SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25A FORMAÇÃO CRISTÃ E O DIÁLOGO DOS PRIMEIROS PADRES COM O PAGANISMO DE SÊNECAHENRI PIÉRON, ROBERTO MANGE E A HISTÓRIA DA PSICOTÉCNICA NO BRASIL: REPRESENTAÇÕES EM DISPUTA índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


História da Educação

versão impressa ISSN 1414-3518versão On-line ISSN 2236-3459

Hist. Educ. vol.25  Santa Maria  2021  Epub 30-Nov-2021

https://doi.org/10.1590/2236-3459/102325 

Artigo

A ESCOLARIZAÇÃO DO ENSINO DE CIÊNCIAS NA EDUCAÇÃO PRIMÁRIA NO PARANÁ: ENTRE O DESENCANTAMENTO DO MUNDO E O UTILITARISMO, MATIZES DE EDUCAÇÃO MORAL

Sidmar dos Santos Meurer* 
http://orcid.org/0000-0001-6394-4859

* Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba/PR, Brasil.


Resumo

O texto analisa o processo de escolarização do que se denominou “ensino científico” na educação primária no Estado do Paraná (Brasil), ao longo das três primeiras décadas do século XX. A partir da ótica da história do currículo, analisa as interações entre enunciados a favor da sua introdução e o aparecimento da rubrica Sciencias Physicas e Naturaes no programa de estudos. Como fontes, mobiliza projetos de reforma do ensino, a imprensa pedagógica, além de documentos normativos, relatórios oficiais e programas de ensino. A análise permite identificar dois momentos na trajetória da respectiva matéria escolar. O primeiro, a partir da primeira década do século XX, quando o elenco dos conteúdos a serem ensinados ganham menos atenção do que a assimilação de uma disciplina mental e comportamental. O segundo, por volta da década de 1920, quando se destaca a utilidade dos conteúdos em relação com os costumes laborais e higiênicos.

Palavras-chave: ensino de ciências; história do currículo; reformas educacionais; história das sensibilidades

Abstract

This text analyzes the schooling process as to what was called “scientific teaching” in primary education in the state of Paraná (Brazil), over the first three decades of the XX century. From the perspective of the curriculum history, it analyzes interactions between arguments in favor of its introduction and the emergence of the subject Physical and Natural Sciences in the study programs. As sources, it mobilizes educational reform projects, the pedagogical press, as well as normative documents, official reports and teaching programs. The analysis allows identifying two moments in the path of the respective school subject. The first, as of the first decade of the XX century, when the array of the contents to be taught receives less attention than the assimilation of a mental and behavioral discipline. The second, around the 1920s, when the utility of the contents in relation to labor and hygiene habits is highlighted.

Keywords: science teaching; curriculum history; educational reforms; history of sensitivities

resumen

El texto trata del proceso de escolarización de lo que se denominó “enseñanza científica” en la educación primaria en el Estado de Paraná (Brasil), a lo largo de las tres primeras décadas del siglo XX. A partir de la óptica de la historia del currículo, analiza las interacciones entre enunciados a favor de su introducción y el aparecimiento de la rúbrica Sciencias Physicas e Naturaes en el programa de estudios. Como fuentes, moviliza proyectos de reforma de la enseñanza, prensa pedagógica, además de documentos normativos, informes oficiales y programas de enseñanza. El análisis permite identificar dos momentos en la trayectoria de la respectiva materia escolar. El primero, a partir de la primera década del siglo XX, cuando los contenidos a ser enseñados ganan menos atención que la asimilación de una disciplina mental y comportamental. El segundo, alrededor de la década de 1920, cuando se destaca la utilidad de los contenidos en relación con las costumbres laborales e higiénicas.

Palabras clave: enseñanza de las ciencias; historia del currículo; reformas educativas; historia de las sensibilidades

Résumé

Le texte traite du processus de scolarisation de ce qu’on a appelé “l’enseignement scientifique” dans l’enseignement primaire dans l’état du Parana (Brésil), au cours des trois premières décennies du XXe siècle. Du point de vue de l’histoire du curriculum, il analyse les intéractions entre les énoncés en faveur de son introduction et l’apparition de la rubrique Sciences Physiques et Naturelles au programme scolaire. En tant que ressources, il mobilise des projets de réforme de l'éducation, la presse pédagogique, en plus de documents normatifs, de rapports officiels et des programmes d’enseignement. L’analyse permet d’identifier deux moments dans la trajectoire de cette matière scolaire. Le premier, à partir de la première décennie du XXe siècle, lorsque la liste des contenus à enseigner attire moins l’attention que son rôle dans l’assimilation d’une discipline mentale et comportamentale. Le second, autour des années 1920, lorsque l'utilité du contenu par rapport aux coutumes du travail et de l’hygiène a été mise en évidence.

Mots-clés: enseignement des sciences; histoire du curriculum; réformes éducatives; histoire des sensibilités

Introdução

Os processos de aparecimento e estabilização das rubricas nos currículos escolares constituem zonas privilegiadas para que se possa aprofundar a compreensão histórica sobre a ambiência e o caráter das relações que uma sociedade estabelece com seus sistemas escolares, bem como as expectativas educacionais que são projetadas sobre um componente cultural ao longo do tempo (GOODSON, 1995). Partindo dessa premissa o texto aborda o processo que denomino de escolarização do ensino de ciências, balizado pelo seu aparecimento e afirmação como rubrica nos programas para as escolas primárias no Estado do Paraná (Brasil), em uma trajetória que percorre as três primeiras décadas do século XX.

A defesa pela inclusão do ensino de ciências desponta entre um conjunto de expectativas em torno de reformar a escola primária paranaense que avançava desde o final do século XIX. Expectativas que colocavam em discussão sua organização e modo de funcionamento; sentidos e prioridades socioculturais; composição, alcance e amplitude dos saberes a serem disseminados pela escola primária. As tensões relacionadas à confecção dos programas de ensino foi um lugar para o qual muitas dessas expectativas desaguaram. Como um resultado dessa ambiência, vimos em relação ao contexto paranaense dos anos iniciais do século XX um intricado quadro de projetos e iniciativas voltadas a reformar a escola que apostaram alto na possibilidade de transformá-la por meio de mudanças nos programas de ensino. Não obstante à dinâmica própria em relação ao tema da reforma da escolarização no Paraná, marcada pela revogação de duas reformas imediatamente depois de implantadas, foi no interior desse movimento que se instituiu a matéria de Sciencias Physicas e Naturaes no programa oficial para as escolas primárias no Estado.

O texto questiona esse aparecimento até o momento de sua estabilização ou afirmação. A partir da ótica da história do currículo, analisa os enunciados a favor da introdução e da permanência dessa matéria na escolarização primária no estado, bem como o modo como foram prescritos objetivos, conteúdos, formas, métodos e materiais de ensino procurando captar as expectativas em torno da contribuição do conhecimento científico para a educação elementar. O intuito é o de captar indicadores importantes de como foram operadas seleções de valores e finalidades socioculturais.

Para tanto, como estratégia expositiva, o texto enfatiza dois momentos desse percurso. Em primeiro lugar, os argumentos que advogavam sua introdução e que estão relacionados ao aparecimento da matéria no programa de ensino, a partir da entrada no século XX até meados da década de 1910. E depois, o que considero um movimento de inflexão nos sentidos ligados à sua permanência no programa, que passa pelos objetivos e discursos legitimadores, a partir dos anos finais da década de 1910 e que vai se tornando mais nítido na década de 1920. Como fontes, foi mobilizado um conjunto de proposições voltadas à escola primária postos em circulação na imprensa pedagógica, além de projetos e outras publicações ligadas as tentativas de reformar o ensino, bem como documentos normativos, relatórios oficiais e programas de ensino. A análise do material sugere uma série de nuances relacionados à introdução do ensino de ciências no programa para a escola primária, decorrentes de divergências quanto as finalidades que eram projetadas para essa instituição educativa.

Para quais finalidades apontam os argumentos favoráveis à inclusão do ensino de ciências no programa para as escolas primárias no Paraná?

Quando Victor Ferreira do Amaral, então Diretor Geral da Instrução Pública do Estado, procurou organizar racional e gradativamente o programa estabelecido na regulamentação em vigor12, ele lamentou não poder incluir entre o conjunto das matérias para as escolas primárias algumas noções gerais de história natural, física e química, uma vez que não havia previsão legal do ensino de semelhante matéria e/ou conteúdo. Não obstante, considerava esses saberes indispensáveis à educação popular e, tão logo a lei permitisse, deveriam constar nos respectivos programas (apudSILVA, 1904).

Essa reivindicação mobilizava todo um conjunto de enunciados e argumentos que havia se formado ao redor do problema da educação elementar no debate sobre renovação educacional no Estado. Argumentação que estava acomodada em torno dos pressupostos de Herbert Spencer, principal referência em comum entre aqueles ocupados em debater a instrução pública. Esses pressupostos serviam de base para promover algumas posições estruturantes do debate educacional, entre as quais se destacam: que o problema da educação da população dizia respeito à possibilidade de equalização da difusão dos níveis iniciais do ensino pelas diferentes classes sociais e à amplitude do ensino oferecido; que a educação pressupunha uma atividade humana de maior alcance do que a mera instrução, isto é, implicava uma formação que alcançava as dimensões física, moral e intelectual (e para alguns a estética); e que a educação deveria ser realizada em bases racionais, em afinidade com as demandas e o espírito do tempo presente, isto é, em bases científicas e positivas.

A ciência se convertera em expressão de uma racionalidade superior, que estava intrinsecamente ligada ao resultado do progresso da existência humana. Além disso, o ensino em bases científicas proposto por Spencer era o principal componente a alimentar o imperativo de renovação pedagógica. A associação entre valor de utilidade e ciência produzia tensão em relação ao conteúdo da escolarização - das palavras para as coisas. Essa espécie de fundo intelectual é um dos pontos que sustentava a defesa pelo ensino científico na escola primária, a etapa de escolarização que era associada à educação popular, como o fundamento para a realização de uma disciplina do espírito (a um só tempo intelectual, moral, comportamental e estética).

Dario Vellozo, uma das principais vozes no debate a respeito da reforma educacional no estado ao longo da década de 190013, era defensor do ensino científico para a educação popular, não exatamente como uma matéria escolar, mas como uma disciplina de desenvolvimento da razão. No primeiro de uma sequência de artigos divulgados na revista A Escola14 ele escolheu uma passagem do autor francês Edmond Scherer como epígrafe e ilustração da sua argumentação.

A Sciencia, com effeito, não consiste somente em uma somma de conhecimentos que é preciso possuir; a Sciencia é, antes de tudo, o espírito scientífico, é a investigação, é o porque e o como erguidos a cada passo, é a desconfiança das ideas recebidas, é a fé na razão, é o vigor quanto às provas, é a evidência soberana da certeza (apudVELLOZO, 1907, p. 1).

Foi a perseguição a esse entendimento de educação no espírito da ciência que prevaleceu na incorporação da matéria de Sciencias Physicas e Naturaes nos programas prescritos tanto em 1907 como em 190915, as primeiras aparições da rubrica no programa oficial para a escola primária. O regulamento de 1907 incluiu um artigo específico sobre seu tratamento didático ideal.

Art. 63. Os professores deverão se esforçar por organizar pequenos museus de collecções ou objetos isolados que despertem em seus alumnos o gosto pelo estudo das sciencias physicas e naturaes, sobre as quaes lhes fará prelecções, dando-lhes as noções elementares desses conhecimentos (PARANÁ, 1907, p. 8).

Há muita coisa sintetizada nessa prescrição. Em primeiro lugar a indicação de que o ensino da matéria deveria recair sobre suas noções elementares. Também a confirmação de que o ensino desses conhecimentos tinha como expectativa a formação de um conjunto de atitudes e procedimentos por parte dos estudantes. No trecho em questão essa expectativa encontrou a forma de expressão um tanto despretensiosa de “despertar um gosto”. E por fim, a sugestão de um modo de ensinar esses conhecimentos baseado na utilização de objetos, encorajando ainda a formação de museus e coleções nas escolas. Temos assim o que se pode caracterizar como um complexo curricular, na medida em que a prescrição indica um corpo de conteúdos de ensino, um modo de fazê-lo e um conjunto de finalidades (SACRISTÁN, 2004).

Outro artigo publicado na revista A Escola, decorrente da atuação editorial de Dario Vellozo, oferece um inventário de indícios sobre como esse complexo havia se formado. Trata-se da tradução feita por Vellozo de um trabalho atribuído à Alicia Moreau16 e intitulado A pedagogia e a escola. Vellozo apresentou o texto destacando que havia circulado na imprensa argentina, e que considerava seu conteúdo digno de “estudo e meditação por parte de quantos se interessam pelo ensino”.

O texto se estrutura na defesa da seguinte máxima:

O grupo dos conhecimentos científicos, especialmente das sciencias naturaes, deve constituir a base de todo o plano de estudos primários, secundários e moraes. [...] os que quiserem para o homem melhor futuro, os que sonharem uma sociedade differente, se fossem práticos e não poetas, dirigiriam suas vistas para a educação (MOREAU, 1906, p. 155).

Segundo a argumentação, o ensino deveria concorrer para uma dupla finalidade: “educar o individuo disciplinando-lhe o espírito”, o que permitiria seu desenvolvimento mental; e fornecer aquela “soma de conhecimentos” necessários na sua relação com o meio e com os “seus semelhantes”, capacitando-o para agir em sociedade. A autora reconhecia que a educação era a aquisição de um conjunto de conhecimentos, mas era também algo que perdura no indivíduo para além desses conhecimentos e mesmo do tempo em que está em relação com eles. O ensino das ciências deveria compor o conjunto de ensinamentos mais adequados para a realização desses fins, porque consistia em um “excelente instrumento de cultura” em seu duplo aspecto: o de “creação intelectual” e o de produção de um modo de vida comum (idem, p. 156).

Essas considerações estavam ancoradas em um conjunto de pressupostos em relação ao percurso de desenvolvimento intelectual humano, cujo processo se dirigia do “contato com o mundo externo” para a formação da mente. O primeiro elemento implicado nessa mediação seria a sensação, descrita como a “reação do organismo contra o meio, a transformação da energia em nossa substância nervosa”, através da mobilização dos sentidos. Esse era um princípio do funcionamento do psiquismo na infância, e qualquer iniciativa educacional que se afastasse desse caminho representava uma violência à natureza da vida infantil, produzindo, em consequência, efeitos antieducativos. Além disso, do cultivo da faculdade de observação decorreriam todas as outras faculdades necessárias ao espírito humano: a “imaginação”, o “senso crítico”, o “sentimento de valor”, de onde emergiria a “vida afetiva e moral” (idem, p. 158). Aspectos muito destacados por Dario Vellozo em seus escritos a respeito de finalidades educacionais.

O ensino capaz de promover o cultivo da observação era, portanto, aquele que se ancorava em coisas ou objetos e na exercitação ordenada e dirigida dos sentidos físicos em contato com eles. Isso não era, necessariamente, propriedade de uma matéria. Poderia ser feito através do ensino intuitivo de uma variedade de matérias ou por meio das lições de coisas. O resultado é que todos esses temas estavam embaralhados e a alusão às ciências físicas e naturais naquele momento mobilizava todo esse complexo temático. Portanto, podemos afirmar que o aparecimento da rubrica de Sciências Physicas e Naturaes no contexto da escolarização primária paranaense está implicado no fundo comum associado ao movimento de renovação pedagógica em marcha nos países do ocidente desde o final do século XIX (VALDEMARIN, 2004; MUNAKATA, 2012). O importante é tentarmos captar as implicações que esse fundo produzia em cada contexto.

No que diz respeito as implicações ou consequências de mobilização desse complexo temático, há outro aspecto a destacar quanto à caracterização do “ensino científico” como uma disciplina do espírito: seu lugar como base de uma educação moral que deveria se erguer fundada na razão individual e não na autoridade de outro indivíduo ou instituição. O ensino das ciências naturais, à medida que era capaz de fazer a criança estabelecer um contato com a natureza, poderia fazê-la amar, fornecendo assim uma “lição moral mais poderosa que os contos imaginados pelos autores de manuais de moral prática” (MOREAU, 1906, p. 160). Além disso, forneceria uma base poderosa capaz de habilitar em cada indivíduo o facho de consciência capaz de sustentar o florescimento da razão e assim potencializar sua capacidade de atuação social. Especialmente em Dario Vellozo, o cultivo dessa disciplina em espírito científico era elemento indispensável para atualização dos enunciados iluministas clássicos da unidade, universalidade e igualdade natural entre os homens, de onde poderiam brotar as justas e necessárias desigualdades, fruto das diferentes capacidades e vontades individuais.

O ensino em espírito científico era assim ligado à possibilidade de fundação de uma moral positiva, ou seja, que se afirmava não por coação ou coerção (através da introjeção do sentimento de medo, da culpa ou do remorso, por exemplo) mas como resultado do cultivo das qualidades individuais de julgamento e nobilitação da vontade (VELLOZO, 1909). Essa aposta em uma moral científica tinha em mira a superação do que se compreendia como uma moral dogmática de corte religioso. Seu alvo principal era a tradição educacional católica, especialmente pelo modo como incutia uma moralidade que deformava e sufocava a consciência e vontade individual.

Através de um ensino que, em contato com a natureza, permitiria ao homem reconhecer-se inscrita nela, seria possível desembaraçar-se das forças e ideias que aprisionavam os homens. Para realizar essa finalidade importava menos o rol dos conhecimentos do que uma série de atitudes e procedimentos a serem provocados com vistas a cultivar o senso de observação. Uma educação em base científica se expressaria antes pelos “resultados educativos” do que pela quantidade de conhecimentos que se poderia ensinar. Pois era perfeitamente sabido “que os conhecimentos adquiridos nessa edade não são mui duradouros, que é necessário renová-los com frequência”. No entanto, ainda que se desvanecessem os próprios conhecimentos, alguma coisa permaneceria. Em um esforço de tentar nomear esse algo que permaneceria o texto de Moreau sugeria: “o que não se perde é a orientação, a disciplina, a modalidade funcional, se assim se pode dizer, que a aprendizagem destas ciências pode dar” (1906, p. 159).

Não seria esse “resultado educativo” uma sensibilidade, no sentido do que Braghini, Munakata e Taborda de Oliveira (2017, p. 7; 46) caracterizam de “processos de subjetivação que emergem da experiência com o mundo dos objetos”, em termos de padrões ou feixes mais ou menos compartilhados de respostas que “os indivíduos produzem aos estímulos decorrentes da sua relação com o mundo físico e/ou social através dos sentidos físicos”? É significativo que a autora descreva esse resultado em termos de uma “forma”, que as sensações ajudaram a moldar, mas que ao mesmo tempo dirige os mecanismos perceptivos da criança na organização das sensações seguintes. Uma “forma” a qual os “estudos posteriores” poderiam acrescentar “conteúdos” (MOREAU, 1906, p. 159).

Inflexões e deslocamentos por ocasião da fixação do ensino de ciências nos programas para as escolas primárias paranaenses.

Um outro feixe de sentidos e finalidades para o ensino de ciências se juntou à ideia de produção de uma disciplina mental ou sensibilidade ainda no final da década de 1900, e desde então ganhou projeção no modo como esses conhecimentos passaram a figurar nos programas de ensino. Principalmente perto da década de 1920, quando a perspectiva de promoção de uma educação moral prática ou científica passou a ser combatida em nome de uma educação de restauração moral, que deveria se ancorar na recuperação dos valores da tradição da fé católica (Deus), dos deveres para com o erguimento da nação (Pátria), e da família como lugar de cultivo da vida social17. Esse entendimento estava próximo de uma perspectiva mais utilitária, no sentido que deslocava toda a ênfase para a utilidade prática dos conhecimentos em termos da possibilidade de aplicação na vida ou nas ocupações diárias.

A primeira sinalização mais visível nesse sentido esteve na lei de reforma e no Regulamento Orgânico de 1909, o qual prescreveu que as “noções rudimentares de physica, chimica e historia natural” compunham uma matéria, cujos conhecimentos deveriam ser aqueles “suficientes para suas aplicações aos principais rudimentos de hygiene e de agronomia” (PARANÁ, 1909, p. 9). Tanto a higiene quanto a agronomia ocupavam lugar de importância em relação à proposição de finalidades educacionais para a escola primária nesses anos, como saberes indispensáveis para promover um projeto de modernização social no estado.

Francisco de Azevedo Macedo que, na direção geral da instrução pública, esteve à frente da reforma do ensino de meados da década de 1910, que culminou na promulgação de um novo Código de Ensino em 191518, deu larga passagem ao sentido de educação em espírito científico ao priorizar a dimensão procedimental em um programa que organizou em 1914 - o qual perseguia de uma maneira um pouco difusa o pressuposto de lição de coisas ou pelas coisas. No amálgama que esse programa representava, já se avistava o sentido utilitário recobrindo à inclusão das lições de ensino científico19. No final daquele ano ele indicou, entre o conjunto de “inovações” que haviam sido introduzidas nas escolas paranaenses através do novo programa, as “noções de Physica, Chimica e História Natural, com aplicações uteis às artes e os ofícios, e especialmente à agricultura e à higiene” (MACEDO, 1914 apudSANTOS, 1915).

Essa perspectiva utilitária se tornou ainda mais pronunciada nas prescrições que vieram na sequência. A começar pelo Programa para o Grupo Escolar Modelo e Similares de 191720, as finalidades elencadas para o ensino de ciências são quase todas marcadas pelo apelo de sua utilidade para a realização da vida diária e para o trabalho. O resultado das definições presentes nesse programa apresenta uma espécie de combinação entre os dois sentidos que foram sendo construídos ao longo daqueles anos, de forma que ‘observação’ e ‘utilidade’ são alçados a fundamentos de realização para todos os pontos contido no programa. O conjunto formava o aspecto de síntese entre aquela acepção que evocava à dimensão mais procedimental sobre o rol dos conhecimentos, com a dimensão que valorizava sua aplicabilidade.

Por exemplo, o programa para o 1º ano listava os seguintes pontos:

1º Linguagem oral sobre galinha, vacca e peixe;

2º Linguagem oral sobre uma planta conhecida;

3º Linguagem oral sobre umas pedras;

4º Distincção entre os reinos da natureza;

5º Resumidas noções sobre os 3 estados dos corpos;

6º Idem das partes do corpo humano, a vista do natural;

7º Idem das partes da planta (PARANÁ, 1917, p. 43).

Ao lado da indicação dos temas a serem ensinados, o programa era completado pela prescrição de uma estrutura didática para seu desenvolvimento que se assentava nesses dois aspectos: o da utilidade e o de observação.

a) - fazendo os alumnos observarem;

b) - dizendo, em ordem, o que observaram;

c) - utilidade ao homem e porquê;

d) - considerações sobre o tema do ponto (ibidem).

Essa prescrição formalizava as etapas que deveriam ser percorridas para a realização do método intuitivo - observação, classificação, elaboração, abstração - (VALDEMARIN, 2004). Mas em relação à caracterização das finalidades dessa matéria, a evocação do sentido experimental do ensino não estava acima do valor de utilidade dos conteúdos ensinados, que seria deduzido da possibilidade de aplicação desses conhecimentos. Como se apreende, por exemplo, da prescrição do seguinte ponto, constante no rol de conteúdos para o 3º ano:

Das folhas, flores, fructos e sementes será dado:

a) - observação de um ramo com folhas e flores e outro com folhas e fructos; flores, folhas e fructos de varias espécies;

b) - dizendo como estão presas as folhas ao ramo;

c) - formas, cores e utilidade ao homem - medida hygienica e alimentar das folhas;

d) - formas, cores e utilidade das flores; sua consequência - o fructo;

e) - formas, cores e utilidade dos fructos (PARANÁ, 1917, p. 45).

Ao entrar a década de 1920 o ensino dos conteúdos científicos se revestiu ainda mais desse sentido utilitário. No momento em que as definições curriculares partiram o sistema de escolarização primária do Estado em um programa para as escolas isoladas e outro para os grupos escolares, o princípio de utilidade foi mobilizado na definição do rol de conhecimentos capazes de adequar o ensino dessa matéria ao meio onde a escola estivesse inserida. Esse aspecto era ainda mais marcante para o programa proposto para as escolas isoladas. Para essas escolas, que por meio das definições curriculares eram associadas ao ambiente rural, o programa proposto indicava o seguinte conjunto de tópicos a serem ensinados.

Quadro 1 - Programa de Estudos de Sciencias Physicas e Naturaes no Programa para as Escolas Isoladas do Estado em 1920. 

1º ANO. a) Explicar o que é um metal e dar exemplo dos metaes mais uteis.
b) Corpos sólidos, líquidos e gazosos.
c) A agua: agua doce ou potável, salobra, salgada, medicinal, etc.
d) Hygiene do corpo e vestuário. Limpeza das mãos, cuidados com a boca, ouvidos, olhos, etc.
e) A maleita e o amarelão. Meios de se evitar e curar essas moléstias.
f) A varíola e a necessidade da vacina.
g) Partes de um vegetal. Utilidade das plantas. Necessidade de se plantar para haver fartura. O que se deve plantar nos quintaes. As fructas, a mandioca, o feijão, o arroz, o milho.
h) Criação de suínos, galinhas, cabritos, carneiros, etc.
i) Experiencias de plantio em terreno adjacente a escola, em horas convenientes, dando o professor o exemplo do trabalho.
2º ANO. a) Recapitulação do programma do 1º anno.
b) Creação de abelhas. Importancia e utilidade do mel e da cêra.
c) O trigo e seu plantio.
d) O fabrico do pão.
e) Utilidade dos pássaros e protecção que merecem.
f) A derrubada das matas. Perigo do seu desapparecimento e, portanto, dessa riqueza insubstituível. Necessidade de se plantarem essencias florestaes. A importancia que advem do reflorestamento.
g) O plantio do linho e sua utilidade.
h) O plantio do algodão e o seu emprego.
i) A canna de assucar. Fabricação do assucar.
3º ANO. a) Recapitulação do programma do 2º anno.
b) Estudo pratico sobre o carvão de pedra.
c) O ferro, o cobre, o chumbo, o kerozene.
d) A eletricidade e suas applicações.
e) As principaes industrias pastoris, agricultura e fabris.
f) O cultivo do café, herva matte e principalmente cereaes;
g) A criação do gado.
h) A indústria dos couros.
i) O preparo da terra. Ferramentas modernas empregadas para lavrar o sólo.
j) Cuidados com os olhos e demais sentidos.
k) Principaes parasitas do couro cabelludo e da pele.
l) Hygiene das casas e dos terrenos adjacentes.

Fonte:PARANÁ (1920, s.p.).

Analisando os temas que deveriam ser ensinados ao longo do curso é perceptível que a noção de utilidade, no sentido de conhecimentos que pudessem ter uma “aplicação prática”, havia se estabelecido como o principal critério de seleção com vistas a adequar o conjunto de conhecimentos a serem ensinados às finalidades atribuídas à matéria. Um senso de atividades fim, retirada de uma realidade social idealizada, parece sobrevoar a composição do programa. Entre essas atividades fins predominavam os conhecimentos que estivessem relacionados com a possibilidade de aplicação nas atividades agrícolas e na formação de hábitos de higiene. Além disso, a realização da matéria se integrava a um senso de formação moral, em que o hábito de trabalho regular e produtivo era um valor almejado. Esse aspecto é reforçado ainda pela indicação que acompanhou o programa de estudo proposto, de que a matéria tinha como fim “despertar o amor pelas indústrias e habilitar o aluno a conhecer as moléstias e os meios de curá-las” (PARANÁ, 1920, p. 38).

Aquela indicação que predominou na primeira década do Novecentos, do ensino científico como cultivo das qualidades capazes de produzir o espírito de investigação científica como uma disciplina, em que os resultados educativos decorrentes dos componentes procedimentais (treinamento da observação e do senso julgamento) seriam mais importantes do que o valor dos conhecimentos em si, parece agora muito distante. O apelo à dimensão procedimental da matéria foi deslocado para um lugar acessório: um meio de realização eficiente do ensino, próximo ao sentido de método. Entre o conjunto de orientações para a execução do respectivo programa, a prescrição indicava que, visando a conveniência da organização do trabalho do professor, as aulas de ciências físicas e naturais poderiam ser “dadas em conjunto, a todas as classes”. Além disso, sugeria que a forma mais conveniente de ministrar esses conhecimentos era através de “palestras com alunos”: “Essas aulas não exigem grande esforço das creanças e, são por isso, chamadas aulas recreativas” (idem, p. 30).

A prescrição suspendia, mesmo que temporariamente, o princípio de seriação que era apontado como o eixo principal da reforma21. Era um reconhecimento legal que, em certas circunstâncias, o princípio da graduação do ensino poderia ser sacrificado para conveniência do trabalho do professor. Quais circunstâncias? Aquelas associadas ao ensino de matérias de menor importância ou ‘mais recreativas’. Essas prescrições sugerem uma configuração curricular em que o grau de importância do ensino de ciências é muito diferente do ensino de saberes como ler, escrever e contar, para os quais as definições reiteram uma estrutura de graduação bastante rígida, sem prerrogativas de flexibilização. Por outra parte, é também um lugar de importância muito inferior em comparação com as cogitações do começo do século em torno da realização de um tipo de ensino que tomava os conhecimentos científicos como base de toda a educação. É, enfim, um lugar de menor importância que levou a que, em muitas escolas, o ensino dos conhecimentos científicos fosse parcial ou mesmo totalmente ignorado, ou então revestido de um senso de conjunto de curiosidades.

Mas o sentido de ensino voltado ao cultivo das qualidades necessárias à disciplina científica ainda podia ser encontrado nas definições voltadas para o ensino de ciências nos grupos escolares, tipos escolares associados à vida urbana. Os relatos que os inspetores escolares produziam naqueles anos entregam a expectativa de que aquela era também uma finalidade ligada ao ensino da matéria nesses estabelecimentos. Expectativa que também pode ser detectada nos relatórios que os concluintes do Curso Normal, praticantes na Escola Modelo, produziam. O praticante Levy Saldanha enfatizou em um dos seus relatórios que o ensino científico nos grupos escolares deveria compreender as “noções preliminares de Quimica, Physica e História Natural, de modo a cobrir tudo o que em suas mentes as crianças não poderiam ignorar para afastar “de seus espíritos a superstição” (DEAP, 1919, p. 96). Outra aluna praticante no Grupo Modelo registrou em seu relatório no final do ano seguinte, que o principal objetivo das lições de ciências era fazer com que as crianças desenvolvessem o sentido de minuciosa observação dos objetos, de modo que pudessem aprender a deduzir o conhecimento sobre todas as coisas que as cercavam desse senso apropriado de criteriosa observação (DEAP, 1920, p. 159).

Esse tipo de manifestação ainda era possível porque decorria do diálogo com outra configuração curricular, a que permaneceu em vigor somente para os grupos escolares. E não se trata simplesmente de que o programa para os grupos escolares fosse mais amplo do que o prescrito para as escolas isoladas, mas que era um programa que encerrava outras expectativas educacionais.

Quadro 2 - Programa de Estudos de Sciencias Physicas e Naturaes para os Grupos Escolares do Estado em 1921. 

1º ANO. A) Conhecimento e distincção das cores.
B) Observação sobre o aspecto exterior de vários corpos, suas qualidades e utilidades.
C) Estudos de animaes conhecidos e sua classificação pelo aspecto exterior: animaes de pena, de pelo, de escamas; animaes que andam, que voam, que nadam, que rastejam; animaes uteis, animaes nocivos.
D) Conhecimentos de alguns productos animaes: carne, osso, couro, chifre, dentes, penas, pelo, etc.
E) Palestras sobre vegetaes conhecidos: utilidade e emprego de seus produtos na alimentação, na medicina caseira, nas construcções e na fabricação de moveis, tecidos, papel, etc.
F) Arvores fructiferas dos campos, dos mattos e dos pomares.
G) Conselhos sobre a alimentação.
H) Conselhos sobre o asseio individual.
I) Effeitos nocivos do fumo e do álcool.
2º ANO. A) Ensino objectivo dos estados e qualidades dos corpos; corpo solido, liquido e gazoso; áspero, liso e escorregadio; frágil, resistente, poroso, translucido, opaco, elástico, flexível; combustível, inflamável, explosivo, fusível, solúvel, fibroso, granuloso, sonante, adstringente, picante, ácido, doce, salgado.
B) Primeiras observações sobre animaes vertebrados e invertebrados; animaes uteis e nocivos à agricultura. Animaes domésticos. Animaes uteis aos homens; animaes nocivos: meios de defesa de que dispomos. Estudos da vida de alguns animaes de grande importância, taes como o boi, o cavallo, o carneiro, a cabra, as aves domesticas, as abelhas, o bicho da seda, etc.
C) Estudo elementar do corpo humano; observações geraes do corpo humano; observações geraes sobre a hygiene da alimentação e dos sentidos.
D) Cuidados em relação ao orgam da vista para evitar as moléstias que o atacam.
E) Estudo de alguns vegetaes uteis: a herva matte, o café, o algodão, o trigo, o arroz, o feijão, a batata, os legumes, etc.
F) Observações sobre a germinação das sementes.
3º ANO. A) Ar athmospherico: barômetros.
B) Composição do ar. Ar viciado. Humidade do ar e suas causas.
C) Evaporação; observação sobre o phenomeno geral da evaporação, suas causas e effeitos.
D) As chuvas: formação das chuvas e seus effeitos.
F) Ventos; suas causas e seus effeitos.
G) Estudos muito simples de alguns mineraes mais conhecidos: o ferro, o carvão de pedra, o chumbo, o cobre, o nickel, a prata, o ouro.
H) A agua; sua composição. Aguas doces e salgadas. Aguas salobras e potáveis. Aguas mineraes e medicinaes. Aguas Thermaes.
I) Calor; fontes de calor. Thermometros.
J) Animaes; principaes caracteres dos vertebrados e dos invertebrados.
K) Animaes uteis.
L) O homem; partes principaes do corpo humano. Os principaes ossos do esqueleto.
M) Apparelho digestivo; sua funcção.
N) Descripção dos instrumentos mais usados em agricultura.
O) Os diversos processos para reproducção artificial dos vegetaes; estaca, mergulha e enxertia.
P) A cultura de alguns vegetaes uteis em campos de experiencia: café, algodão, cana de açúcar, cereaes. Arvores fructiferas, plantas leguminosas. Beneficios que essas plantas prestam ao homem.
Q) A cultura das rosas, dos cravos e das outras flores.
4º ANO. A) Ligeiras explicações sobre a campainha electrica, telephone, telegrapho, para-raios, pendulo, relógio, luz e força elétricas, circulação do ar, aquecimento do ar, iluminação a gaz, tensão do vapor d`agua, acção corrosiva dos ácidos e dos acalis; poder dissolvente do alccol e da essencia de therebentina, etc; applicações do vapor e da electricidade, etc.
B) Classificação animal: estudo elementar das principaes classes de vertebrados.
C) Estudo elementar do esqueleto humano.
D) Caracteres geraes dos invertebrados.
E) Apparelho respiratório, circulatório e digestivo.
F) Estudo elementar dos sentidos.
G) Plantio e cultura das arvores fructiferas e mais vegetaes uteis e próprios do nosso clima. Ephoca do plantio e processos de cultura. Ephoca do processo de poda.
H) Adubos.
I) Hygiene da habitação, do vestuário e da alimentação. Exercicios physicos, sua necessidade e suas vantagens. Repouso e sonno.
J) Insectos transmissores de enfermidades.
K) Molestias contagiosas e infecciosas; impaludismo, tuberculose, trachoma, lepra; meios de evital-as e seu tratamento.
L) Soro anti-ophidico, anti-diphterico e anti-tetanico; raiva e seu tratamento preventivo.
M) Vaccinação contra a varíola e febre typhoide.
N) Socorros urgentes nos casos de ferimentos, fracturas, vertigens, queimaduras e asphyxia.
O) Cuidado em relação aos ferimentos produzidos nos pés e nas maõs; emprego do algodão hydrophilo, da gaze, das ataduras, do iodo, da agua oxigenada, etc.

Fonte:PARANÁ (1921, s.p.).

É perceptível que, embora presente, a noção de utilidade é significativamente menos pronunciada do que no programa previsto para as escolas isoladas. No programa para os grupos escolares o sentido de utilidade parece mais difuso, menos delimitado e menos específico. Além disso, ainda está bastante pronunciado o acento à dimensão procedimental - o cultivo da capacidade de observação e das qualidades experimentais como um valor educativo em si - especialmente na parte inicial do programa. Finalmente, se nota a presença de um sentido enciclopédico, de modo a garantir ao aluno que percorra o curso completo a apreensão dos enunciados e das categorias fundamentais produzidas no âmbito das ciências, para que possa ler e compreender o mundo que o cerca, seja esse mundo fruto da obra humana ou não. Ler e compreender o mundo nas suas várias dimensões: dos elementos da natureza, do funcionamento do corpo humano, das diferentes culturas vegetais, do telefone, do telégrafo e das forças elétricas... portanto, também, mas não só, em uma perspectiva ocupacional.

Considerações finais: sobre expectativas educacionais para a escola primária e hierarquias curriculares

A rubrica Sciencias Physicas e Naturaes só se estabeleceu oficialmente, de maneira contínua e permanente, no programa para a escola primária paranaense a partir do início da década de 1910, ainda que tenha se insinuado antes disso, na segunda metade da década de 1900, em frustradas tentativas de reformar a escolarização paranaense. Trata-se de um aparecimento relativamente tardio se comparado com outras realidades nacionais, nas quais esse corpus de saberes já estava previsto nos programas para as escolas primárias desde o final do século XIX (SOUZA, 2008).

Como ficou caracterizado, as justificativas para a sua inclusão nesse momento inicial se transformaram e, em grande medida, se distinguiram das alegações para a continuidade do seu ensino e que prevaleceram ao longo da década de 1920. Junto com as retóricas legitimadoras também se transformaram os conteúdos arrolados nos programas. Esses movimentos permitem apurar uma dinâmica de permanências e transformações interna à matéria na ambiência espacial e temporal das décadas iniciais do século XX no contexto paranaense. São, nesse sentido, uma contribuição localizada, cujos resultados devem ser cruzados com as dinâmicas que se deram em outros lugares para a produção de uma história que, do ponto de vista das disciplinas escolares, permita compreender mais amplamente o lugar e o sentido que foi construído para o ensino de ciências nos sistemas de ensino primário no Brasil. Não obstante, a história do ensino de ciências acima esboçada ajuda a compreender aspectos importantes a respeito da escola primária no Paraná, dos quais cabe assinalar alguns pontos relevantes.

Parece claro que as razões elencadas para a inclusão do ensino de ciências no início do século XX foram sendo abandonadas ou transformadas, em diferentes graus, enquanto se consolidava sua permanência nos programas de ensino. As razões para que isso se processasse se conectam com o modo como a matéria se articulava com expectativas mais amplas para a escola primária.

Os enunciados a favor da educação como cultivo das atitudes necessárias ao desenvolvimento do espírito científico que eram mobilizados no início do século XX, estavam relacionados com o debate empreendido por intelectuais interessados em promover uma tradição de estudos agrícolas no currículo da escola primária22. Nos seus contornos gerais, esse debate punha em questão a (re)organização da escola articulada com um projeto de organização e desenvolvimento da sociedade paranaense. Evocando as características mesológicas e demográficas do Estado, a escola deveria atuar para potencializar na população uma vocação agrícola com vistas a erigir daí um processo de modernização econômica e social, pautado na fixação do homem ao solo e na potencialização das suas forças produtivas. Em argumentos que ora compõem com, ora propõem vias alternativas, mas de toda forma matizam as expectativas modernizadoras enfeixadas na experiência urbana e industrial, naquilo que era captado como a sua face aterradora: sua vocação para a produção de aglomerações de grandes contingentes populacionais pauperizados e, consequentemente, agitação popular e desordem social; degeneração moral e física; precariedade habitacional e higiênica; desvanecimento das capacidades de trabalho e iniciativa individual.

A amplitude do programa era o ponto fulcral. Os diferentes posicionamentos tinham como alvo a tradição da escola de primeiras letras e a sua insuficiência como expressão de educação popular. A defesa pelo ensino científico é mobilizada nesse esforço de elaboração de um programa de ensino para a escola primária que possibilitasse ir além dos saberes elementares, mas que em diálogo com outras tradições escolares - como a enciclopédica, além daquelas associadas a outros níveis de ensino como a científica, a humanística, a politécnica - pudessem alargar a instrução para além da leitura, da escrita e do cálculo.

Podem ser identificados dois posicionamentos principais que compunham o fundo comum desse debate. A ideia de uma escola preliminar mobilizada em torno da atuação de Victor F. do Amaral; e a ideia de uma escola única ou integral, levada adiante principalmente através da liderança intelectual de Dario Vellozo. São, aliás, as perspectivas que ganham protagonismo nas reformas de 1907 e 1909, respectivamente.

A perspectiva de uma escola preliminar, tal como defendida por Victor F. do Amaral, marcadamente presente no programa de 1907, pretende ser a escola comum, capaz de integrar todas as trajetórias educacionais possíveis - pensando na diversidade de existências sociais presentes na realidade paranaense - e relacioná-las com as etapas educacionais seguintes. Essa compreensão desemboca na proposição de um programa de cinco anos de duração, assentado na estrita graduação do ensino, dividido em dois graus. No primeiro grau, compreendendo os quatro primeiros anos, o programa deveria abarcar no primeiro ano o núcleo da escola de primeiras letras (ou seja, somente as matérias de Leitura, Caligrafia e Aritmética), para progressivamente se alargar nos anos seguintes. Não só porque à medida que o aluno fosse avançado no curso ele deveria gradativamente ir aprofundando o estudo das matérias, como também a cada ano novas matérias deveriam ser acrescidas até chegar ao quarto ano com o seguinte rol: Leitura, Caligrafia, Aritmética, Geografia, Gramática, História Pátria, Desenho Linear e Agronomia. Desse modo a escola seria capaz de se ajustar desde a realidade daquelas populações que não poderiam dispor de mais do que um ou dois anos de frequência e que não esperavam mais do que aprender a ler, escrever e contar; passando por aqueles que, permanecendo mais tempo na escola, tinham no nível de educação primária um caráter terminativo e que se dedicariam a diversidade de ocupações; até aquelas que acessariam outras etapas educacionais, como os cursos profissionalizantes ou o ensino secundário. O segundo grau, com duração de um único ano (no qual eram incluídos o Francês e as Sciencias Physicas e Naturaes), deveria servir como etapa de ligação entre o ensino primário e o secundário. Segundo a previsão, ele seria dispensável para todos os alunos que se voltassem para algum percurso de ensino profissionalizante. Para aqueles que almejavam o acesso aos níveis superiores, deveria substituir a então prática dos estudos preparatórios (PARANÁ, 1907).

Já a concepção da escola única ou integral defendida por Vellozo era pensada como a etapa ou como instância comum de socialização da população, independentemente da realidade geográfica, social e mesmo ocupacional projetada. Uma escola para todos, pensada em diálogo com as proposições renovadoras e inspirada nos pressupostos da Escola Moderna de Ferrer i Guàrdia e, principalmente, da Escola Nova de E. Demolins. Deveria integrar os saberes científicos, humanísticos ou literários, artísticos ou estéticos e o princípio do trabalho, através das oficinas de trabalhos manuais.

Seja na perspectiva da formação integral com vistas à emancipação (da consciência) humana, seja na perspectiva de formar os andares inferiores do edifício educacional - que deveria ser levado adiante em estudos posteriores ou no próprio curso da existência social e ocupacional -, o ensino científico corresponderia a uma aprendizagem fundamental para promover a autonomia de consciência e a iniciativa individual, condição e conteúdo da imagem do indivíduo ativo, motor do progresso moral e material. Somente através da atividade desse indivíduo de iniciativa se poderia levar adiante o impulso civilizacional, cujas linhas principais significavam a garantia da paz social mediada pelo domínio da lei e das instituições oficiais; a atividade política republicana, igualada ao exercício do voto; e a transformação dos costumes e das condições materiais de existência, associada à prosperidade gerada pelo trabalho e esforço individual.

Quando se observa o complexo formado por finalidades educacionais e os conteúdos culturais em relação à presença da rubrica de Sciencias Physicas e Naturaes na década de 1920, percebemos que boa parte daqueles sentidos estão desparecendo ou presentes de maneira restrita. A principal ausência parece ser o sentido mais amplo de educação científica, isto é, o sentido de mentalidade investigativa associado ao desencantamento do mundo e o espírito de autonomia e iniciativa individual.

Os programas que vieram à luz no início da década de 1920 são marcos importantes na consolidação da acepção de que a presença da escola primária na sociedade paranaense corresponde a uma escola do tipo elementar. Tais programas, nos quais o ensino de ciências são um elemento entre outros, podem ser interpretados como um ponto de chegada de um processo que abandonou as intenções e pressupostos que tensionaram o projeto de escola elementar e propuseram o alargamento cultural e formativo para a escola primária. É significativo que os programas de 1907 e 1909 tenham sido rapidamente abandonados sob a alegação de serem, o primeiro incongruente e acima das capacidades financeiras do Estado, e “inexequível” o segundo (XAVIER, 1909; 1911).

Esses sentidos mais gerais que decorrem do que pode ser caracterizado como um projeto formativo para a escola primária, mais que emoldurarem a presença da rubrica nos programas, ajudam a definir o estatuto dessa presença. Em primeiro lugar, a ênfase que se colocou na expansão da escolarização primária com vistas a combater o analfabetismo da população paranaense consagrou nos programas a prioridade da aprendizagem da escrita, da leitura e do cálculo. A maior parte da população que frequentava a escola primária nos anos de 1920 o fez cursando um programa com duração máxima de três anos. Mas as autoridades não tinham problema em reconhecer que a grande maioria abandonava a escola e se dedicava as atividades laborais ao final do primeiro ou do segundo ano. Esse quadro ajudou a produzir uma hierarquia de saberes que colocava em relação ao ensino de ciências um sentido de matéria secundária, acessória ou mesmo eventual em muitas das escolas. O fato de que a expansão da escola primária se deu por políticas de captação e formação de professores que passavam ao largo dos cursos normais, contribuiu para isso. Há uma quantidade significativa de relatos, de inspetores e dos próprios professores, indicando que estes não se sentiam capazes ou tinham dificuldades para ministrar as lições de ciências.

A eleição das prioridades relacionadas à demarcação da escola primária como uma escola de massas - o que permitiu que as matrículas nas escolas primárias públicas saltassem de algo próximo a 8.000 em meados da década de 1900 para quase 60.000 perto do final da década de 1920 (Cf. MUNHOZ, 1926) - abandonou expectativas educacionais, sentidos formativos e conteúdos culturais que eram seriamente defendidos no início do século XX. Muitos nomes envolvidos no debate nos primeiros anos do 1900 sustentavam que em relação aos esforços do poder público para a oferta da escolarização primária, a qualidade era mais importante do que a quantidade. Premissa que foi se esvanecendo à medida que o apelo pela alfabetização da população e a moralização dos costumes foi assumindo protagonismo em relação às expectativas sociais e culturais para a escola primária.

A própria carga semântica da noção de utilidade, que desde o final do século XIX era fundamental para a defesa do ensino científico, havia sido transformada na associação com o ensino de ciências nos anos de 1920. Enquanto aqueles nomes que preconizavam o ensino científico como o cultivo de uma sensibilidade mobilizavam a noção de utilidade de modo a abarcar outras dimensões da existência humana além da ocupacional - como a largueza de pensamento, a capacidade de ação ou de iniciativa e a fruição estética - no marco dos programas dos anos 1920 ela está basicamente circunscrita à dimensão laboral mais imediata (ao trabalho no campo, quando se tratam de escolas localizadas no ambiente rural, ou ao trabalho fabril, quando se trata de escolas localizadas com o ambiente urbano e suburbano) e à aquisição de hábitos de higiene. Se trata de uma redefinição que aponta para a restrição do alcance da noção.

Traços mais visíveis da perspectiva do ensino científico como cultivo de uma sensibilidade podem ainda serem localizados nos programas destinados aos grupos escolares. Ainda que desde o início da década de 1920 as autoridades admitissem que muitos grupos escolares não ofertassem todo o curso primário, especialmente nos que passaram a ser construídos em localidades menos populosas que deveriam também priorizar o combate ao analfabetismo, o fato é alguns alunos que frequentavam os grupos escolares mais bem estruturados, especialmente localizados nas principais cidades do Estado, tinham acesso a um programa mais largo e intenso e, consequentemente, maiores oportunidades culturais em relação ao contato com os conteúdos científicos. Isso foi possível pela estratégia de bipartição do currículo efetivada no início daquela década. Pelos elementos que se recolhem dos relatos de professores, diretores e inspetores escolares, se pode dizer que se tornaram pequenas zonas que ofereciam uma experiência cultural escolar privilegiada, distinguidas entre a realidade mais frequente da escolarização paranaense em que predominou a ênfase na alfabetização e na transformação e moralização dos costumes.

REFERÊNCIAS

BRAGHINI, Katya; MUNAKATA, Kazumi; TABORDA DE OLIVEIRA, Marcus A. (org.). Diálogos sobre a história da Educação dos sentidos e das sensibilidades. Curitiba: Editora UFPR, 2017. [ Links ]

CAMPOS, Névio de. Intelectuais católicos e a educação no Paraná nas décadas de 1920 e 1930. In: VIEIRA, Carlos E. (org). Intelectuais, Educação e Modernidade no Paraná (1886 - 1964). Curitiba: Ed. UFPR, 2007. [ Links ]

DEAP/PR. Relatório do praticante Levy Saldanha. In: Coleção Correspondência do Governo: v. 9; AP 1739, 1919, p. 91 - 109. [ Links ]

DEAP/PR. Relatório da praticante do Grupo Escolar Modelo, Emilia Vianna. In: Coleção Correspondência do Governo: v. 25; AP 1756, 1920p. 156 - 162. [ Links ]

GOODSON, Ivor. Currículo: Teoria e História. Trad. Atillio Brunetta. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. [ Links ]

PARANÁ, Estado do. Regulamento da Instrucção Publica do Estado do Paraná. Curitiba: Typ. D´A Republica, 1907. [ Links ]

PARANÁ, Estado do. Regulamento Orgânico da Instrucção Pública do Estado do Paraná. Curitiba: Typ. D´A Republica, 1909. [ Links ]

PARANÁ, Estado do. Instruções Sobre Organização Escolar e Programma de Ensino para as Escolas Públicas do Estado do Paraná. Curitiba: Diretoria Geral da Instrução Pública, 1914. [ Links ]

PARANÁ, Estado do. Programa do Grupo Escolar Modelo e Similares. Curitiba: Typ. d´A Republica, 1917. [ Links ]

PARANÁ, Estado do. Programma das escolas isoladas, com instrucções da Inspectoria Geral do Ensino. Curitiba: Inspectoria Geral do Ensino, 1920. [ Links ]

PARANÁ, Estado do. Programma dos Grupos Escolares do Estado do Paraná. Curitiba: Irmãos Guimaraes & Cia, 1921. [ Links ]

MARTINEZ, Cesar Prieto. Relatório apresentado pelo Inspetor Geral do Ensino. Curitiba: Typ. da Penitenciaria do Estado, 1920. [ Links ]

MARTINEZ, Cesar Prieto. Relatório apresentado pelo Inspetor Geral do Ensino. Curitiba: Typ. da Penitenciaria do Estado, 1921. [ Links ]

MARTINEZ, Cesar Prieto. Relatório apresentado pelo Inspetor Geral do Ensino. Curitiba: Typ. da Penitenciaria do Estado, 1922. [ Links ]

MARTINEZ, Cesar Prieto. Relatório apresentado pelo Inspetor Geral do Ensino. Curitiba: Typ. da Penitenciaria do Estado, 1923. [ Links ]

MORENO, Jean Carlos. Intelectuais na década de 1920: César Prieto Martinez e Lysimaco Ferreira da Costa à frente da instrução pública do Paraná. In: VIEIRA, Carlos E. (org). Intelectuais, Educação e Modernidade no Paraná (1886 - 1964). Curitiba: Ed. UFPR, 2007. [ Links ]

MOREU, Alicia. A pedagogia e a Eschola. In: A Escola, Ano I, n. 10 e 11, p. 156 - 162, 1906. [ Links ]

MUNAKATA, Kazumi. Que coisa é coisa das lições de coisas? In: TABORDA DE OLIVEIRA, Marcus. A. (org.). Sentidos e sensibilidades: sua educação na história. Curitiba: UFPR, 2012. [ Links ]

MUNHOZ, Alcides. Relatório da Secretaria Geral do Estado do Paraná. Curitiba: Livraria Mundial, França & Cia. 1926. [ Links ]

SACRISTÁN, José Gimeno. O currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: Artmed, 2000. [ Links ]

SANTOS, Claudino Rogoberto Ferreira. Relatório da Secretaria dos Negócios do Interior, Justiça e Instrução Pública - 1913. Curitiba: Typ. do Diario Oficial, 1914. [ Links ]

SANTOS, Claudino Rogoberto Ferreira. Relatório da Secretaria dos Negócios do Interior, Justiça e Instrução Pública - 1914. Curitiba: Typ. do Diario Oficial, 1915. [ Links ]

SILVA, Octavio Ferreira do Amaral. Relatório da Secretaria dos Negócios do Interior, Justiça e Instrução Pública e Anexos (1903). Curitiba: Typ. da Republica, 1904. [ Links ]

SILVA, Victor Ferreira do Amaral. Discursos e projetos sobre educação agrícola na Câmara dos Deputados. Curitiba: Typographia da Republica, 1907. [ Links ]

SOUZA, Rosa Fátima de. História da organização do trabalho escolar e do currículo no século XX: (ensino primário e secundário no Brasil). São Paulo: Cortez, 2008. [ Links ]

VALDEMARIN, Vera Tereza. Os sentidos e a experiência. Professores, alunos e métodos de ensino”. In: SAVIANI, D. [et al] . O legado educacional do século XX no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2004. [ Links ]

VELLOZO, Dario. Subsídios Pedagógicos. In: A Escola. Ano II, n. 1 - 4, p. 1 - 5, 1907. [ Links ]

VELLOZO, Dario. Subsídios Pedagógicos da Instrução Popular Hodierna. In: A Escola, Ano IV, n. 2 - 3, p. 44 - 62, 1909. [ Links ]

VIEIRA, Carlos Eduardo. O movimento pela Escola Nova no Paraná: trajetória e ideias educativas de Erasmo Pilotto. In: Educar em Revista, v. 17, n. 18, p. 53 - 73, 2001. [ Links ]

XAVIER, Luiz Antonio. Relatorio do Secretario d´Estado dos Negocios do Interior, Justiça e Instrucção Publica - 1908. Curitiba: Typ. D´A Republica, 1909. [ Links ]

XAVIER, Luiz Antonio. Relatorio do Secretario d´Estado dos Negocios do Interior, Justiça e Instrucção Publica - 1910. Curitiba: Typ. D´A Republica, 1911. [ Links ]

12Regulamento da Instrução Pública do Estado do Paraná, posto em execução pela presidência do Estado através do Decreto n. 93, de 11 de março de 1901. Embora tentativas de reformar a instrução pública ainda na década de 1900 tenham logrado revogá-lo por duas vezes, em ambas ele é rapidamente reativado sob a alegação de restauração ou recomeço, permanecendo em vigor até meados da década de 1910.

13Um dos nomes de maior projeção no movimento de renovação pedagógica no Estado (Cf. VIEIRA, 2001,) ligado ao movimento literário simbolista no Paraná, Dario Vellozo colaborou na publicação de várias revistas, atuando como redator e editor em algumas das mais importantes publicações literárias da cidade de Curitiba. Vinculado à maçonaria, alcançou o posto de Grão-Mestre da Loja Luz Invisível em Curitiba, e foi Delegado do Grande Oriente do Brasil, no Paraná. Uma das principais lideranças do movimento anticlerical paranaense, dedicou grande parte do seu trabalho editorial ao tema. Foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Paranaense e fundou no início da década de 1910 o Instituto Neo-Pitagórico, associação de livre pensadores que reuniu outros intelectuais em celebração à cultura helênica e combate ao clericalismo. Professor do Ginásio Paranaense e Escola Normal do Estado, ocupou as cadeiras de Pedagogia e História Geral da Civilização. Publicou em 1907 a obra Compendio de Pedagogia, publicação no qual reuniu as suas considerações sobre pedagogia moderna, que durante alguns anos foi a principal referência teórica para a formação de professores no Paraná. Teve participação ativa na concepção da Reforma da Instrução Pública de 1907 e contribuições importantes no texto do Regulamento que decorreu dessa reforma. Foi o autor do projeto de lei que, depois de discutido na Assembleia do Estado, culminou na reforma do ensino e no Regulamento Orgânico da Instrução Pública de 1909.

14Publicação do Grêmio dos Professores Públicos do Estado do Paraná que circulou entre 1906 e 1911, voltada à divulgação de ideias pedagógicas para o professorado paranaense. Entre 1907 e 1908 contou com subvenção do governo estadual. Dario Vellozo desempenhou a função de editor entre 1906 e 1909. Enquanto esteve à frente da redação da revista, ele publicou uma série de artigos de sua autoria, além de transcrições de artigos publicitados em diversos jornais do país e a tradução de artigos de autores internacionais que de alguma forma se relacionavam aos preceitos que defendia.

15Através do Decreto n. 479 de 10 de dezembro de 1907 a Presidência do Estado sancionou novo Regulamento da Instrução Pública - em decorrência da Lei 723 (que autorizava a reforma) de 2 de abril do mesmo ano - que deveria vigorar a partir de 16 de janeiro de 1908, início do ano letivo. Contudo, já no dia 19 de fevereiro de 1908 a Assembleia Legislativa aprovou outra lei suspendendo a execução do novo regulamento. Em novo decreto do dia 5 de outubro de 1909, a presidência do Estado punha em imediata execução o Regulamento Orgânico da Instrução Pública do Estado, desdobramento da Lei 810 (Reorganização da Instrução Pública), de 19 de abril de 1909. Novamente a Assembleia Legislativa aprovou lei (n. 944), em 4 de abril de 1910, suspendendo a execução da nova regulamentação e mandando retornar com a execução do Regulamento de 1901.

16Embora D. Vellozo não se preocupe em apresentar a autora aos leitores, provavelmente se trate de Alicia Moreau de Justo.

17A argumentação em torno da tríade Deus, Pátria e família como núcleo da educação moral e cívica a ser promovida pela instrução pública no Paraná, pode ser apreendida na documentação oficial do serviço de instrução pública elaborada principalmente na primeira metade da década de 1920 (p. ex. MARTINEZ, 1920; 1921; 1922 e 1923). Outros aspectos podem ser encontrados nos trabalhos de MORENO (2007) e CAMPOS (2007), que destacam a chegada do grupo político ligado ao catolicismo ao governo do Estado.

18Promulgado através do Decreto (n. 710 de 18 de outubro de 1915) da Presidência do Estado, e previsto na Lei de Reforma do Ensino (n. 1236, de 2 de maio de 1912).

19A Lei de Reforma de Ensino de 1912 previa em relação ao ensino de ciências nas escolas primárias: “Noções rudimentares de astronomia, physica, chimica e historia natural”; “noções rudimentares de biologia, sociologia e moral”; e “noções praticas de agronomia” (PARANÁ, 1912, p. 143). No programa que Azevedo Macedo ofereceu às escolas em 1914 esse curso ganhou a seguinte configuração: para a 1ª Série: “1. Colóquios variados e interessantes do professor aos seus alunos: a) para educar-lhes os sentidos; b) formar o hábito de entender e bem observar [..]; 2. Estudo das formas das cousas, suas semelhanças e diferenças [...]. 6. Noções sobre o tamanho das cousas; 7. Noções sobre a qualidade das cousas. 8. Noções sobre o tempo e sua medida. 9. Noções sobre o som”. Para a 2ª Série: “[...] 3. Lições de cousas”. Para a 3ª Série: “[...] 5. Continuação progressiva das lições de cousas. 6. Estudo do corpo humano. [...] 13. Noções rudimentares de Física, Química e História Natural, com aplicações uteis as artes e aos ofícios e especialmente a agricultura e a higiene”. E para a 4ª Série: “[...] 12. Recapitulação e ampliação das noções aplicadas de Física, Chimica e Historia Natural. 13. Noções fundamentais e práticas de Agronomia. 14. Noções fundamentais e práticas de Higiene” (PARANÁ, 1914, pp. 5 - 8).

20O respectivo programa acompanhou a promulgação do Código de Ensino (Decreto n. 17 de 9 de janeiro de 1917). Esse novo texto regulamentar introduzia algumas poucas adequações e atualizações ao texto de 1915 como, por exemplo, a previsão da existência de Grupos Escolares Modelo, com programa específico. Este programa voltou a condensar o ensino científico sob a rubrica “Sciencias Physicas e Naturaes”.

21Em seus relatórios anuais Macedo reiterava a centralidade da seriação na promoção da “reforma pedagógica” no estado. No relatório ao final de 1913 ele fez constar: “A materia do programma é inseparavel da seriação do ensino. A seriação do ensino é a applicação das leis econômicas da divisão do trabalho e do maior resultado com o menor esforço” (apudSANTOS, 1914, p. 12).

22Como expressão disso podem ser indicados os próprios Victor F. do Amaral e Dario Vellozo, por suas atuações no debate e nas iniciativas de reforma educacional ao longo da década de 1900. O primeiro, homem de ciência (formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e nome atuante na organização da Universidade do Paraná na década de 1910), provinha das elites agrárias do interior do Estado. Ainda na década de 1890 fundou a Sociedade de Agricultura do Paraná. Como Deputado Federal na década seguinte, defendeu - inspirado na experiência norte americana dos collegios agrícolas - e apresentou projetos de lei para a criação de um instituto agronômico federal e a subvenção de institutos semelhantes em cada unidade da federação. Parte do material de sua atuação parlamentar em favor da educação agrícola foi reunida na publicação Discursos e projetos sobre educação agrícola na Câmara dos Deputados (SILVA, 1907). Dario Vellozo, por outra parte, argumentava em favor de um processo de repovoamento do território paranaense de modo equilibrado, formado por pequenos núcleos populacionais e baseado na policultura - capaz de atuar como força descentralizadora - o qual deveria se relacionar com um projeto educativo que congregasse as tradições liberais (humanista) e práticas (de artes e ofícios), capaz de promover o amor à terra, ao trabalho e à vida no campo.

Recebido: 24 de Abril de 2020; Aceito: 26 de Janeiro de 2021

E-mail: sid_meurer@ufpr.br

SIDMAR DOS SANTOS MEURER é Professor Adjunto na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Setor de Educação, e no Programa de Pós-Graduação em Educação - UFPR. É Licenciado em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná (2005) e Mestre em Educação, também pela UFPR (2008), e Doutor em Educação: Conhecimento e Inclusão Social (2019), pela Universidade Federal de Minas Gerais. Está vinculado ao Núcleo de Pesquisas sobre a Educação dos Sentidos e das Sensibilidades (NUPES) - UFMG, e ao Grupo de Pesquisa: História da Educação: instituições, intelectuais e culturas escolares no Paraná (séculos XIX - XX), na UFPR.

Editora responsável:

Terciane Luchese

Creative Commons License This is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License