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História da Educação

versão impressa ISSN 1414-3518versão On-line ISSN 2236-3459

Hist. Educ. vol.25  Santa Maria  2021  Epub 31-Ago-2021

https://doi.org/10.1590/2236-3459/106200 

Dossiê: Independência e instrução no Brasil, Chile e nos Estados Unidos da América

A INDEPENDÊNCIA PERDIDA: REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO E MOVIMENTO CABANO NO GRÃO-PARÁ DA AMÉRICA PORTUGUESA (1755-1840)

LA INDEPENDENCIA PERDIDA: REFLEXIONES SOBRE LA EDUCACIÓN Y EL MOVIMIENTO CABANO EN GRAN PARÁ DE LA AMÉRICA PORTUGUESA (1755-1840)

LOST INDEPENDENCE: REFLECTIONS ON EDUCATION AND THE CABANO MOVEMENT OF GRÃO-PARÁ IN PORTUGUESE AMERICA (1755-1840)

L’INDÉPENDENCE PERDUE: DES RÉFLEXIONS SUR L’ÉDUCATION ET LE MOUVEMENT CABANO DANS LE GRÃO-PARÁ DE L’AMÉRIQUE PORTUGAISE (1755 - 1840)

Sonia Maria da Silva Araujo* 
http://orcid.org/0000-0001-8240-9704

* Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém/PA, Brasil.


RESUMO

Este estudo pretende refletir sobre independência e educação no Brasil a partir da história do Pará da América portuguesa, ocorrida entre 1755-1840. São 85 anos de uma história marcada por lutas sangrentas, na qual à educação cabia transformar populações nativas em cidadãos úteis a uma pátria distante. Nesse contexto, o Movimento Cabano se coloca como acontecimento importante na recondução da liberdade política que não foi.

Palavras chave: Movimento Cabano; independência perdida; liberdade

resumen

Este estudio pretende reflexionar sobre independencia y educación en Brasil, a partir de la historia del Pará de la América portuguesa, en el período comprendido entre 1755 y 1840. Son 85 años de una historia marcada por luchas sangrientas en la que la educación buscaba transformar poblaciones nativas en ciudadanos útiles a una patria distante. En ese contexto, el Movimiento Cabano se erige como un acontecimiento importante en el reacondicionamiento de la libertad política que no se consolidó.

Palabras clave: Movimiento Cabano; Independencia perdida; Libertad

ABSTRACT

This work aims at discussing independence and education in Brazil from the history of Pará State in Portuguese America, between 1755 and 1840. This was an 85-years history marked by bloody conflicts, in which education was used to change native populations into useful citizens of a distant homeland. In this context, the Cabano Movement is an important event of resetting undone political freedom.

Keywords: Cabano Movement; lost independence; freedom

Résumé

Cette étude vise à réfléchir sur l'indépendance et l'éducation au Brésil à partir de l'histoire du Pará de l’Amérique portugaise, qui s'est produite entre 1755-1840. Ce sont 85 ans d’une histoire marquée par des combats sanglants, dans laquelle l’éducation devait transformer les populations indigènes en citoyens utiles à une patrie lointaine. Dans ce contexte, le mouvement Cabano a été un événement important dans la reconduction de la liberté politique qui n’a pas eu lieu.

Mots clés: Mouvement Cabano; Indépendance perdue; Liberté

Introdução

A partir da ideia de independência perdida do Brasil, colocamos em debate o ideário que fundamentou o Movimento Cabano, ocorrido entre 1835-1840, na Província do Grão-Pará, considerado por intelectuais da região como uma revolução social. Para tanto, retroagimos a meados do Setecentos e demonstramos como o processo histórico de colonização do Brasil fomentou a formação cultural de um exército de excluídos que, de baixo, organizou lutas sangrentas contra a exploração da população mais empobrecida, elevando a ideia de liberdade ao seu vínculo com a de justiça social.

A história do Norte é reveladora do modo como se constituiu no país uma população de explorados. Associando raça e classe de uma forma muito particular, amalgamou-se no território brasileiro um contingente de trabalhadores que, concretamente, a partir de suas múltiplas histórias regionais, articulou um sentimento de pertencimento muito distante do projeto de nação que nascia há 200 anos.

O Grão-Pará e o Maranhão no Setecentos

De 1751 a 1759 o Grão-Pará e o Maranhão estiveram sob a administração de Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1769), Capitão-General e Governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão, irmão de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal e Conde de Oeiras. Sua missão era garantir a demarcação do território segundo as delimitações previstas no Tratado de Madri, ocupando os espaços “inabitados” da foz do Rio Amazonas.

A ocupação protegeria a região de invasores e manteria sua integridade, além de ampliar as reservas financeiras de Portugal com a extração de drogas do sertão e outros gêneros. Mediante o enfraquecimento econômico com a perda de possessões importantes na África e na Ásia, Portugal torna-se dependente da Grã-Bretanha, restando-lhe preservar, no plano econômico, seu domínio sobre as terras invadidas da América, principalmente o sertão, formado pelo vale amazônico, apartado do Estado do Brasil1. Nesse período, a região estava submetida às ações de brancos portugueses: colonos leigos e colonos missionários, que disputavam a escravização dos indígenas. Na luta pelo comércio entre esses dois grupos, Francisco Xavier de Mendonça Furtado se alia aos brancos colonos leigos e executa uma governação que rompe com o processo de relações sociais conduzido pelo ideário jesuítico.

Dentre as mudanças importantes promovidas pelo Marquês de Pombal na Amazônia, destacamos: a) a Lei de 07 de junho de 1955, que extinguiu, dentre muitas mudanças importantes, o poder dos missionários sobre os indígenas; b) a formação de novas capitanias para facilitar a administração geral da Colônia, isto é, a arrecadação de impostos; c) a criação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. Esta última ação, fundamental para intensificar a presença de escravos negros e seu uso como mão de obra. Para tanto, são criadas a Capitania de São José do Rio Negro, a Capitania Geral do Pará e a Capitania Geral do Maranhão com o objetivo de impedir a invasão de estrangeiros pelo Norte para alcançar a região açucareira do Brasil. A ideia era criar uma barreira de proteção contra a invasão de ingleses, holandeses e franceses.

As ações de Francisco Xavier de Mendonça Furtado vão provocar fissuras profundas no processo de colonização, principalmente por conta do Regimento do Diretório dos Índios2, que, com força de Lei, altera relações de poder sedimentadas nos anos de colonização conduzidos pelos jesuítas. Como defende Souza Júnior (2012, pp 23-4):

A retirada dos índios da tutela dos missionários, seguida pela expulsão dos jesuítas do Estado do Grão-Pará e Maranhão, e a implementação da política indigenista pombalina produziram uma profunda reviravolta no modo de vida dos índios nos aldeamentos, vivenciada por eles como uma experiência trágica, que os levou a intensificar as estratégias de resistência, materializadas numa quantidade e frequência maiores de fugas, de rebeliões mais numerosas, de construção e solidificação de redes de solidariedade, perpassadas por conflitos e contradições, com os outros contingentes de despossuídos, negros, mestiços, homens brancos pobres - já que o Diretório dos Índios os deixou à mercê dos moradores, que, contrariando as normas pombalinas, tornaram suas vidas insuportáveis, no que dizia respeito à exploração e à opressão de que foram alvos.

Práticas que visavam escravizar os indígenas, determinadas pelo Regimento das Missões do Estado do Maranhão e Grão-Pará, de dezembro de 1686, e, em seguida, pela Junta Geral das Missões, cairão com o Regimento Geral do Diretório dos Índios. Com base nos descimentos, guerras justas e resgates, o poder dos missionários acabou por estabelecer - não sem revolta, resistência e luta por parte dos indígenas - uma estrutura de funcionamento da sociedade colonial no Norte que ao ser em parte desmontada acabou provocando uma desestabilização geral ao tempo em que promoveu o fortalecimento de uma elite proprietária leiga na região3.

A ideia era tornar o indígena útil ao enriquecimento do reino e deixar sem efeito as ações dos missionários católicos. Todavia, mesmo estabelecendo uma rigorosa legislação que tentava controlar os recursos advindos do trabalho em favor do Coroa, era difícil garantir o cumprimento de transferência dos recursos para as mãos do rei. Isto porque os colonos acabavam por tentar assumir, e de uma forma bem mais radical, o controle sobre os indígenas como faziam os missionários, mas sem a capacidade destes.

É necessário reafirmar que durante o século XVII, e parte do século XVIII, o braço indígena foi o responsável pela força de trabalho na região, o que, à rigor, seria arrefecido com a criação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. A Companhia, assumindo os negócios do comércio de escravos negros, adensaria o uso dessa mão de obra e faria circular a moeda metálica, o que era proibido por lei até então, conforme nos revela Lima (2006). Como dispunha o Alvará régio de 7 de junho de 1755, a Companhia, além de beneficiar o reino, favoreceria as Capitanias do Grão-Pará e Maranhão.

Com a Companhia e a exploração da mão de obra escrava negra, os empreendimentos agrícolas passam a ser estimulados e realizados. Àquela altura, as experiências “exitosas” do Estado do Brasil servirão de referência para a política de comércio de escravos no Estado do Grão-Pará e Maranhão. Mesmo assim, as condições econômicas pouco favoráveis dos colonos brancos leigos vão fazer com que continuem a usar o braço indígena escravizado nos seus empreendimentos, desrespeitando as determinações contidas no Diretório Geral dos Índios.

Segundo Chambouleyron (2006; 2011), a iniciativa da entrada dos negros na Amazônia, diferente de outras praças, partiu da Coroa e contemplava três elementos: a) o impacto das epidemias de varíola sobre os trabalhadores indígenas; b) a delicada situação financeira da Fazenda Real, que viu no comércio de africanos uma importante alternativa para viabilizar a reprodução do domínio militar português; c) a experiência da Companhia de Comércio do Maranhão, de 1682, instituída para enviar escravos africanos ao Estado, em face de uma lei geral de liberdade indígena publicada em 1680.

Por meio de correspondências constantes entre o governador Mor e seu irmão, o rei toma conhecimento das dificuldades e complexidade política do Norte e passa a instruí-lo sobre como processar as mudanças em favor da Coroa. Essa comunicação intensa faz com que o Marquês e seu irmão construam estratégias e táticas capazes de assegurar o domínio do território reordenando a colonização.

O rei, em suas instruções, insiste em impedir os abusos e excessos dos colonos e missionários em relação aos principais, indígenas descidos e resgatados. Pede ao Governador que instrua todos os moradores a fabricar suas terras, como no Brasil, pagando devidamente o indígena com salários justos pela compensação de seu trabalho, além de trata-los com humanidade. Também orienta que os moradores passem a se servir de escravos negros e para isto pede que faça uma previsão da quantidade de escravos necessários para a região e das condições dos moradores em adquiri-los. Solicita que percorra e examine as aldeias e promova a prática de descimento voluntário dos índios, sem se descuidar da repartição para que não passem muito tempo fora das aldeias4. Também determina a ampliação das tropas, fortalecendo a disciplina militar.

As correspondências trocadas entre Francisco Xavier de Mendonça Furtado e seu irmão dão conta da densa relação social que colocava em conflito indígenas, colonos leigos e missionários. O excerto que segue, extraído de uma correspondência de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, demonstra, a partir de sua visão, o quão difícil era a situação dos indígenas e as condições a que estavam submetidos e que “não favoreciam o avanço da prosperidade”.

Por todas estas evidentes razões, não basta toda a extensão de terra deste largo país, nem as preciosidades que nele há, nem as infinitas nações de que é povoado, e a habilidade de que Deus os dotou para aprenderem tudo o que lhes quiserem ensinar, nem o zelo dos nossos Augustos Monarcas para a sua redução e conversão à fé católica, porque apesar de tudo estão os seus Reais Erários extintos e sem esperança de remédio; os seus vassalos reduzidos à última pobreza e miséria, e tal que não há um só nesta Capitania que possa pagar de dívida 30 réis, e sobretudo a maior parte dos índios, sem outra doutrina ou cultura mais do que a de saberem tratar mal de fazendas, aprenderem alguns ofícios para utilizarem as Religiões, e serem insignes em extrair drogas dos sertões, que é ao que são com toda a força obrigados (PORTUGAL. Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao Marquês de Pombal, 2 fev. 1752).

Mediante todas as observações registradas, e em atendimento às reivindicações de colonos leigos, o Diretório Geral dos Índios é publicado e nele se destacam, além da tentativa de evitar a escravização dos indígenas e sua segregação como pessoa de segunda categoria, o incentivo ao casamento entre brancos e indígenas e a substituição da língua geral pela língua portuguesa5.

A governação de Francisco Xavier de Mendonça Furtado provocou mudanças profundas nas relações sociais estabelecidas pelos missionários, que, além de saberem lidar com os indígenas, exerciam sobre eles proteção contra os excessos dos colonos leigos. Responsáveis por ensinar-lhes ofícios importantes para a organização e estruturação dos aldeamentos6, principalmente a educação, os padres haviam inserido os indígenas no mundo da instrução - leitura e escrita -, o que favoreceu sua transformação em trabalhadores. Os Colégios construídos nas aldeias não só os atraiam como os aproximavam ainda mais dos missionários. Com a política indigenista para o Estado do Grão-Pará e Maranhão, estendida em seguida para o Estado do Brasil, que pretendia transformar os indígenas em “homens livres”, resultou no esvaziamento dos aldeamentos, mas deu início ao projeto de construção de uma identidade nacional.

Conforme registros contidos nas cartas de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, o Estado do Grão-Pará e Maranhão se encontrava em ruinas, reduzida à miséria. Ao dizer que no Pará “não só não lhe vejo por ora remédio, mas o pior é que assentam todos que cada dia vai a maior precipício, sem remédio humano, e que os dízimos hão de certamente ir todos os anos a menos” (PORTUGAL. Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao Marquês de Pombal, 28 nov. 1751), o Capitão-Geral e Governador nos oferece uma dimensão das condições existentes se se tem como referência a vida e a cultura da qual advinha o dito Senhor, que lhe serviam de referência para projetar as ações em favor da Fazenda Real. Esta situação nos indica a distância havida entre a colonização do Estado do Grão-Pará e Maranhão e a colonização do Estado do Brasil, e que nos ajuda a pensar sobre as assimetrias em gestação no futuro território brasileiro.

Fato é que política pombalina para o Norte não resultou em grandes transformações que favorecessem a sua população em franco processo de miscigenação. As fugas de indígenas dos aldeamentos em direção aos sertões e seu contato com a população negra traficada, que passa a constituir quilombos e mocambos nos interiores, além da formação de uma elite cabocla que se forma nos povoados, transformam as paisagens da região Amazônica.

Para Souza (2009), quilombos e mocambos, que reuniam principais e lideranças negras, também acolheram soldados desertores e vadios, articulando uma ampla rede de solidariedade que acabou por conformar uma identidade de excluídos na Amazônia7. Organizado, esse grupo plural promoveu vários movimentos de resistência contra autoridades coloniais. A Cabanagem será, do conjunto desses movimentos, o mais amplo e forte, e que teve o seu nascedouro nos anos da colonização, em particular no Setecentos. Há quem defenda, como Reis (1950), que ela, assim como a Balaiada, resultou da disputa da força de trabalho indígena por segmentos sociais da metrópole.

De nossa parte, em relação aos indígenas, entendemos que o fundamental nesse processo não era nem a “proteção dos jesuítas” nem a “escravidão pelos colonos”, mas a sua resistência que colocava esses dois segmentos sob constante conflito, alcançando seu ponto mais elevando quando, num estado contínuo de lutas, eles se aliam a colonos brancos em estado de extrema pobreza e aos negros aquilombados nos interiores do sertão. Tal resistência se torna, inclusive, o elemento central de desenvolvimento do capitalismo na região, resultando, entre outros processos, na urbanização das cidades, especialmente de Belém, e no processo de educação escolar de suas populações. Como ressalta Coelho (2006), longe de se deixar subordinar, os indígenas, ao longo do processo de colonização no Norte, fizeram escolhas e se recusaram à condição subalterna que lhes era oferecida.

Ainda sob a administração pombalina, é criado o Estados do Grão-Pará e Rio Negro e o Estado do Maranhão e Piauí por meio do decreto de 20 de maio de 1774, confirmado pela previsão de 9 de julho de 1774. Com sede em Belém, o novo Estado do Grão-Pará e Rio Negro, assim como o Estado do Maranhão e Piauí, permanecia independente do Estado do Brasil, o que vai vigorar até 1823, quando o Grão-Pará é anexado ao Estado do Brasil8, tornando-se uma província brasileira. A nova configuração administrava se justificava em nome de uma gestão mais eficaz do sertão, representado pelo Grão-Pará, e do Litoral, representado pelo Maranhão. A separação visava uma melhor racionalização da administração e maior integração entre Grão-Pará e Rio Negro, que padeciam de um problema comum a ser resolvido: as fronteiras.

A essa altura, meados do Setecentos, a presença de portugueses já era intensa na região e a relação do Estado do Grão-Pará e Rio Negro com Portugal direta e muito mais eficiente que com o Estado do Brasil. Souza (2009) informa que isto decorria do deslocamento entre Belém e Lisboa que, àquela época, era feita em 20 dias, enquanto que o de Belém para o Rio de Janeiro levava aproximadamente 3 meses. Estabelecidas por uma classe de proprietários e comerciantes, as proximidades com Portugal se intensificavam por interesses comerciais, e até mesmo familiares, que se tornam chave nos entraves para a anexação do Grão-Pará ao Estado do Brasil e sua adesão à independência.

quando o Pará é feito parte do império do Brasil

A rigor, o Setecentos produziu na região uma elite atuante no plano político e intelectual, que apoiará a Revolução liberal do Porto de 1821, com vistas à superação do regime absolutista luso-brasileiro9. Oficialmente, o Grão-Pará, que não conseguia ter suas necessidades atendidas pela corte do Rio de Janeiro, adere à Revolução Constitucionalista do Porto. Os laços fortes com Portugal e o projeto subjacente à revolução faziam os paraenses acreditar que a proposta de regeneração da metrópole era muito mais favorável à Província, alçada à condição de Província Ultramarina graças a sua atuação em Caiena.

As tropas, compostas de brancos e mestiços do Grão-Pará, que ocuparam a possessão francesa de 1809 a 1817, e os comerciantes portugueses abastados, fixados na região, verão na adesão ao movimento de Portugal uma oportunidade de reestabelecimento dos vínculos políticos e econômicos com a metrópole. Neste momento, já havia no contexto da sociedade paraense a circulação de ideias revolucionárias absorvidas em Caiena10, que passam a alimentar impressos divulgados no Grão-Pará. Informa-nos Souza (2009, p. 193):

Era inevitável que a presença da tropa de ocupação portuguesa em Caiena acabasse por facilitar o contato dos soldados e oficiais com certas ideias liberais, e que essas começassem a circular no Grão-Pará a partir de 1809. Os ideais da Revolução Francesa eram extremamente atraentes para certas camadas de intelectuais e até mesmo empresariais, especialmente nativos.

Por ocasião da Revolução liberal do Porto, um grupo de intelectuais do Grão-Pará, que estava em Coimbra, como Felipe Patroni (1798-1866)11, volta para Belém com o firme propósito de fazer com que o Estado do Grão-Pará e Rio Negro se aliasse a esse Portugal novo, constitucionalista e liberal. Os oficiais do Grão-Pará, convencidos do ideário revolucionário aprendido em Caiena - o que deixava as autoridades preocupadas com a possibilidade de uma revolta popular - vai se somar a esta intelectualidade e defender a libertação social, política e econômica dos explorados do Grão-Pará e Rio Negro. O jornal “O Paraense”, sob a liderança de Patroni e do Cônego João Batista Gonçalves Campos (1782-1834)12, se incumbirá de divulgar as ideias revolucionárias, ganhar apoio popular e cultivar uma consciência de luta.

A partir de então, uma sucessão de acontecimentos ensejará forte resistência, que culminará na integração do Pará ao Império do Brasil. No entanto, preferia o povo, em processo histórico de formação de uma consciência de oprimidos, como nos sugere Souza (2009), mobilizado por suas lideranças intelectuais, imbuídas dos princípios constitucionalistas, resolver o problema da pobreza e da raça tornando-se livre de qualquer mandatário absolutista13.

Felippe Alberto Patroni, o mais importante líder dessa luta fracassada por liberdade, acreditava que podia contar com a apoio de Portugal para tornar o Grão-Pará independente do Estado do Brasil. Chegou a proclamar a Constituição Portuguesa e a ajudar a eleger uma Junta Constitucional formada de nove membros.

Feito isto, deu início às negociações políticas para a vinculação da Província à Portugal e, assim, talvez fazer a escolha mais favorável à superação dos problemas econômicos da região. Divididos entre Rio de Janeiro e Lisboa, constitucionalistas e absolutistas faziam as lutas políticas se acirrarem. Em 13 de janeiro de 1823 jura-se, não sem conflitos e embargos de opositores, fidelidade à Constituição Política de Portugal.

Insatisfeitas, as tropas militares destituem a junta e dão início a um processo de perseguição e prisão dos constitucionalistas. A população fica dividida entre os partidários da metrópole e os partidários da independência, estes últimos conquistando a opinião pública, mas tendo contra si alguns portugueses e oficiais. Assim, cada lado começa a se armar para o confronto. Os constitucionalistas se impõem, mas são fortemente abalados com a notícia de que Portugal havia dissolvido as Cortes e reestabelecido o antigo regime. O impacto da notícia, segundo Domingos Antonio Raiol, o Barão de Guajará, causou torpor nos primeiros momentos pela mudança inesperada e depois “preocupação em todos os espíritos que ambicionavam as liberdades institucionais” (RAIOL, 1865, p. 60).

Não tardou para que as tropas do Brasil, lideradas pelo capitão-tenente inglês John Pascoe Greenfell (1800-1869)14, chegassem a Belém e usassem de violência para integrar o Grão-Pará ao Império brasileiro, mesmo após o Conselho da Colônia ter se reunido em 11 de agosto de 1823 e deliberado aderir à Independência. A ata lavrada foi enviada a Greenfell e no dia 15 de agosto, quando há a solenidade de integração. Todavia, uma revolta contra a decisão é formada. Sabendo do levante, o capitão-tenente, usando de uma crueldade desmedida contra o povo e suas lideranças, dá início a procedimentos que resultaram no massacre do brigue “Palhaço”15, narrado em detalhes nos livros de História do Pará. Todo esse processo violento de adesão ao Estado do Brasil deixou a população de Belém assustada e grande parte se desloca para o interior.

Armado, o povo pelo interior passa a se reunir e promover rebeliões que são violentamente controladas, alimentando e agravando as revoltas. Todo esse processo, aliado à memória passada de escravidão da população e ao descaso do Império do Brasil para com o Norte, fomentará, ao longo de 12 anos, em meio a circulação de material impresso, o Movimento Revolucionário Cabano iniciado 1835.

Breves apontamentos para a compreensão do movimento cabano

Discute-se hoje o quanto as assimetrias regionais impedem o avanço social, econômico e político do Brasil. Todavia, isto é feito sem o devido aprofundamento das diferenças de exploração do país ao longo de sua história.

Colonizado sob um processo muito diferente do ocorrido no Estado do Brasil, no Estado do Grão-Pará e Maranhão a exploração se deu pautada em um projeto colonial de ocupação. Inicialmente, realizado sob a governação de missionários da igreja católica (jesuítas, carmelitas, capuchos e mercedários); depois, pelo projeto de modernização pombalino no qual o colono português branco assume o lugar despótico dos anteriores.

A Cabanagem, ou Movimento Cabano é, antes de tudo, uma reação contra essa exploração, que alcança um nível de crueldade impossível de esquecer. Lutar pela libertação dessa condição mobilizava os cabanos, que não se intimidavam em pegar em armas e revidar o sofrimento que lhes fora imposto durante anos. Como esclarece Salles (1992, p. 65):

Cabanos eram negros, caboclos e mestiços em geral, as populações marginalizadas ou expulsas dos campos e que engrossaram cada vez mais, nos vilarejos e nas cidades, a classe de peões. Essa população seria extremamente sensível aos apelos libertários; ela se constituiria no exército libertador.

O Movimento suscita ainda o interesse de historiadores voltados para os estudos de revoltas nascidas e mobilizadas no seio do povo. No caso específico da Cabanagem muitas lacunas encontram-se abertas a investigações. Trata-se de um Movimento relativamente longo (5 anos de luta), processado num passado não tão distante, que alcançou todo o vale amazônico.

Muitas controversas existem em torno da Cabanagem e que estão gradativamente sendo esclarecidas. Por ocasião de seu centenário e sesquicentenário, a comunidade acadêmica do Pará foi provocada a recuperá-la. Editais foram lançados para premiar estudos sobre o tema. A partir de então, o acontecimento passa a ter um tratamento de pesquisa mais rigoroso, com historiadores a se dedicarem em compreendê-lo.

Para Prado Júnior (1977, p. 77), a Cabanagem foi:

Um dos mais, se não o mais notável movimento popular do Brasil. É o único em que as camadas mais inferiores da população conseguem ocupar o poder de toda uma província com certa estabilidade. Apesar da desorientação, apesar da falta de continuidade que a caracteriza, fica-lhe contudo a glória de ter sido a primeira insurreição popular que passou da simples agitação para a tomada efetiva do poder.

Para Chiavenato (1984, p. 12), o movimento:

É o único e isolado episódio de extrema violência social, quando os oprimidos - a ralé mais baixa, negros, tapuios, mulatos, cafuzos, além de brancos tão rebaixado que parecem não ter direito à branquitude, quase um exponencial de classe -, assumem o poder e reinam absolutos, eliminando quase todas as formas de opressão, arrebentando com a hierarquia social, destruindo as forças militares e substituindo-os por algo que faz tremer os poderosos: o povo em armas. Nesse momento, curto historicamente, se faz no Grão-Pará a grande rebelião social que não teve formas consequentes de organização política em torno do novo poder popular.

Segundo Silveira (1994, p. 25), trata-se de um dos “mais importantes movimentos sociais ocorridos no Brasil e o mais significativo para a região, que lhe serviu de palco e na qual deixou marcas profundas”.

Na perspectiva de Reis (1978), a Cabanagem, na qualidade de explosão de multidões mestiças e indígenas contra a vida e a propriedade dos que desfrutavam o poder político, o poder econômico e a projeção social, não foi composta e liderada pelas elites da Província, mas por homens do povo. Neste caso, não pode ser inserida na história nacional como um episódio a mais de aspirações políticas.

Guimarães (1978), estuda o Movimento como um caso único no Brasil em que o povo chega ao poder e nele consegue se manter durante um período considerável de tempo. Já para Di Paolo (1985, p. 367), a Cabanagem “é revolução; é a revolução popular mais importante da Amazônia e entre as mais significativas da história do Brasil”. O espírito revolucionário se explica, segundo este autor, por ter sido um movimento de luta pelo poder a partir da base e pelo “vértice-não-dominante”, que rompe com os padrões vigentes se abrindo para novos horizontes políticos e sociais.

Para o historiador marxista Vicente Salles (1992, p. 135):

A Cabanagem se caracterizou como movimento tipicamente social, com alguma expressão autêntica de guerra de libertação. O conjunto de ideias que os cabanos levantaram se não podem, a rigor, constituir um corpus orgânica, política e ideologicamente definida, revelam contudo elevado índice de politização.

No período da Cabanagem, em Belém, eram raros os que sabiam ler e escrever16. Submetidos a condições sociais de sobrevivência aviltantes, os cabanos eram gente do povo, formada por indígenas, negros, mestiços e brancos empobrecidos, com um histórico de exploração, que se insurge contra uma minoria branca, colonizadora, escolarizada, detentora do poder e dos meios de produção. Sob uma profunda necessidade de revolta e vingança, a sublevação cabana foi conduzida para além de suas lideranças. Como destaca Albuquerque (1981, p. 371):

Populações marginalizadas intervêm na luta com prática que escapam à direção dos chefes cabanos, mas que expressavam tentativas para encontrar soluções para os seus problemas, com certa autonomia. Daí a violência anti-luzitana e, ocasionalmente, de que se revestiram certos episódios da luta.

Eclodido durante a Regência, o Movimento expõe todo o passado de domínio porque os ataques vão se dá em relação aos portugueses. Para os cabanos, não era mais possível admitir permanecer sob os ditames de governos absolutistas e ditatoriais, daí seus líderes defenderem ser governados por uma Constituição que colocasse todos nas mesmas condições. Não por acaso se apoiaram na Revolução Constitucionalista do Porto e no ideário da Revolução Francesa, este último compartilhado pela população de fronteira.

Em 7 de maio de 1835, os cabanos, armados, invadem Belém, rendem soldados dos quarteis que aderem ao Movimento, matam o Presidente da Província Bernardo Lobo de Sousa, o Comandante das Armas José Joaquim da Silva Santiago e o Comandante naval James Inglis. Destroem o prédio da Maçonaria17, vão até a Fortaleza da Barra e libertam os presos políticos, entre eles o abastado fazendeiro Felix Antonio Clemente Malcher, que teve sua fazenda em Acará-açu incendida pela polícia de Bernardo Lobo de Souza por ocasião da caçada ao Cônego João Batista Gonçalves Campos, e aos irmãos Vinagre18. Na ata de proclamação das novas autoridades é dito “não se aceitar nenhum governante nomeado pela Regência” e que:

O povo e a tropa reunidos no Largo do Palácio acabavam de fazer do Exmo. Sr. Presidente desta província Félix Antônio Clemente Malcher, por falecimento do ex-Presidente Bernardo Lobo de Souza, a quem já estavam cansados de sofrer por causa da prepotência e arbitrariedades que sempre praticou em todos os atos do seu governo, foi pelo mesmo povo e tropa, que o aclamou, requerido que se desse conta do acontecimento à Regência, pedindo-lhe que não nomeasse mais Presidente para esta província até S. M. I. o Senhor Pedro II chegasse à idade marcada pela constituição para dirigir as rédeas do governo do Império, pois que a experiência tem desgraçadamente mostrado que eles, em vez de cuidarem do bem público, só tratam de seus interesses, que protestavam não receber qualquer Presidente que a Regência lhes mandasse, pela certeza de que essa malfadada província não poderá prosperar se não for administrada pelo benemérito e patriota cidadão a quem com tanto júbilo acabam de aclamar (PROVÍNCIA DO GRÃO-PARÁ. Ata de Proclamação do 1º Presidente Cabano, 07 jan. 1835).

Felix Antônio Clemente Malcher, o 1º Presidente Cabano, que desfrutou do convívio do Cônego João Batista Gonçalves Campos, logo começa a entrar em conflito com os revoltosos, principalmente com os irmãos Vinagre e Eduardo Angelim. Acusado de déspota, é destituído do cargo 45 dias depois, recolhido a uma nau imperial e posteriormente morto por um desafeto.

Francisco Pedro Vinagre é aclamado o 2º Presidente Cabano, mantendo-se no Comando das Armas, detendo, portanto, o poder civil e militar. Era um pequeno lavrador do interior do Pará, mas que se identificava com os interesses das classes dominantes. No seu governo, tenta desarmar os cabanos com um discurso de paz e de apelo ao “bom senso”, o que atrai para o seu governo a simpatia do clero.

A política de Francisco Pedro Vinagre de desarmar o povo deu um novo suspiro às velhas oligarquias que se sentem seguras para voltar ao poder. Na ata de posse assume aceitar um Presidente nomeado pela Regência, desde que o Comando das Armas permanecesse com ele, mas, dois problemas se colocavam: 1) a não adesão maciça da Marinha Imperial à Cabanagem; 2) a formação da primeira Assembleia Legislativa Provincial. De acordo com a legislação vigente, o Deputado mais votado deveria ser o Vice-presidente da Província e assumir o poder em caso de vacância.

O Deputado mais votado foi Ângelo Custódio Correia, político, formado em Direito na França, hostil aos cabanos. Nesta ocasião, chega ao Pará uma expedição militar, comandada pelo capitão-tenente Pedro da Cunha, que tentou intermediar a posse do eleito. Enviado do Maranhão, sua missão era acabar com o governo cabano e “pacificar a Província”.

Embora mantendo o diálogo, Vinagre, com os cabanos organizados e do seu lado, entra em combate com a Marinha e não aceita a posse de Ângelo Custódio Correia. Durante as negociações, Pedro da Cunha escreve, em 7 de maio de 1835, ofício aos comandantes de navios estrangeiros no porto de Belém, dizendo que:

O estado de desobediência à lei, em que está esta província, e as instruções que tenho, por-me-ão na colisão de fazer mover as forças legais sob meu comando, não só para repelir qualquer insulto que de terra se me faça, como também para empossar na administração desta província a legítima autoridade logo que ela aqui chegue e se lhe negue a posse; e por isso previno a V. Sa. para que haja de tomar posição que julgar mais conveniente a fim de que o navio sob meu comando não seja nem levemente molestado, o que, a suceder, me penalizará sobremaneira (PROVÍNCIA DO GRÃO-PARÁ. Ofício de Pedro da Cunha aos comandantes de navios estrangeiros aportados em Belém, 7 mai. 1835).

A legalidade da posse de Ângelo Custódio Correia é questionada pelos cabanos. Após bombardeios intensos, a fragata de Pedro Cunha estende a bandeira branca no mastro de seu navio. No último ofício enviado a Pedro Cunha, de 15 de maio de 1835, escreve Francisco Pedro Vinagre:

O sossego público urge que V. Sa. se faça de vela com a vazante deste dia, e que vá deplorando os estragos que causou nesta infeliz província, fazendo que todos esses iludidos que se acham a seu bordo, se não querem acompanha-lo, se transportem para bordo do navio de guerra francês, e mercantes da mesma ação, até que acalmando o fogo de paixões eu lhes possa mostrar até onde chega a filantropia de que sou animado. Conto com a execução desta minha ordem, e que Deus o leve para parte onde não deixe a destruição e o susto. Deus guarde V. Sa. (PROVÍNCIA DO GRÃO-PARÁ. Ofício de Francisco Pedro Vinagre a Pedro Cunha, 15 mai. 1835).

Ângelo Custódio Correia volta para Cametá, seu lugar de origem, na época importante vila do interior do Pará, localizada a 143.15 Km de Belém, e perante o Senado da Câmara assume o Governo do Pará como presidente legal, decretando Cametá a capital da Província. Enquanto isto, Francisco Pedro Vinagre permanece em Belém, no palácio do governo da província. Todavia, em 20 de junho chega a Belém o Presidente da Província e o Comandante Naval nomeados pela Regência. São eles o Português Marechal Manoel Jorge Rodrigues e o mercenário inglês John Taylor.

Após tensas negociações, Francisco Pedro Vinagre sede e no dia 25 de junho Manoel Jorge Rodrigues desembarca e perante a Câmara Municipal de Belém toma posse do cargo de Governador da Província, mas o irmão de Francisco Pedro, Antônio Vinagre, não aceita e se retira para o interior com centenas de cabanos armados. O que faz o novo Governador? Cria uma milícia, a Milícia Voluntários de Pedro II para a qual se alistam portugueses, ingleses e pouquíssimos paraenses.

Os cabanos que saíram em retirada com Antônio Vinagre se juntam aos cabanos do interior e tomam o poder em vilas que lhes são hostis. Numa dessas ações, que acontece na vila de Vigia, a 102,1 km de distância de Belém, os cabanos assumem a administração civil e militar. Dias depois, os depostos retornam, aprisionam os cabanos e os enviam para Belém para serem encarcerados nos porões da Esquadra Imperial.

Quando os cabanos de outras localidades tomam conhecimento, se juntam para invadir novamente a vila de Vigia e matam todos os que estavam no poder. Isto faz o Presidente decidir encarcerar todos os cabanos da cidade de Belém, inclusive Francisco Pedro Vinagre.

O irmão de Francisco Pedro, Antônio Vinagre, mobiliza os cabanos do interior e organiza uma tropa de dois mil cabanos para invadir Belém. Exige primeiro que o Presidente da Província liberte Francisco Pedro e todos os demais cabanos.

Manoel Jorge Rodrigues não atende ao pedido e Antônio Vinagre com seus homens invade a cidade. Vão se destacar na ofensiva os irmãos Eduardo Angelim e Geraldo Gavião. Antônio Vinagre é morto em combate e isto causa uma dispersão na tropa que começa a sair em retirada, mas Eduardo Angelim tenta conter o grupo e reorganizar a ofensiva, assumindo o comando geral das forças cabana. Os combates duram 9 dias. A cidade é toda bombardeada e, finalmente, no dia 22 de agosto, Manoel Jorge Rodrigues reconhece a derrota e foge na madrugada do dia 23 para um navio de Esquadra.

Mais uma vez os cabanos assumem o governo. Os padres Jerônimo Pimentel e Tomás Picanço, deputados eleitos pela Assembleia Legislativa Provincial, são indicados para a Presidência, mas recusam. Eduardo Angelim, comandante-em-chefe das forças revolucionárias, é então aclamado o 3º Presidente Cabano.

Enquanto isto, Manoel Jorge Rodrigues instala na Ilha de Tatuoca, a 26,5 km da capital, um governo paralelo, que tinha o apoio da esquadra da Marinha Imperial, causando mais revolta e fúria na população e nos cabanos, que radicalizam.

A primeira atitude de Eduardo Angelim é formar uma equipe de governo para atuar em toda a Província. Segundo Di Paolo (1985, p. 283), Eduardo Angelim governou:

Com pragmatismo e fidelidade ao acordo político alcançado. Na medida em que os problemas se apresentavam eram imediatamente enfrentados e resolvidos, dentro do contexto da plataforma política anteriormente preestabelecida. As grandes decisões eram tomadas colegiadamente pelo Conselho cabano, auscultando-se as bases populares.

Angelim reconduziu à função de Secretário Geral o Padre Casimiro Pereira de Sousa, que trabalhou no governo de Francisco Pedro Vinagre. Para a defesa criou diversos corpos militares, dando a cada um estrutura adequada para atuar mais agilmente; organizou uma flotilha de canoas artilhadas para garantir o abastecimento da capital e vilas vizinhas, além de fundar uma fábrica de pólvora a fim de suprir com munição as forças armadas. Para os comandos, nomeou pessoas de sua confiança e dos cabanos. Criou um sistema de embaixadores que corriam as povoações, próximas e distantes da capital, solucionando problemas. Tudo feito com o apoio popular.

Manoel Jorge Rodrigues continuava na Ilha de Tatuoca quando chega em outubro um navio inglês, aportando em Salinas, litoral paraense, localizada a 157,84 km de Belém, que trazia armamento e munição solicitados ainda pelo Governo de Bernardo Lobo de Sousa. Um grupo de rebeldes saqueou o navio e matou quase toda a tripulação. Ao tomar conhecimento, Angelim ordenou a abertura de um inquérito para apurar as responsabilidades e punir os culpados de acordo com a Lei. Assim, vai administrando a Província com base em regras e ordenamento.

No dia 9 de abril de 1836 chega ao Pará o novo Presidente, nomeado por Feijó para substituir Manoel Jorge Rodrigues. Era o Brigadeiro Francisco José Soares de Andréa, futuro Barão de Caçapava, acompanhado de um novo comandante naval, o Capitão de Fragata João Francisco Mariath.

A notícia deixou a população aflita porque já conhecia Andrea, que havia sido Comandante das Armas no Pará. Era considerado extremamente autoritário e prepotente. Sua indicação demonstrava o que queria o Império brasileiro: acabar com o governo cabano a qualquer custo.

Angelim tentou negociar com Andrea e para isto contou com a cooperação do Bispo do Pará Dom Romualdo Coelho. Mas em vão. Andrea não era homem de diálogo. Após várias tentativas, Angelim decidiu abandonar Belém sem oferecer resistência e com ele foram os cabanos. A pobreza era profunda, marcada pela fome e pela mortandade provocada pela epidemia da varíola. Sob essas condições, os cabanos saíram em retirada após um manifesto de Angelim no qual dizia:

Nossa condição é muito triste, pois já começamos a experimentar falta de munição de guerra; nossos covardes inimigos não se atrevem a atacar-nos, e só tratam de render-nos pela fome: não lhes demos este gosto; uma boa retirada nos é mais airosa do que morrer de penúria; vamos pois para o interior com nossas armas e munições esperar a anistia que nos promete o governo dentro de três meses; e quando nos faltem, nós lhe faremos o que hoje pretendem fazer-nos. Sim, nós os poremos em sítio na capital e por último os lançaremos fora vergonhosamente como das mais vezes o temos feito (PROVÍNCIA DO GRÃO-PARÁ. Manifesto de Eduardo Angelim, 8 mai. 1836).

Na fuga, Angelim ficou gravemente ferido e foi protegido por indígenas, mas capturado em uma tapera, mata a dentro, debilitado pela fome. Prisioneiro, chega em Belém em 30 de outubro de 1836. Andrea continuou a sua caçada aos cabanos que eram presos, torturados, submetidos ao trabalho forçado e mortos. Aproximadamente três mil cabanos morreram nos porões dos navios-prisão. Os dois líderes sobreviventes foram deportados para o Rio de Janeiro, mas o Movimento prosseguiu pelo interior por mais 4 anos, comandado não mais por homens esclarecidos, vinculados a camadas abastadas da sociedade paraense, mas por gente do povo.

Em 1839 Andrea deixa o governo e o novo presidente da Província, Bernardo de Souza Franco, pede ao governo imperial anistia para todos, menos para os líderes. Em 22 de agosto de 1840, quando já havia sido declarada a maioridade de Pedro II, os cabanos paraenses são anistiados, inclusive Eduardo Angelim, que, do Rio de Janeiro, foi deportado para Fernando de Noronha, onde ficou preso, esquecido pela justiça do Império. Retorna ao Pará quinze anos após a sua prisão, em 1851.

Considerações Finais

A intervenção pombalina operada em todo o Estado do Grão-Pará e Maranhão, que orientou Francisco Xavier de Mendonça Furtado, serviu para desorganizar um processo educacional que, mesmo com todos os problemas, inseria a população indígena e miscigenada no mundo da leitura e da escrita. Bem ou mal, a apropriação expandida, não interrompida, dessa tecnologia pela população nativa poderia ter dado um outro destino ao Movimento Cabano. Não por acaso, a mais importante campanha do Cônego João Batista Gonçalves Campos era pela criação de escolas. Às vésperas da deflagração do Movimento, nos informa Salles (1992, p. 103), que, diante do Presidente Bernardo Lobo de Sousa, ele reclamava: “A maior e a mais urgente necessidade da província era criar escolas de instrução primária para educação da mocidade e do povo”.

Essa intervenção na governação do Estado do Grão-Pará e Maranhão, em pleno século XVIII, como a própria Metrópole reconhecia, já revelava as assimetrias em relação ao Estado do Brasil, que só foram acentuadas. Como destacam Sampaio & Coelho (2013), o passado colonial amazônico, diferente da colonização portuguesa do Estado do Brasil, que plastifica a política imperial, gerou condições sociais e econômicas tão desfavoráveis que ainda hoje repará-las se constitui em desafio a demandar políticas públicas próprias.

Isto indica a necessidade de um projeto de educação plurinacional para o Brasil, capaz de dar conta de realizar processos de ensino que façam a devida reparação das desigualdades históricas de desenvolvimento do território brasileiro. Romper com a ideia de unidade nacional, a partir do reconhecimento da diferença, se faz urgente. Unidade territorial não pode ser entendida como unidade nacional, se se quer verdadeiramente, e minimamente, avançar na formação de um estado democrático e fazer valer a igualdade de oportunidades.

Em relação ao “chão da escola”, a história do Movimento Cabano revela a necessidade de revisão nos currículos escolares de modo que os processos pedagógicos se fundamentem numa perspectiva fortemente crítica, pautada na pedagogia do esclarecimento, para que promovam nas crianças e jovens a capacidade de questionar a realidade e formar a consciência crítica.

Em contraposição a qualquer possibilidade predeterminada de um modelo de educação a ser seguido, mas reconhecendo as desigualdades de gênero, de raça e de classe da sociedade brasileira, a Cabanagem ensina ser necessário desenvolver nas escolas públicas, espaço de formação dos filhos da classe trabalhadora, práticas de ensino que promovam o sentimento de indignação diante da barbárie e o conhecimento necessário para a superação da desigualdade intelectual.

A ampliação da consciência de raça para erradicar o preconceito e a garantia do esclarecimento sobre os mecanismos legítimos para a superação da discriminação não podem deixar de fazer parte da escola, especialmente entre os jovens. Urgente se faz para isto colocar as revoluções populares em destaque, de modo que ajudem a formar a consciência histórica de luta dos oprimidos. Assim talvez consigamos deter um projeto de desenvolvimento regional para Amazônia que a compreende, conforme Euclides da Cunha (1999), como uma “terra sem história”, ou, como destaca Ricci (2006), “uma terra sem homens”. Sempre tratada como um território a ser integrado porque vazio, é preciso enfatizar, como reforça a última autora citada, a existência na Amazônia de um povo ribeirinho que vive do extrativismo, uma nação indígena multifacetada que tem direito de promover e preservar a sua cultura e um povo afro-brasileiro que reivindica a propriedade de seu território. Enquanto esse processo não for desencadeado e a história continuar a ser negada, a independência ficará ainda mais distante porque não se faz uma nação livre com homens e mulheres imersos na alienação.

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1 Importa destacar que o Estado do Grão-Pará e Maranhão não estava subordinado ao Estado do Brasil, capital Salvador. Independente, respondia direto à Lisboa. Tal Estado abrangia o hoje estados do Pará, Maranhão, Amazonas, Piauí, Roraima, Rondônia, Amapá e Mato Grosso.

2O Regimento visava integrar o Vale Amazônico ao reino e regular a liberdade dos indígenas. Pretendia-se constituir atos de governar os indígenas, torna-los vassalos do rei, sem a presença dos missionários católicos, de modo a garantir que o funcionamento social da região corroborasse a produção de riqueza em favor do comércio colonial (PORTUGAL. Regimento, & leys sobre as missoens do Estado do Maranhão & Pará & sobre a liberdade dos índios, 21 dez. 1686).

3Esta elite era composta, dentre outros, não raro, por portugueses condenados à pena de degradados no Grão-Pará e/ou por condenados que solicitaram comutação de pena. Vale destacar que esta elite se beneficiou da expulsão da Companhia de Jesus já que suas riquezas acumuladas, como fazendas, foram sequestradas pela Coroa, vendidas e repartidas entre portugueses, brasileiros e “pessoas distintas”, principalmente funcionários civis e militares do Estado, no final do século XVIII.

4De fato, como demonstra Coelho (2007), o Diretório foi um instrumento jurídico da Coroa de regulação da liberdade como resposta à resistência dos indígenas ao controle da Metrópole, colocando-a sujeita aos marcos da civilização pela tutela.

5Importa destacar que a língua geral foi predominantemente falada no Pará até a Cabanagem.

6Não nos esqueçamos que foram estes aldeamentos, como demonstra Farage (2001), que funcionaram como “muralhas do sertão”, protegendo os limites territoriais da América portuguesa.

7As reflexões apresentas por Ricci (2008) indicam que a Cabanagem reforçou a formação desta identidade que significava não ser português, nem estrangeiro (ingleses, franceses e holandeses), mas também não significava ser brasileiro; significava ser “patriota”. Em pleno Movimento Cabano, a província era uma verdadeira “zona de fronteira”, ocupada e governada por estrangeiros odiados e desprezados por um contingente de excluídos, que não aceitava mais a submissão. “Patriotas” eram os expropriados em estado de insubmissão. Pode-se suspeitar, inclusive, que essa identidade impediu que a revolta se tornasse uma luta separatista porque para isto seria necessário a aliança com estrangeiros, tudo contra o qual lutavam.

8Para Ricci (2010), o processo de adesão do Pará à independência, na verdade um processo forçado de anexação ao estado do Brasil, “alimentou” a revolta do povo paraense contra o Brasil que desembocou na Cabanagem.

9A ideia era de que ao aderir ao constitucionalismo português a Província cairia nas graças da Regência instalada em Lisboa e talvez viesse a compor o novo governo a ser instalado. Formou-se então uma Comissão da Junta Provisional do Governo Supremo de Portugal da Província que negociaria com Portugal, o que não deu certo. O Pará estava dividido entre absolutistas e constitucionalistas.

10É necessário destacar que também houve um fluxo importante de franceses para o Grão-Pará em função da fuga de escravos. Estes vão se somar aos negros escravos aquilombados e aos indígenas amocambados.

11Felipe Patroni, paraense, educado em Coimbra, entusiasmado pelas ideias liberais, volta para a Província em 1821, introduz a prensa tipográfica em 1822 e edita o primeiro jornal impresso: O Paraense.

12O Cônego João Batista Gonçalves Campos, que se torna líder popular, preparará intelectualmente o Movimento. Perseguido, passa a viver na semiclandestinidade, mas faz chegar seu ideário cabano junto à população por meio do periódico Publicador Amazoniense. Traz do Maranhão o jornalista Lavor Papagaio, que publica no Sentinela Maranhense na Guarida do Pará manifestos contra o Presidente da Província, que será destituído e morto pelo Movimento Cabano. O religioso morre em 31 de dezembro de 1834, em fuga. Sete dias depois é deflagrada a rebelião.

13Esse sentimento de liberdade, que mobilizava a participação popular cultivou o Movimento Cabano. Independência significava liberdade nos corações e mentes cabano, o fim da escravidão e da servidão no seu sentido ampliado. Não por acaso, durante os governos cabanos não faltaram ingleses e franceses a chafurdarem apoio a uma luta de independência política do Grão-Pará do Estado do Brasil, pois acompanhavam com atenção todas as lutas ali travadas. O ofício de Joaquim Marques a Manuel Jorge Rodrigues, afirmava, por exemplo, que o Consul francês no Pará fornecia armas aos cabanos (PROVÍNCIA DO GRÃO-PARÁ. Ofício de Joaquim Marques a Manuel Jorge Rodrigues, 25 ago. 1835).

14Mercenário britânico, que será responsável pela adesão do Pará à independência do Brasil, isto é, pela integração da Província ao Estado do Brasil. Ele se desloca do Maranhão rumo a Belém em 5 de agosto de 1823, com uma tripulação de 96 homens.

15Para se ter uma ideia das barbaridades cometidas por Greenfell, ele logo tratou de escolher cinco prisioneiros que foram sumariamente fuzilados. O Cônego João Batista Gonçalves Campos, religioso querido da população, que exercia enorme influência sobre os mais pobres, não foi morto graças às suplicas do povo. Outros 256 foram cerrados no porão minúsculo de um navio - o brigue “Palhaço” -, que media 6,60m de comprimento, 4,40m de largura e 2,64m de altura. No dia seguinte, apenas quatro prisioneiros ainda estavam vivos, três acabaram morrendo e o único sobrevivente ficou senil aos 23 anos de idade.

16Sem dúvida esse problema na formação dos cabanos foi importante na escolha equivocada de estratégias e táticas, e que resultou na derrota da luta; não porque o analfabetismo impeça a compreensão da realidade - aliás, Ricci & Lima (2015) tratam com o devido cuidado o quanto a educação informal dos cabanos, manifesta em conhecimentos e saberes específicos da floresta e rios, fora importante para suas sobrevivências -, mas porque a formação intelectual escolar se constituía num capital cultural necessário para o entendimento das complexas relações de poder presentes naquele contexto político. O reconhecimento da necessidade dessa formação logo foi percebido pela própria população paraense que na década de 1870 faz uma luta silenciada em defesa da instrução pública. Por conta disso, há na Província, nesta década, um largo e franco investimento na formação escolar dos setores populares.

17No Pará a maçonaria surgiu como sociedade de classe, a favor dos interesses de comerciantes, proprietários de terra e de escravos, contra os mais oprimidos.

18Segundo Di Paolo (1985), o incêndio na fazenda, a perseguição política sofrida e a prisão criaram nos cabanos um sentimento de solidariedade e de simpatia para com Felix Antonio Clemente Malcher, a ponto de o admitirem como líder e o aceitarem como 1º Presidente Cabano.

Recebido: 05 de Agosto de 2020; Aceito: 21 de Dezembro de 2020

E-mail: ecosufpa@hotmail.com

SONIA MARIA DA SILVA ARAUJO é professora titular do Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal do Pará (ICED/UFPA). Graduada em Pedagogia, possui doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (USP/SP). Realizou estágio pós-doutoral no Centro de Ciências Sociais da Universidade de Coimbra (CES/UC), Portugal. Atua como docente no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPA, orientando mestrado e doutorado. Foi representante Norte na Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE), entre 2009-2013, e vice-presidente Norte da ANPEd, biênio 2017-2019. Coordena o Grupo de Pesquisa “José Veríssimo e o Pensamento educacional Latino-Americano”.

Editora responsável:

Tatiane de Freitas Ermel

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