar dos anos, novas edições foram sendo adquiridas.

De fato, A fada Higia apresenta em seu interior uma linguagem de fácil compreensão, ou seja, “enquanto material didático voltado ao curso primário, aborda o assunto da higiene com uma didática compatível com o nível de escolaridade a que se propõe” (BARRETO, 2010, p. 74). Suas páginas apresentam textos curtos, de fácil entendimento, além de imagens que exemplificam aquilo que está sendo narrado. Nas imagens que se aproximam ao máximo do mundo infantil, próprio a criança. A própria escolha da fada como narradora do livro é reveladora do interesse do autor em aproximar o conteúdo do manual ao mundo das crianças. O título reuniu os dois principais objetos de interesse do autor: a fada representava o mundo infantil, personagem capaz de prender a atenção das crianças, aquela que fazia parte do imaginário próprio da criança; Higia, nome atribuído à fada que significa higiene, que limpa, brilha, resplandece, ilumina. Uma mulher branca, resplandecente, vestida com as indumentárias da luz, usa um manto que sai de sua cabeça e protege as crianças, possui poderes mágicos em sua varinha de condão, capaz de levitar, dona de uma estrela na altura da testa simbolizando a boa escolha, bondosa, aquela que educa, que disciplina, normatiza. Metáfora de uma professora. Não seria verdadeiro atribuir superpoderes às docentes, mas, seriam elas as responsáveis por encarnar a fada Higia e desempenhar seu papel de combater a imundície, os maus costumes, a falta de asseio, a preguiça, a moleza, as decrepitudes físicas, a fealdade.

Nas palavras de Renato Kehl (1925, p. 17-18) Higia “é uma fada bondosa e bela, amiga e protetora das crianças”, possuidora de “encanto e alegria”, dona da missão de “tudo fazer para que as crianças sejam fortes e sadias”, reside em “um palácio encantado, todo de ouro, com lindos jardins em volta”, sua voz “é meiga”; quando as vê as “crianças correm risonhas a seu encontro, abraçam-na, fazem mil trejeitos de contentamento”, a fada sempre “responde com mimos”; é aquela que ensina os sãos a conservar a vida, a bem vive-la, com prazer e satisfação”, em seu roteiro de vida está “dar conselhos aos doentes para adquirirem de novo força e a robustez e para não propagarem os seus males”. Sua imagem possui um ar de sacralidade. As imagens tentavam aproximar Higia daquelas instituídas tradicionalmente sobre Nossa Senhora, mãe de Jesus Cristo. As crianças a sua volta, sempre muito bem vestidas, uniformizadas: meninos de camisas brancas, gravata estilo marinheiro, bermudas listradas um pouco acima dos joelhos, sapatos escuros, meias brancas, cabelos bem penteados; meninas de uniforme branco, saias longas. Ambos com livros nas mãos. Embora o cenário fosse “encantado”, a indumentária vestida e os objetos segurados pertenciam ao mundo escolar.

Vejamos uma das imagens apresentadas no interior do livro sobre a fada da saúde (Fig. 4):

Fonte: A fada Higia (KEHL, 1925, p. 18).

Figura 4 Fada Higia. 

A fada da saúde falava para as mães, para as crianças e para os alunos. Assim, se apresenta a distribuição dos conteúdos contemplados pelo livro didático. É possível dividi-lo em duas partes: a primeira parte contendo informações gerais aos leitores e pequenas histórias que deveriam ser contadas pelas professoras aos alunos e, a segunda parte com o conteúdo propriamente dito, ou seja, os capítulos contendo palavras diretamente utilizadas no trato da higiene. Para melhor analisar, apresento essas partes:

HISTÓRIAS DE HIGIA

Voltada para as mães, professoras e para as crianças, a primeira parte do livro didático continha carta as genitoras sobre a importância da higiene na vida das famílias, das crianças, na maternidade e seis capítulos contendo histórias que ensinam os “corretos” cuidados na higiene pessoal.

A primeira historieta, “A maior de todas as riquezas”, narra as cidades historicamente atacadas pelas epidemias que assolavam e dizimavam a população. É enfatizada a peste negra, a influenza espanhola, a falta de higiene como causadora desses males e a falta de conhecimento da população, que de forma inconsciente atribuía o caos a ira divina. A segunda história apresenta a fada Higia e seus predicados, seus ensinamentos, seu amor pelas crianças, sua luta por corpos perfeitos e saudáveis. A terceira história conta as travessuras dos irmãos Jeca e Tonico. Suas vidas mudam completamente após fugirem constantemente das aulas para sair vagando as ruas comendo frutas e tomando água imprópria. Resultado: enfermidade, medicamentos, sofrimento. A quarta história conta a visita feita pela fada a casa de Tonico e Jeca e a observação da sujeira que reinava naquele ambiente. Nesse ponto da narrativa, a fada da saúde adverte sobre a importância dos ambientes limpos, sem poeira, cheios de luz solar, arejados pelo vento, os cuidados com o ambiente onde se come e onde se dorme. Ensinou-os a higienizar o quintal que deveria estar livre do lixo. Limpar a casa era apresentado como sinônimo de combate aos insetos, parasitas, chupadores de sangue, hematófagos, dentre outros. A quinta história relata uma nova visita de Higia a casa de Jeca e Tonico. Dessa vez o diálogo é com a mãe das crianças. A personagem surpreendeu-se ao perceber a transformação que a casa havia passado após as orientações higiênicas dadas anteriormente. Fez novas inferências: sobre os alimentos, sobre a água, os cuidados com as verminoses e com as moscas; os cuidados com a mastigação, a digestão, o descanso após as refeições. A última história do manual didático coincide com a chegada do período natalino. A fada tratou de convidar as crianças para festejar o nascimento do Menino Jesus, a importância de ir à igreja, o cuidado com as roupas que deveriam ser limpas e leves durante o verão. A ceia natalina proposta pela fada Higia se tornou uma aula sobre indumentárias: qual o tipo de roupas adequadas para determinados ambientes, para o verão e para o inverno, roupas de dormir e de brincar, uniformes para a escola, os cuidados com as roupas de baixo, o uso de acessórios, dentre outros.

As histórias contadas pela fada Higia tinham a função de disciplinar as crianças. A orientação dada por Renato Kehl era de que essas histórias fossem lidas e relidas em sala de aula pelos professores. Incansavelmente. Ouvindo-as e refletindo sobre cada uma delas seria possível modificar os hábitos anti-higiênicos dos alunos, que assumiriam outra missão: levar esses ensinamentos para casa e disciplinar sua família. Era senso comum dentre médicos e professores a dificuldade de educar higienicamente os adultos, portanto, investiu-se pesado nas crianças, que cresceriam educadas pelas lições “mágicas” de Higia. A leitura constante dessas histórias, conforme Renato Kehl (1925, p. 52-53) representava o desejo de “que os petizes se tornassem, quando homens, cidadãos fortes, belos e patriotas e as meninas, quando moças, boas mães e de família, providas de conhecimentos bastantes para manter a paz, a saúde e a felicidade do lar”.

ENSINAMENTOS D’ A FADA HIGIA

A segunda parte do livro destinava-se aos ensinamentos dos docentes e aprendizado dos alunos. O autor a intitulou de “Os conselhos da Fada Higia”, lugar em que defendia o fato de “a reminiscência das noções adquiridas na infância tem influência real decisiva na orientação da vida adulta” (KEHL, 1925, p. 55). São apontamentos numerados e ilustrados que deveriam ser trabalhados pelo professor aula a aula, tema a tema. Ou seja, essa altura do manual didático correspondia ao conteúdo propriamente dito: os assuntos organizados em forma de capítulos e ensinados pelas professoras seguiam o mesmo padrão: título, regras higiênicas, exemplos, imagens ilustrando as normas e por fim o trecho de algum “poema” de teor ligado ao assunto trabalhado. Todos os assuntos contidos nos capítulos estavam voltados diretamente a saúde e a higiene.

Para melhor entendermos, observemos o Quadro 2, a seguir:

Quadro 2 Os temas trabalhados n’A fada Higia

Temas trabalhados n’A fada Higia
Tema do capítulo Apresentação do assunto
01 Ar Sua importância, a liberdade, a pureza, os lugares arejados: casas, quartos, escolas, salas de aula, igrejas, os problemas ocasionados pela poeira e pela fumaça;
02 Água Sua necessidade para o organismo, seu uso pessoal para nutrir o corpo, os cuidados com a procedência, os tipos de poços higiênicos, o gelo;
03 Alimentos Ato de saber comer para bem viver; a rigorosidade de fazer as refeições na hora correta, o cuidado com a higiene dos alimentos, como portar-se a mesa, que tipo de alimento saudável ingerir, preferir uns alimentos e descartar outros, combater doces, bebidas alcoólicas e quaisquer outros alimentos que degrada o indivíduo e degenera a raça;
04 Habitação Deve ser limpa, saudável e confortável: com boa água, latrina higiênica, sem lixo, sem areia e poeira, cama arrumada e longe dos animais, as casas deveriam ser abertas a luz solar e arejadas para a circulação do vento; porcos, gatos, ratos, cachorros, pulgas e demais animais deveriam manter-se longe do convívio doméstico;
05 Asseio do corpo Responsável pela saúde individual, banhos diários, uso constante de água e sabão, mãos lavadas sempre que usadas, cabelos e unhas cortadas, dentes escovados após as refeições, ao acordar e antes de deitar;
06 Exercícios físicos Responsáveis com combater a preguiça e assegurar um corpo fisicamente vigoroso;
07 Maus hábitos Devem ser evitados, como cuspir, tossir, entrar em casa com sapatos sujos, molhar o dedo com saliva, dentre outros;
08 Sono Indispensável a saúde, devendo sempre deitar cedo e acordar cedo, cerca de oito horas diárias e em camas com roupas limpas, trocadas semanalmente;
09 Vestes Os cuidados com seu asseio, sempre com esmero e fino trato;
10 Atitude Assegurar a boa postura, o corpo ereto;
11 Micróbios Os problemas ocasionados por eles a saúde do corpo, seu formato invisível a olho nu e as doenças que podem transmitir;
12 Moscas Responsáveis pela transmissão de doenças;
13 Doenças Que se abatem sobre as crianças e a necessidade de submeter o paciente aos cuidados médicos, evitar sempre informações dadas por curandeiros, rezadores, benzedeiros, charlatões, ou quaisquer denominações similares;
14 Vícios Que denota fraqueza de vontade dos corpos que se escravizam ao álcool, ao fumo; - o combate ao alcoolismo é um princípio eugênico;
15 Vermes intestinais Os cuidados com latrinas, fossas e os resíduos fecais; os mosquitos que picam e transmitem doenças;
16 Animais e animálculos Que devem ser sempre evitados: a mosca, a pulga, o rato, as cobras, etc.;
17 Bons hábitos Apreciados e queridos as crianças: educação, higiene, bem vestir, portar-se, comportar-se.

Fonte: Quadro elaborado a partir dos capítulos apresentados na segunda parte do livro A fada Higia.

As aulas deveriam ser ministradas seguindo a ordem temática dos capítulos. É possível pensar em grandes temas orientados a partir da organização dos capítulos: meio ambiente; higiene doméstica, higiene pessoal, exercícios físicos, insetos e animais, bons e maus hábitos. Todos os temas foram pensados e seguiam uma lógica sequencial. Os saberes propostos aos alunos estão em ordem numérica crescente, sendo boa parte exemplificado com imagens. O tamanho das letras é grande assegurando uma boa leitura e evitando o esforço para a visão, mais um cuidado médico. Para melhor entendermos a composição dos temas, escolhi três capítulos da segunda parte do livro para problematizar: o asseio do corpo, os exercícios físicos e os maus hábitos. Através desses capítulos é possível perceber como foram organizados pelo autor e apresentados as professoras e aos alunos.

Com a indicação primeira de que “a saúde depende, em grande parte do asseio do corpo”, Renato Kehl faz a abertura do capítulo V. Trata-se dos cuidados voltados para o corpo, ou melhor, para a higiene do corpo. Princípios, considerados pelos médicos, de extrema importância no trato da saúde. São normas de cuidados individuais:

  • 2. É dever primordial da higiene tomar um banho frio geral, todas as manhãs, ao levantar da cama.

  • 3. A água e o sabão são dois elementos indispensáveis para a defesa do nosso organismo.

  • 4. Lave as mãos e o rosto quando chegar da rua, antes das refeições e ao deitar-se.

  • 5. As crianças nos primeiros meses devem tomar um banho morno, todos os dias; só quando estiverem com mais de quatro anos, tomarão diariamente um rápido banho frio no verão e, de vez em quando, um morno (KEHL, 1925, p. 79-82).

As primeiras normas dizem respeito aos cuidados do corpo diretamente relacionados a água (Fig. 5). As demais indicações de higiene pessoal olhavam para as unhas e para os cabelos, que deveriam estar sempre cortados e arrumados; para a boca que deveria estar sempre lavada e esbanjando dentes brancos e fortes; informou sobre o perigo de levar objetos a boca como dedos, lápis, canetas ou outros objetos cheios de micróbios. Isso se configurava como “um perigo introduzir na boca e mastigar, palito, pedacinhos de papel, de madeira, de arbustos, folhas de arvores, etc.” (KEHL, 1925, p. 83). Dentre os mandamentos de higiene, ressaltou o esculápio, estavam os cuidados com o uso das latrinas: lavar sempre as mãos ao entrar e sair delas e/ou quando tocar em algum objeto sujo; sempre que usar papel higiênico, jogá-lo dentro da latrina e manter sempre o cuidado com os excrementos que são deixados nelas. Assim, a melhor forma de assegurar a saúde seria obedecer “estes mandamentos para ser uma criança forte e bonita, não esquecendo que ninguém pode gostar das coisas que são sujas e desleixadas” (KEHL, 1925, p. 84).

Fonte: A fada Higia (KEHL, 1925, p. 80).

Figura 5 O banho. 

A missão primeira dos Exercícios físicos era combater a indolência e a preguiça (Fig. 6). Vejamos as rimas de Correia de Oliveira6 publicadas pelo sanitarista: “A preguiça e o desmazelo / Juntaram-se em casamento / Levando os dois, em bom dote / Uma mão cheia de vento”. São reveladoras de que um corpo mole, preguiçoso nada tem a ganhar! São marcas da doença. Estar bem fisicamente era representado pelas assertivas: “procure ser ativo e alegre, trabalhando, movendo-se, brincando, exercitando-se ao ar livre”; realizando a “ginástica que é indispensável á beleza e a robustez”, brincando de “folguedos infantis, os jogos, as corridas, o salto, a natação, os passeios á pé e a ginastica aprendida na escola”; cumprir os exercícios de acordo com a orientação dos professores, pois “tão útil é o exercício moderado quanto é prejudicial o exercício excessivo: o primeiro fortalece, o segundo, ao contrário, debilita”; exercitar-se sempre “antes do banho matinal, ao ar livre com movimentos ginásticos aprendidos na escola”, sempre respirar perfeitamente expandindo os pulmões, não fazer “ginástica após as refeições”. Sempre que possível, tratou de reiterar alertas aos professores e alunos: “Não significa robustez, nem beleza, o desenvolvimento exagerado dos músculos; o valor deles está na resistência e não no volume [...] não se preocupe, pois, em criar ‘muque’, com exercícios violentos ou imoderados”, pois a “agilidade, a destreza e a resistência adquiridas na infância, pelos exercícios físicos, são valiosíssimos elementos de defesa: concorrem, vantajosamente, para a conservação da saúde e prolongamento da vida” (KEHL, 1925, p. 89).

Fonte: A fada Higia (KEHL, 1925, p. 88).

Figura 6 Jogos e exercícios físicos. 

Boa parte do livro é dedicada as aulas de ginástica e a prática de exercícios físicos. Para Maria Isabel Brandão Mendes (2009, p. 179), A fada Higia apresenta os ensinamentos dos exercícios físicos relacionando-os aos conceitos de beleza e robustez de forma positiva, enquanto a inatividade é associada a doença. Para tanto, escreveu seguindo as prescrições da medicina a prática de exercícios ginásticos postulados pelo método pedagógico de Ducroquet. Os movimentos agitavam todo o corpo: movimento dos braços, das pernas, do tronco, da cabeça, da extensão, os movimentos respiratórios. Para Renato Kehl (1925, p. 165), os movimentos deveriam ser ensinados paulatinamente às crianças pelos mestres e pelas mães. Esses deveriam aprender a princípio as posições iniciais, depois os movimentos dos braços, em seguida os movimentos das pernas e, assim por diante, até os movimentos respiratórios. O alerta não parava por aí. Falou sobre a medida dos exercícios que deveriam ser dosados de acordo com a idade, o desenvolvimentos e estado físico da criança, pois o exercício em demasiado trazia fadiga ou estafa, tornando-se condenável!

Discorreu sobre as artes de civilizar combatendo os maus hábitos e aspirando os bons. Alegou que apenas “pessoas sem educação, ignorantes, preguiçosas ou desobedientes são capazes da prática de certos atos” (KEHL, 1925, p. 90). Os maus hábitos foram eleitos os causadores de desgraças, doenças, sofrimentos e mortes. Para o médico sanitarista “peor que a segueira é a ignorância, peor que a paralisia é a preguiça: - combate-se a ignorância na escola; vence-se a preguiça com a educação da vontade” (KEHL, 1925, p. 91), assim, confirmava a escola como lugar por excelência de educação, responsável por incutir nos novos preceitos médico-pedagógicos no cotidiano das crianças, lugar onde a “educação, a polidez, os bons hábitos, adquirem-se, como se conservam, no seio da família, na escola e na sociedade”.

Dentre os hábitos considerados maus, citou-se

Entrar em casa com os sapatos sujos; deixar o chapéu e outro objetos fora de seus lugares; levar o lápis ou outros objetos á boca; introduzir o dedo no nariz; roer unhas, molhar o dedo com saliva para virar as folhas ou contar dinheiro; espirrar ou tossir sobre outra pessoa; não lavar as mãos ao sair da privada; beber água em copo servido; cuspir, escarrar ou evacuar no chão; sentar-se em má posição; tirar o pó dos sapatos com o lenço, dentre outros (KEHL, 1925, p. 92).

Cometer tais atos foram considerados um atentado a higiene e a civilidade. São hábitos que devem ser combatidos. São mal vistos, desprezados. Não fazê-los, faz parte de uma boa educação, aquele auferida na escola, pela lâmina de higiene; ensinada sob os princípios da medicina. São informações “técnicas que visavam o desenvolvimento da higiene física, social e ambiental [...] questões relativas aos perigos que ameaçam todos a todo tempo e lugar” (BARRETO, 2010, p. 76). Ações que deveriam ser combatidas dia a dia, banidas do cotidiano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esses periódicos representavam formas de controle dos corpos infantis: asseio, exercícios físicos, bons hábitos. Formas de normalizar a infância com seus escritos. São discursos produzidos que visavam a matéria. Falas que deveriam ser pronunciadas numa só voz: médicos, professores, funcionários, familiares e escolares. Todos em defesa da higiene. Assegurar a saúde do corpo e a higiene da alma foi, durante a primeira metade do vigésimo século, a tônica central do debate médico-pedagógico. Médicos e professores deveriam dar as mãos nessa tarefa. Utilizaram como armas de combate seus discursos, prescrições, orientações, manuais, leis, decretos, livros didáticos... todos na intenção de “combater o bom combate”. Reuniram forças contra as torpezas, contra a ignorância, contra a falta de higiene, a moleza e a preguiça. Declararam guerra às doenças. Desejaram um corpo forte, bonito, saudável, eugênico.

Os lugares que antes eram predominantemente médico, passaram a ser reivindicado pelos professores. Foi o que mostrou a Revista do Ensino. Os artigos sobre a educação da saúde publicados nesse periódico, passaram a ser escritos pelos dois profissionais. Dos dezessete artigos sobre a medicalização escolar encontrados nas Revistas do Ensino, doze eram de autoria de professores e cinco de médicos. Dentre esses artigos, os temas mais recorrentes foram higiene do corpo, gabinetes dentários e educação física. Conforme os discursos produzidos pela revista, é possível afirmar que o corpo fisicamente vigoroso precisava ser limpo, dono de um sorriso branco e completo, e resistente. Não foi possível saber o alcance das publicações e a repercussão da Revista do Ensino, apenas que se tornou um modelo prático de impresso que se propôs a propagar discursos em defesa da medicalização escolar.

Foi por meio desse periódico que cheguei até A fada Higia, manual didático médico-pedagógico adotado nas escolas públicas da Paraíba nos anos de 1930. O livro possuía informações necessárias à manutenção do corpo hígido. Histórias podiam ser lidas, narrando a trajetória de crianças sujas, desobedientes, indisciplinadas, que por suas traquinagens foram vitimadas pelas doenças. Aprenderam através dos ensinamentos da fada da saúde como manter o corpo saudável, arrumado e comportado. Textos que visavam disciplinar as crianças aos moldes dos princípios da higiene. Se tomaram esse rumo? Não tenho como responder! Sei que foram adotados nas escolas públicas da Paraíba. Conheci o interesse do Estado ao comprar para o ensino primário esse manual. Mas não é possível afirmar se e como as professoras utilizaram em sala de aula.

REFERÊNCIAS

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1Este texto resulta da pesquisa de doutoramento intitulada “Physicamente vigorosos: medicalização escolar e modelação de corpos na Paraíba (1912-1942)”, defendida no ano de 2015 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

2A Revista do Ensino criada pelo Decreto 287, de 8 de junho de 1932 pelo Departamento de Instrução, sob a orientação da Diretoria do Ensino, tinha o objetivo de fazer circular os novos saberes em voga especialmente aos professores do interior. Dentre os principais temas, estavam disciplina escolar, formação de professores, educação sanitária e programa de ensino. Sua última edição foi publicada no ano de 1942 (SOARES JÚNIOR, 2015).

3Publicado anualmente, tratava-se de um periódico que reunia os principais temas discutidos ao longo do ano nos espaços escolares. Continham artigos especialmente sobre a saúde do corpo e da boca, sobre as escolas agrícolas e sobre os grupos escolares. Seus exemplares foram publicados entre os anos de 1937 e 1942.

4Livro didático de autoria do médico eugenista Renato Kehl que foi adotado pelas escolas da Paraíba nas décadas de 1930 e 1940. A primeira edição data de 1925 e foi publicada pela Livraria Francisco Alves.

5O jornal A União é o periódico mais antigo que ainda circula na Paraíba. Foi fundado a 02 de fevereiro de 1893, como órgão divulgador do Partido Republicano, apoiando a gestão do seu fundador, o então presidente Álvaro Lopes Machado, é o terceiro jornal mais antigo em circulação no Brasil (ARAÚJO, 1983).

6Antonio Correia de Oliveira (1879-1960) foi um poeta e jornalista português ligado ao movimento do Integralismo Lusitano. Teve inúmeros textos escolhidos para os livros de língua portuguesa no sistema de ensino primário e secundário. Autor de obras como Ladainha (1897), Cantigas (1902), Romarias (1912), dentre outros.

Recebido: 25 de Setembro de 2017; Aceito: 21 de Dezembro de 2018

E-mail: azemarsoares@hotmail.com

AZEMAR DOS SANTOS SOARES JÚNIOR

é professor do Departamento de Práticas Educacionais e Currículo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (DEPC/UFRN). Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande (PPGH/UFCG). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd/UFRN). Membro do Grupo de Pesquisa Estudos Históricos Educacionais (Diretório CNPq/PPGEd-UFRN).

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