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História da Educação

versão impressa ISSN 1414-3518versão On-line ISSN 2236-3459

Hist. Educ. vol.25  Santa Maria  2021  Epub 31-Ago-2021

https://doi.org/10.1590/2236-3459/106131 

Dossiê

Independência, democracia e formação no discurso da Associação Brasileira de Educação: 1927-1945

Carlos Eduardo Vieira* 
http://orcid.org/0000-0001-6168-271X

* Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba/PR, Brasil.


Resumo

Neste artigo nos propomos a discutir as relações e as variações semânticas da tríade conceitual independência, democracia e formação do povo brasileiro. Para isso, analisaremos o discurso enunciado pela Associação Brasileira de Educação (ABE), entre os anos de 1927 e 1945. Nas conclusões buscamos demonstrar que o discurso sobre a formação do povo brasileiro teve como um dos seus objetivos a consolidação do Estado-nação, todavia essa formulação não incluía a promoção da participação política da população.

Palavras chaves: Independência; Democracia; Formação; Associação Brasileira de Educação; Discurso Educacional

Abstract

We discuss the relations and semantic variations of a conceptual triad, namely independence, democracy, and the making of the Brazilian people. To achieve it, we analyze the Brazilian Association of Education (ABE) discourse, between 1927 and 1945. We show that discourse on the making of the Brazilian people was to consolidate nation-state, even though this making did not include fostering the people’s political participation.

Keywords: Independence; Democracy; Making; Brazilian Education Association; Educational Discourse

Resumen

En este artículo proponemos discutir las relaciones y las variaciones semánticas de la tríada conceptual independencia, democracia y formación del pueblo brasileño. Con este fin, analizaremos el discurso enunciado por la Asociación Brasileña de Educación (ABE), entre los años 1927 y 1945. En las conclusiones buscamos demostrar que el discurso sobre la formación del pueblo brasileño tenía como uno de sus objetivos la consolidación del Estado-nación, sin embargo, esta formulación no incluía la promoción de la participación política de la población.

Palabras clave: Independencia; Democracia; Formación; Asociación Brasileña de Educación; Discurso educativo

Résumé

Dans cet article, nous proposons de discuter des relations et des variations sémantiques de la triade conceptuelle indépendance, démocratie et formation du peuple brésilien. À cette fin, nous analyserons le discours de l'Association brésilienne de l'éducation (ABE), entre les années 1927 et 1945. Dans les conclusions, nous cherchons à démontrer que le discours sur la formation du peuple brésilien avait pour objectif la consolidation de l'État-nation, mais cette formulation n'incluait pas la promotion de la participation politique de la population.

Mots clés: Indépendance; Démocratie; Formation; Association brésilienne de l'éducation; Discours éducatif

Introdução1

A aproximação das comemorações do bicentenário da independência do Brasil tem mobilizado diferentes comunidades acadêmicas a refletirem sobre o legado dos acontecimentos de 1822 e, sobretudo, sobre os seus impactos, pretéritos e presentes, nas diferentes esferas da vida social.

Essa reflexão vem se dando em um cenário internacional especialmente complexo, que vem tensionando, por um lado, tendências econômicas, acordos políticos multilaterais e tecnologias de comunicação que favorecem a globalização dos mercados, os intercâmbios culturais e, consequentemente, a ressignificação do conceito de Estado-nação, que teve sua origem no final do século XVIII. Por outro lado, verifica-se o ressurgimento do discurso e do sentimento nacionalista em diferentes contextos regionais e nacionais, viabilizando assim a ascensão de grupos políticos xenófobos, defensores e promotores de medidas de controle territorial, cultural e político mais estritos. Em nome desse interesse nacional são erguidas barreiras físicas e simbólicas, que cerceiam os movimentos populacionais, com efeitos deletérios, notadamente, para os refugiados das guerras e da fome.

Tendo em vista essas questões mais amplas, pretendemos contribuir com os debates que envolvem o bicentenário da independência do Brasil, tendo como objeto o discurso educacional, uma vez que o conceito de formação do povo foi entendido, desde o processo de independência, como fator de mediação fundamental para produzir o sentimento de pertencimento da população brasileira ao projeto de construção do Estado nacional. Entendemos formação, seja esta promovida por agentes públicos ou privados, em ambientes escolares ou não escolares, como a ação de uma pedagogia social que visou forjar na população brasileira o espírito cívico-patriótico.

Esse modo de pensar, que articula a consolidação do Estado-nação e a formação do povo, permaneceu presente no cenário intelectual e político brasileiro ao longo dos 200 anos de experiência do Estado nacional. Não obstante, se a presença desses conceitos e das suas conexões foram uma constante, tanto no período Imperial, como no Republicano, os seus significados se alteraram substantivamente. Esses conceitos, oriundos do discurso político e marcados pela longa duração, são exemplos lapidares para evidenciar a historicidade da linguagem, as suas variações semânticas e, sobretudo, as apropriações e os usos desses termos em diferentes espaços de debate público2.

Incluímos, ainda, um terceiro aspecto no desenho da problematização que nos propomos: o conceito de democracia. Nos moveu para inclusão desse conceito a seguinte questão: que tipo de relação foi estabelecida, no âmbito do discurso sobre a formação do povo, entre a construção de um país soberano e a participação política da população no processo de afirmação do Estado nacional? Em outros termos, indagamos: de que forma a propalada e reclamada educação cívica e patriótica, articulada à formação da chamada consciência nacional, incluía ou excluía as relações entre Estado e sociedade civil, governantes e governados e/ou elites dirigentes e a população brasileira?

Em síntese, nos propomos a discutir as relações e as variações semânticas da tríade conceitual independência, democracia e formação. Adotamos, em termos metodológicos, a análise da linguagem praticada no âmbito do discurso educacional, mobilizando nesse exame conceitos como jogo de linguagem, conceitos normativos e antitético-assimétricos, oriundos das contribuições do contextualismo linguístico e da história dos conceitos.

A análise da linguagem, especialmente dos conceitos normativos que a compõe, justifica-se à medida que entendemos que a experiência histórica, em grande medida, se apresenta para a interpretação, a partir de conceitos em circulação em distintas temporalidades, línguas e tradições intelectuais. Nesse sentido, é imperativo afirmarmos que, inspirados em Koselleck, compreendemos que todo conceito é uma palavra, mas nem toda palavra é um conceito. Os conceitos “são, portanto, vocábulos nos quais se concentra uma multiplicidade de significados [..] Uma palavra contém possibilidades de significados, um conceito reúne em si diferentes totalidades de sentido. Um conceito pode ser claro, mas deve ser polissêmico” (KOSELLECK, 2006, p. 109).

Em termos empíricos elegemos o discurso enunciado pela Associação Brasileira de Educação (ABE), entre os anos de 1927 e 1945. Trata-se de um período que guarda mais de 100 anos de afastamento dos acontecimentos relacionados diretamente ao processo de independência. Contudo, esse distanciamento temporal se justifica, vez que a linguagem e as suas estruturas linguísticas são mais duradoras que os acontecimentos. Por essa razão, “os conceitos têm, para além da sua aplicação singular, variadas possibilidades de aplicação repetitiva” (KOSELLECK, 2009, s/p). Sendo assim, podemos analisar os debates associados às questões da soberania e da formação do Estado nacional em diferentes momentos da história, relacionando as variações semânticas e os usos desses conceitos com mudanças nas formas de pensar, sentir e viver o mundo social.

No recorte temporal dessa reflexão, entre os anos de 1920 e 1940, examinaremos fontes oriundas de dois eventos nacionais organizados pela ABE: a I Conferência Nacional de Educação (ICNE), de 1927; e o IX Congresso Brasileiro de Educação, de 1945 (IX CBE). Optamos pelo estudo desses eventos, realizados em Curitiba e no Rio de Janeiro respectivamente, por estes representarem dois momentos em que flagramos, de maneira nítida, os problemas que nos ocupamos nesse artigo. As fontes utilizadas são documentos, de diferentes tipologias, que testemunham as posições assumidas pela ABE e os debates travados nos seus eventos nacionais.

Associação Brasileira de Educação: lugar autorizado de enunciação

Diversos pesquisadores investigaram a ABE e os encontros promovidos pela entidade. A ICNE, de 1927, foi a conferência mais estudada, tendo como exemplos os seguintes trabalhos: Ferreira (1988), Schmidt (1997), Galter (2002), Vieira (2007), Vieira e Bona Jr. (2007) e Vieira e Faria (2019). Entre os textos que investiram em outras conferências e/ou na atuação da ABE, podemos destacar: Carvalho (1998), que aborda os primeiros oito anos de existência da ABE, a partir da problematização das noções de higiene, moral e trabalho veiculadas no discurso abeano; Linhales (2006), que reflete sobre o esporte e a Educação Física nos encontros da ABE, entre 1925-1935; Strang (2008), que discute o comportamento dos intelectuais católicos, entre a criação da ABE e a ruptura destes com a associação nos anos de 1930; Marques (2008), que analisa o discurso patriótico da ABE durante a Segunda Guerra Mundial; Valério (2013), que problematiza a questão do ensino secundário, entre 1928 e 1942; Vieira (2017), que investe na análise do discurso educacional veiculado nas 13 conferências da ABE, entre 1927 e 1967; e Vieira (2019), que analisa o IX CBE, realizado em 1945, quando foi discutido o conceito de educação democrática.

Assim como os autores elencados, consideramos os eventos nacionais da ABE como momentos privilegiados para analisarmos o discurso educacional, já que esses espaços congregaram, tanto atores consagrados, como personagens sem notoriedade na cena pública. Todavia, embora em posições diferentes, esses atores linguísticos interagiram no processo de elaboração de um jogo de linguagem - entendido como uma forma peculiar de falar, que dispunha de um vocabulário e de regras de enunciação tacitamente aceitas - que caracterizou e definiu as principais questões em disputa no processo de formação do campo educacional no Brasil3.

Os intelectuais reunidos na ABE, criada em 1924, na cidade do Rio de Janeiro, reafirmaram a compreensão, corrente no cenário intelectual brasileiro, desde o segundo quartel do século XIX, da missão das elites cultas na formação da consciência nacional. Essa consciência cívica teria na escola, em todos os seus níveis, o seu lugar privilegiado de formação, disseminando condutas e sentimentos caros às elites dirigentes.

A fundação da ABE foi o resultado da aproximação de intelectuais em torno de um objetivo manifesto: sensibilizar a nação para a questão educacional que, segundo a compreensão desse grupo, foi relegada pelo Estado brasileiro, tanto no período Imperial, como no Republicano. A ABE, em seu estatuto, no artigo 1º, declarava:

a Associação Brasileira de Educação tem por fim promover no Brasil a difusão e o aperfeiçoamento da educação, em todos os seus ramos, estimulando as iniciativas que possam mais eficazmente atingir estes objetivos (Estatuto da ABE, 1925).

A afirmação do país como nação independente e soberana, segundo a interpretação amplamente compartilhada pela intelectualidade engajada na ABE, não se realizaria plenamente sem investimentos na educação, fazendo da formação da população uma questão estratégica para a produção do amálgama cultural que permitiria a consolidação, não somente do Estado, mas, sobretudo, do Estado-nação. Este representaria a síntese entre o território, as leis, o governo, a língua, a cultura e o povo.

A ABE, nos seus primeiros anos, restringiu as suas ações no espaço público à capital federal. Todavia, a partir de 1927, a entidade procurou ampliar a sua intervenção, quando passou a organizar eventos de abrangência nacional, que se seguiram até 1967, totalizando 13 encontros 4.

Quadro 1 - Eventos organizados pela ABE (1927-1967). 

ANO LOCAL TEMA
1927 Curitiba Ensino primário.
1928 Belo Horizonte Ensino secundário.
1929 São Paulo Ensinos secundário, primário e profissional; educação sanitária.
1931 Rio de Janeiro Educação popular.
1933 Niterói Elaboração do anteprojeto de organização nacional da educação.
1934 Fortaleza Organização geral do ensino no país.
1935 Rio de Janeiro Educação física.
1942 Goiânia A educação primária, especialmente das populações que vivem no meio rural.
1945 Rio de Janeiro Conceito de educação democrática.
1950 Rio de Janeiro Sugestões para a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB).
1954 Curitiba Financiamento dos sistemas públicos de educação.
1956 Salvador Os processos da educação democrática nos diversos graus de ensino e na vida extraescolar.
1967 Rio de Janeiro Educação para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia.

Fonte: Anais das CNEs (1927-1967), elaborado pelo autor.

Os eventos nacionais da entidade delinearam um espaço de disputas políticas, teóricas e institucionais e se tornaram lugares de difusão, sem precedentes na história da educação no Brasil, da primeira metade do século XX, de interpretações sobre a realidade da educação no Brasil e, sobretudo, de projetos que visavam qualificar e dinamizar os processos formativos em curso. Esses encontros serviram, também, para “projetar a autoridade de uma intelligentsia autorizada a falar sobre os problemas e, sobretudo, sobre as metas e as prioridades da educação nacional” (VIEIRA, 2017, p.32).

De acordo com Carvalho (1998),

a ABE teria sido um dos instrumentos mais eficazes de difusão do pensamento pedagógico europeu e norte americano, e um dos mais importantes, se não o maior centro de coordenação e de debate para o estudo e soluções de problemas educacionais [...]. Em especial, as Conferências Nacionais, promovidas pela associação, aproximando educadores de todos os Estados e congregando-os em diferentes centros do país (p .31).

A discussão promovida pela ABE ultrapassou os limites do interesse pedagógico e dos especialistas em educação, para se constituir em uma pauta estratégica para a afirmação do Brasil como país sintonizado com o processo de modernização, que impactava diferentes países de todos os continentes. Os eventos nacionais da entidade ocorreram em um momento de intensa discussão sobre as reformas educacionais, que estavam sendo implementadas em diferentes estados brasileiros; bem como, afirmou o desejo da ABE de organizar um sistema nacional de ensino, superando a fragmentação e desarticulação das políticas, dos métodos de ensino, dos currículos e dos processos formativos em curso nos diferentes estados e regiões do país.

Os intelectuais que dirigiam a ABE consideravam a escola primária como o lugar privilegiado de formação do povo, ao passo que esta disseminaria valores consideramos importantes para essas elites ilustradas.

Fonte: Anais das CNEs (1927-1967), elaborado pelo autor, a partir do software IRaMuTeQ5.

Figura 1 - Vocábulos utilizados nos debates da ICNE (1927) com, no mínimo, 100 ocorrências. 

Na figura 1, flagramos termos enunciados com maior frequência, indicando algumas chaves interpretativas desse discurso. A análise da frequência de uso de determinadas palavras não permite conclusões definitivas, embora esse procedimento seja um ponto de partida e um índice importante. No centro da figura identificamos as palavras educação, escola, nacional, ensino, professor e aluno. Estas não nos permitem uma caracterização da especificidade desse discurso, uma vez que são vocábulos frequentes no discurso educacional em diferentes espacialidades e temporalidades. Não obstante, nas camadas periféricas a esse núcleo principal, identificamos termos que permitem a caracterização desse discurso, entre os quais destacamos: nação, pátria, moral, ordem, progresso, higiene, raça, povo, trabalho, moderno e ciência. Trata-se de termos, em grande medida, constituidores do que denominamos de conceitos normativos, responsáveis pela estrutura do grupo principal de sentidos em circulação e em disputa nesse jogo de linguagem6.

Os conceitos normativos, em contraste com os termos ordinários, conformam um grupo de palavras compartilhadas e valoradas como imprescindíveis para expressar o modo de pensar e falar de um determinado grupo social, profissional, político ou religioso. Esses conceitos permitem, por um lado, a percepção e a interpretação do espaço de experiência e, por outro, a elaboração dos projetos e dos horizontes de expectativa daqueles que os enunciam7.

Intelectuais, Estado e políticas de formação

Segundo Miceli (2001) e Alonso (2002), entre o final do século XIX e os anos de 1930, constatamos a afirmação gradativa na cena pública brasileira do intelectual como agente político. O reconhecimento desse protagonismo exigiu a produção de uma identidade, espelhada na imagem de elite que se distinguia das tradicionais elites de sangue e de condição econômica. Ainda que o elitismo estivesse associado aos sentimentos de soberba e de distinção, nesse grupo, gerou, também, o sentimento de missão social. Oliveira (1990, p.187), discutindo o comportamento político dos intelectuais no Brasil, afirma que:

independente da sua origem de classe, da sua formação bacharelesca ou especializada, [os intelectuais] mantiveram-se ocupados em ‘pensar’ o Brasil e em propor caminhos para a salvação nacional. Ao atuarem na construção de consciências coletivas, os intelectuais, consideraram-se imbuídos de uma missão e procuraram difundir suas propostas mediando aspirações nacionais e políticas governamentais.

Esse sentimento de missão conduziu ao engajamento político dos intelectuais, a partir da ocupação de múltiplos e de valorizados lugares institucionais de enunciação, entre os quais destacamos: a imprensa, o Estado (poder legislativo, executivo e judiciário), as escolas secundária e normal, as faculdades e universidades e as associações culturais e científicas. Nesse sentido, a criação da ABE é um exemplo desses novos púlpitos criados para ecoar a voz da intelectualidade que, a partir de uma retórica reformista, engendrou o discurso da modernidade e da modernização do país, que tinha no tema da formação do povo um dos seus pontos arquimedianos.

Os temas discutidos na ABE e nos seus eventos refletiram, em grande medida, a intenção dos intelectuais abeanos de interferir nas políticas públicas de educação8. Lourenço Filho, em depoimento para a imprensa, evidencia essa visão:

as conferências nacionais de educação não devem nem podem ser congressos de natureza técnica ou científica. O que devem é constituírem-se como centros de estudo de uma política nacional em matéria educativa. Uma intenção social profunda deve animá-las, mesmo porque só essa intenção as explica e as recomenda ao apoio e confiança dos governos (ABE, Notícias da IICNE, 1929).

Do púlpito da ABE, os intelectuais criticaram a falta de uma política nacional para a educação capaz de uniformizar os processos de formação, reivindicando, assim, a intervenção do poder público para sanar essa ausência. Nesse contexto, o Estado e, especialmente, o poder executivo se tornou o interlocutor privilegiado dos intelectuais, já que estes compartilhavam a crença sobre o papel civilizador do Estado que, como o agente político e administrativo, era considerado o único instrumento capaz de produzir, em nível nacional e em curto espaço de tempo, a pretendida reforma intelectual e moral da população brasileira. Vieira (2011), analisando o comportamento público da intelectualidade vinculada ao campo educacional brasileiro, destacou essa crença na “centralidade do Estado como agente político para a efetivação do projeto moderno de reforma social” (p. 29).

Em consonância com esse apelo dos intelectuais em relação ao poder estatal, observamos, também, a permanente ação do Estado e de seus grupos dirigentes no sentido de respaldar e financiar a ABE e, assim, mantê-la tutelada nos marcos dos seus projetos políticos. Nessa relação, identificamos, em diferentes momentos, movimentos do governo federal instando a ABE a elaborar proposições para as políticas públicas, como se pode verificar na ocasião da IV CNE, em 1931, quando Getúlio Vargas e Francisco Campos, Presidente da República e Ministro da Educação, respectivamente, em suas manifestações na abertura do evento, pediram aos conferencistas que fornecessem ao governo a “‘fórmula feliz’, o ‘conceito de educação’ da nova política educacional” (CARVALHO, 1998, p.380).

O conceito de independência no jogo de linguagem praticado na ICNE

O principal objetivo da ABE, como já mencionado, era discutir e propor alternativas para os problemas nacionais, a partir de investimentos na área de educação. Trata-se do fenômeno da educacionalização que, como definiram Smeyers e Depaepe (2008), caracteriza-se pela crença na educação como solução para diferentes problemas sociais. Mário Pinto Serva, militante ativo da ABE, manifestou de maneira exemplar essa visão no contexto dos anos de 1920:

o problema da educação do povo brasileiro é o mais nacional de todos os problemas. É o maior problema da história nacional. É quase o único problema nacional, porque a educação, generalizada e ampla, naturalmente por si, resolve todos os demais problemas. É a infraestrutura da organização coletiva (Anais, I CNE, 1927).

Entre os problemas mais candentes para o grupo dirigente da ABE, resultante da falta de investimentos em educação, estava a falta de identidade e consciência nacional do povo. Para esses intelectuais, existia um Estado nacional, mas não existia uma nação. Existiam habitantes do território, mas não existia um povo, com consciência e identidade definidas.

A dispersão demográfica, a diversidade de raças, culturas, costumes e o novo fluxo migratório europeu foram fatores mencionados como causas desse estado de fragmentação cultural e política nos anos de 1920. As teses do Conselho Diretor da ABE, encaminhadas para orientar o debate na ICNE, sinalizam para essa intenção do grupo dirigente da associação de combater a desagregação do país, a partir de um projeto de abrangência nacional, visando a qualificação e a homogeneização dos processos formativos.

Foram quatro teses apresentadas pelo Conselho Diretor, tendo como título: 1) A unidade nacional: pela cultura literária; pela cultura cívica; pela cultura moral; 2) A uniformização do ensino primário, nas suas ideias capitais; 3) A criação de escolas normais superiores em diferentes pontos do país para preparo pedagógico; 4) A organização dos quadros nacionais em corporações de aperfeiçoamento técnico, científico e literário (Anais, ICNE, 1927).

As teses indicam um projeto de formação imbuído da construção da unidade nacional e da regeneração do povo, por intermédio da uniformização da cultura escolar, da legislação e dos processos de formação de professores. Nesse sentido, os termos uniformização, homogeneização, padronização incidiram sobre diferentes linhas de argumentação, tanto nas teses do Conselho Diretor, como naquelas apresentadas pelos congressistas inscritos na ICNE 9.

Os temas da nação, da soberania, da formação da consciência nacional, que acompanham as reflexões e formulações da intelectualidade brasileira ao longo do século XIX, assumem novo sentido político na década de 1920. A formação da consciência do cidadão republicano, segundo as lideranças da ABE, dependia de um programa assentado sobre o ensino da língua pátria, da história e da geografia nacional, das noções de higiene e da educação cívica e patriótica (CARVALHO, 1998, p. 225).

A falta de instrução do povo foi apontada como uma das causas do descompasso do país em relação ao concerto das nações modernas. Dessa forma, a educação não foi caracterizada como um direito, mas sim como uma obrigação das famílias, que o Estado fiscalizaria e, caso necessário, puniria os infratores A positividade inerente à ideia de universalização do ensino primário, defendida pela ABE, não vela o tom autoritário do discurso abeano e as representações desqualificadoras imputadas às classes populares. A elite intelectual atuante na ABE se mostrou pródiga nos usos do verbo obrigar, do adjetivo obrigatório e do substantivo obrigatoriedade.

A retórica da ação contra a ignorância do povo não encontrava inimigos declarados e, assim, justificava todo tipo de posturas impositivas em relação à população. Sendo assim, o direito à educação foi transfigurado na retórica da obrigatoriedade do ensino que, distante de produzir efeitos rápidos e duradouros no plano da ampliação do acesso à escola pública, reafirmou as imagens de vício do povo e de virtude das elites intelectuais. Na perspectiva dessa elite ilustrada, à ignorância do povo no domínio das letras e dos números somava-se a crença na decadência moral da população.

O tom catastrófico desse discurso sinalizava para a eminência de desintegração nacional e de dissolução dos laços de convivência social e, assim, impunha o sentido de premência em relação às medidas capazes de moralizar a população. Nesse contexto, o conceito de independência nacional não foi enunciado com frequência, contudo a linguagem praticada mobilizou um conjunto de conceitos correlatos, ou seja, palavras diferentes, mas com significados comuns que, repetidamente enunciados, reforçavam mutuamente suas mensagens. Entres estes termos correlatos destacamos: povo brasileiro, raça, soberania, unidade nacional, integração nacional, caráter nacional, consciência nacional, território nacional, pátria, patriotismo, nação, nacionalismo e Estado nacional10.

Fonte: Anais das CNEs (1927-1967), elaborado pelo autor, a partir do software IRaMuTeQ.

Figura 2 - Vocabulário presente nos debates da ICNE (1927) relativo ao conceito de independência e os seus correlatos semânticos. 

O grupo dirigente da ABE utilizou-se de diferentes estratégias retóricas, dentre as quais destacaremos o uso de pares de conceitos antitético-assimétricos. O que caracteriza esses pares conceituais, segundo Koselleck, “é que eles determinam uma posição seguindo critérios tais que a posição adversária, deles resultante, só pode ser recusada. Nisto reside sua eficácia política” (2006, p. 195).

Para melhor compreender o uso desses pares conceituais no discurso sobre a formação veiculado pela ABE, há dois exemplos-chave: unidade-desagregação, mobilizado nos argumentos sobre a independência nacional, formação da nação, da consciência e da identidade nacional; e o par instrução-ignorância, presente nos debates sobre a expansão da escolaridade, indicando a centralidade da formação do povo como único meio para afirmação do Brasil como uma nação próspera e moderna.

O uso desses conceitos binários na conversação pública é típico da retórica política que, mais que vislumbrar a verdade, visa desqualificar o interlocutor. A este, representado no segundo termo do par, é imputado uma posição impossível de ser assumida, já que defender a dependência, a subordinação, a desagregação do país ou a ignorância do povo não representava uma posição defensável nas disputas em curso no período11.

Quadro 2 -  Conceitos antitético-assimétricos presentes no jogo de linguagem praticado nos debates da ICNE . 

GRUPO DE CONCEITOS CORRELATOS GRUPO DE CONCEITOS ANTITÉTICO-ASSIMÉTRICOS CORRELATOS
Independência Nacional Dependência
Soberania Subordinação
Unidade Nacional Desagregação
Integração Nacional Separatismo
Caráter Nacional Anarquismo
Consciência Nacional Divisão
Pátria Fragmentação
Patriotismo Dissolução
Nação Ruína
Estado Nacional

Fonte: Anais das CNEs (1927-1967), elaborado pelo autor, a partir do software IRaMuTeQ.

Na perspectiva da intelectualidade abeana, a formação da nação e da identidade nacional, passados 100 anos da independência, seguia como uma obra inconclusa, sujeita a retrocessos, caso o problema da formação do povo permanecesse à margem das iniciativas do Estado. O clima de insatisfação com os rumos da República perpassava fortemente a linguagem mobilizada, de forma a enfatizar que a independência formal e jurídica do país, não garantia a formação do Estado-nação. Nessa perspectiva, se as noções de Estado e de governo estavam relativamente consolidadas, a representação da nação, caracterizada pelo sentimento compartilhado de pertencimento à raça e à cultura brasileira, estava distante de ser alcançada.

O conceito de democracia no jogo de linguagem praticado no IX CBE

No IX CBE, realizado em junho de 1945, o contexto político havia se alterado substantivamente. A derrocada do nazifascismo na Europa, a aproximação do fim da II Guerra Mundial e a erosão das bases do Estado Novo no Brasil realinharam tanto o espaço de experiência como os horizontes de expectativas. As ditaduras, antes celebradas, passaram a ser estigmatizadas, enquanto o nacionalismo das décadas anteriores cedeu em relação às posturas que reclamavam tolerância e colaboração internacional. Essas mudanças se refletiram no discurso educacional no Brasil, de maneira que identificamos a ascendência de dois conceitos no interior do jogo de linguagem praticado no campo educacional. Trata-se dos conceitos de democracia e educação democrática.

Figura 3 - Vocábulos presentes no jogo de linguagem praticado nos debates do IX CBE 

A frequência de uso do conceito de democracia e de suas variantes no IX CBE evidencia a conexão entre a linguagem praticada pelos congressistas e o tema central do encontro. Diante destes dados, ergue-se a seguinte pergunta: democracia e educação democrática foram questões constantemente debatidas nos eventos anteriores ao IX CBE? Para tentar responder essa indagação, analisamos, em perspectiva comparada, os anais da I CNE, conferência na qual a questão da afirmação da unidade e identidade nacional estavam em destaque, e os anais do IX CBE, que teve como tema o conceito de educação democrática.

Quadro 3 - Frequência de enunciações do conceito de democracia e seus correlatos semânticos no jogo de linguagem praticado nos debates da ICNE e do IX CBE. 

CONCEITO I CNE (1927) IX CBE (1945)
Democrático/a 4 216
Democracia 17 82
Democratização 3 5
Democrata/s 2 14
Democraticamente --- 11
Redemocratização --- 4
Total de Enunciações 26 332

Fonte: Anais das CNEs (1927-1967), elaborado pelo autor, a partir do software IRaMuTeQ.

O baixo número de enunciações do termo democracia e educação democrática na I CNE indica que essa questão não esteve entre os interesses da ABE nesse encontro, já que a ausência da palavra é uma evidência da elisão do conceito e, por extensão, da sua discussão. Para além da ICNE, se observamos as temáticas dos sete encontros nacionais da ABE, que precederam o IX CBE, apresentadas no Quadro 3, depreendemos que a reflexão em torno da relação entre educação e democracia não foi uma prioridade da ABE. Sendo assim, acreditamos que o declínio do Estado Novo e o cenário internacional de derrota do nazifascismo impuseram à associação e aos seus membros essa questão. Em outros termos, as discussões em torno das questões da democracia e da educação democrática não foram iniciativas que surgiram de motivações próprias do campo educacional, mas sim reações à nova realidade política que obrigou um posicionamento da ABE.

Outro aspecto a ser destacado, é que a definição do significado de educação democrática implicou na elaboração do seu conceito antitético-assimétrico, ou seja: a educação totalitária. Nesta construção discursiva, chama atenção o fato da ABE e dos seus principais líderes definirem a educação totalitária, sem menções explícitas às práticas políticas e educacionais promovidas pelo Estado Novo e pelo governo Vargas. A referência histórica principal, em grande medida, foi o nazifascismo italiano e alemão, tendo como consequência a preservação da ditadura estadonovista. As conferências de abertura e encerramento, proferidas por Raul Bittencourt (Presidente da ABE) e Carneiro Leão respectivamente, assim como a tese apresentada por Fernando de Azevedo, presidente do principal grupo de trabalho do IX CBE, são exemplos importantes dessa atitude de omissão em relação à associação entre Estado Novo, governo Vargas e educação totalitária.

Nos debates do IX CBE, o fascismo aparece como um fenômeno europeu e a discussão sobre o conceito de democracia privilegia a reflexão sobre a formação do conceito no mundo antigo, especialmente na Grécia, tomando como referências abstratas as noções de liberdade, de igualdade e de respeito às diferenças de opinião e crença. Uma única exceção a esta linha de argumentação pode ser verificada na tese, intitulada Processo Educativo e Fascismo, submetida por Antonio Franca. Este congressista, que não compunha o núcleo dirigente da ABE e não gozava de notoriedade no campo educacional no período, situa claramente a relação entre Estado Novo, fascismo e educação totalitária no Brasil. Contudo, a tese de Franca representou uma voz dissonante, que não foi incorporada à Carta Brasileira da Educação Democrática, documento que sintetizou os resultados do evento.

Apesar da elisão da crítica ao Estado Novo, o IX CBE representou um momento singular e importante na história da ABE. Pela primeira vez, após 21 anos de atividades da entidade, foi pautado como prioritária a discussão sobre a relação entre educação e sociedade democrática. No documento final, dirigido à sociedade brasileira e ao Estado, a ABE e os congressistas reunidos no evento declaram, de forma inequívoca, a indissociabilidade entre educação democrática, obrigatoriedade e gratuidade do ensino em todos os níveis12.

A relação entre os conceitos de independência, democracia e formação

A primeira metade do século XX é um período marcante para a organização da sociedade civil no Brasil. A criação de sindicatos, grêmios estudantis, ligas cívico-patrióticas, academias de letras, associações culturais e científicas foi incrementada nesse período, a partir da organização de vontades coletivas que buscavam defender interesses específicos, não vocalizados de maneira precisa pela estrutura de representação político partidária.

A ABE, como parte desse processo, marcou a sua trajetória pela elaboração de uma pauta de questões relacionadas à área educacional, demandando reformas na administração e nas políticas públicas de educação, enunciadas a partir dos eventos nacionais da entidade e tendo como interlocutor privilegiado o Estado.

Carvalho (1998, p.54), ressalta que a ABE foi fundada, em 1924, após o projeto de criação de um novo partido político ter sido descartada, contudo, apesar desta mudança de planos, a conexão com o campo político permaneceu e caracterizou a ação pública da entidade. A origem no discurso político dos conceitos de independência e democracia, objeto da problematização desse artigo, é um indício dessa relação estreita entre a política e a educação, que incidiu sobre os temas em discussão nos eventos nacionais da associação e, por consequência, no jogo de linguagem praticado.

Os eventos da ABE, de 1927 e de 1945, aconteceram em momentos diferenciados. Na década de 1920, marcada por uma insatisfação crescente com os rumos da Primeira República, os debates enfatizaram a afirmação de um Estado-nação moderno, em sintonia com o chamado mundo civilizado, a partir da formação moral e cívico-patriótica na população brasileira. Já na segunda metade da década de 1940, com o novo cenário internacional criado pela II Guerra Mundial e pelo esgotamento do Estado Novo no Brasil, o foco da reflexão se concentrou na redemocratização do país, na relativização do espírito nacionalista e na afirmação de uma visão multilateral de colaboração internacional.

Conceitos normativos importantes, presentes na ICNE, foram preteridos na formulação dos argumentos no IX CBE.

Quadro 4 - Frequência de enunciações do conceito de independência e de seus correlatos semânticos no jogo de linguagem praticado nos debates da ICNE e do IX CBE. 

CONCEITOS ICNE - 1927 IX CBE - 1945
Caráter Nacional 190 19
Consciência Nacional 107 20
Identidade Nacional 3 9
Independência Nacional 29 2
Nação 88 46
Nacionalismo 57 8
Pátria 221 4
Patriotismo 99 1
Soberania 4 3
Total de Enunciações 798 112

Fonte: Anais das CNEs (1927-1967), elaborado pelo autor, a partir do software IRaMuTeQ.

De forma análoga, em 1945, o vocabulário cívico-patriótico mostra-se em declínio na formação dos principais argumentos em discussão. A mudança no léxico indica alteração na realidade nomeada e dada a ver pelas palavras, especialmente, quando essa mudança pode ser percebida nos vocábulos que exercem a função de conceitos normativos. Estes, em contraste com o vocabulário ordinário, funcionam como dispositivos, a um só tempo, de interpretação do espaço de experiência e de produção de horizontes de expectativas. Nessa tensão entre o ser e o dever-ser, entre o ôntico e o télos, se produz o sentido geral que caracteriza, no tempo e no espaço, um determinado discurso.

A comparação entre esses dois momentos (ICNE e IXCBE) nos permite retomar a questão que foi apresentada na introdução desse artigo e que serviu como guia da reflexão. Indagávamos sobre a existência ou não de relações entre o conceito de democracia e os conceitos de independência, soberania e outros termos correlatos.

Quadro 5 Frequência de enunciações dos conceitos de democracia e independência, incluindo os seus correlatos semânticos, no jogo de linguagem praticado nos debates da ICNE e do IX CBE. 

EVENTOS

CONCEITOS

DEMOCRACIA E CORRELATOS INDEPENDÊNCIA E CORRELATOS
I CNE (1927) 26 798
IX CBE (1945) 332 112

Fonte: Anais das CNEs (1927-1967), elaborado pelo autor, a partir do software IRaMuTeQ.

Examinando a frequência de enunciação, observamos uma relação inversa, ou seja, quando a questão da independência, da soberania ou da formação do Estado-nação esteve em evidência, nos anos de 1920, pouco se falava sobre democracia. Por outro lado, quando os conceitos de democracia e educação democrática ganharam visibilidade no vocabulário dos intelectuais abeanos, o problema da soberania não representava mais uma questão central. Para além da frequência de uso dos termos independência e democracia, a análise minuciosa e exaustiva da documentação revelou que esses conceitos guardaram distância entre si, ou melhor, não se encontraram regularmente combinados na elaboração do discurso educacional. Dessa forma, podemos asseverar que, segundo a percepção da intelectualidade abeana, a afirmação da soberania do Estado nacional não envolvia e não dependia da promoção da participação política da população.

Analisando as manifestações coletivas da intelectualidade ligada ao campo educacional, entre as décadas de 1920 e 1940, identificamos dois documentos que representam exceções a essa tendência de desconexão entre os conceitos de democracia e independência. O primeiro é o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 193213. Este prestigiado documento, que não analisaremos em detalhe nesse espaço, teve 26 signatários e todos gozavam de grande notoriedade na cena pública brasileira. Estes atuavam na ABE, embora o Manifesto não seja um documento produzido e chancelado pela entidade. Neste, em diferentes momentos, a questão da democracia, da participação popular na vida pública se conecta com o problema da formação do Estado-nação ou, nos termos do próprio Manifesto, da reconstrução do Estado nacional. Inclusive, um dos itens que constam da estrutura do Manifesto se intitula, A democracia, um programa de longos deveres.

O segundo documento é a, já mencionada, Carta Brasileira da Educação Democrática, que sintetizou os resultados do IX CBE. Neste, entre os objetivos da educação democrática, consta a seguinte formulação:

desenvolver a fé comum nos princípios fundamentais relativos à vida nacional e ao regime democrático, como sejam a unidade e a independência da nação, liberdade de pensamento, igualdade dos cidadãos perante a lei, forma representativa que permite ao povo, por seus mandatários, eleitos, opinar sobre questões públicas e elaborar as leis, responsabilidade do governo perante o povo, garantias constitucionais para o exercício dos direitos civis e políticos e o direito à saúde, à educação, ao trabalho, à assistência e à recreação (Anais, IX CBE, 1945, grifo do autor).

Tanto o Manifesto, como a Carta Brasileira representam manifestações de grande importância para demonstrar a presença dessa percepção, no período estudado, da indissociabilidade entre a educação do povo e a sua participação política na formação do Estado nacional. Porém, entendemos que essa aproximação entre os conceitos e, por consequência, entre os significados a estes associados representa uma exceção na formulação do discurso educacional, sobretudo se consideramos os documentos produzidos coletivamente, como aqueles elaborados pela ABE nos seus eventos nacionais.

À guisa de conclusões

O estudo do jogo de linguagem, praticado pelos intelectuais vinculados ao campo educacional, não se restringe à análise discursiva ou semântica, já que o acesso à linguagem mobilizada na conversação pública nos permite traçar hipóteses sobre linhas de ação em curso. Skinner (1999),

enfatizando a relação entre discurso e prática social, afirma que: o que é possível fazer em política é geralmente limitado pelo que é possível legitimar. O que se pode esperar legitimar, contudo, depende de que curso de ação se pode plausivelmente alcançar sob conceitos normativos existentes (p. 86).

Os conceitos, por definição lógica, têm como função descrever e explicar o mundo natural e social. Porém, em determinados jogos de linguagem, eles se tornam atos, atos de fala, que visam produzir transformações no mundo social14. Os discursos político e educacional são exemplos lapidares de linguagens performativas, pois ambos têm, em regra, a intenção de produzir mudanças no comportamento das suas audiências. Logo, entender o jogo de linguagem praticado, considerando o vocabulário corrente em cada contexto, bem como os termos que, no interior desse jogo, assumem contornos de conceitos normativos, representa uma via de acesso para a compreensão dos deslocamentos da percepção sobre o papel da educação e da escola entre os grupos engajados na produção dos modos de falar e, sobretudo, de fazer a educação.

Inspirados por esse quadro teórico, buscamos analisar como os conceitos de independência e democracia, próprios do discurso político, foram apropriados pelo jogo de linguagem praticado no campo educacional. Assim, concluímos, ressalvadas as exceções que sinalizamos do Manifesto de 1932 e da Carta Brasileira de 1945, que no discurso analisado prevalece uma dissociação entre a soberania da nação e a forma de governo, entre a educação cívica e a educação democrática, entre a pretendida e propalada educação do povo e a sua participação cidadã e efetiva na vida nacional.

Por fim, entendemos que - no prelúdio das comemorações do bicentenário da independência do Brasil, marcado por um cenário internacional que tensiona o nacionalismo e o multilateralismo - é crucial refletirmos sobre o quanto a dissociação entre esses conceitos explica a formação da sociedade e do Estado no Brasil. Podemos, inclusive, especular sobre a longa duração de uma cultura política que, tanto no passado, como no presente, propicia a construção de um discurso nacionalista, associado a proposições nitidamente autoritárias e antidemocráticas. A história não nos dá lições, porém ela nos municia do necessário para identificar como modos de pensar, falar e agir permanecem arraigados em sociedades como a brasileira. A consciência dessas permanências se constitui, por certo, em um fator que contribui para a sua superação.

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1A pesquisa que permitiu a produção desse artigo está financiada pelo CNPq, na modalidade Produtividade em Pesquisa, processo 314307/2020-6.

2 Daniel Tröhler, em Curriculum history or the educational construction of Europe in the long nineteenth century (2016), reafirma a relação entre o processo de “escolarização em massa”, entre o final do século XVIII e a primeira metade do XIX, e a formação e consolidação dos estados nacionais na Europa.

3O conceito de campo de Pierre Bourdieu não se constitui em um aparato heurístico central nessa análise, contudo quando utilizamos a expressão estamos apoiados na ideia bourdeusiana que define o campo como espaço social de relações, onde são estabelecidos/impostos os critérios de nomeação, de classificação e de distinção social. Bourdieu ressalta a relação entre os campos, mas sustenta, também, a autonomia relativa desses espaços. Para uma análise dos principais conceitos de Bourdieu, ver O poder simbólico (1998).

4Verificamos nas fontes uma oscilação na denominação dos eventos nacionais da ABE entre Conferências Nacionais de Educação e Congressos Brasileiros de Educação, prevalecendo nos 13 encontros a denominação conferência. Não obstante, a mudança no nome não alterou o formato e os objetivos dos eventos. A literatura demonstra que a realização de conferências voltadas para discutir temas educacionais remonta ao último quartel do século XIX. Para uma análise desses eventos no período imperial ver, entre outros, Maria Helena Camara Bastos (2003), As conferências Pedagógicas dos professores públicos primários do município da Corte: Permuta das luzes e Idéias (1873-1886); e José Gonçalves Gondra (2005), Política e arte de superar-se: um estudo acerca das Conferências Pedagógicas na Corte Imperial.

5IRaMuTeQ é um software livre ligado ao pacote estatístico R para análise qualitativa de textos. Este foi desenvolvido pelo Laboratoire d’Études et de Recherches Appliquées en Sciences Sociales (LERASS), da Universidade de Toulouse.

6Os jogos de linguagens, segundo a apropriação do contextualismo linguístico, da teoria do chamado segundo Wittgenstein, são situações de comunicação contextualizadas, no tempo e no espaço, e registradas em fontes empíricas, passíveis de serem tratadas historicamente. A obra de Wittgenstein que inspira essas formulações intitula-se Investigações Filosóficas (1985)

7Sobre os conceitos de espaço de experiência e horizonte de expectativas, ver Reinhard Koselleck, Futuro passado: contribuições à semântica dos tempos históricos (2006), especialmente o capítulo: Espaço de experiência e horizonte e de expectativa: duas categorias históricas, p.305-329.

8Utilizaremos os adjetivos abeano ou abeana para qualificar, tanto o discurso da ABE, como os intelectuais que formaram o grupo dirigente da entidade.

9Na ICNE de 1927 foram aprovadas 113 teses e estas a compõem documentação do evento, que se encontra referenciada como fonte desse estudo ao final desse texto.

10Trata-se, nesse caso, de uma análise onomasiológica da linguagem que, a partir de um determinado significado, examina como este encontrou expressão em diferentes palavras.

11Para uma análise do uso de conceitos antitético-assimétricos no discurso educacional na ICNE ver, Vieira e Faria (2019), Formação de Professores nos debates da I Conferência Nacional de Educação (ICNE - 1927).

12O IX CBE, organizado pela ABE em 1945, teve 158 inscritos e foram apresentadas 58 teses. A Carta Brasileira da Educação Democrática foi republicada em 2003, no livro organizado por Ana Magaldi e José Gondra (2003), A reorganização do campo educacional no Brasil: manifestações, manifestos e manifestantes. Neste mesmo livro consta o capítulo, escrito por Libânia Nacif Xavier, Manifestos, cartas, educação e democracia, que analisa, entre outros documentos, a referida carta. Para um exame detalhado do IX CBE, ver Carlos Eduardo Vieira, Associação Brasileira de Educação: relações entre Estado e sociedade civil no contexto do IX Congresso Brasileiro de Educação (Rio de Janeiro - 1945). Trata-se de capítulo publicado no livro VIEIRA, Carlos Eduardo; OSINSKI, Dulce Regina Baggio; GONDRA, José. (Org.) (2019). História Intelectual e Educação: Reformas Educacionais, Estado e Sociedade Civil.

13É muito provável que o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, seja o documento mais analisado no contexto para pesquisa em história da educação no Brasil. Existem muitos autores que se dedicaram a sua análise, entre os quais destacaria Libânia Nacif Xavier (2002), Para além do campo educacional: um estudo sobre o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova (1932).

14A expressão atos de fala foi amplamente divulgada por J. Searle, no seu livro Speech Acts Theory, publicado em 1969. A ideia sobre a performatividade da linguagem foi assumida pelos historiadores vinculados ao contextualismo linguístico, Skinner e Pocock, a partir das suas análises das ideias de L. Wittgenstein e, sobretudo, de J. Austin. Deste autor, especial atenção foi dada aos conceitos de ilocução e perlocução, presentes no livro How to do thinks with words, de 1962.

Recebido: 03 de Agosto de 2020; Aceito: 22 de Dezembro de 2020

E-mail: cevieira9@gmail.com

CARLOS EDUARDO VIEIRA é Professor Titular de História da Educação na UFPR, atuando no Programa de Pós-Graduação na Linha de Pesquisa História e Historiografia da Educação, desde 1998. Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), desde 2002. Doutor em História e Filosofia da Educação (PUC-SP-1998). Pós-doutorado nas Universidades de Stanford-EUA (2015) e Cambridge-UK (2008); Foi Presidente da Sociedade Brasileira de História da Educação - SBHE (2015-2019). Pesquisa e orienta nos campos da História Intelectual, dos Conceitos e da Educação.

Editora responsável:

Tatiane de Freitas Ermel

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