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História da Educação

versão impressa ISSN 1414-3518versão On-line ISSN 2236-3459

Hist. Educ. vol.25  Santa Maria  2021  Epub 30-Set-2021

https://doi.org/10.1590/2236-3459/103376 

Artigos

A REFORMA DE CÓRDOBA, MOVIMENTOS ESTUDANTIS E SEUS IMPACTOS PARA O ENSINO SUPERIOR NA AMÉRICA LATINA*

LA REFORMA DE CORDOBA, MOVIMIENTOS ESTUDIANTILES Y SUS IMPACTOS PARA EDUCACIÓN SUPERIOR EN AMÉRICA LATINA

THE CORDOBA REFORM, STUDENT MOVEMENTS AND THEIR IMPACTS ON HIGHER EDUCATION IN LATIN AMERICA

LA RÉFORME DE CORDOBA, MOUVEMENTS ÉTUDIANTS ET SES IMPACTS POUR L'ENSEIGNEMENT SUPÉRIEUR EN AMÉRIQUE LATINE

** Docente na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), São Paulo/SP, Brasil.


Resumo

O presente estudo visa problematizar o levante da Reforma Universitária de Córdoba, na Argentina, em 1918, e seus consequentes impactos para as Universidades da América Latina ao longo do século XX. Para isso, o artigo analisa o manifesto proclamado pelos estudantes e, acima de tudo, pensa os efeitos da insurreição estudantil para a formulação das estruturas universitárias na região. Por último, a pesquisa demonstra como a Reforma de Córdoba foi determinante para o continente, mesmo possuindo efeitos tardios perante o debate do ensino superior brasileiro.

Palavras-chave: Reforma de Córdoba; universidades na América Latina; reforma universitária

resumen

El presente estudio tiene como objetivo problematizar el levantamiento de la Reforma Universitaria en Córdoba, Argentina, en 1918, y sus consiguientes impactos en las universidades latinoamericanas a largo del siglo XX. Con este fin, el artículo analiza el manifiesto proclamado por los estudiantes y, sobre todo, considera los efectos de la insurrección estudiantil para la formulación de estructuras universitarias en la región. Finalmente, la investigación demuestra cómo la Reforma de Córdoba fue decisiva para el continente, a pesar de que tuvo efectos tardíos en el debate sobre la educación superior brasileña.

Palabras clave: Reforma Universitaria de Córdoba; universidades en América Latina; reforma universitaria

Abstract

The present study aims at problematizing the upheaval of the 1918 University Reform of Córdoba, Argentina, and its impacts on Latin American Universities throughout the 20th century. To this end, the article analyzes a student-proclaimed manifest , considering, above all, the effects of student insurrection for the making of university structures in the region. Finally, research shows how the Córdoba Reform was decisive for the continent, even though its effects on discussions on Brazilian higher education were felt much later.

Keywords: Cordoba Reform; Universities in Latin America; University Reform

RÉSUMÉ

La présente étude vise à problématiser le soulèvement de la réforme de Cordoba, en Argentine, en 1918, et ses conséquences sur les universités latino-américaines tout au long du siècle XX. À cette fin, l'article analyse le manifeste proclamé par les étudiants et, surtout, examine les effets de l'insurrection étudiante sur la formulation des structures universitaires dans la région. Enfin, la recherche montre à quel point la réforme de Cordoue a été décisive pour le continent, même si elle a eu des effets tardifs face au débat brésilien sur l'enseignement supérieur.

Mots-clés: : École primaire; réformes éducatives; histoire de l'éducation

Introdução

“A juventude universitária de Córdoba, por meio de sua federação, saúda os companheiros da América toda e os incita a colaborar na obra de liberdade que se inicia” Manifesto de Córdoba de 1918

As primeiras universidades na América Latina são datadas do século XVI, concebidas como instituições que viriam para fortalecer o colonialismo espanhol nas áreas recém-conquistadas. A expansão comercial e cultural permitiu, em meio à consolidação das grandes navegações e num cenário de contrarreforma na península ibérica, a imposição de valores católicos nas primeiras escolas dos Vice-Reinados espanhóis. Neste contexto, instituições de ensino hispano-americanas, fortemente influenciadas pelo catolicismo, fincaram raízes em solo latino-americano. A Real Pontifícia Universidade, no México, e a Universidade de São Marcos, em Lima, foram fundadas em meados de 1551, se configurando como as primeiras universidades na região (TÜNNERMANN, 1996).

Nos territórios da atual Argentina, a Universidade de Córdoba, por sua vez, surgiria, em 1621, como uma das mais antigas instituições de ensino do Cone Sul. Legados culturais e pedagogias europeias foram herdadas no modelo educacional de tais instituições. Com a formulação das guerras independências, caracterizadas pelos valores da modernidade, o embate entre liberais e conservadores se fez presente em inúmeras áreas da América do Sul. Essas contradições se expandiam também no âmbito educacional e, ao mesmo tempo, atravessariam todo século XIX. Sarmiento (1845), por exemplo, expôs o dilema entre civilização ou barbárie, acenando para as disputas políticas vigentes na região do Prata em busca da hegemonia e o controle dos novos Estados Nacionais.

No plano doméstico, com a ascensão de classes médias e a consolidação de classes populares urbanas, fruto de movimentos migratórios e de transformações sociais, na transição do século XIX para as primeiras décadas século XX, pode-se perceber o crescimento da União Cívica Radical, representada pelo então presidente eleito, Hipólito Yrigoyen. Valores coloniais do catolicismo e da velha pedagogia eclesiástica seriam o alvo e o epicentro dos protestos que exigiriam valores e princípios democratizantes no ensino superior.

No conjunto dessas mutações, o levante do movimento estudantil de Córdoba pode ser considerado um marco para a configuração das novas universidades latino-americanas. De caráter inédito para o período, os estudantes argentinos colocaram em xeque as estruturas coloniais e eclesiásticas presentes naquela instituição. Neste sentido, mais de cem anos depois, cabe na seguinte pesquisa resgatar os valores e princípios engendrados pela Reforma de Córdoba. Para isso, do ponto de vista metodológico, a investigação, inicialmente, problematizará o manifesto dos estudantes, datado de 21 de junho de 1918.

Feito isso, à luz de autores como Ingenieros (1920), Aníbal Ponce (1926) e José Carlos Mariátegui (2010), interpretaremos as dimensões ideológicas presentes no movimento estudantil de Córdoba, destacando as principais doutrinas políticas envolvidas no debate dos estudantes. Ao mesmo tempo, observaremos os impactos do levante argentino na América Latina, concebendo seus efeitos no Chile, Cuba, Peru e Colômbia.

Por fim, a pesquisa pontuará os efeitos tardios das manifestações de Córdoba em torno do debate sobre a reforma universitária no Brasil. Em especial, destacam-se as contribuições do manifesto dos estudantes brasileiro do Rio de Janeiro, estabelecido em 1928, e a importância de Córdoba para a articulação das propostas do movimento estudantil acerca do debate sobre a reestruturação do modelo universitário nacional. Neste sentido, salientamos a incorporação de certas bandeiras do levante argentino no programa da União Nacional dos Estudantes (UNE) e, por outro lado, como autores como Darcy Ribeiro (1969) e Florestan Fernandes (1975) conceberam o legado de Córdoba para a composição de um novo sistema educacional não só para os países vizinhos, mas também em terras brasileiras.

A REFORMA DE CÓRDOBA: UM GRITO DE LIBERDADE

A questão educacional na América Latina foi marcada por forte influência do colonialismo. A partir do século XVI, as primeiras universidades surgiram no México e no Peru com o intuito de fomentar uma pedagogia eclesiástica. No século XIX, em meio ao período das independências, teses liberais atravessaram o atlântico dando vazão a dimensões laicas para a formulação dos novos Estados Nacionais. Com a instauração da Revolução Mexicana, em 1911, e a ascensão da primeira guerra, movimentos dissidentes problematizaram a disputa imperialista mundial. Neste contexto, a Revolução Soviética de 1917 colocava em perspectiva à construção de uma sociedade onde pão, paz e terra seriam o horizonte das classes populares em todo o mundo.

Do ponto de vista regional, na América do Sul, os efeitos da gripe espanhola e as transformações desensacadas pelos movimentos de urbanização tiveram efeitos na morfologia das classes subalternas no continente americano. Fluxos migratórios desencadeados durante as primeiras décadas do século XX pavimentaram o caminho para um iniciante processo de formação da classe trabalhadora diante dos centros urbanos. A formação de um subproletariado urbano e a promoção de novas vertentes políticas vieram à tona na região do Cone Sul. Na Argentina, a União Cívica Radial (UCR), expressa por Hipólito Yrigoyen, proclamava mudança políticas na envelhecida estrutura econômica agroexportadora presente desde a transição do século XIX (ROCK, 2015). Com as influências da modernidade, as heranças do sistema colonial passaram a ser problematizadas por setores subalternos. Neste sentido, em Córdoba, reduto conservador, estudantes promoveram o grande levante colocando em xeque o modelo universitário vigente.

No plano interno, a UCR defendia um programa de reformas moderadas no âmbito econômico e social. A maior mudança foi a modernização do aparelho de Estado. Por outro lado, dado os limites de seu programa, conteve movimentos socialistas e fez questão de distanciar das tendências simpáticas aos ares da Revolução de Outubro de 1917, sinalizando para a construção de um sindicalismo brando. Na área educacional, Yrigoyen apoiou o levante em Córdoba percebendo a necessidade de se colocar fim ao atraso conservador presente em regiões interioranas. De acordo com Donghi:

Esse triunfo do radicalismo se baseava nas classes médias urbanas do litoral e nos amplos extratos populares das cidades, bem como em quase toda a classe média das zonas cerealícolas e numa parte considerável de pequenos criadores de gado; apoiava-se, finalmente, em grupos marginais das classes elevadas do interior. Yrigoyen, a partir de 1916, dedicou suas limitadas capacidades administrativas a remover aquilo que considerava como vergonhosos resíduos do passado no seio do corpo de funcionários estatais. [...] Uma discrição semelhante foi usada pelo governo ao apoiar o movimento da reforma universitária: não obstante os termos extremistas empregados por alguns dirigentes, o governo acreditava poder utilizar esse movimento para pôr fim ao predomínio dos elementos da aristocracia conservadora na universidade. O radicalismo, ao mesmo tempo em que encorajava as tendências renovadoras moderadas, das quais se esperava uma diminuição da influência dos grupos conservadores sobre a vida nacional, lutava energicamente e muitas vezes com brutalidade contra qualquer atitude na qual se pudesse entrever uma ameaça direta ou indireta à ordem social (DONGHI, 2005, p. 195-196).

Neste contexto, a polícia argentina, a mando da UCR, reprimiu violentamente os protestos da chamada “semana trágica”, em 1919, sob a alegação que dirigentes sindicais socialistas e comunistas queriam instaurar um “regime soviético em Buenos Aires” (DONGHI, 2005, p. 196). De qualquer maneira, cisão entre projetos políticos presentes no interior e na capital, conforme relatado por Sarmiento (1845), ainda se faziam presentes em pleno alvorecer do século XX. Em relação às universidades, às vésperas do levante de 1918, o sistema universitário argentino era composto por três universidades nacionais, Córdoba, Buenos Aires e La Plata; e duas provinciais, localizadas em Santa Fe e Tucumán (TÜNNERMANN, 1996; 1998). O quadro estrutural pode ser traduzido em dois campos: de um lado, o ensino jesuítico, representado em universidades do interior com teses oligárquicas e eclesiais; por outro, os valores do radicalismo, partidários de uma reforma liberal.

No plano intelectual, Hale (2015) destaca a fusão e as divergências de teses positivistas, republicanas, liberais e socialistas que disputavam a hegemonia dos novos tempos. José Ingenieros, professor e intelectual argentino, talvez possa ser considerado a expressão das ideias em disputa no levante de Córdoba. De acordo com Ingenieros (1920), a universidade deveria tornar-se “um instrumento de ação social”, cuja sua função deve estar a serviço da sociedade. Para ele, a nova universidade deve acentuar “definitivamente o predomínio dos métodos científicos modernos sobre os dogmatismos dialéticos medievais” (INGENIEROS, 1920, p. 69). A educação assim, ao invés de ser restrita à eruditos e às classes superiores, deveria se tornar um elemento “para a elevação intelectual e técnica de todo o povo” (INGENIEROS, 1920, p. 79). Assim, a renovação do ensino superior latino-americano, deve promover um...

novo ideal que se manifesta como tendência de aumentar a função social da cultura, que não deve ser considerada como um luxo, para entreter ociosos, senão um instrumento capaz de aumentar o bem-estar dos homens sobre o planeta que habitam (INGENIEROS, 1920, p. 78).

Aníbal Ponce (1926), pensador marxista argentino, destaca a contribuição de Ingenieros para o levante de Córdoba. Segundo ele, o movimento desencadeado pelos estudantes em 1918, e apoiado por trabalhadores e parte da intelectualidade do Prata, foi capaz de abalar as estruturas educacionais. No programa dos estudantes, constava a necessidade de reverter a mentalidade “anacrônica” de Córdoba, lugar símbolo da “dominação monárquica e monástica” em pleno século XX. O documento reivindicatório também evocava a construção de universidades ligadas aos novos valores científicos modernos, onde em Córdoba até então “a ciência frente a essas casas mudas e fechadas, passa silenciosa ou entra mutilada e grotesca no serviço burocrático”. Em relação aos docentes, os estudantes criticaram “o direito divino do professorado universitário”, sendo que nas cátedras são perpetuadas uma “distância olímpica” em relação às demandas dos discentes. Não menos importante, o documento também questionava a autoridade dos professores, onde em um ambiente universitário o processo de ensino e aprendizagem não se “exercita mandando, mas sugerindo e amando: ensinando”. Para eles, “toda a educação é uma longa obra de amor aos que aprendem” (MANIFESTO DE CÓRDOBA, 1918).

O estalo do chicote só pode atestar o silêncio dos inconscientes e dos covardes. A única atitude silenciosa, que cabe em um instituto de ciência é a do que escuta uma verdade ou a do que experimenta para acreditar ou comprová-la. Por isso queremos arrancar na raiz do organismo universitário o arcaico e bárbaro conceito de autoridade que nestas casas de estudo é um baluarte de absurda tirania e só serve para proteger criminalmente a falsa dignidade e a falsa competência (MANIFESTO DE CÓRDOBA, 1918 - tradução do autor).

Neste sentido, o levante estudantil colocava como debate central a tirania e os autoritarismos presentes na universidade. Mais do que isso, questionando as estruturas de poder do sistema universitário, os estudantes, ao ocuparem os espaços administrativos, questionam, na verdade, todo o modelo do ensino superior no continente. “Sabemos que nossas verdades são de todo o continente”, bradavam os cordobeses, fazendo um chamado para toda a América Latina. De qualquer maneira, cabe ressaltar que no próprio documento os estudantes classificam as ideias como liberais. Nesta perspectiva, a reforma proposta, “sinceramente liberal”, questionava a tendência do dogmatismo e os arcaísmos presentes nos currículos e nos diversos níveis universitários, fazendo assim “a universidade distante da ciência e das disciplinas modernas” (MANIFESTO DE CÓRDOBA, 1918).

Outro elemento exigido pelos manifestantes foi a implementação de estruturas democráticas nos órgãos colegiados da universidade. Para eles, os estudantes deveriam participar das eleições internas, no sentido de “intervir no governo de sua própria casa”. Do mesmo modo, exigiam que fosse reconhecido o direito de exteriorizar esse pensamento próprio nos corpos universitários por meio de seus representantes (MANIFESTO DE CÓRDOBA, 1918). Ponce (1926) sinaliza para a radicalidade gestada pelo movimento estudantil:

A reforma universitária, iniciada como um movimento de protesto contra uma escola envelhecida, transformou-se rapidamente em uma verdadeira revolução estudantil (maio 1918). Uma nova geração iniciava a vida proclamando bem alto sua inquietação renovadora, e o país inteiro, preocupado com outras coisas, sentiu com o assombro seu poder e sua força. Entre debates apaixonados, despertados pelo jornalismo e aproveitado pelos políticos, a juventude universitária de Córdoba tomava o mais firme reduto da reação conservadora (PONCE, 1926, p. 88).

O manifesto assinado por Enrique F. Barros, Horacio Valdés, Ismael C. Bordabehere (presidentes) e Gumersindo Sayago; Alfredo Castellanos; Luis M. Méndez; Jorge L. Bazante; Ceferino Garzón Maceda; Julio Molina; Carlos Suárez Pinto; Emilio R. Biagosh; Angel J. Nigro; Natalio J. Saibene; Antonio Medina Allendee Ernesto Garzón catalisava os valores da sociedade argentina em transformação no século XX. De acordo com Hale (2015), a democracia liberal na política argentina e o novo idealismo dos estudantes de convergiam para a edificação da reforma da universidade. E não apenas em solo argentino. Os valores expressos em tal cidade interiorana iriam atravessar fronteiras e percorrer os rincões da América Latina (PORTANTIERO, 1978). Para Hale (2015, p. 395) a discussão sobre universidades populares, por exemplo, tomará corpo na década de 1920 expressando o ideário dos estudantes argentinos. Leher (2008, p. 54) destaca como o movimento de Córdoba expressava uma grande difusão de valores que estavam em disputas no interior do levante. Segundo ele, “liberais, positivistas, socialistas, anarquistas, anti-imperialistas de distintos matizes disputaram o caráter do movimento reformista”. Como traço convergente, a defesa da laicidade que atravessa todo o documento formulado pelos estudantes.

O LEGADO DE CÓRDOBA PARA A AMÉRICA LATINA: A FUNDAÇÃO DA NOVA UNIVERSIDADE LATINO-AMERICANA E OS PROTESTOS ESTUDANTIS

Na região do Prata, reformas universitárias foram concebidas na Universidade de Buenos Aires e na Universidade de La Plata. Dez anos mais tarde, em 1929, no Uruguai, fundou-se a Federação Estudantil Universitária Uruguaia (FEUU), entidade pertencente ao movimento estudantil que colocara no centro do debate político a participação direta dos estudantes nos órgãos de governança das escolas e universidades (FERRARO; DAL RI, 2012). A democratização do acesso ao ensino superior e a participação estudantil também foram fonte de discussões no Chile e no Peru. Em 1921, ocorreu na Cidade do México o Congresso Internacional dos Estudantes para se pensar os rumos universitários. Em pauta: autonomia e democratização universitária. Assim, a insurgência estudantil de Córdoba abriu o espaço reivindicando democracia na gestão universitária e autonomia perante o poder religioso. O ineditismo do motim de Córdoba teria afluentes em outras regiões. José Carlos Mariátegui (2010, p. 129), destaca a importância da luta dos estudantes de Córdoba para o “nascimento de uma nova geração latino-americana” e formação do movimento estudantil no subcontinente.

No Peru, sob o governo de Augusto Leguía, estudantes apoiaram seu governo por considerá-lo “o professor da juventude” (SOLANO, 1998). As demandas estudantis, como as de Córdoba, foram atendidas e aprovou-se uma nova lei universitária. A Universidade de Lima foi reformada tomando como princípio a maior participação estudantil. No entanto, cabe salientar que governo de Leguía era expressão da burguesia interna peruana aliada ao imperialismo e ao clero. Em 1923, por exemplo, o governo reprimiu uma mobilização estudantil matando dois estudantes e cerceando as reformas concebidas (FERRARO; DAL RI, 2012). De todo modo, em sinergia com as concepções argentinas, Mariátegui (2010) menciona o programa desenvolvido pelos estudantes peruanos na década de 1920 estabelecendo os seguintes princípios:

defesa da autonomia universitária; participação dos estudantes na direção e orientação de suas respectivas universidades ou escolas especiais; direito de voto dos estudantes na eleição dos reitores das universidades; voto de honra dos estudantes no provisionamento das cátedras; incorporação à universidade dos valores extrauniversitários; socialização da cultura e universidades populares (MARIÁTEGUI, 2010, p. 135).

No Chile, estudantes também exigiram uma reforma democratizante para o ensino. No entanto, ao apoiarem o candidato liberal Arturo Alessandri, os discentes tiveram seu sonho frustrado, uma vez que o novo presidente fechara a possibilidade de uma reforma universitária mais abrangente (SOLANO, 1998; FERRARO; DAL RI, 2012). De todo modo, a Federação dos Estudantes Chilenos marcava sua posição em defesa da autonomia da universidade, a favor da reforma do sistema docente, pela revisão dos métodos e dos conteúdos dos estudos e, ao mesmo tempo, sendo favorável à extensão universitária (SEGUNDA CAMPAÑA EN CHILE, 1922).

Em Cuba, durante o ano de 1923, estudantes da ilha apresentaram a seguinte pauta de reivindicações: “a) uma verdadeira democracia universitária; b) uma verdadeira renovação pedagógica e cientifica e c) uma verdadeira popularização de ensino” (MARIÁTEGUI, 2010, p. 135). De qualquer maneira, Julio Antonio Mella, fundador do primeiro Partido Comunista Cubano, questionara os levantes estudantis alegando que esses movimentos só poderiam obter êxito em seu programa caso estivessem conjugados com processos revolucionários desencadeados pelas classes trabalhadoras. Ou seja, para Mella (1925) a democratização da universidade só seria possível dentro dos marcos de uma revolução social.

¿Puede ser un hecho la reforma universitaria? Vemos muchas dificultades se implanten totalmente. Para un cambio radical, de acuerdo con las bases reformistas, es necesario el concurso del gobierno. ¿Es capaz un gobierno de los que hoy tiene América en casi todas sus naciones de abrazar íntima‐ mente los principios de la reforma universitaria? Afirmamos que es imposible. ¿Puede la juventud universitaria imponer ella, de por sí, los principios nuevos en las universidades? En algunas de sus partes sí, pero en otras no. En lo que a Cuba se refiere es necesario primero una revolución social para hacer una revolución universitaria (MELLA, 1925, p. 148).

Entretanto, percebe-se os ecos de Córdoba na formação da liga anticlerical de Cuba (1922), no programa da Federação de Estudantes de Cuba (1922/23) e na liga anti-imperialista das Américas, além das teses antieclesiásticas e simpáticas à revolução de russa presentes no primeiro Partido Comunista Cubano, fundado em 1925 por estudantes como o próprio Mella e o pensador marxista Carlos Baliño. A Universidade Popular José Martí, fundada em 1923, e dirigida por Mella, talvez seja a maior expressão desse projeto de uma universidade destinada aos setores populares, cujo objetivo era aproximar docentes e discentes em busca de relações solidárias e iguais entre todos os cidadãos cubanos (MARTÍN SABINA, 2008). Juan Carlos Portantiero (1978) aponta para os reflexos da Reforma de Córdoba na geração cubana que formaria o movimento 26 de julho, principal braço da Revolução Cubana nos anos 1950, composto, em grande medida, por estudantes da Universidade de Havana.

Na Colômbia, os estudantes, em seu programa de 1924, pregavam uma organização universitária assentada nas bases da independência, da participação dos estudantes na gestão acadêmica e em novos métodos de trabalho (MARIÁTEGUI, 2010). Carlos Pellicer e Germán Arciniegas ajudam a construir a Federação Colombiana de Estudantes (FEU), que até os dias de hoje defende a liberdade de cátedra, a excelência acadêmica e um conhecimento científico entendido como um direito, e não como um serviço ou uma mercadoria. Em suma, pode-se dizer que o movimento desencadeado em Córdoba formou as bases daquela geração estudantil que iria se rebelar novamente nos anos 1960 (MONCAYO, 2008). Apesar das conjunturas específicas, o grito de Córdoba chegaria assim à Paris, Praga, México, Brasil, Uruguai, Estados Unidos, Vietnã, Alemanha, Itália e ao continente africano, onde os estudantes tomaram às ruas em 1968, fazendo um chamado por justiça e igualdade social.

O MANIFESTO DOS ESTUDANTES BRASILEIROS EM DEFESA DOS VALORES DE CÓRDOBA: OS ECOS DA REFORMA E A CHEGADA TARDIA AO BRASIL

Ao contrário da América Espanhola, onde as primeiras universidades apareceram durante o período colonial, no Brasil as primeiras universidades só vieram tardiamente no século XX. As instituições de ensino superior até então apresentavam poucos cursos, em especial, medicina e direito, e serviam para a manutenção e formação das frações de classes dominantes brasileiras. Dessa forma, as faculdades do século XIX seriam incorporadas nas primeiras universidades brasileiras. Na região norte, durante o primeiro ciclo da borracha, a Escola Universitária Livre de Manaus, edificada em 1909, formou o embrião da atual Universidade Federal do Amazonas (UFAM), denominada na época como Universidade de Manaus. Em São Paulo, uma das principais regiões econômicas do país, ao lado do Rio de Janeiro, a USP só surgia em 1934, como a união da recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) com as já existentes Escola Politécnica de São Paulo, Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz", Faculdade de Medicina, Faculdade de Direito e Faculdade de Farmácia e Odontologia (CAMPOS, 2004). Criada em um contexto de revés do levante Constitucionalista de 1932, contra Getúlio Vargas, o governo de São Paulo viu-se diante da necessidade de formar elites ilustradas, capazes de contribuir para o aperfeiçoamento das instituições, dos governos e, consequentemente, para a melhoria do país. Contando com o apoio, inclusive, de professores estrangeiros, como Claude Lévi-Strauss, Fernand Braudel, Roger Bastide, Donald Pierson, Pierre Monbeig e Herbert Baldus a Universidade de São Paulo nasceria como polo da ciência moderna no país.

No entanto, será na capital do país da época, no Rio de Janeiro, que observaremos os efeitos e as heranças deixadas pelos estudantes argentinos. Criada em 07 de setembro de 1920, por meio do Decreto 14.343, promulgado pelo então presidente Epitácio Pessoa, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) também reunia as antigas faculdades dos primeiros cursos de ensinos superiores do Brasil, aglutinando a Faculdade Nacional de Medicina, a Faculdade Nacional de Direito, a Escola Nacional de Belas Artes e a Faculdade Nacional de Filosofia. Em matéria do movimento estudantil, será exatamente no Rio de Janeiro que os discentes Djacir Meneges, José Bruno Lobo, José Decusati, Francisco Lobo e Firuso Pereyra da Silva promoverão, em 1929, um manifesto saudando os valores libertários dos reformistas de Córdoba. Resgatando a contribuição dos estudantes brasileiros desde o período da independência, com a participação de teses republicanas, o manifesto do Rio de Janeiro se tornou cerce para compreensão das reformas universitárias, influenciadas por elementos domésticos, regionais e internacionais, que vieram à tona no Brasil a partir do século XX. Promovido em 1928, após dez anos do levante argentino, o documento sinaliza pra um modelo universitário autoritário que castra “as inteligências dos alunos em nome da ortodoxia”. Segundo os estudantes cariocas, os espaços do ensino superior são tomados por uma “cultura enclausurada e anacrônica”, onde os “governantes eternizam a estagnação burocrática e escolástica na educação superior” (MANIFIESTO DE LOS ESTUDIANTES BRASILEÑOS DE RÍO DE JANEIRO, 1928). Em contraposição aos valores de uma universidade medieval, os estudantes pontuam os seguintes postulados:

a) La autonomía didáctica y administrativa de las Universidades, lo que significa eliminación de los influjos políticos dentro del ambiente estudiantil, que desvirtúa e impide la elección criteriosa de los docentes; b) Extensión universitaria; la comunicación amplia y directa con la inmensa masa trabajadora, imposibilitada de salvar las vallas onerosas de tasas y tributos absurdos que convierten los establecimientos superiores en monopolio de las clases privilegiadas: c) Exclaustración de la enseñanza (corolario inevitable); d) Separación de las graduaciones científicas de los títulos de habilitación profesional; e) Participación de los estudiantes en la dirección y orientación de las Universidades, consejos directivos y escuelas especiales; f) Incorporación a la Universidad de los valores extra-universitarios„ g) Creación de nuevas cátedras que pongan a la juventud al nivel de las nuevas corrientes del pensamiento contemporáneo„ h) Estrechamiento de las relaciones entre estudiantes y maestros de la América Latina, orientando esa mentalidad nueva, al ejemplo de la Internacional del magisterio chileno, en el sentido de abrir los ojos a las generaciones nuevas sobre los problemas sociales, poniéndolas en contacto con las fuerzas vivas que los determinan (MANIFIESTO DE LOS ESTUDIANTES BRASILEÑOS DE RÍO DE JANEIRO, 1928).

O manifesto ainda reivindica o cumprimento da função social das universidades, e saúda o heroísmo dos estudantes argentinos e chilenos que encaparam as lutas pelas reformas universitárias. Entretanto, somente com a criação da União Nacional dos Estudantes (UNE), tardiamente, iniciou-se a incorporação dos elementos evocados pela Reforma Universitária de Córdoba. Criada no contexto da Era Vargas, a UNE denunciará as arbitrariedades do Estado Novo. Ao mesmo tempo, a UNE também tentava arregimentar forças para alavancar transformações no sistema de ensino, pautando a necessidade uma reforma educacional, que incluía, entre outras medidas: soluções para os problemas econômicos e sociais dos discentes; reforma de todos os níveis da educação brasileira para um modelo integrado; “reforma universitária; seleção de professores por concursos públicos; e eleição de reitores e diretores das escolas pelos corpos docente e discente, conjuntamente representados no Conselho Universitário” (FÁVERO, 2009, p. 27 apud SILVA DE CAMARGO, 2018, p. 114).

As reformas de Gustavo Capenema, de 1942, deixariam marca profundas e duradouras criando modalidades de um sistema de ensino fragmentado, onde as propostas do ensino industrial e técnico estariam descoladas dos demais campos de ensino, alguns restritos a uma elite reduzida. Neste contexto, surge o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) e o Instituto Nacional de Serviços Pedagógicos (INEP). No ensino superior, Anísio Teixeira, influenciado pelos debates da Escola Nova, ajudará a construir o projeto da Universidade do Distrito Federal (UDF), de 1935, localizada no Rio de Janeiro. Para Anísio Teixeira:

A universidade deveria ter o papel de destruir o isolamento; por meio da socialização do saber e de sua aquisição, formar o profissional para atuar em sociedade; alargar a mente humana, transmitindo o saber; desenvolver o saber humano e não apenas reproduzi-lo, contribuindo para a formação da cultura nacional (TEIXEIRA, 1988, p. 18).

Em suma, para Anísio Teixeira a universidade deve estar à serviço do desenvolvimento econômico e social do país. Apesar do documento dos pioneiros da Escola Nova (1932) não fazer uma alusão direta à reforma de Córdoba, percebe-se a tentativa de superação de um modelo escolar tradicional para a emergência de valores modernos. Contudo, o documento cita, “enquanto no México, no Uruguai, na Argentina e no Chile, para só falar na América espanhola, já se operavam transformações profundas no aparelho educacional”, o sistema educacional brasileiro permanecia enrijecido nas velhas estruturas tradicionais (MANIFESTO DOS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA, 1932, p. 02). No entanto, somente a partir da década de 1960, num contexto de industrialização e consolidação da nova capital, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira se envolverão no projeto de formulação da Universidade de Brasília (UNB), criada em 1961/62, em meio à discussão sobre a reforma universitária nacional, que ganharia maior magnitude e maiores propostas durante o governo João Goulart. Darcy Ribeiro, inclusive, comprometido com um projeto de integração cultural regional, embora fosse um defensor de um projeto nacionalista, estava atento às heranças deixadas pelos estudantes de Córdoba. Na promoção de textos datados dos anos 1960, durante seu período de pós-ministro da educação, com a deflagração do golpe, e o consequente exilio, a partir de 1964, Darcy Ribeiro (1966; 1969) dedicou algumas páginas aos estudantes e ao movimento estudantil argentino, destacando o caso da Universidade de Córdoba como exemplo para a autonomia e a democratização universitária nos tempos atuais.

Diversas alterações fundamentais na organização e no funcionamento das universidades exigem hoje novas soluções. É o caso, por exemplo, da seleção do magistério e da organização da carreira docente que não pode ser resolvida através de concursos ou com renovações quinquenais de mandatos. É o caso também da avaliação de aprendizagem que não se soluciona com mesas examinadoras permanentes, principalmente quando convertem universidade numa máquina de exames, em prejuízo de suas próprias funções. A democratização da universidade através do ensino gratuito e de livre ingresso dos que terminam os cursos secundários também necessita ser reexaminada diante da evidente insuficiência destes procedimentos quando não são complementados por outros. Tudo isso indica a necessidade imperativa de rever o envelhecido ideário reformista e substituí-lo por um projeto de revolução institucional da vida universitária que tenha para a geração atual, a significação do ‘Manifesto de Córdoba’ teve nos últimos cinquenta anos (RIBEIRO, 1969, p. 115).

Do ponto de vista jurídico, as discussões no Congresso Nacional giravam em torno da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), aprovada somente em 1961; mas debatida desde o início da década de 1950. A UNE, por exemplo, colocou-se favorável às mobilizações em defesa educação pública, gratuita e de qualidade. De qualquer maneira, conforme destacado por múltiplos autores (FERNANDES, 1975; FÁVERO, 2009; LEHER, 2008 e SILVA DE CAMARGO, 2018), os ecos da Reforma Universitária de Córdoba chegaram ao Brasil, de maneira orgânica, somente nos anos 1950, quando surgem as primeiras mobilizações em torno da reforma universitária. De acordo com Fávero (2009) “para a UNE, a luta pela reforma universitária começa de forma sistemática, em 1957, com o I Seminário de Nacional de Reforma do Ensino, promovido por essa entidade”. No início dos 1960, a mesma UNE realizou, na Bahia, o I Seminário Latino-Americano de Reforma e Democratização do Ensino Superior, que contou com a presença de 14 delegações de estudantes da América Latina, onde, finalmente, ocorreu a tomada de consciência da necessidade da reforma universitária como luta pela democratização da universidade (FÁVERO, 2009, p. 40). Leher (2008), por sua vez, em termos convergentes, pontua o caráter tardio das influências de Córdoba, onde:

no Brasil, é possível encontrar a presença de ecos de Córdoba no movimento de reforma universitária brasileiro que se ampliou no início dos anos sessenta, havendo referências explícitas a ele no I Seminário Nacional de Reforma Universitária, realizado pela UNE, em 1961, em Salvador, Bahia (LEHER, 2008, p. 63).

Com os desdobramentos deste congresso, a luta pela reforma universitária brasileira sinalizara diretamente para os valores de Córdoba. De acordo com Fávero (2009), a “Declaração da Bahia”, evidencia os anseios do movimento estudantil brasileiro em prol democratização do ensino superior. Em tal documento, consta também um diagnóstico e soluções a serem concebidas no sentido de:

a) autonomia universitária, vista sob o tríplice aspecto-didático, administrativo e financeiro; b) regime de trabalho dos docentes, propondo a adoção do tempo integral; c) melhoria da qualidade dos professores; d) participação do corpo docente, discente e de grupos de ex-alunos profissionais, por meio de um critério de proporcionalidade, na administração da universidade; e) não reeleição, por mais de um período, dos reitores das universidades e dos diretores das faculdades; f) ampliação do número de vagas nas escolas públicas; g) elaboração de currículos e programas em consonância com o desenvolvimento do país e ajustados às peculiaridades regionais; h) concentração das cadeiras (assinaturas) básicas sempre nas duas primeiras séries do curso; i) descentralização da elaboração dos currículos e programas, uma vez que fixadas as diretrizes gerais (FÁVERO, 2009, p. 117-161 apud SILVA DE CAMARGO, 2018, p. 116).

Dessa forma, percebe-se a influência do movimento estudantil brasileiro conectado com os princípios reivindicados pelos estudantes latino-americanos. Mesmo que de forma tardia, observa-se que a hipótese da influência de Córdoba, no debate político educacional, se fez presente nas obras de autores como Darcy Ribeiro e também nas mobilizações da UNE. Além disso, Silva de Camargo (2018) defende a tese que a criação da Universidade de Brasília, no início da década de 1960, é fruto das contribuições de Córdoba. Paulo Freire (2003; 2013), embora nada tenha escrito diretamente sobre Córdoba (surpreendentemente!), formulou sua pedagogia do oprimido em bases dialógicas, pauta dos estudantes argentinos em meio aos protestos de 19181. No campo marxista, Saviani (2008), por exemplo, pouco escreveu sobre os efeitos de Córdoba para a pedagogia brasileira. Já Florestan Fernandes (1975, p. 158), no cerne sobre o debate da reforma universitária do Brasil, sinalizou diretamente para as contribuições argentinas dadas na década de 1920. De qualquer maneira, enfatizou certos limites de correntes estudantis liberais, onde não é possível “mudar a universidade sem mudar a sociedade”.

Ainda nesta perspectiva sobre os pedagogos brasileiros, se faz necessário aprofundar as pesquisas para a mensuração dos valores da reforma de Córdoba na elaboração do manifesto dos pioneiros da educação nova. Influências norte-americanas e europeias já foram relatas por diversos pesquisadores do campo pedagógico. O próprio Anísio Teixeira reconhece a participação tais influências para o modelo de ensino superior no Brasil, chegando a destacar o papel da Universidade de Humboldt, na Alemanha, e também as concepções francesas para as estruturas curriculares dos centros de ensino superior (TEIXEIRA, 1964). “De modo geral, a América do Sul conservou-se mais ligada a padrões e formas europeias de vida, enquanto a América do Norte avançou para uma experiência cultural nova”, alegou Anísio durante o contexto da edificação da Aliança para o Progresso (TEIXEIRA, 1960, p. 01). Além disso, durante sua viagem aos Estados Unidos, Anísio toma contato com as ideias de John Dewey, sinalizando para elementos positivos de sua pedagogia e do modelo estadunidense. Não obstante, a concepção de Teixeira sempre esteve ligada ao desenvolvimento das estruturas educacionais a partir de vertentes dos elementos culturais nacionais, forjadas na ideia de uma educação integral e democrática (TEIXEIRA, 1969). No entanto, diagnosticar reflexos e os efeitos da Reforma de Córdoba para o Brasil parece ser um grande desafio destinado à pedagogos e as ciências sociais de forma geral. Examinar os documentos e as obras dos autores da Escola Nova e, sobretudo, suas relações com o ideário de Córdoba parece se tornar um campo de pesquisa fecundo para novas investigações.

Considerações finais

A rebelião de Córdoba é um divisor de águas na formação da nova Universidade Latino-Americana. A partir das manifestações estudantis argentinas, pautas de autonomia, modernização e democratização das estruturas do ensino superior vieram à tona no sentido de romper com os resquícios do passado colonial, ainda tão presentes, de forma anacrônica, em algumas regiões interioranas do subcontinente em pleno século XX. Freitas Neto (2011, p. 67) sintetiza as propostas evocadas nos seguintes pontos:

  1. coparticipação dos estudantes na estrutura administrativa;

  2. participação livre nas aulas; periodicidade definida e professorado livre das cátedras;

  3. caráter público das sessões e instâncias administrativas;

  4. extensão da Universidade para além dos seus limites e difusão da cultura universitária;

  5. assistência social aos estudantes;

  6. autonomia universitária;

  7. universidade aberta ao povo

Para a América Latina, a Reforma de Córdoba simbolizou o primeiro levante, no âmbito educacional, que permitiu a instauração de protestos semelhantes no Chile, Cuba, Uruguai e Peru. Neste sentido, as bandeiras exigidas pelos estudantes argentinos ajudaram a construir o movimento estudantil latino-americano nos anos seguintes. Não obstante, vale a pena sinalizar que tais transformações estão inseridas em um contexto mais amplo de transformações econômicas e sociais de âmbito regional e internacional. O cenário após a I Guerra Mundial, com a ascensão da Revolução Russa e o desfecho na Revolução Mexicana, alteraram profundamente as correlações de forças em diversas partes do globo. Novas expressões políticas emergiriam. Mesmo idealizada a partir de valores liberais, autores marxistas como Mariátegui e Aníbal Ponce, saudaram a valentia e a coragem dos estudantes argentinos. Julio Mella, apesar das críticas, considerando os limites do movimento estudantil argentino, também considerou importante a ascensão em Córdoba para a superação de um modelo universitário arcaico e, consequentemente, para a construção de universidades mais populares na região, amparadas nos anseios das classes trabalhadoras. É a partir dessa heterogeneidade de influências, do liberalismo ao marxismo, passando por teses republicanas, positivistas e por certas vertentes do anarquismo, que os estudantes argentinos colocaram fim as estruturas da última universidade “de mentalidade colonial” no país. O elemento convergente de teorias tão difusas e, acima de tudo, em disputa no interior do movimento, se encontra no forte viés antieclesiástico, contrário às doutrinas medievais e coloniais, tão ancoradas nas primeiras universidades latino-americanas, construídas a partir do século XVI. Assim, a potencialidade de Córdoba abriu o caminho para a discussão das reformas universitárias e a construção dos movimentos estudantis articulados na década de 1920.

No Brasil, embora as discussões do movimento da “Escola Nova” pareçam ter influências de doutrinas dos EUA e da Europa, cabe-se perguntar sobre o papel do levante argentino para a conjuntura educacional brasileira na primeira metade do século XX. O manifesto dos estudantes brasileiros de 1928 coloca em evidência um olhar atento do movimento estudantil nacional frente aos ímpetos formulados no país vizinho. Entretanto, de chegada tardia, os reflexos de Córdoba no Brasil podem ser observados efetivamente na construção da plataforma política da UNE e, ao mesmo tempo, a partir de visão de Darcy Ribeiro e Florestan Fernandes sobre a política universitária. O debate sobre a reforma universitária, nos anos 1960, parece ser fortemente influenciado pelas premissas de autonomia, participação e democratização das universidades. Por outro lado, Paulo Freire e Anísio Teixeira parecem ter desconsiderado a relevância do levante argentino. De todo modo, cabe destacar que a educação na América Latina sempre foi fortemente delineada por um projeto de colonialidade do poder, instaurado a partir de matrizes europeias e estadunidenses (QUIJANO, 2000). Walsh (2013) chamou esse processo de colonização do saber - fenômeno fortemente vivenciado pelos países latino-americanos desde o início da modernidade, com a introdução de saberes etnocêntricos que subjugavam o conhecimento das populações ancestrais e as experiências das classes populares.

O pioneirismo de Córdoba sinalizou para a construção de uma universidade alinhada com as demandas sociais. Mais do que isso, pavimentou o caminho para as reformas universitárias latino-americanas e, de sobremaneira, forjou o caminho para o movimento estudantil na região a partir do século XX. O legado de Córdoba, cem anos depois, parece vivo para a construção de uma universidade soberana, democrática e como um espaço de liberdade. Em tempos onde projetos de “escola sem partido”2 são ventilados na conjuntura nacional, vale a pena retomar os valores e o ideário democratizante dos estudantes de Córdoba. Um século depois talvez seja o caso de reverter o a primeira frase do glorioso manifesto argentino: nenhuma vergonha a mais e nenhuma liberdade a menos!

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* Artigo vinculado ao projeto de pesquisa intitulado “A efemeridade docente no século XXI”, do Centro Universitário Senac - Santo Amaro.

1“A autoridade em um ambiente de estudantes, não se exercita mandando, mas sim seguindo e amando: ensinando”, alega o Manifesto de 1918.

2Movimento político dirigido por setores reacionários da direita brasileira que pretendem censurar o debate crítico das escolas e universidades. Para uma melhor análise das dimensões ideológicas desse projeto, ver Frigotto (2017).

Recebido: 24 de Maio de 2020; Aceito: 07 de Novembro de 2020

E-mail: gustavo22menon@gmail.com

GUSTAVO MENON é pós-doutorando em Direitos Humanos pela Universidade de Salamanca (USAL-Espanha) e doutor em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina - PROLAM/USP. Graduado e Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Pesquisador do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais- NEILS/PUC/SP. Docente na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP) e na Faculdade de Guarulhos.

Editora responsável: Tatiane de Freitas Ermel

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