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História da Educação

versão impressa ISSN 1414-3518versão On-line ISSN 2236-3459

Hist. Educ. vol.24  Santa Maria  2020  Epub 05-Jul-2020

https://doi.org/10.1590/2236-3459/99392 

Dossiê: História da Educação Matemática

O CURRÍCULO ESCOLAR SOB O OLHAR DA HISTÓRIA CULTURAL E A MODERNIZAÇÃO DO ENSINO DA ARITMÉTICA NA ESCOLA PRIMÁRIA PARANAENSE NO INÍCIO DO SÉCULO XX

1Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá/MT, Brasil.


RESUMO

Sob o olhar da história cultural, este artigo analisa disputas sobre finalidades e métodos para ensinar Aritmética nas escolas primárias paranaenses, divulgadas pela revista A Escola, periódico que circulou no estado, no início do século XX. Destaca-se discursos emitidos por intelectuais defensores de um ensino primário laico e gratuito, em que a questão principal, para além da ordem pedagógica, era também de ordem social e política, um aspecto geralmente ausente nas diretrizes curriculares.

Palavras-chave: história do currículo; história cultural; história das disciplinas escolares; finalidades da aritmética; método de ensino da aritmética

ABSTRACT

From the viewpoint of cultural history, this paper analyzes disputes about purposes and methods for teaching arithmetic’s in Paraná’s state primary schools, as published in the magazine A Escola (The School) in the early XXth century. It highlights behind-the-scenes speeches by intellectuals who advocated a laic and free primary education, in which the main issue, besides of the pedagogical order, was also social and political, an aspect generally absent in the curriculum guidelines.

Keywords: curriculum history; cultural history; history of school disciplines; arithmetic purposes; arithmetic teaching method

Resumen

Desde el punto de vista de la historia cultural, este artículo analiza las disputas sobre finalidades y métodos para enseñar aritmética en las escuelas primarias del estado de Paraná, publicados por la revista A Escola (La Escuela) a principios del siglo XX. Destaca discursos de intelectuales que abogaban por una educación secular y gratuita, en la que el tema principal, además del orden pedagógico, también era de orden social y política, aspecto a menudo ausente en las directrices curriculares.

Palabras clave: historia curricular; historia cultural; historia de asignaturas escolares; propósitos de aritmética; método de enseñanza de aritmética

RÉSUMÉ

Du point de vue de l'histoire culturelle, cet article analyse des disputes sur les fins et les méthodes d'enseignement de l'arithmétique dans les écoles primaires du Paraná, publié par le magazine A Escola (L’école), au début du XXe siècle. Il met en évidence les discours des intellectuels qui prônent une éducation laïque et gratuite, dans lequel l'enjeu principal, outre l'ordre pédagogique, était également social et politique, un aspect généralement absent des lignes directrices du curriculum.

Mots-clés: histoire du curriculum; histoire culturelle; histoire des matières scolaires; fins de l'arithmétique; méthode d'enseignement de l'arithmétique

Considerações Iniciais17

Como um processo social todo currículo tem uma história marcada por lutas e conflitos entre tradições e concepções naturalizadas na sociedade, uma história que não se restringe a leis, regulamentos, normas e guias curriculares, mas que vai a procura das diferentes formas como os sujeitos apropriam-se daquilo que é prescrito e legitimado. Assim concebida, a história do currículo não desconsidera o caráter complexo dos conhecimentos nele compreendidos.

Uma história do currículo, sobretudo, não poderia deixar de problematizar conhecimentos, valores e habilidades que marcaram uma época e como tais representações foram constituídas, ao longo de um período, sendo de suma importância que ela esteja centrada na busca de compreensão da dinâmica que constituiu o currículo enquanto um artefato escolar. “Nessa perspectiva, o currículo deve ser visto não apenas como a expressão ou a representação ou o reflexo de interesses sociais determinados, mas também como produzindo identidades e subjetividades sociais determinadas” (GOODSON, 2012, p. 10).

Essa compreensão da história do currículo foi assumida por inúmeros estudiosos dentre eles Ivor Goodson, pesquisador da teoria e da história do currículo que tem dirigido seu olhar para processos internos da escola, procurando explicar como as matérias escolares, métodos e planos de ensino constituíram-se em mecanismos para diferenciar estudantes.

Também, oferecendo pistas valiosas para as análises das relações complexas entre escola e sociedade, o historiador das disciplinas escolares André Chervel propõe que, para compreender historicamente um currículo escolar, é fundamental examinar seu funcionamento, suas reais finalidades, verificando que essas não são as mesmas encontradas nas normativas legais, no currículo prescrito, uma vez que se expressam somente nas práticas disciplinares, ou seja, no currículo em ação.

Tais preocupações levaram Chervel a formular a questão central que tem norteado sua abordagem teórico-metodológica da história das disciplinas escolares: “porque a escola ensina como ensina”? Indagação esta que vem substituindo aquela recorrente questão que os organizadores do currículo geralmente colocam quando tentam inová-lo, ou seja: “o que a escola deveria ensinar?” (CHERVEL, 1990, p. 190).

Para o historiador, as disciplinas escolares estão no centro do currículo e sua função é, em cada momento histórico, colocar um conteúdo de instrução a serviço da finalidade educativa da instituição. Investigar como as várias disciplinas que integram um curso atendem a finalidade almejada pela escola é um aspecto primordial da história do currículo.

Corroborando com a ideia de Goodson e Chervel de que o currículo não é algo estático, senão um produto social e histórico, portanto, construído, Viñao (2008) ao fazer uma retrospectiva dos trabalhos de Goodson, conclui:

[...] desse modo se consolidaria no mundo anglo-saxônico um campo de investigação - o da história do currículo e dentro dele, às vezes identificando-se com o mesmo, o da história das disciplinas escolares - marcado, é certo, pela obra de Goodson, mas podendo ser observadas outras orientações ou enfoques (VIÑAO, 2008, p. 179).

Reconhecidas como núcleo central da cultura escolar, as disciplinas compreendem saberes e condutas que são geradas no interior da escola.

A escola foi sempre concebida como um lugar de cultura, primeiramente, segundo uma concepção idealizada de aquisição de conhecimentos e normas “universais”; mais tarde, numa perspectiva crítica de inculcação ideológica e de reprodução social. Tanto num caso como no outro, pouca atenção foi concedida ao trabalho interno de produção de uma cultura escolar, que está em relação com o conjunto de culturas em interação em uma dada sociedade, mas que contém especificidades próprias que não podem ser endereçadas unicamente através do prisma das subdeterminações do mundo exterior (NÓVOA, 1998, p. 34-35, grifos do autor, tradução nossa).

Negar a existência dessa cultura é não reconhecer a ciência da educação, a profissão docente e o ensino enquanto um saber cientificamente construído com os aportes da teoria da educação. Nessa perspectiva, como tem afirmado Chervel (1990), a escola é um espaço criativo e as disciplinas escolares, seus espaços genuínos de criação de diferentes campos de conhecimento. Ao colocar em relevo o poder criativo da escola, o historiador desconstrói a imagem de uma instituição passiva, lembrando que o sistema escolar não forma apenas indivíduos, mas também produz uma cultura (a escolar) que molda e modifica a cultura da sociedade global.

Também destacando a natureza das disciplinas escolares, Viñao (2008) sugere:

Para o estudo das disciplinas escolares sugiro considerá-las como organismos vivos. As disciplinas não são, com efeito, entidades abstratas com uma essência universal e estática. Nascem e se desenvolvem, evoluem e se transformam, desaparecem, engolem umas às outras, se atraem e se repelem, se desgarram e se unem, competem entre si, se relacionam e intercambiam informações (ou as tomam emprestadas de outras) (VIÑAO, 2008, p. 204).

A história do currículo não se restringe, pois, à história do pensamento curricular, mas à própria história de uma disciplina escolar que segundo Julia (2001), requer que os conteúdos ensinados sejam sempre estudados em relação com seus métodos e suas práticas.

Julia (2001), afirma que apesar do considerável refinamento das problemáticas da história da educação, permaneceram desconhecidos estudos das práticas escolares que forneçam visibilidade à cultura escolar, por ele descrita como o “conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos” (JULIA, 2001, p. 10). Para este historiador, trata-se de uma tarefa difícil, considerando que geralmente as práticas escolares não são registradas. A lacuna deixada pela história das ideias pode, segundo ele, ser suprida pela história das disciplinas.

Inseparáveis de suas finalidades educativas, a escola como bem afirmou Chervel (1990), não se reduz aos ensinos programáticos, considerando a liberdade dos professores para inventar procedimentos diante do compromisso de levar uma renovação pedagógica a um grupo de alunos.

Considerar o currículo escolar segundo a ótica da história cultural oportuniza perceber o dinamismo da cultura escolar, requer visitar documentos oficiais de um determinado período histórico e examinar como tais códigos, regulamentos e programas funcionaram na escola, ou seja, como os agentes escolares, professores e alunos deles se apropriaram em suas lides escolares. Para isso, outros testemunhos curriculares podem ser examinados. São os documentos escolares, livros didáticos, manuais e revistas pedagógicas, cadernos de alunos e professores. Conhecer e proceder a uma observação histórica desses materiais implica em confrontar-se com finalidades almejadas e com finalidades reais de uma disciplina escolar, o que implica saber sobre como os conteúdos prescritos foram realmente apropriados pelos alunos, que métodos favoreceram as aprendizagens almejadas.

E conhecer as práticas de apropriação nos permite compreender, um aspecto essencial do currículo para além das prescrições programáticas, os sentidos e inteligibilidades dados ao conhecimento, por professores e alunos, principais agentes da cultura escolar.

Com esta ampliação do olhar, o currículo escolar sob a ótica da história cultural, apresenta-se como um espaço de disputas de interesses, de dominação e controle. Problematizar tais embates é o objetivo da história do currículo que nos propomos trazer à discussão. Colocando a história do currículo sob o olhar da história cultural, esta comunicação tem como objetivo analisar relações de poder e disputas envolvidas na Aritmética do ensino primário paranaense, em um momento emblemático da história da escola primária brasileira, o limiar do século XX.

DA INSTRUÇÃO PRIMÁRIA NO INÍCIO DO SÉCULO XX NO ESTADO DO PARANÁ

A institucionalização de uma nova modalidade escolar foi uma das faces do projeto republicano de modernização da sociedade. Considerado modelo de excelência da escola primária brasileira o grupo escolar, criado primeiramente em São Paulo, em 1893 (SOUZA, 1998), foi posteriormente difundido a outros estados brasileiros, como o estado do Paraná que, em 1903 inaugurou a instalação, na cidade de Curitiba, de seu primeiro grupo escolar, o Grupo Escolar Xavier da Silva (BENCOSTTA, 2001).

Concebidos de forma mais racionalizada e padronizada, os grupos escolares constituíram-se em “templos de civilização”, voltados à consolidação dos anseios republicanos de progresso e reforma social. A legitimação da nova forma escolar, organizada de acordo com o adiantamento dos alunos, ancorou-se em concepções tidas como modernas e racionais, contudo, conflitantes com outras, em voga no período (SOUZA, 1998).

Bencostta (2005) comenta sobre outras novidades que integravam a realidade desse modelo de escola primária:

A mobília que substituía os torturantes bancos sem encostos; o quadro-negro; o material escolar vinculado ao novo método que marcaria a história do ensino primário brasileiro - o método intuitivo ou lições de coisas - que previa o uso de mapas, gabinetes, laboratórios, globos, figuras e quadros de Parker, dentre outros, a fim de facilitar o desenvolvimento das faculdades de apreensão sensorial dos alunos; a instrumentalização das leituras didáticas repletas, diga-se de passagem, de uma linguagem que, a todo momento, procurava enaltecer os brios republicanos (BENCOSTTA, 2005, p. 71).

Nesses tempos (primeiras décadas do século XX) de instalação dos primeiros grupos escolares no estado, os saberes escolares distribuídos em séries eram ensinados partindo da definição dos conceitos, do geral para o particular, tal como uma ciência pronta para ser aprendida, partia-se do abstrato para o concreto. A matemática marcava presença na programação com a matéria denominada Aritmética, destinada ao desenvolvimento das faculdades mentais como atenção, imaginação, memória, percepção que favoreciam a memorização de tabuadas, de fórmulas, de regras para aprender as operações, relacionando o racional à verdade, o calcular “de cabeça” com precisão e rapidez depois de apreender os mecanismos convencionais das quatro operações.

No Paraná, a situação das escolas primárias era precária, como apontam os relatórios do início do século. “Na capital já temos três meios grupos, cada um com duas escolas de séries ou gráos diferentes: na Escola Tiradentes, na Escola Oliveira Bello e na Escola Carvalho. Há, por enquanto, um grupo completo em construção - o Grupo Escolar Xavier da Silva” (PARANÁ, 1903, p. 8).

No relatório apresentado ao Secretário da Instrução Pública, em 31 de dezembro de 1914, o Diretor da Instrução Pública do Estado do Paraná, Dr. Francisco Ribeiro de Azevedo Macedo, informa sobre o que havia sido realizado em 1914, em relação à reorganização das escolas públicas do estado: “Reuni escolas systematisando e dividindo os trabalhos, por séries, entre os respectivos professores e confiando a um destes a funcção de director: formei, assim, o que em falta de melhor denominação, chamamos grupos e semigrupos escolares” (PARANÁ, 1914, p. 3).

O Diretor informa que essas escolas não são organizadas como os grupos escolares de São Paulo que têm seção especial para meninos e para meninas. De fato, nos prédios nos quais foram instalados os primeiros grupos escolares de São Paulo foram previstos espaços, desde a entrada, salas de aula, recreios, para serem ocupados separadamente por meninas e meninos.

No caso do Paraná, os primeiros prédios destinados aos grupos foram dotados de amplos salões, para instalação das quatro séries, uma a cargo de cada professor; nas escolas que possuíam dois salões, os semigrupos, cada professor atendia duas séries (BENCOSTTA, 2001).

Sobre as inovações introduzidas nos programas, dentre outras, são citadas: a sistematização de coisas, os exercícios próprios para a cultura dos sentidos e das faculdades do espírito, exercícios para a formação da vontade e do caráter, noções fundamentais e práticas de Moral, de Agronomia, de Hygiene e de Economia Privada e Política. Em relação aos materiais, o Diretor observa que os as escolas paulistas são dotadas de ricos materiais técnicos, importados da Europa e América do Norte e que no Paraná as escolas possuem materiais modestos, os mais necessários, sendo supridos pelas habilidades e boa vontade dos professores.

Em Curitiba, viu-se que nem todos os primeiros grupos escolares ocuparam locais de destaque na cena urbana. Vários deles não possuíam edifícios em proporções monumentais que merecessem, da retórica republicana, adjetivos laudatórios, tais como: templos ou palácios da instrução. Os espaços funcionais que a moderna pedagogia exigia, como gabinete para diretor, biblioteca, anfiteatro, laboratórios, secretaria, oficinas, pátios etc., também foram desconsiderados. As únicas exceções neste aspecto foram os grupos escolares Dr. Xavier da Silva e D. Pedro II (BENCOSTTA, 2001, p. 136).

A busca pela modernização da escola primária pública foi um dos anseios dos intelectuais que formavam a Associação do Grêmio de Professores Públicos do Paraná, entidade dirigida por professores, a maioria docentes das principais escolas secundárias da capital, o Gymnásio e a Escola Normal. Uma das atividades da Associação era a publicação de um periódico, a revista A Escola, subsidiada pelo governo do estado e que divulgava, desde sua primeira edição, em fevereiro de 1906, notícias e artigos críticos sobre a escola primária do estado18.

Dentre os colaboradores mais assíduos da revista, Marach (2007, p. 12) cita: “Cônego Braga, Claudino dos Santos, Dario Vellozo, Ermelino de Leão, Euzébio Motta, Azevedo de Macedo, Sebastião Paraná, Lourenço e Veríssimo de Souza”.

Movido pelo seu ímpeto de juventude, seus participantes travavam acirrados debates nas páginas de diversos jornais da capital, sem receios quanto à militância apaixonada, criando revistas, círculos culturais, congregações e instituições como a própria Universidade do Paraná (MARACH, 2007, p. 13).

No dizer da autora, tratava-se de parte da elite letrada local comprometida em repensar a sociedade e a educação, essa compreendida como a chave “para o progresso moral, intelectual e material da população” (MARACH, 2007, p. 22).

No grupo caracterizado como “educacionista”19, constava o nome de Dario Vellozo, professor do Gymnásio e da Escola Normal de Curitiba, intelectual que se opunha ao ideário católico e aos dirigentes eclesiásticos, e que assumiu a direção do periódico após as seis primeiras edições dirigidas por Sebastião Paraná (MARACH, 2007).

Inaugurando a revista A Escola (1906, n.1, p.1), Sebastião Paraná20, laureado geógrafo e historiador do estado, lente do Gymnásio e da Escola Normal de Curitiba, afirma que no regime republicano, “a instrucção se impõe e reclama prompta solução” (A ESCOLA, 1906, n.1, p. 1). Para o ilustre catedrático e redator da revista, um regime republicano não poderia descuidar da educação do povo, nele, ignorância e República se repeliam e uma instrução sólida requeria uma pedagogia moderna. Considerava que a escola primária, além de cuidar da formação do caráter da criança, ao desenvolver-lhe o raciocínio pouco deveria se importar com a memória, mas aquecer o coração e o espírito da criança com a realidade do país, levá-la a exultar-se com os triunfos e conquistas da Pátria e a lamentar seus desastres. Com essa mensagem fundadora, Sebastião Paraná conclamava professores, leitores da revista, a lutarem com ele na defesa de uma escola moderna.

Entre 1906 e 1910, o periódico constituiu-se em espaço para reflexão (e contestação) de questões educacionais locais, em defesa de um ensino laico e gratuito, como uma expressão de uma prática de igualdade e liberdade. Assim, como os discursos oficiais inscritos nos documentos examinados, os emitidos pela revista trazem delineamentos sobre as finalidades dos saberes elementares a serem dispensados à população.

Além de divulgar posições de renomados educadores acerca da instrução e educação local, a revista traz a público relatórios de professores primários que esclarecem o que havia de moderno na organização didático-pedagógica dos grupos escolares e como os programas de ensino novos métodos eram apropriados.

Uma crítica ao despreparo matemático da população brasileira, nas primeiras décadas do século XX, é endereçada à inutilidade de muita coisa que figura no programa; à forma como o professor conduz o ensino dessa matéria na escola primária e também ao espírito utilitário atribuído à instrução matemática nos primórdios do século XX.

Bonfim (1917), criticando os rigorosos programas enciclopédicos em vigor, os métodos inadequados para ensinar Aritmética, assim como o utilitarismo estreito e imediato testemunhado em programas oficiais e manuais escolares ressaltava o insucesso dessa matéria.

Reduzido ao mínimo, esse preparo constitue a instrução elementar, que no menor gráo, nem chega a ser um preparo geral, sinão uma iniciação no preparo geral. Nestas condições ― assim reduzida, a instrucção primária tem de ser rigorosamente educativa para que chegue a ser efetivamente útil (BONFIM, 1917, p. 105).

Na Aritmética das escolas primárias, além das operações fundamentais e sistema métrico decimal, eram incluídos raiz quadrada e raiz cúbica, questões de câmbio, dentre outros tópicos como dízimas periódicas que por não atenderem necessidades cotidianas dos alunos, eram apontados por Bonfim (1917) como responsáveis pelo alto índice de reprovações. O desafio, colocado ao ensino primário da época, era o de ultrapassar a oferta de um saber retórico, afastado da vida, compreendido como um simples rudimento e que não se mostrava útil à vida do cidadão.

Vestígios dessa almejada modernidade pedagógica estavam contidos no Regulamento da Instrução Pública do Estado do Paraná de 1901, já mencionado, por exemplo, quando estabelecia que “caberia ao professor dar ao ensino o caráter essencialmente prático, tendo em vista as aplicações às necessidades da vida e a utilidade directa” (PARANÁ, 1901, p. 101).

O número inaugural da revista A Escola também foi porta-voz dessa crítica ao divulgar o relatório de uma professora21, encaminhado em 22 de dezembro de 1905, ao Diretor da Instrução Pública do Estado, Dr. Arthur Pedreira de Cerqueira. No documento, a professora presta contas ao governo do estado como cumpria o programa na escola que dirigia, Escola Tiradentes, um dos primeiros grupos escolares instalados no estado do Paraná. Em relação aos saberes matemáticos, informa que seguia os livros Arithmética Progressiva (TRAJANO, 1924) e Geometria Prática (FREIRE, 1907), dois livros que por longos anos foram utilizados em escolas primárias de inúmeros estados brasileiros. Dizendo ensinar para alunas mais atrasadas e mais adiantadas, afirma que aos sábados recorria ao modo misto, auxiliada pelas alunas mais adiantadas, para recapitular a matéria.

Em relação aos métodos de ensino a professora informa:

Applicando umas vezes o methodo inductivo ou analytico e outras vezes o deductivo ou synthetico, procuro sempre tornar intuitivas e claras as explicações dadas, para que as alumnas possam assim comprehender, assimilar e reter a licção ministrada. Para as classes mais atrazadas, o methodo intuitivo é sempre de grandes vantagens. A licção partindo das partes para o todo, do simples para o composto, deve basear-se em princípios conhecidos e concretos, cumprindo abandonar por completo todo systema fundado em princípios abstractos. Manifesto-me ostensivamente contra o ensino ministrado exclusivamente pela memória em prejuízo das outras faculdades da intelligencia que assim sem exercício, ficarão inevitavelmente atrophiadas. [...] “Saber de cor não é saber”, como acertadamente disse o eminente Montaigne, e assim pensando, procuro sempre ministrar as minhas alumnas verdadeira e sólida instrucção, aproximando o mais possível a vida escolar da vida real (A ESCOLA, Anno 1, n. 1, 1906, p. 14).

Os relatórios da professora, publicados no referido periódico paranaense, apontam características das modernas práticas de ensino da Aritmética da escola primária, relatos que sinalizam para as rupturas e transformações que a escola primária imprimia em suas finalidades para instruir e educar cidadãos.

DAS FINALIDADES DA ARITMÉTICA DA ESCOLA PRIMÁRIA

No embate travado no início do século, entre intelectuais anticlericais22, acerca da escola primária no estado, e testemunhado pela revista A Escola, encontram-se menções às finalidades de uma escola primária moderna, delineadas nas palavras de vários educadores, dentre eles, Dario Vellozo, o ilustre professor da Escola Normal, fala da necessidade de orientar a instrução com teoria e prática. Defende atributos do iluminismo como a razão, a ciência e a liberdade de consciência, enquanto garantia da autonomia intelectual do indivíduo. “Esse emancipar-se pela razão, libertando-se das opressões (igreja católica), fez com que ele elaborasse uma proposta que aliava a ciência e a moral ao civismo, formando assim, o tripé da educação progressista” (ANDRADE, 2007, p. 197).

Considerava que o estado, ao facultar e facilitar a instrução e a educação permitia que o indivíduo se transformasse em “cellula consciente na collectividade”, armava-o para a luta pela vida e o retorno seria o progresso do Estado.

A instrucção ministrada à infância e à juventude não satisfaz, não pode persistir sem graves prejuízos para nossos patrícios. É superficial, rhetorica, exhaurente, quase inútil. Não basta ensinar a ler, escrever e contar; não basta arrastar a juventude na amargura de complicadíssimas theorias amarfanhantes, sob alluvião de pormenores esmagadores; não basta INSTRUIR; é preciso EDUCAR: armar o indivíduo para a lucta e para a victoria. A instrucção é o meio, a educação é o FIM: o TERMO (VELLOZO, 1907, p. 107, grifos do autor).

Nesse artigo, Vellozo apelava para que a escola se aproximasse, o quanto possível, das próprias condições de vida e ressaltava a necessidade de melhor distribuir a matéria, muito mais do que reformular programas e regulamentos.

A reforma dos regulamentos, o clamor contra os methodos é insuficiente; mais adiantaria substituir os programmas, melhor distribuir as materias, selectadas com sobriedade e criterio. Por superiores que sejam os methodos de ensino, o professor está adstricto aos programmas, archaicos e tremendos, espalhafatosos, complexos e inassimiláveis. [...] A questão já não é só de como ensinam, mas, principalmente, do que ensinam (VELLOZO, 1907, p. 111, grifos do autor).

Endereçando a crítica aos programas e aos métodos, conforme termos sublinhados, Vellozo (1907) faz referência ao “Regimento Interno das Escolas Públicas do Paraná” (PARANÁ, 1903), decreto que prescrevia normas para as escolas primárias do estado sendo a maioria, recomendações de ordem pedagógico-administrativa. O rol das matérias e os programas mantiveram-se sem alterações, em relação aos apresentados no regulamento de 1901, entretanto, o Anexo 4 incluía uma lista dos livros indicados pela Congregação de Professores do Ginásio e Escola Normal para serem adotados na escola primária do estado. Para a Arithmética, os livros Arithmética Elementar e Arithmética Progressiva, de Antonio Trajano23. Observa-se que o segundo título indicado é o mesmo citado no relatório da professora Julia Vanderley, divulgado na revista A Escola e já mencionado anteriormente.

Em artigo de março de 1908, terceiro ano da revista, Vellozo apresenta uma proposta de Escola Moderna, afirmando ser preciso defender um trabalho de mãos e cérebro, desde os primeiros anos escolares, “nem theoristas somente, nem somente rotineiros” [...] “A escola actual encaminha à burocracia; a Escola Moderna, dando utilitários ensinamentos, indica ao alumno a agricultura, o commercio, as artes e industrias” (A ESCOLA, Anno 3, n. 1, 1908, p. 8).

No ano seguinte, no artigo “Subsídios Pedagógicos”, Vellozo (1909) volta a tecer críticas à escola vigente e ao ensino ali ministrado. Trazendo ideias de pensadores como Chasteau, Compayré, Le Bom, Demolins, Spencer, dentre outros que segundo ele contribuíram para iluminar o assunto, ressalta a responsabilidade da escola em relação ao trabalho consciente e produtivo. “A producção cresce com o trabalho; o trabalho consciente e produtivo apprende-se nas escolas; não em pobres escolas rudimentares e primitivas, mas em escolas de organização moderna, utilitária e technica” (A ESCOLA, Anno 4, n. 2 e 3, 1909, p. 49).

Defendendo a ideia de que a teoria ministrada na escola precisava encontrar aplicações práticas imediatas, afirma que nem o estado e nem o país cuidaram de adaptar o ensino público às necessidades de suas funções, econômica e cívica. Os programas deveriam seguir em desdobramento lógico, sem fracionamento, desde as escolas primárias aos cursos secundários.

A Escola Moderna, concebida por Vellozo como a alma do Brasil Cívico, deveria proporcionar mais que a teoria dos princípios morais, o conhecimento prático dos deveres, preparando a criança para realizar honestamente as obrigações todas da vida. Para ele, a questão não era apenas de ordem pedagógica, era também social e cívica, considerando que o utilitário intuitivo não era fator único de civismo.

Após cinco anos de sua criação, na edição de n. 7 a 12, de 1910, é anunciada a extinção do periódico. Entretanto, uma nota na página 176 da edição de n. 1 a 3, chama atenção do leitor:

Agora que, nos centros mais civilisados do Brazil, se cogita da creação de escolas nos moldes racionalistas da de Ferrer, não vem fora de proposito a lembrança de que esta ideia já existe no Paraná desde 1906, e que o provecto educador Dr. Dario Vellozo, lente de História do Gymnasio, lançou as bases de sua Escola Moderna, admiravel instituto de ensino que mereceo a approvação de consagrados mestres da velha Europa (A ESCOLA, 1910, p. 176).

Curiosamente, essa nota é divulgada no mesmo número em que a revista publica dois artigos sobre o educador espanhol, Francesc Ferrer i Guardia24 e uma poesia intitulada “O fuzilamento de Ferrer (Injustiça)”.

A proposta de Escola Moderna do educador “aliava a ciência e a moral ao civismo, formando, assim, o tripé da educação iluminista” (ANDRADE, 2007, p. 197). Ao contemplar cultura e trabalho em vista a uma educação progressista e moderna, Vellozo defendia uma nova pedagogia, um ensino livre, leigo e gratuito, opondo-se, em sua linha de pensamento a um passado clerical.

As contundentes críticas que a revista A Escola emitia à escola primária vigente no estado, intensificadas por Vellozo a partir de 1907, possivelmente levaram à suspensão do periódico em 1910 e também, à suspensão de Vellozo, por ato do presidente do estado Francisco Xavier da Silva, de 9 de março de 1909, por três meses e meio, de suas funções na cátedra do Ginásio Paranaense e da Escola Normal (ANDRADE, 2007, p. 198).

E Vellozo, apesar da flagrante recusa de seu Plano e Programa de Estudos - escola moderna - pelo congresso legislativo do estado do Paraná, continuou a promover a causa da instrução leiga, pois ainda mostrava-se otimista quanto à implantação de tal estabelecimento de ensino e afirmava que, no Paraná a escola moderna ainda se levantaria (ANDRADE, 2007, p. 201).

Andrade (2007) observa que, em 1914 Vellozo conseguiu fundar, na cidade de Rio Negro/PR, a Escola Brazil-Cívico nos mesmos moldes da escola moderna.

No ano anterior à suspensão da revista, o governo aprovara um regulamento para as escolas primárias (PARANÁ, 1909), definindo uma nova estrutura compreendendo a Educação Infantil (1 ano), o Ensino Elementar (4 anos) e o Ensino Complementar (2 anos). O Art. 74 informava sobre o caráter intuitivo e prático a ser dado ao ensino, em conformidade com os programas e métodos, autorizados agora pelo Conselho Superior do Ensino, órgão criado para decidir sobre assuntos pedagógicos da escola primária, dentre outros, definição de métodos e indicação de livros didáticos a serem adotados nas matérias.

De acordo com o novo regulamento, caberia ao professor desenvolver a inteligência das crianças por meio do ensino de cousas, sistematizar suas inclinações espontâneas para fatos concretos. Por indicação do Conselho recém-criado, os livros de Antonio Trajano que vinham sendo adotados desde 1903, para o ensino da Aritmética, seriam substituídos pelos livros de Souza Lobo25.

Análises realizadas por Valente (2015) mostram que, livros didáticos muito utilizados nas escolas primárias brasileiras seguiam lógicas diferenciadas na proposição dos conteúdos programáticos: uma que considerava os saberes matemáticos como elementos e outra que os considerava como rudimentos. A primeira, herdeira da tradição científica, cuja racionalidade prima por apresentar os saberes, do mais simples ao mais complexo, em que o simples é que é o conteúdo inicial, o complexo é o que vem em seguida e que abarca vários elementos simples. A estrutura que organiza internamente o programa compreende uma lógica dos elementos, uma lógica racionalista que leva em conta o progresso do conhecimento e que visa instruir a partir do que é considerado pré-requisito um saber elementar que se encontra na base e que avança para patamares superiores do conhecimento.

Outra lógica, a lógica dos rudimentos, tradição pedagógica que ordena os conteúdos partindo do fácil em direção ao difícil, sinaliza para um fim educativo do conhecimento, proveitoso para a vida prática, do dia a dia e que leva em conta os interesses dos que aprendem. Segundo Valente (2015) a ideia dos rudimentos está mais próxima das finalidades práticas, porém, mais distante das finalidades acadêmicas, da ciência, mais envolvida com o educar do que apenas instruir.

Que rumo tomou a Aritmética no currículo da escola primária do Paraná diante do embate do método?

Em 1921, uma nova revista, também denominada A Escola, fornece minuciosas orientações aos professores sobre como trabalhar com o método intuitivo e utilizar as Cartas de Parker26, material em voga nos grupos escolares de São Paulo e cujo uso alastrava-se nos grupos escolares de todo o país. Tratava-se de um momento em que a organização do ensino primário no Paraná ganha novos contornos com a circulação das ideias da Escola Nova em que os debates educacionais centram a atenção no método e na modernização da escola primária. O programa oficial para os grupos escolares que desde a criação no estado dessa modalidade de ensino, estava em construção, foi finalmente publicado em detalhes como Programa do Grupo Escolar Modelo (PARANÁ, 1916), iniciativa que levou o estado a novos empreendimentos voltados a modernização da escola primária. Dentre eles, a contratação do educador paulista César Prieto Martinez, convidado, no início dos anos 1920, a assumir a Diretoria da Instrução Pública do Paraná.

Com a oficialização do programa, escrito especialmente para os grupos escolares, a nova organização programática vai assumindo o método sintético em lugar do analítico, com atividades menos estanques e mais globalizadas, com matérias solidarizando-se para o alcance do espírito prático, a grande finalidade proposta para a escola primária naquele período.

Na Aritmética, como nas demais matérias do ensino primário, o método intuitivo que segundo Pestalozzi falava ao cérebro e ao coração do aluno, imperava soberano nas Lições de Coisas27, nas Cartas de Parker, configurando uma Aritmética ensinada de modo prático, de um jeito fácil para a criança aprender.

Diante dessa nova organização pedagógica do currículo, os saberes para ensinar Aritmética tornam-se mais complexos, passando a também requerer uma reestruturação do currículo de formação dos professores.

Face a necessidade do novo entendimento do prático, da passagem do “simples para o complexo”, os cursos de formação do professor deixaram de lado “a matemática para a vida” para incorporar saberes para ensinar “a matemática da vida”, ao ampliar o espaço pedagógico do currículo, contou com a contribuição de Martinez acrescentando à formação, disciplinas de cultura profissional28.

Outras ações, igualmente promissoras para a modernização do ensino primário, foram as iniciativas de Martinez voltadas para a escola modelo anexa à Escola Normal Secundária após a reforma de Lysimaco Ferreira da Costa29, como a preparação dos professores para o uso das Cartas de Parker e do método intuitivo no ensino da Aritmética.

Sobre como modernizar o ensino da Aritmética, Martinez publica um artigo na revista A Escola (1921), periódico considerado como um instrumento voltado ao desenvolvimento profissional e veículo de difusão de saberes para a modernização das escolas primárias do estado.

No artigo intitulado “Arithmética” (A ESCOLA, 1921), o autor P. M.30, exalta o valor dessa matéria que considera indispensável para a vida prática, quaisquer que sejam as condições, afirmando que quando se trata do comércio, ela é a alma. Dirigindo-se aos professores, recomenda que o ensino da matéria deve ser “o mais prático possível, intuitivo, racional e ainda graduado, visando não a acumulação da matéria, mas a eficácia do que for ensinado” (A ESCOLA, 1921, p. 19). Recomenda que para evitar que o aluno se habitue a decorar compêndios e confie à memória aquilo que é exclusivo do raciocínio, o ensino deve ser intuitivo. Sobre o método analítico, o autor observa:

Recentemente adoptado e por isso pouco conhecido ou mesmo desconhecido, entre nós, por alguns educadores, tem sido contra elle levantada enorme campanha, mormente tratando-se de certas disciplinas, como sejam a Leitura e a Arithmética; mas, graças aos resultados apresentados, vai elle pouco a pouco, se introduzindo no nosso ensino primário que conta já com muitos Grupos Escolares e algumas Escolas Isoladas onde elle é exclusivamente adoptado (A ESCOLA, 1921, p. 19).

O autor afirma ainda que para se obter um fim prático e útil, a matéria precisa ser tratada de modo inteligente, não mecânica, em que o aluno não precise explicar o processo e os meios que dispõe para encontrar a resposta à questão colocada. Um ensino que permita ao aluno habituar-se a “refletir, deduzir, raciocinar diante de uma questão, examinar dados e estabelecer relações entre eles, examinar a natureza das operações” (A ESCOLA, 1921, p. 19).

Para além da renovação dos métodos de ensino, a dinamização do espírito prático reafirma o bom uso do método intuitivo na escola graduada, priorizando a eficácia do que seria ensinado e o não acúmulo de matéria.

Considerações Finais

Três premissas fundamentais, problematizadas sob o olhar da história cultural, por teóricos do currículo, contribuíram na construção dessa narrativa que buscou analisar relações de poder e disputas envolvidas na educação, especialmente na Aritmética do ensino primário paranaense, em um momento emblemático da história da escola primária brasileira, limiar do século XX.

A primeira é que, por estar em constante fluxo e transformação, o currículo não é algo fixo. Porém, por compreender permanências e rupturas ele não deve ser interpretado como um processo evolutivo, em contínuo aperfeiçoamento. É o que pode ser constatado na Aritmética do início do século, com o protagonismo do método intuitivo, como ressaltam os relatórios da professora Julia Vanderlei, publicados pela Revista A Escola e mais tarde, início dos anos de 1920, as intervenções realizadas por Martinez na escola primária do Paraná, orientando os professores como dar um sentido prático à disciplina Aritmética para que esta alcançasse suas reais finalidades.

A segunda é que tratar historicamente do currículo não significa voltar-se ao passado com o intuito de saber como o conhecimento escolar se organizava em comparação ao ensino atual. Como indica a Revista A Escola, entre 1906 a 1910, com as manifestações de Dario Vellozo e demais intelectuais que defendiam a escola moderna, o importante é voltar ao passado para compreender as razões por que foram ensinados e legitimados determinados saberes e não outros.

Os debates em torno da modernização da escola primária, acirrados no Paraná no limiar do século XX, coadunam-se com a terceira premissa, a que considera o currículo não como um campo pacífico, mas um processo constituído de lutas e conflitos, repleto de tradições, crenças, expectativas e visões sociais.

Tanto os embates do início do século, travados entre os intelectuais paranaenses e as forças conservadoras ligadas à igreja católica, as intervenções de Martinez para modernizar o ensino primário do Paraná atestam que em diferentes tempos e espaços, particularmente em tempos de ocupação das terras paranaenses, seja nas mais modestas escolas do interior do estado, sejam nos modernos grupos escolares instalados em regiões mais urbanizadas, o ensino da Aritmética alimentou estreitas relações entre a cultura escolar e outras culturas como as religiosas, econômicas, auxiliando direta ou indiretamente a manter a dimensão prática desse saber objeto de disputas de poder em diferentes períodos históricos.

A história do currículo de Matemática, relativa a qualquer nível e modalidade de ensino encontra-se atrelada, portanto, não apenas a métodos e conteúdos, mas também às reformas educativas em cuja base mobilizam-se finalidades, intencionalidades, escolhas que incidem em possibilidades de acesso da população ao conhecimento sistematizado.

No Paraná, a consolidação do modelo de escola graduada e seriada, disseminado a partir de São Paulo, foi um processo lento e nada pacífico desde a criação, em 1903, do primeiro grupo escolar do estado. A Revista A Escola, órgão do Grêmio da Associação dos Professores Públicos do Estado do Paraná, foi palco, no período de 1906 a 1910, do intenso debate sobre a modernidade da escola primária no estado e os dilemas surgidos em torno da educação científica x educação religiosa; cultura geral x cultura profissional; instrução x educação.

Criticando fragilidades dos programas de ensino e a precária estrutura das escolas, o periódico também trouxe a público, relatos de exitosas experiências didáticas do método intuitivo, além de uma ousada proposta de escola moderna, em que as disciplinas eram pensadas em termos de uma pedagogia libertária que rejeitava a moral religiosa predominante na sociedade.

Outro periódico, dirigido pelo Dr. Candido Natividade, publicado em 1ª edição em 25 de março de 1921, também órgão do Grêmio dos Professores Públicos do Paraná, que apesar de utilizar o mesmo nome não indica ser continuidade do anterior - ao que apontam os artigos das duas primeiras edições - buscou dar uma resposta à uma velha questão que no alvorecer do século XX colocou em confronto a intelectualidade paranaense: que finalidades a Aritmética deveria alcançar em tempos da modernidade pedagógica trazida pela escola seriada e graduada?

Com o olhar voltado à modernização do ensino e para o alcance das reais finalidades da escola primária, de modo especial para o ensino da Aritmética, César Prieto Martinez, o então responsável pela Diretoria da Instrução Pública do estado, demonstrou, no início da década de 1920, que o sucesso de um currículo escolar não se faz sem um eficiente investimento no professor, principalmente intervindo em sua formação e acompanhando a forma como mobiliza os saberes necessários à implementação dos novos programas de ensino.

Suas iniciativas marcaram as ações educativas adotadas, a partir da implementação de um programa detalhado para cada série do ensino primário, somadas a oferta de novas disciplinas graças à Reforma da Escola Normal do Estado, coordenada por Lysimaco Ferreira da Costa, e abriram espaço no currículo para valorizar a cultura profissional do professor do ensino primário, redimensionando sua formação profissional tendo em vista o objetivo de garantir o grau de excelência da Aritmética nos primeiros anos escolares.

Suas ações, para além das questões pedagógicas, remetem às relações de poder que envolvem o currículo, mostrando que mais que um dado, o currículo quando visto historicamente, é uma caixa preta que precisamos abrir. Condição que considera o desvelamento de lógicas de bastidores presentes em impressos impregnados de subjetividades dos sujeitos. Diferentes dos documentos oficiais, portadores da tão valorizada lógica científica, as reais razões de uma proposta curricular, seus objetivos genuínos encontram-se em espaço especial da escola, o espaço da cultura escolar, lugar onde novas finalidades são incorporadas aos conteúdos e métodos de ensino.

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17O presente estudo, com inúmeras alterações, foi anteriormente apresentado, com o título “Uma história do currículo sob o olhar da história das disciplinas escolares”, em Mesa Redonda do XIV Encontro Paranaense de Educação Matemática - XIV Eprem, “Diversidade e Educação Matemática: desafios e perspectivas”, promovido pela SBEM PR, em setembro de 2017.

18Entre 1906 e 1910, foram publicados 25 números. Para maiores detalhes das publicações do periódico ver: Marach (2007).

19Sobre esta caracterização, Marach (2007) justifica: “o grupo mencionado foi caracterizado como educacionista porque seus próprios membros utilizavam tal vocábulo como uma forma de se referir àquele que pensava sobre a educação brasileira como uma questão social” (p. 13).

20Sebastião Paraná de Sá Sotto Maior, natural de Curitiba, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, professor catedrático de Geografia Geral e do Brasil no Ginásio Paranaense e na Escola Normal de Curitiba, Autor de inúmeros livros entre eles, História do Paraná e O Brasil e o Paraná, obra que alcançou vinte e duas edições.

21D. Júlia Vanderley Pietrich, professora e posteriormente diretora da Escola Tiradentes, um dos primeiros grupos escolares criados em Curitiba, regia a primeira cadeira de 2º grau para o sexo feminino.

22Debatendo doutrinas religiosas e questionando as instituições, o anticlericalismo envolveu jovens estudantes que cursavam o Ginásio Paranaense e a Escola Normal de Curitiba (ANDRADE, 2007). Maiores detalhes desse movimento ver em Balhana (1980).

23Para maiores detalhes sobre as obras de Trajano, sugere-se ver Oliveira (2013).

24O pedagogo espanhol Francesc Ferrer i Guardia foi um defensor das ideias educativas do pensamento livre e libertário do início do século XX. Apostava no ensino científico e racional, não subordinado aos imperativos da religião e do Estado. A Escola Moderna criada por ele em Barcelona foi fechada mas outras escolas racionalistas surgiram em outros países. Ver (SEBARROJA, 2003).

25 Valente (2015) comenta que a Primeira Arithmética para Meninos, de Souza Lobo, é “um texto emblemático para referenciar o método sintético para o ensino da Aritmética” (p. 200), e Arithmética Primária, de Antonio Trajano, apresenta marcas tanto do método analítico quanto do método sintético.

26No Paraná esse material marcou presença nas escolas primárias, de 1917 a 1950. Ver Portela (2014).

27Sobre as “Lições de Coisas”, ver Valdemarin (2004).

28Sobre transformações ocorridas na década de 1920, na Escola Normal do Paraná ver Abreu (2007); Moreno (2007); França (2015).

29 Abreu (2007) comenta a pouca referência a Martinez como autor da reforma do ensino no Paraná, na década de 1920: “apenas a Reforma da Escola Normal empreendida por Lysimaco Ferreira da Costa foi regulamentada e reconhecida oficialmente pelo governo” (p. 102).

30P. M. é a abreviação utilizada pela Revista A Escola (A ESCOLA, 1921) para o autor do artigo César Prieto Martinez.

Recebido: 03 de Janeiro de 2020; Aceito: 18 de Março de 2020

E-mail: neuzabertonip@gmail.com

NEUZA BERTONI PINTO é Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo, Professora Titular aposentada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná onde atuou como docente nos cursos de Pedagogia, Licenciatura em Matemática, Mestrado e Doutorado em Educação, entre 2000 e 2016. Atualmente é Docente Colaboradora do Programa de Pós Graduação em Educação em Ciências e Matemática - PPGECEM- REAMEC - UFMT, Vice Presidente e Pesquisadora do Ghemat Brasil e Pesquisadora do Ghemat Paraná. Realiza pesquisas na área de História da Educação Matemática, especialmente as relacionadas à formação de professores e saberes profissionais dos professores que ensinam matemática nos primeiros anos escolares.

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