SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25PEDAGOGICAL MODERNITY IN THE REPUBLIC OF RIO DA PRATA: THE VIEW OF THE TRAVELER NESTOR DOS SANTOS LIMA (1923)INDEPENDENCE, DEMOCRACY, AND TRAINING IN BRAZILIAN ASSOCIATION OF EDUCATION DISCOURSE: 1927-1945 author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


História da Educação

Print version ISSN 1414-3518On-line version ISSN 2236-3459

Hist. Educ. vol.25  Santa Maria  2021  Epub Sep 30, 2021

https://doi.org/10.1590/2236-3459/106107 

Dossiê

EM NOME DA “RECTA CONDUTA”, AJUDA RECÍPROCA, HONESTA INDÚSTRIA E CONVÍVIO PACÍFICO: REFLEXÕES SOBRE INSTRUÇÃO E EDUCAÇÃO MORAL (1824-1827)

José Gonçalves Gondra* 
http://orcid.org/0000-0001-6168-271X

*Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro/RJ, Brasil.


Resumo

Neste artigo, exploro parte da produção de Silva Lisboa, na qual reforça a religião de Estado e a articulação entre ciência e revelação, condição para se atingir um estágio mais elevada, cujo melhor exemplo poderia ser verificado na experiência da Grã-Bretanha. Para o autor, com a Constituição do Império do Brasil, cabia delinear as bases para se formar uma recta conducta, associando, assim, ciência moral e teologia como estratégia de combate aos catecismos da libertinagem.

Palavras chaves: José da Silva Lisboa; Educação moral; Visconde de Cayru

Abstract

In this article, I explore part of Silva Lisboa’s production, where he reinforces state religion and the articulation between science and revelation, a condition to reach a “higher stage”, whose best example could be seen in Great Britain. In my view, with the Constitution of the Brazilian Empire, it was necessary to outline the grounds for a straight conduct, thus associating moral science and theology as a strategy to fight the catechisms of libertinism.

Keywords: José da Silva Lisboa; Moral education; Viscount of Cayru

resumen

En este artículo, exploro parte de la producción de Silva Lisboa, en la que refuerza la religión de Estado y la articulación entre la ciencia y la revelación, condición para alcanzar un estadio superior, cuyo mejor ejemplo se pudo comprobar en la experiencia de Gran Bretaña. Para el autor, con la Constitución del Imperio de Brasil, era necesario delinear las bases para formar una conducta recta, asociando, así, la ciencia moral y la teología como estrategia para combatir los catecismos del libertinaje.

Palabras clave: José da Silva Lisboa; Educación moral; Vizconde de Cayru

Résumé

Dans cet article, j'explore une partie de la production de Silva Lisboa, dans laquelle elle renforce la religion d'État et l'articulation entre science et révélation, condition pour atteindre un degré supérieur, dont le meilleur exemple pourrait être vérifié dans l'expérience de la Grande-Bretagne. Pour l'auteur, avec la Constitution de l'Empire du Brésil, il fallait délimiter les bases pour former une conduite pure, associant ainsi la science morale et la théologie comme stratégie pour combattre aux catéchismes du libertinage.

Mots-clés: José da Silva Lisboa; Éducation morale; Vicomte de Cayru

Introdução

Ao lado de mapas, bandeiras, instrumentos de ensino da história do Brasil, intervenções públicas, como o “pano de boca” pintado por Debret, sob encomenda para a cerimônia coroação e sagração1 do primeiro imperador brasileiro; os hinos (da independência2, da bandeira e nacional, por exemplo) passam a integrar um conjunto de outros signos destinados a compor uma determinada representação do Império brasileiro.

Em 6 de dezembro de 1822, quatro meses após a elaboração do Hino da Independência, a primeira página d’O Espelho descrevia os festejos realizados por ocasião da coroação e sagração de “SUA MAGESTADE IMPERIAL3”. De acordo com a narrativa, “a noite não pôs termo a tão afetuosas demonstrações, antes mostrando-se mais bela e serena do que prometera a inconstância do dia”. Ao procurar dar “uma escassa ideia do esplendor do espetáculo”, o redator dá destaque às sedas dos camarotes, aos 200 formosos cristais usados na iluminação, às finas jarras de porcelana com flores, aos detalhes luxuosos da tribuna imperial [...]. Destaca, igualmente, o “pano de boca” preparado para ser usado no Teatro de São João, local da cerimônia. De acordo com a matéria, no pano de boca se divisava uma engenhosa alegoria do Mr. Debret, que representava a América em trono elevado, a que serviam de coluna coqueiros, em cujo dossel se lia - Independência, ou morte. Na direita, a Constituição; na esquerda o escudo com a letra inicial do augusto nome de SUA MAGESTADE IMPERIAL, e sobreposta uma canoa. Na obra do pintor francês, constam vários emblemas de fecundidade, abundância, comércio interior e força marcial deste país, tendo por base a independência e gratidão ao imortal herói que o adotou por Pátria, recreando os olhos e favorecendo o exercício da imaginação, finalizava o redator.

Por intermédio destes e de outros expedientes correlatos, evocados em diversas situações, procurava-se forjar uma história oficial da “pátria livre”, independente, monárquica e constitucional, como manifestara o Imperador D. Pedro I, em 7 de setembro de 1823, em resposta ao apoio recebido pelos deputados constituintes de 1823 (Figura 1). A “Resposta de sua Magestade” se configura em expediente destinado à fabricar uma representação largamente disseminada na literatura, teatro, cinema, nas escolas e em outras formas de comunicação e de produção de uma memória do primeiro imperador, de seu gesto, do povo e da nação que passava a governar.

Fonte: Senado Federal4

Figura 1 - Annaes da Assembleia Nacional Constituinte (9 de setembro de 1823). 

No entanto, o acesso à outras coleções, pouco ou insuficientemente trabalhadas, afastando-se de uma perspectiva ufanista, heroica e épica, permite observar mediações, conflitos e disputas no projeto emancipatório do Brasil. Neste texto, trabalho com documentos oficiais como legislação, anais da Câmara dos Deputados e do Senado, bem como o debate público observado em impressos de um modo geral, com foco nos discursos e medidas voltadas para a formação do povo, entre 1824 e 1827. Ao compor um núcleo documental complexo, procurei evitar cair em armadilhas causais que empobrecem a compreensão de um fenômeno especial nos processos de construção das nações e suas vinculações ordinárias com as diversas estratégias e mecanismos destinados a talhar o povo e a nação.

Para efeitos deste trabalho, considerando investimentos no campo da historiografia, com especial destaque às coletâneas organizadas por Holanda (2004) e por Silva (2018), é possível observar um descolamento importante da narrativa oficial. No caso dos 11 volumes da coleção organizada por Holanda, a ênfase recai no exame de um processo complexo nos quais se entrelaçam aspectos econômicos, políticos e diplomáticos5. O empreendimento foi estruturado em três tomos, com dois volumes dedicados ao período colonial6, cinco ao império7 e quatro ao período republicano8, até 1964, constituindo-se em marco das “brasilianas” e da especialização da historiografia do Brasil9. Em chave assemelhada, meio século depois, a coletânea de 5 volumes, dirigida por Shcwarcz, não pretende ser uma história geral do Brasil, posto que não trata do período colonial. O recorte estabelecido se refere ao Brasil-nação, com foco na população, política, economia, cultura e relações internacionais10.

Ao contrastar estas duas iniciativas, busquei observar a regularidade e diversidade de narrativas sobre o Brasil, em investimentos que reúnem diversos especialistas como recurso para organizar e aprofundar as reflexões a respeito da história nacional. Esse traço comum faz aparecer um outro; o tipo de visibilidade e legibilidade conferida ao problema da formação do povo. Via de regra, esta temática se vê encoberta nos estudos sobre a literatura, impressos de modo geral, artes, teatro, música, religião; elementos que, indiscutivelmente, se encontram articulados às diversas instituições, saberes e estratégias voltadas para interferir e ordenar o curso da vida. No entanto, os processos de educação mais formais ainda ocupam uma posição muito marginal nesta historiografia geral. Quando muito, há remissões genéricas à alguns cursos superiores e ao ensino secundário. As escolas de primeiras letras são frequentemente ausentificadas nestas iniciativas, ainda que sejam às destinadas ao conjunto da população, tornadas, paulatinamente, obrigatórias ao longo do século XIX.

A exceção, no caso da educação no Império, se deve ao capítulo de Werebe (2004), que integra o volume IV da brasiliana dirigida por Holanda (2004)11. Nesse capítulo, a autora aborda a problemática do ensino em torno de dez tópicas12, apoiada em cinco autores: Fernando de Azevedo, Primitivo Moacyr, Liberato Barroso, Lourenço Filho e Georges Cogniot. Trata-se, portanto, de uma revisão bibliográfica que, salvo a única remissão à Barroso e à Cogniot, os demais são considerados protagonistas do chamado movimento da escola nova no Brasil, que produzem uma narrativa muito orientada pelos fundamentos que organizam e legitimam as reformas e iniciativas com as quais se encontram comprometidos. Deste modo, como se pode perceber ao longo deste capítulo, a história da educação brasileira corresponde a uma enumeração de fracassos (ou misérias13), a esperar por aqueles que poderiam redimir o país dos fracassos que acumulara. Para ela, em forma de resumo, poder-se-ia dizer que

a República veio encontrar o país, no terreno educacional, com uma rede escolar primária bastante precária, com um corpo docente predominantemente leigo e incapaz; uma escola secundária frequentada exclusivamente pelos filhos das classes economicamente favorecidas, mantida principalmente por particulares, ministrando um ensino literário, completamente desvinculado das necessidades da nação; um ensino superior desvirtuado nos seus objetivos, e ainda - talvez esta seja a pior das heranças recebidas - com o desvirtuamento do espírito da educação, em todos os graus do ensino (WEREBE, 2004, p. 442-443).

No que se refere aos trabalhos específicos no campo da história da educação, diferente da síntese generalizante e homogeneizante proposta por Werebe, observa-se a existência de investigações que tem procurado compreender a complexidade do fenômeno da formação, as estratégias, agentes e saberes mobilizados na constituição do aparato de formação, nos quais diferentes propriedades da escola são postas em evidência14. No entanto, ainda são rarefeitas as pesquisas que se debruçam sobre o processo da emancipação política, com vistas a explorar esta dimensão nos projetos para a nação que não seja uma simples e cansativa enumeração dos fracassos, tampouco uma lista dos grandes feitos da educação brasileira.

Neste estudo, o investimento procura contribuir para o preenchimento de aspectos desta lacuna. Para tanto, procuramos sustentar o argumento da existência de uma conexão importante entre o processo de emancipação e medidas destinadas a talhar as populações. Assim, neste exercício, focalizei alguns enunciados e iniciativas destinados à formação moral, sem deixar de considerar que esta problemática mobiliza uma complexa discussão acerca da chamada “formação integral”, isto é física, moral, intelectual e religiosa15. Por fim, procurei pensar no modo como o processo de independência vem sendo ensinado às futuras gerações de professores, a partir do estudo de dois casos clássicos da historiografia da educação brasileira.

POR UMA RECTA CONDUCTA, SÓLIDA E ORTHODOXA INSTRUÇÃO NACIONAL

Homem múltiplo, José da Silva Lisboa16 desempenhou funções diversas ao longo da vida (1756-1835), sendo uma delas a de Inspetor dos Estabelecimentos Literários e Científicos do Reino, cargo criado pelo decreto de 26 de fevereiro de 1821, com a finalidade de promover a instrução pública no Brasil, acreditando ser esta a melhor forma de se obterem os apreciáveis bens da felicidade, poder e reputação do Estado. Nesta posição, mobilizou-se para a criação de uma escola de ensino mútuo por meio do decreto de 13 de abril de 1822, que previa a admissão gratuita de, “até 270 meninos, da idade de 7 anos para cima, fornecendo-lhes o governo papel, penas e mais aprestos para o ensino”17.

Após a independência oficial do Brasil (1822), ele mantém um alinhamento regular com o projeto de monarquia constitucional. Nesta condição, escreveu sobre matérias diversas, em suportes distintos, como demonstram os estudos de Rocha (2001) e Kirschner (2009). Ao tomar esta posição, acompanhar os escritos do Visconde de Cairu, permite perceber os tons e contra tons dos debates a respeito dos rumos do projeto de construção da nação brasileira18.

Nesta investigação, analiso uma de suas manifestações, que aparece difusamente ao longo da sua produção, com centralidade em quatro de seus livros19. Trata-se da questão da formação moral, orientada por um duplo balizamento; o ordenamento jurídico-político e postulados da doutrina católica. Manifestação que, por sua vez, se processa em microclimas bem específicos. No caso dos dois livros iniciais, trata-se de uma publicação que se dá no interregno entre a constituição outorgada20 e o início do trabalho do primeiro parlamento brasileiro, em 1826. Já os livros de 1827 são contemporâneos aos debates travados a respeito da primeira lei geral do ensino na câmara dos deputados e no senado, do qual Cairu passa a fazer parte, a partir de 1826. Portanto, por meio deste material se faz presente a dimensão de homem público, ou de homem de letras, conforme defende Kirschner (2009), comprometido na defesa de um projeto comum para o Império brasileiro.

Fonte: Senado Federal21

Figura 2 - Capa do livro "Constituição moral e deveres dos cidadãos ... (1824). 

Os livros voltados para a temática da moral foram estruturados em tópicas, nas quais o autor desdobra as reflexões a respeito da questão central, reconhecendo os interlocutores alinhados às suas posições, bem como aqueles que dela se afastam. Para tanto, o volume I22 contém 21 capítulos e, o segundo, 18. Este material, publicado logo após a outorga da primeira Constituição, é precedido por uma dedicatória “À sua majestade imperial”, ocasião em que o autor procura justificar a relevância do livro que escrevera. Para Lisboa, era objeto geral de censura a decadência da moral pública, pelo contágio da infidelidade, propagado nas revoluções de ambos os hemisférios. Antecipa, desde a palavra inicial, seu compromisso com a moral pública e objeção às mudanças abruptas. Nestes termos, apela para D. Pedro I que, em virtude de seu caráter, deveria patrocinar os estudos das doutrinas que poderiam contribuir na formação de cidadãos de heróico espírito público e, ao mesmo tempo, excitasse virtuosa emulação nos engenhos brasileiros. Ao finalizar esta manifestação, auto classifica o livro como uma “synopse litteraria de huma Sciencia que deve fazer parte mui essencial da INSTRUCÇÃO PUBLICA.”

A dedicatória antecipa e sintetiza pontos centrais da narrativa, indicando os vínculos e posições do autor ao lado da ordem e da moral pública, contra os perigos revolucionários que identifica, sobretudo na França, elemento acentuado pela difusão de livros perniciosos e de adesão à doutrina ancorada exclusivamente na “deusa da razão”, com repercussões no Brasil, quando assinala a existência de revolucionários acachapados no Brasil ou já escancarados em Pernambuco23 que, segundo ele, chegaram a propor um manifesto traidor que deveria servir de base para uma Constituição sem religião. Para ele, o melhor antídoto seria encontrado precisamente na religião. Segundo Lisboa:

Se, em algum momento de loucura, rejeitássemos a Religião Cristã, que até o presente momento tem sido nosso brasão e conforto, e uma grande fonte de nossa civilização e de outras nações, havemos o temor justo de que o vazio se encha pela mais incoerente, perniciosa e vil de todas as superstições. (LISBOA, 1824, p. 2)

Como se pode notar, os volumes dedicados à constituição moral e deveres do cidadão24 apresentam um acentuado tom doutrinário. De acordo com Kirschner (2009, p. 266), o homem do Estado, chama atenção para a importância da existência de uma sólida base moral para o edifício político. Em concordância com esta autora, estes volumes foram publicados em um momento crítico, indicando o compromisso de Lisboa com a erradicação de qualquer elemento considerado nocivo à ordem civil. Deste modo, o expediente consiste em traçar as bases morais do Império brasileiro como estratégia de combate à tormenta das revoluções. Trata-se, ainda segundo esta autora, de uma reação católica frente a um mundo contaminado pelo espírito revolucionário.

Reação que vem ancorada em nos discursos que organizam e sustentam os argumentos do letrado baiano, e de reprovação àqueles que disseminam as doutrinas tidas como perniciosas. Em linhas gerais, a sustentação às postulações que defende decorre de uma literatura inglesa, colocadas em oposição a um conjunto de escritores franceses, com fartas remissões à autores da antiguidade para tonificar ainda mais o binarismo que termina por organizar a narrativa de Lisboa.

Nestes dois volumes, o autor reforça a tese da religião de Estado, fazendo da história uma espécie de mestra da vida, fonte dos argumentos em favor da articulação e indivisibilidade entre ciência e revelação, condição para se atingir uma civilização mais elevada, cujo melhor exemplo, para o autor, poderia ser verificado na experiência da Grã-Bretanha. Para ele, outorgada a Constituição do Império do Brasil, em 25 de março de 1824, cabia fixar e expor as sólidas bases da “Constituição Moral e Deveres dos Cidadãos”, condição para se formar os bons costumes em todos os povos de considerável grau de civilização. É, pois, essa profunda associação entre ciência moral e teologia convertido em nervura central deste enunciado. Para o autor, tratava-se de antídoto necessário às “drogas gallicas”, descritas como mais “mortíferas que os venenos de Colchos”. Ao fim e ao cabo, o discurso do letrado baiano se encontra profundamente comprometido com o combate ao que o futuro Visconde designa de “catecismos da libertinagem”, peça necessária para assegurar uma formação moral que garantisse a “recta conducta” dos cidadãos.

Fonte: Biblioteca Brasiliana25

Figura 3 - Capa do livro "Escola Brasileira ou Instucção util .... (1827) 

Os volumes da “Escola Brasileira”26 reforçam os marcos católicos como aqueles necessários a uma instrução útil para todas as classes. O primeiro deles se encontra estruturado em torno de 103 tópicas, iniciando com a “Vinda de Christo”, finalizando com “Protestação de Fé”. Já o segundo livro contém duas partes. A primeira com 63 tópicas, iniciando-se com uma intitulada “Lei da Sociedade”, sendo finalizada com a tópica “Bens e Males”. A segunda parte se encontra organizada em torno de 41 tópicas, iniciando com “Virtude e Vício”, sendo concluída com “Admoestação aos Christãos”27.

Publicados após a Lei Geral de 15 de outubro de 1827, os novos livros têm destinatários mais bem definidos: pais e educadores. Novos públicos inscritos no título que, por sua vez, vem acompanhado de credenciais que definem pertencimentos estratégicos do sujeito da enunciação, considerando a dimensão nobiliárquica, na alta política e no associativismo científico. A epígrafe também funciona como elemento de distinção junto aos leitores privilegiados. Não se trata de uma citação em latim, de um homem da antiguidade, como no livro de 1824. No livro focado na “instrução útil”, o Visconde recorre a uma parábola de Mateus28 que cumpre duas funções, a de aproximar o leitor por se tratar de texto traduzido para o idioma materno e a de indicar o horizonte do enunciado, seja por seu traço marcadamente católico, seja pela concepção contida na parábola, isto é, o compromisso de recobrir todos “os que estão na casa”, todas as classes, toda a nação.

Os compromissos antecipados na capa do livro se encontram intensificados na dedicatória dirigida “Ao mui alto e poderoso senhor d. Pedro I, imperador constitucional e defensor perpetuo do Brasil”.

SENHOR Sendo constante em hum e outro Hemispherio a porfia dos infiéis em sobverterem o Altar e o Throno, pela introducção de máos livros, em que se desluz a Sagrada Escriptura parece conveniente a firmeza e estabilidade do Edifício Político, de que VOSSA MAGESTADE IMPERIAL foi o glorioso FUNDADOR na Terra da Santa Cruz, que, para se exterminar dela o contagio do século, se instrua e fortifique o espirito dos meninos logo no Ensino das Primeiras Letras com a lição de originaes dictames dos Livros Santos, que dão a evidencia interna da Divina Revelação. Com este desígnio fiz a presente Collecção de varias doutrinas relativas, que entendi não excederem a comprehensão dos entendimentos pueris, e que podem aperfeiçoar a boa índole da geração nascente, que he a esperança da Nação Brasileira. (LISBOA, 1827, p. 9)

Como nos livros de 1824 e 1825, a luta política e doutrinária é tratada em termos de polaridades rígidas. De um lado a tenacidade dos infiéis, subversivos e do contágio. De outro, as pessoas de boa índole, fiéis e portadoras do antídoto necessário para combater o mal do século; posição assumida pelo autor. Delineava, deste modo, os termos da contenda que, para ser bem-sucedida, requeria o apoio do Imperador. Ao concluir sua dedicatória, suplica a mercê de dedicar o livro à “augusta pessoa”, fruto do esforço e desejo pessoal em contribuir para a “solida e orthodoxa Instrucção Nacional”.

Na impossibilidade de examinar o conjunto das 207 tópicas contidas nos dois volumes d’A Escola Brasileira, analiso, de modo geral, alguns elementos que antecedem ao desenvolvimento das referidas doutrinas. Neste caso, selecionei os itens em que trata dos educadores, pais e da própria mocidade, na medida em que se constituem nos sujeitos diretamente envolvidos no programa de formação que o ilustrado baiano formula29.

Antes, contudo, cabe mobilizar alguns indícios que ajudam a compreender a empreitada do homem de letras. Para ele, afirma ter considerado ser conveniente dar à luz para uso das Escolas particulares, aquilo que classifica como “Cartilha30”, que elaborou por conter instrução útil à todas as classes, e poder servir de suplemento às lições dos meninos, “facilitando-lhes o aprenderem Verdades Capitaes em Pura Fonte a fim de se formar nelles espirito recto, e solido caracter, que os constitua bons cidadãos.” (LISBOA, 1827, p. 18).

Formação que deveria ser orientada pela Doutrina Cristã, conforme os ensinamentos da Santa Madre Igreja Católica, Apostólica, Romana que, pela Legislação existente31, obrigava os mestres das primeiras Letras a instruir os discípulos de suas Escolas. Para ele, nenhum conhecimento poderia ser considerado mais digno de fazer parte da educação geral, e dos exercidos diários das mesmas Escolas, do que uma Coleção de Doutrinas Religiosas, Econômicas, e Moraes, que se “achão na Escriptura Sagrada, e que são as Columnas da Civilisação, e veneraveis Documentos da Ordem Social, estabelecida pelo Regedor do Universo.” (idem, p. 19). Para o autor, tais doutrinas deveriam produzir os mais saudáveis e permanentes efeitos nos entendimentos dos meninos, fixando-se na memória, no estado da inocência, a fim de que, em certas ideias cardeais, os brasileiros pudessem se mostrar sempre como os primitivos Cristãos, com um mesmo coração e mesma alma.

O detalhamento, desdobrado nas 207 tópicas, permite pensar a referida cartilha como dispositivo disciplinar, compreendido como parte de um complexo processo no qual as diversas formas das disciplinas passam a ser empregadas como técnicas para assegurar determinada ordem e forma de gestão das multiplicidades.

Arquipélago disciplinar destinado a uma multiplicidade difícil de ser regulada, bem como a fazer crescer a utilidade de cada um32. A disciplina, assim, permite que o poder operacionalize a vida de modo suave, sutil e meticuloso, em favor de um circuito de produtividade e lucratividade máximas. Deste modo, o poliédrico Cairu, ao investir na formação moral e instrução útil, passa a operar no plano da microfísica do poder, prescrevendo conjunto complexo de orientações, a funcionar de modo difuso, interessado, astuto, a ser capilarizado pela malha escolar em constituição. Trata-se, portanto, de acionar um recurso suplementar para interferir no reservado das casas, com seus costumes, rotinas e variações, que também precisavam ser normalizadas. Neste sentido, a cartilha se constituía, igualmente, em recurso fértil que deveria ter efeitos nos processos de subjetivação, de modo a fabricar uma grande irmandade “do mesmo coração e da mesma alma”.

Para sustentar sua formulação enumera uma série de estudos, como os de Mr. Charles Rollin (reitor na Universidade de Paris)33, Adam Smith34, Edmund Burke35, Edmundo de la Borde36, Cícero37 e o do Conde de Montlosier38. A enumeração possui um critério comum, na medida em que todos convergem para a imperiosa necessidade de se instruir, tendo por base os textos sagrados da igreja católica. Após explicitar bem estes marcadores da enunciação, dirige-se aos três públicos do livro, sugerindo uma hierarquia entre eles. Deste modo, a primeira exortação é dirigida aos educadores.

Ao dar uma satisfação aos educadores, afirma ter se inspirado na cartilha de João de Barros, descrito como pai da História do Brasil, autor da Cartinha de Gramatica da Língua Portuguesa, publicada pela primeira vez em 1540. Por ocasião da sua reedição, decorridos mais de dois séculos, em 1785, no prólogo, o editor afirma se tratar de uma das gloriosas empresas do sábio português, que escrevera uma cartilha, com exatidão e clareza, recobrindo os princípios do cristianismo, na qual que os meninos deveriam “beber”, pois não se podia ver, sem pena, os cuidados dos pais na nutrição do corpo, esquecendo-se ou lembrando-se tardia e escassamente de nutrir o espírito.

Recomenda, contudo, que os educadores, deveriam ter sempre, para a própria instrução, a Bíblia inteira da tradução do Padre Pereira, da edição de Lisboa, por ter breves notas de explicação dos temas mais difíceis, destacando algumas passagens dos profetas Davi e Isaías, as quais, segundo ele e a opinião de teólogos ortodoxos, continham o vaticínio do sacrifício do “nosso Redentor, e do triumpho do seu Evangelho, e reino de Deos por todo o Mundo”. (LISBOA, 1827, p. 57).

Destaca, igualmente o caráter exemplar dos que “dão lição das Primeiras Letras”, porque de tais pessoas muito dependia a “formação do caracter dos meninos”, pela benignidade do ensino e bom exemplo de obediência às autoridades. Ao prosseguir, assinala que “felizmente já não se vê nas cidades o máo tratamento, e até a crueldade de castigos, das crianças de hum e outro sexo”, tão usual nas escolas, nas quais os inocentes estremeciam diante dos que deviam ser como pais e mães, mas que se mostravam déspotas e madrastas.

É possível notar que a retórica da piedade e de humanização das penas parece prevalecer, alinhando o brasileiro a um movimento mais geral em favor de recursos mais eficientes no processo de normalização. No entanto, para ele, no Império brasileiro, o abandono da crueldade era especialmente digno de recomendação, pelo influxo que a tirânica educação tinha nos hábitos de violência e soberba dos filhos sobre os seus domésticos e concidadãos, o que indicava ser muito mais difícil de se reformar, enquanto não se abolisse “a triste Lei do Cativeiro, o que só pôde ser obra da MÃO OMNIPOTENTE39” (LISBOA, 1827, p. 73)

Ao se dirigir à mocidade, compartilhava o temor da presença da corruptela do século em todas as classes. Ainda que reconhecesse este elemento, acreditava que, no geral, os pais e mestres prezavam viver no grêmio da Igreja Católica, ainda que não fosse menos certo, que, por “fatal desgraça”, também houvesse infiéis no Brasil, sobretudo depois da difusão de livros corruptores de nações estrangeiras, “ameaçando produzir huma geração incrédula e perversa” (idem, p. 65).

Como se pode notar, o discurso do medo e dos perigos decorrentes das doutrinas nocivas parecem funcionar como cimento para as intervenções do homem de letras. Atento para o movimento de normatização em curso no processo de organização do estado nacional independente, o letrado da Bahia, homem de corte, experimentado no velho e novo mundo, produz peças destinadas a direcionar a constituição moral e deveres do cidadão, conforme o espírito da constituição do Império brasileiro, optando por fazer o debate doutrinário, declaradamente orientado por postulados ortodoxos da igreja católica. Investimento que implica posicionar este discurso em uma longa cadeia, da antiguidade até seus contemporâneos, na qual o autor busca apoio, expediente que lhe possibilita imprimir determinado sentido, (re)animar temas já existentes, reconhecer estratégias opostas, fazer aparecer interesses inconciliáveis. Na ordem discursiva estabelecida, ele termina por dispor os elementos que delineiam o jogo do verdadeiro, do legítimo, do bom e do necessário.

O posicionamento do Visconde fica igualmente visível nos discursos voltados para a escolarização, no momento em que redige e publica o livro destinado a normatizar a escola brasileira ou a instrução útil voltada para todas as classes. Neste material, desde o título, explicita que se trata de extrair regras de conduta e princípios gerais diretamente da Sagrada Escritura, entretecida em um complexo de enunciados, nos quais representa a diferença e dispersão com grande perigo a ser combatido, desde a mais tenra idade. Deste modo, trata de mobilizar e conformar agentes da escola e da casa em aliados deste programa, posto que, no limite, o que se encontrava em jogo era o projeto de uma monarquia constitucional teocrática. Horizonte e compromisso que baliza, orienta e permite perceber a regularidade de certos enunciados, a existência de um sistema de dispersão, o que se agrupa e se separa para assegurar o sucesso da empresa, na qual o sujeito dos enunciados aqui trabalhados comparece como um protagonista bastante ativo em defesa de um novo regime, mantendo-se, contudo, a centralidade da figura do imperador e da religião católica. Traços do antigo regime que deveriam ser preservados na estruturação e funcionamento do novo império tropical.

Cabe, por fim, refletir a respeito da temática da emancipação política no campo da historiografia da educação. Como matéria profundamente implicada com as possibilidades de compreensão do nacional, cumpre analisar como a mesma comparece em narrativas especializadas em história da educação. Para tanto, fiz uma incursão tópica em dois livros clássicos, para perceber o saber e a verdade que se pretendeu cristalizar e reproduzir neste tipo específico de narrativa.

Palavras conclusivas

Em 1889, último ano da monarquia, é publicado um relatório que Nunes (1995) considera a primeira tentativa de sistematização da história da educação brasileira. Como indicam estudos sobre este livro-relatório (GONDRA & MENEZES, 2015; VIEIRA, 2016), trata-se de uma encomenda destinada a representar o Brasil na Exposição Internacional de Paris, de 1889. No documento que produz, o autor, médico e monarquista, ao privilegiar o emprego das fontes oficiais, ressalta pontos de tensão em torno dos quais não se furta de emitir sua posição, muitas vezes, colidindo com afirmações difundidas de que sua obra é toda ela laudatória e ufanista. Tais adjetivos podem ser associados aos heróis da história da educação constituídos pela/na escrita do Dr. Pires de Almeida, o que não ocorre em relação aos diversos pontos por ele abordados ao longo de seu estudo, dentre os quais sublinho a questão do financiamento, da formação de professores, dos concursos, da estrutura e de funcionamento do ensino, das instituições escolares e da legislação.

Nessa espécie de programa (e propaganda), a filiação ao regime monárquico, a condição masculina, a formação médica e a atuação na área da higiene pública, planejamento urbano, jornalismo e teatro se constituem em elementos que marcam as palavras do médico da Corte, visível na composição e manejo da documentação, nas matérias ressaltadas, na perspectiva com que opera e no próprio desenho da narrativa empregada no relatório-livro. Ao tomar esse enunciado como discurso profundamente interessado na construção de um importante vínculo entre instruir e civilizar, os leitores têm, portanto, a possibilidade de ingressar no debate acerca da educação na Colônia e, sobretudo, no Império, por meio de um enunciado bem determinado.

Ao tratar do processo de independência, Almeida argumenta em favor de um novo marco para a história do Brasil. Para ele, a chegada de D. João VI mudara completamente as condições do país, sob todos os aspectos. Com a chegada da família real, teria começado “verdadeiramente a constituição da nacionalidade brasileira, nacionalidade proclamada em dezembro de 1815” (ALMEIDA, 1989, p. 41). Com o gesto de conceder ao Brasil o título de Reino40, definira “a constituição da nacionalidade brasileira, a declaração de sua independência” (idem, 1989, p. 43). Na sequência, faz um balanço da quinzena de anos do reinado de D. João VI, qualificando como os mais férteis para a constituição do Brasil, com resultados excelentes, sendo a instrução pública objeto de especial atenção. Essa avaliação o faz sustentar uma nova periodização e, portanto, inteligibilidade específica para se compreender a emancipação política do Brasil. Na sua perspectiva,

Os historiadores nacionais só começaram realmente nossa história, como um povo reconhecido, tendo seu lugar no conserto das nações, em 1822 e sempre dizem, ao falar do reino de S. M. D. Pedro II, segundo reinado41. Mas, é realmente, o terceiro42, porque o reino de D. João VI, no Brasil, foi um dos mais notáveis e frutuosos e ocupará um importante lugar na história do país. Esta exclusão sistemática não tem razão de ser. Não há brasileiro esclarecido que não admita D. João VI como o verdadeiro fundador do Império do Brasil43, sob um outro título, é verdade, mas que não diminui em nada o vigoroso impulso que este monarca soube dar à civilização do país. (ALMEIDA, 1989, p. 50-51).

Como se pode notar, o médico-autor promove um recuo na periodização consagrada, propondo uma inteligência que reconhecesse as ações de D. João VI no processo de independência nacional que, sob este ponto de vista, teria sido proclamada em 16 de dezembro de 181544. Com este gesto, os brasileiros passaram a ter o dever de dar aos filhos, não somente a educação moral e a instrução primária ou científica necessária a todos os homens (uma obrigação), mas também os de lhes inculcar, por assim dizer, na alma nacional, este sentimento de fraternidade para com todos os homens do próprio país, condição que teria feito a força da nação e assegurado sua independência; advoga o autor. Em suma, vemos uma vez mais, pelas lentes do relator, nos soberanos e nos dirigentes do povo, o hábito dos grandes pensamentos, das visões largas, da visão de conjunto, a faculdade de sintetizar, nas medidas do presente, os desenvolvimentos possíveis do futuro (idem, 1989, p. 51).

Para ele, era nestes termos que a história deveria ser narrada, reproduzida. Redigido em francês, este livro ganhou maior circulação com a tradução, um século depois, para língua portuguesa, fora do ambiente inicial de sua produção, mas ainda mantendo a defesa das iniciativas da monarquia, com um deslocamento importante no que se refere às iniciativas do segundo monarca. Produz, a rigor, uma linha de continuidade com os gestos do neto de D. João VI, D. Pedro II, com quem o narrador possui vinculações doutrinárias em termos da manutenção do regime e da crença na instrução como fundamento da nacionalidade.

No entanto, a difusão do livro-relatório não ficou limitado a um expositor do pavilhão brasileiro, na capital francesa, em 188945. Um dos exemplos consiste na remissão que Peixoto (1930) faz a este documento no texto a respeito do ensino primário, elaborado por ocasião do centenário da câmara dos deputados. Para o médico baiano, em síntese produzida na condição de deputado, Pires de Almeida é classificado como um escritor otimista que, ao escrever um grosso livro, "L'instruction publique au Brésil", era coagido a confessar que o ensino primário estava em desarmonia como o lugar que o Brasil deveria ocupar entre os povos cultos (PEIXOTO, 1930, p. 70).

Ao convocar o seu colega de ofício, Peixoto reconhece o caráter “otimista” do livro-relatório, ao mesmo tempo em que seleciona um elemento que ajuda a fortalecer a representação que procura construir de outros presentes da educação brasileira, isto é, a desarmonia do Brasil no campo da instrução quando comparado com os países considerados mais cultivados.

A presença do “grosso livro” na produção do médico baiano não fica restrita ao balanço do centenário do ensino primário (1826-1926), tendo sido remobilizado no livro-curso resultante de sua condição de professor de história da educação no Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Mais uma vez, recorre ao monarquista para sustentar a história que o baiano narra. Neste caso, mesmo na condição de alinhado ao império, Almeida também estranhava a não execução de algumas medidas decorrentes do ato adicional de 1834, como a fiscalização do ensino primário.

No que se refere à narrativa destinada ao ensino de história da educação, optei por fazer uma incursão no manual redigido pelo médico baiano, no caso, o livro “Noções de História da Educação”, de Julio Afranio Peixoto46, para observar a representação que produz do acontecimento da Independência do Brasil.

Como médico, Peixoto ministrou as cadeiras de higiene, medicina legal e criminologia da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro; atuando, igualmente, no parlamento, na administração pública e nos campos literário e da história47. Durante três anos de sua vida (1932-1934), ensinou história da educação no Instituto de Educação do Rio de Janeiro (IERJ). Desta experiência resultou o referido livro, objeto de três reedições sucessivas (1933, 1936 e 1942), no qual sistematiza o curso “ditado” e produz uma memória do que deveria ser ensinado às futuras professoras da capital48. Neste curso-livro, estabelece uma determinada representação do acontecimento da independência. Na sua narrativa, contrariando o livro do colega de ofício, o período joanino é invisibilizado e, com isto, apaga o reconhecimento daquele que teria sido o verdadeiro fundador da nacionalidade, de acordo com a perspectiva contida no livro do médico-relator, de 1889.

Peixoto adere à historiografia que consagra a Independência como uma data, uma cena e um protagonista que, em sua narrativa, não consegue efetivar o projeto de educação para todos, ainda que admita a existência de um conjunto de iniciativas nos planos do poder executivo e do legislativo.

Ao reconhecer as iniciativas positivas do Império brasileiro indica que não haviam sido executadas. Para tanto, recorre à literatura disponível, aos arquivos do parlamento, aos relatórios ministeriais e aos do próprio Imperador para informar às futuras professoras o diagnóstico da falta e/ou insuficiência do ensino, nos diversos níveis e modalidades, indicando a necessidade de se fundir o projeto com sua execução, aspecto que, na perspectiva do narrador, só poderia ser conduzido pela geração que integra e tipo de reforma social que esse grupo pretendia desenvolver, inclusive, nas escolas e na criação de um efetivo sistema de ensino.

Este movimento ajuda a compreender a ausência de uma história da educação edificante quando se remete à emancipação do Brasil. O que interessa a ser ensinado é uma história que mescla boas intenções e fracassos, expediente adotado para produzir a falta que sua geração pretendeu preencher em termos de educação intelectual, física e moral. Diferentemente de Lisboa e de Almeida, que narram os sucessos da Monarquia, o médico-professor se ocupa em apresentar uma galeria de insucessos, marcador que organiza a informação ditada em suas aulas para normalistas e tornada disponível para o conjunto dos destinatários das noções que publica. Dessa incursão tópica no primeiro manual destinado à formação de professoras/es há, no mínimo, dois vetores a serem explorados.

O primeiro confirma o cânone narrativo da história nacional, no qual a independência como acontecimento se constitui em item compulsório, posto que, como em velhas biografias, indica uma data de nascimento e se procura conferir e autenticar uma paternidade e/ou patriarcado.

O segundo vetor, no que pudemos explorar neste trabalho, sugere a existência de uma disputa em torno do verdadeiro, das possibilidades de compreensão e das lutas sociais, mais ou menos exuberantes em torno de um projeto nacional.

Para efeitos deste trabalho, enfatizei as mediações mais ou menos sutis em torno de aspectos associados à educação moral, selada por uma encomenda e publicada sob a proteção do Augusto Imperador, D. Pedro I. Elemento que reaparece no relatório que representou o Brasil na exposição internacional de Paris, em 1889, no qual os protagonistas são D. João VI e, sobretudo, D. Pedro II.

A preocupação com a moral se vê reabilitada mais de cem anos depois em um curso ditado, convertido em livro, destinado às futuras professoras primárias. No novo investimento, o ordenamento moral se mantém, sendo, contudo, naquele presente, calibrado pelos ares de uma pedagogia científica e renovada, expediente que termina por resumir a história do império brasileiro a uma sucessão de fracassos ou misérias; condição para habilitar os novos narradores e a pedagogia como ciência a ocuparem o centro da cena.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, José Ricardo Pires de. História da instrução pública no Brasil, 1500-1889. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Pedagógicas, 1989. [ Links ]

ARAUJO, Valdei Lopes. José da Silva Lisboa (Salvador, 1754- Rio de Janeiro, 1835). Dicionário de Historiadores Portugueses. Disponível em http://dichp.bnportugal.pt/historiadores/historiadores_lisboa.htm Acesso em 19 jun 2020. [ Links ]

BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionario bibliographico brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1883. Disponível em Disponível em http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/221681 Acesso em 16 abr 2020. [ Links ]

BRANDÃO, Ulisses. A confederação do Equador. Recife: Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, 1924. [ Links ]

BRASIL. Atas do Conselho de Estado (1823-1834). Disponível em Disponível em https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/pdf/ACE/ATAS2-Segundo_Conselho_de_Estado_1822-1834.pdf Acesso em 13 abr 2020. [ Links ]

DUGGAN, Stephen Pierce. A Student textbook in the History of Education. Chicago: D. Appleton, 1916. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 9ª edição. Petrópolis: Vozes, 1991. [ Links ]

GONDRA, José G. Artes de civilizar - medicina, higiene e educação escolar na Corte Imperial. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2004. [ Links ]

GONDRA, José G.; MENEZES, Roni. Oficina na escola. In: Cleide Maciel; Ana Amélia Lopes. (Org.). Clássicos da Educação Brasileira. 1ed.Belo Horizonte: Mazza, 2015. [ Links ]

GONDRA, José. A emergência da escola. São Paulo: Cortez, 2018. [ Links ]

GONDRA, José G. Genealogy as an exercise in counter memory: Afranio Peixoto and the emergence of the school (1932-1942). Cadernos de História da Educação, 2020. [ Links ]

GONDRA, José G.; SCHUELER, Alessandra. Educação, poder e sociedade no Império Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2008. [ Links ]

HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). O Brasil Monárquico: o processo de emancipação. Vol. III. 4ª. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1976. [ Links ]

HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). O Brasil Monárquico: declínio e queda do Império. Vol. VI. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. [ Links ]

HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Brasil Monárquico: Do Império à República. Vol. VII. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. [ Links ]

KIRSCHNER, Tereza. José da Silva Lisboa - Visconde de Cairu - Itinerários de um ilustrado luso-brasileiro. São Paulo: Alameda, 2009. [ Links ]

LISBOA, José da Silva. Constituição moral e deveres do cidadão, com exposição da moral publica conforme o espirito da constituição do Imperio. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1824. [ Links ]

LISBOA, José da Silva. Supplemento a constituição moral, contendo a exposição das principaes virtudes e paixões; e appendice das maximas de La Rochefoucald, e doutrinas do christianismo. Typographia Nacional, 1825. [ Links ]

LISBOA, José da Silva. Escola brasileira ou instrucção util a todas as classes extrahida da Sagrada Escriptura para uso da mocidade. Vol. I. Rio de Janeiro: Typographia de Pedro Plancher-Seignor, 1827. [ Links ]

LISBOA, José da Silva. Escola brasileira ou instrucção util a todas as classes extrahida da Sagrada Escriptura para uso da mocidade. Vol. II. Rio de Janeiro: Typographia de Pedro Plancher-Seignor, 1827a. [ Links ]

LYNCH, Christian Edward Cyril. A ideia de um Conselho de Estado brasileiro - Uma abordagem histórico-constitucional. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 42 n. 168 out./dez. pp. 45-64, 2005. [ Links ]

MONROE, Paul. A brief-course in the history of education. New York: Macmillan co, 1907. [ Links ]

MONROE, PAUL. Textbook in the history of education. New York, Macmillan co. 1908. [ Links ]

MONTENEGRO, João Alfredo de Sousa. O discurso autoritário de Cairu. 2ª ed. - Brasília: Senado Federal, 2000. [ Links ]

NAGLE, Jorge. Educação na primeira república. In: FAUSTO, Boris (org.). O Brasil republicano - Sociedades e instituições (1889-1930) Vol. IX. 8ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. [ Links ]

NEVES, Lúcia M. Bastos P.. Livros e Impressos: Retratos do Setecentos e do Oitocentos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009. [ Links ]

NUNES, Clarice. A instrução pública e a primeira história sistematizada da educação brasileira. Cadernos de Pesquisa: São Paulo: n. 93, 1995. [ Links ]

NUNES, Clarice. Ensino e historiografia: problematização de uma hipótese. Revista Brasileira de Educação. São Paulo, n. 1, 1996. [ Links ]

PAULA, Dalvit Greiner de; NOGUEIRA, Vera Lúcia. Escola Brasileira: o projeto de educação moral para a mocidade em José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu (1756-1835). Revista de História e Historiografia da Educação - Curitiba, Brasil, v. 1, n. 3, p. 8-29, set./dez. 2017 DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rhhe.v1i3.50875Links ]

PEIXOTO, Afranio. Martha e Maria: documentos de acção pública. Rio de Janeiro: Sociedade Gráfica Editorial, 1930. [ Links ]

PINTO, Luiz Maria da S. Diccionario da Lingua Brasileira. Ouro Preto: Typographia de Silva, 1832 [ Links ]

RIBEIRO, Leonídio. Afranio Peixoto. Rio de Janeiro: Edições Conde, 1950. [ Links ]

ROCHA, Antonio Penalves. José da Silva Lisboa - Visconde de Cairu. São Paulo: Editora 34, 2001. [ Links ]

SCHWARCZ, Lilia Moritz; AZEVEDO, Paulo Cesar de; COSTA, Angela Marques da. A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à Independência do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. [ Links ]

SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. [ Links ]

SILVA, Alberto da Costa (org.). Crise Colonial e Independência: 1808-1830. (8ª reimpressão). Rio de Janeiro, 2018. [ Links ]

SILVA, José Cláudio Sooma; FAVARO, Marta Regina Gimenez. Paul Monroe e a circulação de uma modalidade narrativa para se pensar e ensinar as histórias da educação. Revista Brasileira de História da Educação, Maringá-PR, v. 14, n. 3 (36), p. 181-204, set./dez. 2014. Disponível em: Disponível em: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v14i3.574.1 Acesso em 24 abr 2020. [ Links ]

VENANCIO Giselle Martins; FURTADO, André. Passados (im)perfeitos ou a ótica buarqueana sobre o Império do Brasil na américa. Revista Brasileira de História, vol. 36, nº 73, pp. 135-157, 2016. [ Links ]

VIEIRA, Carlos Eduardo. José Ricardo Pires de Almeida entre duas vocações: a política e a ciência. Cadernos de História da Educação, v. 14, n. 3, 8 fev. 2016. [ Links ]

WEREBE, Maria José G. Grandezas e misérias do ensino no Brasil. 4ª edição. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970. [ Links ]

WEREBE, Maria José G. Educação. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). O Brasil Monárquico: declínio e queda do Império. Vol. VI. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. [ Links ]

1De acordo com (SCHWARCZ, 2000, 2002), foi o maior de nossos atos. Da varanda do Paço Imperial, discursou por cerca de uma hora, para uma multidão de cerca de 3 mil pessoas. Em seguida, dirigiu-se à Capela Imperial, onde assistiu ao Te Deum, passando em seguida para o Palácio, para a cerimônia do beija-mão e, à noite, compareceu ao Teatro de São João. A fabricação do primeiro Imperador do Brasil recorreu a muitas outras festividades, como a que ocorrera antes, em 12 de outubro, natalício de D. Pedro I. Nesta outra data simbólica, ocorrera a cerimônia de sua aclamação como Imperador do Brasil, acontecimento relembrado n’O Espelho, em 3 de dezembro, nos seguintes termos: “O Brasil, suplantando o despotismo, e a anarquia, havia levantado, no glorioso 12 de outubro, um novo trono, erguido sobre o amor e a gratidão de um povo generoso, que firmado em bases tão sólidas, persistira inabalável, a despeito de solapadas intrigas e de agressões descaradas. [...].

2Em 16 de agosto de 1822, o livreiro, jornalista, político e poeta Evaristo da Veiga redigiu uma letra do que viria a ser reconhecido como o Hino da Independência, com a melodia inicial do maestro lusitano Marcos Portugal, com uma segunda melodia do primeiro imperador do Brasil.

3Destaque do impresso. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=700916&pesq=%22Debret%22&pasta=ano%20182 Acesso em 10 abr. 2020.

5Na orelha do volume VII, consta que a coleção foi organizada por uma geração de intelectuais, que expressam muitas vezes pontos de vista diversos, a partir de diversos ângulos de abordagens. No conjunto, afirma que se procurou descartar tanto uma visão triunfalista como uma visão da história predeterminada. O texto anônimo (que pode ser atribuído aos organizadores/editores) indica, ainda, que as questões (tratadas na coleção) “se abrem a partir da linha de interseção entre condicionamentos socioeconômicos, culturais, etc ... e as opções possíveis dos seres humanos que fazem a História.” (HOLANDA, 2005)

6I- Do descobrimento à expansão territorial, II- Administração, economia, sociedade

7III- O processo de emancipação, IV- Dispersão e unidade, V- Reações e transações, VI- Declínio e queda do Império, VII- Do Império à República. Os volumes III, IV, V e VI contaram com a assistência de Pedro Moacyr de Campos.

8VIII- Estrutura de poder e economia (1889-1930), IX- Sociedade e Instituições (1889-1930), X- Sociedade e política (1930-1964), XI- Economia e cultura (1930-1964)

9A respeito da coletânea, cf. Venâncio; Furtado, (2016).

10I- Crise Colonial e Independência: 1808-1830. II- A Construção Nacional, 1830-1889, III- Abertura para o Mundo, A: 1889-1930, IV- Olhando para Dentro: 1930-1964, V- Modernização, Ditadura e Democracia: 1964-2010. Os volumes foram organizados, respectivamente, por Alberto da Costa e Silva, José Murilo de Carvalho, Lilia Moritz Schwarcz, Angela de Castro Gomes e Daniel Aarão Reis.

11Trata-se, precisamente, do 17º capítulo, o último do Livro IV, intitulado “Vida espiritual”. A primeira edição deste volume foi publicada em 1971. Nos volumes dedicados à República, também há um capítulo dedicado à educação. Neste caso, trata-se do trabalho de Nagle (2006), sendo a primeira edição deste volume de 1977.

12A saber: Herança educacional do Brasil-Colônia; Instalação da Corte portuguesa no Brasil; Educação popular; Ensino secundário; Ensino superior; Descentralização do ensino; Liberdade do ensino; Projetos e debates na Assembleia Constituinte e Legislativa; Pareceres de Rui Barbosa; O ensino no fim do Império.

13Termo consagrado no livro que a professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo escreve, com a primeira edição datada de 1963, no qual estabelece o modo binário com que opera, marca que também comparece no capítulo da coletânea sobre o Império brasileiro. A esse respeito, cf. Werebe, (1970).

14A esse respeito, conferir os periódicos especializados da área (Revista Brasileira de História da Educação.http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/rbhe; Revista História da Educação. http://seer.ufrgs.br/asphe; Cadernos de História da Educaçãohttp://www.seer.ufu.br/index.php/che/, bem como os anais dos Congressos Brasileiros de História da Educação, disponíveis em http://www.sbhe.org.br/anais-cbhe Acesso em 11 de abril de 2020. Ver também Gondra; Schueler (2008) e Gondra (2018).

15A respeito do debate relativo à educação integral, do ponto de vista médico-higiênico, cf. Gondra, (2004).

16. Segundo Kirschner (2009), nascido em Salvador, ao retornar à colônia, José da Silva Lisboa iniciou uma trajetória administrativa na monarquia lusa onde se destacaria pela lealdade à Coroa Portuguesa. Na capitania da Bahia, o luso-brasileiro exerceu os cargos de ouvidor, professor régio e deputado da Mesa da Inspeção da Agricultura e do Comércio. Em 1808, a convite do príncipe D. João, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde foi nomeado diretor e censor da Impressão Régia e deputado da Junta do Comércio. Durante o período da independência, atuou na imprensa, participou da Assembleia Constituinte em 1823 e foi senador do império de 1826 a 1835. Dentre as várias mercês que recebeu de D. Pedro I, destacam-se o título de Barão em 1824 e o de Visconde, em 1826. Neste mesmo ano, por D. Pedro I, senador do Império, função que exerceu até sua morte em 20 de agosto de 1835, dado a vitaliciedade do senado à época. Ao longo de sua vida, o funcionário luso-brasileiro produziu quantidade significativa de escritos da mais diversa natureza. As interpretações contidas neste livro sobre o Visconde, sua obra e sua atuação mostram distintos posicionamentos diante de problemas políticos e econômicos de determinada época. Assim, questões que mobilizaram intelectuais brasileiros, como a industrialização nacional, o autoritarismo político e o papel do intelectual diante do Estado, encontraram em Cairu referência tanto para elogios exagerados quanto para críticas exacerbadas. Mas foi a fidelidade do Visconde ao Estado, tanto português como brasileiro, que contribuiu para a construção da sua memória, até hoje controversa. Para Rocha (2001), o título de barão foi concedido em 1825. No verbete do dicionário de Blake (1883) e no livro de Montenegro (2000) esta informação não aparece. Para Araujo (2020), os serviços ao Estado e à dinastia de Bragança foram reconhecidos com os títulos de Barão (1823) e Visconde de Cairu (1826).

17Esta escola estava sob a responsabilidade de três diretores, o tenente coronel José Saturnino da Costa Pereira, o tenente coronel João Paulo dos Santos e o doutor João da Silveira Caldeira. O professor era Francisco Joaquim Nogueira Neves. Cf. Almanach do Rio de Janeiro (RJ), 1824, p. 281-282. A edição deste almanaque, de 1825, p. 255-256, informa a substituição de um dos diretores, mantendo-se o mesmo professor. Informa, contudo, que o referido decreto data de 13 de abril de 1823.

18A respeito das tensões no processo de independência do Brasil, cf. Neves (2009).

19Cf. Lisboa (1824, 1825, 1827 e 1827a).

20A primeira Assembleia Nacional Constituinte foi convocada por D. Pedro em 3 de junho de 1822, instaurada em 3 de maio de 1823 e dissolvida, seis meses depois, em 12 de novembro de 1823. A elaboração da primeira Constituição foi delegada a dez homens probos, amantes da dignidade imperial e da liberdade dos povos” que passaram a compor o Conselho de Estado, com base no Decreto de 13 de novembro de 1823, que cria e nomeia os seus: “Havendo eu, por decreto de 12 do corrente, dissolvido a Assembléia-Geral Constituinte e Legislativa, e igualmente prometido um projeto de Constituição, que deverá (como tenho resolvido por melhor) ser remetido às Câmaras, para estas sobre ele fazerem as observações, que lhe parecerem justas, e que apresentarão aos respectivos Representantes das Províncias, para delas fazerem o conveniente uso, quando reunidos em Assembléia, que legitimamente representa a nação: E como para fazer semelhante projeto com sabedoria, e apropriação as luzes, civilização, e localidades do Império, se faz indispensável, que eu convoque homens probos, e amantes da dignidade imperial, e da liberdade dos povos: Hei por bem criar um Conselho de Estado, em que também se tratarão os negócios de maior monta, e que será composto de dez membros; os meus seis atuais Ministros, que já são Conselheiros de Estado natos, pela Lei de 20 de outubro próximo passado, o Desembargador do Paço Antônio Luiz Pereira da Cunha, e os Conselheiros da Fazenda Barão de Santo Amaro, José Joaquim Carneiro de Campos, e Manoel Jacinto Nogueira da Gama: os quais terão de ordenado 2:400$000 anuais, não chegando a esta quantia os ordenados, que por outros empregos tiverem. O Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império, o tenha assim entendido, e faça executar, expedindo as ordens necessárias. Paço em 13 de novembro de 1823, 2º da Independência e do Império. Francisco Villela Barboza”. Cf. Brasil, 2020; Lynch, 2005.

21Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/185611. Acesso em: 12 jul. 2021.

22A capa (Figura 2) antecipa dois elementos ordenadores da leitura. O primeiro consiste no reforço à monarquia constitucional e, o segundo, o caráter erudito do autor, na medida em emprega uma epígrafe de Tácito, senador e historiador romano, sendo conhecido pelas contribuições a respeito do poder em Roma, na sua época (56-117 d.c).

23Trata-se de uma referência à Confederação do Equador. A respeito deste movimento, cf. Brandão, 1924.

24O volume I possui 182 páginas e o volume II possui 295 páginas na versão digitalizada, com que trabalhamos. De acordo com o Diário do Rio de Janeiro, de 28 de fevereiro de 1825, o volume I custava 800 réis. Neste mesmo impresso, anunciava-se também compra, venda e aluguel de escravos/as, sapatos e serviços diversos. Um lenço branco bordado, por exemplo, custava 400 réis. O valor de um lenço liso correspondia a 240$00 e um de seda preta entre 900 e 1000 réis. No dia 4 de maio de 1825, o impresso noticiou o lançamento do segundo volume, pelo mesmo valor, podendo ser adquirido nos “lugares de costumes”.

26O volume I possui 269 páginas e o volume II possui 293 páginas na versão digitalizada, com que trabalhamos. A respeito dessa publicação, cf. Paula & Nogueira, 2017.

27Esses livros são anunciados na imprensa da época, recurso adicional para dar visibilidade às palavras de Lisboa que fez uso muito regular deste expediente para orientar a opinião pública. No Jornal do Comércio - Folha comercial e política, de 2 de janeiro de 1829, os dois volumes são anunciados pelo valor de 3$200, na coluna “livros a venda”. No entanto, no mesmo ano de publicação, 1827, o impresso Diário Fluminense anunciou o primeiro volume, no valor de 1$600, podendo ser adquirido nas lojas dos livreiros Veiga & Cia, na de Baptista e na de Coutinho e Agra. Em 1928, este periódico noticia o lançamento do segundo volume, pelo mesmo valor, a venda nos estabelecimentos já referidos. Anuncio do volume I também foi publicado, em 1827, no impresso Gazeta do Brasil: quem quer ser livre, deve ser escravo da lei.

28“Os que accendem huma luzerna, não a mettem debaixo do alqueire, mas a põe sobre o candieiro, a fim de que luza a todos que estão na Casa”. S. Matheus. V. 5:15. (cf. Figura 2)

29O programa que redige tem por base o texto bíblico, pois, para ele, “He só a Biblia que instrue”. Para tanto, se valeu da tradução aprovada e corrente do insigne teólogo Padre Antônio Pereira de Figueiredo. (Lisboa, 1827, p. 30). Trata-se de um padre português (1725-1797) que desempenhou inúmeras atividades, sendo latinista, historiador, canonista e teólogo. Seu trabalho mais importante consiste na tradução da Bíblia da Vulgata Latina para a língua portuguesa, projeto no qual esteve envolvido por 18 anos.

30O dicionário de Pinto (1832) define cartilha como livro para ensinar a ler e a doutrina Cristã.

31

Refere-se a Lei Geral do Ensino, de 15 de outubro de 1827, especialmente o artigo 6º, que estabelece “Art 6º Os Professores ensinarão a ler, escrever as quatro operações de arithmetica, pratica de quebrados, decimaes e proporções, as nações mais geraes de geometria pratica, a grammatica da lingua nacional, e os principios de moral christã e da doutrina da religião catholica e apostolica romana, proporcionandos á comprehensão dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Imperio e a Historia do Brazil.”.

Disponível https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38398-15-outubro-1827-566692-publicacaooriginal-90222-pl.html Acesso em 17 abr 2020.

32De acordo com Foucault (1991), o investimento disciplinar implica em processo técnico pelo qual a força do corpo é, com ônus mínimo, reduzida como potência política e maximizada como força útil, isto é, obter-se o máximo de rentabilidade com o mínimo de esforço.

33Remete ao Tratado de Estudos, citando diversos trechos deste livro.

34Remete ao livro V, capítulo III, do Riqueza das Nações, no qual aborda a questão da instrução.

35Refere-se “as suas admiradas REFLEXÕES SOBRE A REVOLUÇAÕ da França”, no qual argui a Assembleia Nacional, por não ter seguido os documentos do Economista Sagrado.

36Refere-se ao livro Espírito de Associação.

37Descrito como celebrado Orador e Estadista do Império Romano que, de acordo com Lisboa, insinuava, que devia fazer parte dos “Estudos liberaes da Mocidade o lerem e aprenderem de cór os meninos a LEI DAS DOZE TABOAS, á que deo o titulo de CANÇÃO NECESSÁRIA.” (1827, p. 27)

38Faz referência a sua recente e famosa “MEMÓRIA sobre o SYSTEMA RELIGIOSO e POLÍTICO na Part. III. Cap, IV.”

39Grifos e destaque no original.

40O príncipe regente e futuro rei D. João VI, durante o período final do reinado de sua mãe, D. Maria I, elevou, em 16 de dezembro de 1815, o Brasil da condição de vice-reinado colonial à de reino autônomo, intitulando-se desde então pela Graça de Deus Príncipe-Regente de Portugal, Brasil e Algarves, d'aquém e d'além-mar em África, senhor da Guiné, e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia. A cidade do Rio de Janeiro passou a ser a capital do reino.

41Grifo do autor.

42Neste caso, o autor remete aos reinados de D. Maria I (1815-1816) e D. João VI (1816-1822), na condição de Reino Unido. Como nação independente, o Brasil teve dois monarcas, os imperadores D. Pedro I (1822-1831) e D. Pedro II (1831-1889).

43Grifos meus.

44A Carta de Lei, eleva o Estado do Brasil à graduação e categoria de Reino. Uma cópia se encontra disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/carlei/anterioresa1824/cartadelei-39554-16-dezembro-1815-569929-publicacaooriginal-93095-pe.html Acesso em 24 abr 2020.

45A Revista Sul-Americana, de 30 de julho de 1889, dá publicidade ao livro de Almeida, ao lado de muitos outros anúncios de livros.

46A respeito deste livro, cf. Gondra, 2020.

47A respeito da trajetória de Peixoto, cf. a sua biografia escrita por um de seus discípulos na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro: Ribeiro, 1950.

48Livro que, segundo o autor, teria sido inspirado em dois manuais “dignos de cópia”, os livros de Paul Monroe (1907 e 1908) e Stephen Duggan (1916). A respeito do manual de Monroe, cf. Silva; Favaro, 2014.

Recebido: 02 de Agosto de 2020; Aceito: 22 de Dezembro de 2020

E-mail:label> gondra.uerj@gmail.com

JOSÉ GONÇALVES GONDRA é sócio fundador da Sociedade Brasileira de História da Educação, tendo sido eleito vice-presidente da mesma para o biênio 2010-2011 e reeleito para o biênio 2012-2013. É consultor ad-hoc de periódicos especializados, editoras e agências de fomento. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em História da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: história da educação brasileira, educação no império, história da infância e historiografia. É pesquisador da FAPERJ no programa Cientista do Nosso Estado, do PROCIENCIA UERJ/FAPERJ e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

Editora responsável:

Tatiane de Freitas Ermel

Creative Commons License This is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License