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História da Educação

versão impressa ISSN 1414-3518versão On-line ISSN 2236-3459

Hist. Educ. vol.25  Santa Maria  2021  Epub 30-Abr-2021

https://doi.org/10.1590/2236-3459/110616 

Sessão Especial

COVID-19 E O FIM DA EDUCAÇÃO 1870 - 1920 - 1970 - 2020

COVID-19 Y EL FIN DE LA EDUCACIÓN: 1870-1920-1970-2020

COVID-19 AND THE END OF EDUCATION: 1870-1920-1970-2020

COVID-19 ET LA FIN DE L’ÉDUCATION: 1870-1920-1970-2020

* Universidade de Lisboa (ULISBOA), Lisboa, Portugal.

**Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora/MG, Brasil.


Resumo

Escrito com a liberdade do ensaio, este texto percorre, em visão panorâmica, a história da educação nos últimos 150 anos. Escolhemos quatro datas que funcionam como “pretexto” para a argumentação: 1870 - época de consolidação do modelo escolar; 1920 - publicação do livro-manifesto da Educação Nova, Transformemos a escola; 1970 - publicação de duas obras marcantes, A reprodução e Sociedade sem escolas; 2020 - Covid-19 e a maior “experimentação” na história da educação. O ensaio é atravessado por uma interrogação sobre o “fim” da educação ou, melhor dizendo, sobre o “fim” do modelo escolar.

Palavras-chave: Covid-19; desescolarização; escola nova; modelo escolar; reprodução

Resumen

Escrito con la libertad del ensayo, este texto cubre, desde una perspectiva panorámica, la historia de la educación durante los últimos 150 años. Hemos elegido cuatro fechas que sirven de “pretexto” para la argumentación: 1870 - período de consolidación del modelo escolar; 1920 - publicación del libro-manifiesto de la Escuela Nueva, Transformemos la escuela; 1970 - publicación de dos obras de referencia, La reproducción y La sociedad desescolarizada; 2020 - Covid-19 y el mayor “experimento” en la historia de la educación. El ensayo está atravesado por una interrogación sobre el “fin” de la educación o, mejor diciendo, sobre el “fin” del modelo escolar.

Palabras clave: Covid-19; desescolarización; escuela nueva; modelo escolar; reproducción

Abstract

Written with the freedom of the essay, this text covers, from a panoramic perspective, the history of education over the past 150 years. We have chosen four dates which serve as a “pretext” for the argumentation: 1870 - period of consolidation of the school model; 1920 - publication of the New Education manifesto, Transforming schools; 1970 - publication of two reference works, Reproduction in education, society and culture and Deschooling society; 2020 - Covid-19 and the biggest “experiment” in the history of education. The essay is crossed by an interrogation on the “end” of education or, to be more precise, on the “end” of the school model.

Keywords: Covid-19; deschooling; new education; school model; reproduction

Résumé

Rédigé avec la liberté de l’essai, ce texte couvre, dans une perspective cavalière, l’histoire de l’éducation au cours des 150 dernières années. Nous avons choisi quatre dates qui servent de « prétexte » à l’argumentation : 1870 - période de consolidation du modèle scolaire ; 1920 - publication du livre-manifeste de l’Éducation nouvelle, Transformons l’école; 1970 - publication de deux ouvrages de référence, La reproduction et Une société sans école; 2020 - Covid-19 et la plus grande « expérimentation » de l’histoire de l’éducation. L’essai est traversé par une interrogation sur la « fin » de l’éducation ou, pour être plus précis, sur la « fin » du modèle scolaire.

Mots-clés: Covid-19; déscolarisation; éducation nouvelle; modèle scolaire; reproduction

Abertura

A vida é um escândalo para a razão

Artur do Cruzeiro Seixas1

As grandes mudanças da história da humanidade são lentas, acontecem num tempo longo. No caso da educação, esse tempo é mesmo longuíssimo. Nada se transforma de repente, num instante. Mas esta continuidade longa é marcada por sobressaltos, por episódios que podem alterar o rumo dos acontecimentos. A história define-se e esclarece-se no encontro entre a lonjura e a brevidade.

O que sugerimos é uma nova abordagem que evita a dicotomia habitual entre história estrutural e conjuntural, entre história longa e circunstancial. Frequentemente, este “encontro” não traz nada de novo. Muitos acontecimentos, alguns de grande dimensão, depressa caem no esquecimento. Outros, por vezes até de menor dimensão, constituem pontos de viragem, e são recordados como “marcos” na história da humanidade.

A razão para este aparente paradoxo é simples. O acontecimento só ganha significado quando já está presente, ainda que de forma incipiente, no movimento longo. A metáfora da aceleração da história procura dizer isso mesmo: apesar de não haver nada de novo, assiste-se, de repente, a um processo de aceleração e de profundas transformações (NÓVOA; ALVIM, 2020).

Nos nossos dias, a análise histórica tem de olhar também para um segundo encontro, entre o geral e o particular, entre processos que atingem “todos” ou apenas “alguns”. Nessa perspectiva precisa de integrar uma visão comparada, a fim de alargar a geografia em que se move. A reflexão histórica só ganha sentido quando conseguimos transitar entre espaços e tempos diferentes, revelando as inter-relações entre eles.

Escrevemos este ensaio na nossa dupla identidade de historiadores e pedagogos, a partir de nossos singulares contextos e olhares sobre o fenômeno educativo. Entre Portugal e Brasil, entre a captura da escola a partir de suas históricas engrenagens e das práticas e sujeitos que as movimentam, partilhamos de uma mesma responsabilidade de pensar o que nos acontece no presente, com os olhos alargados no tempo.

Nem sempre temos sido capazes de pensar o passado e de projetar o futuro com imaginação e liberdade. Quantas vezes nos temos fechado na repetição das mesmas ideias? Quantas vezes temos sido incapazes de escrever e de fazer uma outra história? É urgente (re)pensar a educação. Livremente. Sem limites.

Queremos, por isso, recordar 1920 e a publicação do livro-manifesto da Escola Nova, Transformemos a escola, de Adolphe Ferrière. Foi há cem anos. Como sinaliza Italo Calvino, “é clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível” (CALVINO, 1993, p. 15). É nesse espírito que propomos o reencontro com um homem que se apresentava como o “apóstolo” da Educação Nova.

Escrito nos ares de seu tempo, a partir de uma Europa traumatizada pela experiência da Primeira Guerra Mundial, Transformemos a escola persiste como rumor, ao anunciar uma nova escola diante de um cenário marcado pela barbárie e ao conciliar um projeto que é, ao mesmo tempo, “o princípio do fim de um discurso escolarizante” e “o exacerbar da crença nas potencialidades da escola (de uma outra escola, claro)” (NÓVOA, 1995, p. 31). Nada mais atual.

Queremos também recordar dois livros marcantes do pensamento educacional das últimas décadas: A reprodução, de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, e Sociedade sem escolas, de Ivan Illich. Foi há cinquenta anos. São dois livros muito diferentes, mas que ilustram bem as tensões existentes nesse período.

E depois queremos terminar com a Covid-19. É hoje. 2020. “Se os livros permanecem os mesmos, nós com certeza mudamos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo” (CALVINO, 1993, p. 11). Recordamos para encontrar o presente com imaginação e liberdade.

Só para começar: aí pelo ano de 1870…

O que é uma escola? Antes de 1870 há várias respostas possíveis. Depois de 1870 há apenas uma: é um edifício próprio, separado do resto da sociedade, constituído sobretudo por várias salas de aula, com dimensões bastante semelhantes em todo o mundo (± 50 m2), no interior das quais um grupo relativamente homogéneo de alunos (entre 25 e 40), agrupados sempre que possível por idades e por nível de progresso nos estudos, sentados em carteiras escolares arrumadas em fileiras, ouvem em silêncio as lições dadas por um mestre, titulado e formado para esta função, que recorre no seu trabalho pedagógico a vários suportes didáticos, em particular ao quadro negro.

Esta descrição é uma caricatura, pois, no meio desta “normalidade” esconde-se uma diversidade imensa, entre escolas para os mais pequenos e para os maiores, entre meios rurais e urbanos, entre escolas privadas e públicas, entre professores formados nas novas “escolas normais” e aqueles que nunca tiveram formação especializada, etc. Mas fixa a imagem que perdura e que todos dirão, desde o final do século XIX: isto é uma escola. Para aqui chegar, foram precisos vários séculos de experiências e de tentativas.

Obviamente, a data de 1870 é puramente simbólica, ainda que, em Portugal, ela tenha um significado especial: a criação do Ministério da Instrução Pública. Por esta altura, consolidam-se os sistemas nacionais de ensino e cada vez mais países impõem a escolaridade obrigatória. A escola desempenha um papel central na transformação das populações em nações ou, para dizer de outro modo, na construção das cidadanias nacionais, como bem explica Pierre Bourdieu:

É sobretudo através da Escola que, com a generalização da educação básica ao longo do século XIX, se exerce a ação unificadora do Estado no campo da cultura, elemento fundamental na construção do Estado-nação. A constituição da sociedade nacional é indissociável da educabilidade universal: uma vez que todos os indivíduos são iguais perante a lei, o Estado tem o dever de os tornar cidadãos, dotados dos meios culturais para exercer ativamente os seus direitos civis (BOURDIEU, 1993, p. 54).

Um dos mais notáveis historiadores norte-americanos, David Tyack, utiliza uma fórmula extraordinária para designar esta realidade, The one best system (1974). A fim de simplificar este ensaio, vamos reter apenas quatro características deste único melhor sistema ou, para utilizarmos um termo mais simples, do modelo escolar2:

  1. a educação tem lugar em edifícios próprios que funcionam de forma relativamente separada do resto da sociedade;

  2. a sala de aula é o ambiente principal no qual decorrem as atividades escolares;

  3. o trabalho de professores e alunos é orientado por um programa de ensino, com objetivos bem definidos e disciplinas organizadas numa “grade curricular”;

  4. os professores realizam a sua ação sobretudo a título individual, dando aulas a um grupo de alunos.

O modelo escolar foi posto em causa pelo combate contra a Covid-19. Definitivamente? É a pergunta que percorre este ensaio, organizado por ciclos de cinquenta anos: 1870 - 1920 - 1970 - 2020.

1920

Transformemos a escola

Ainda o modelo escolar estava em fase de consolidação, e de difusão mundial, e já alguns educadores o criticavam. O mais famoso de todos terá sido John Dewey que, num texto muito importante, escreve, logo em 1902: é fácil cair no erro de ignorar a força dos elementos que organizam a “maquinaria escolar” (edifícios, espaços, tempos, arrumação dos alunos, distribuição do trabalho dos professores, etc.) quando “são precisamente essas as coisas que realmente controlam o conjunto do sistema, mesmo no que diz respeito aos aspetos especificamente educacionais”. Mais do que as teorias ou as orientações legais, a realidade da educação depende das “condições” nas quais se dá o encontro entre os professores e os alunos: são elas, conclui, “que dominam a situação educacional” (DEWEY, 1902, p. 23).

Esta crítica vai subindo de tom nos primeiros anos do século XX, e ganha forma no âmbito do movimento da Escola Nova, que vê a sua carta de princípios publicada pela primeira vez em 1915, mas que só obtém projeção mundial a partir do final da Primeira Grande Guerra (1914-1918). No pós-guerra era preciso, como então se dizia, “formar um homem novo” o que só seria possível através de uma “educação nova”. O excesso desta ambição trouxe grandes desilusões, sobretudo quando deflagrou uma nova guerra mundial. Mas é preciso reconhecer que ela se insere numa visão idealista e “libertadora” da escola, que vem do século XIX e chega até aos nossos dias. E, no entanto, não têm faltado estudos históricos para explicar, como Harvey Graff, que “os progressos na alfabetização e na escolarização tendem a seguir, e não a preceder ou a provocar, o desenvolvimento económico e social” (GRAFF, 1991, p. 378).

O livro Transformemos a escola, de Adolphe Ferrière, sintetiza bem a crítica à escola “tradicional” ao mesmo tempo que compõe um hino à escola “nova”. No prólogo conta-se uma das histórias mais conhecidas da educação: o Diabo veio à Terra e descobriu, com espanto e indignação, que as pessoas eram felizes; logo, cuidou de cumprir a sua missão, semeando a infelicidade; para isso, criou a escola, onde as crianças são impedidas de fazer tudo aquilo que, naturalmente, gostam de fazer: brincar, falar, perguntar, mexer, criar… O Diabo julgava-se vitorioso, mas não contava com o engenho das crianças que fugiram para os bosques, treparam às árvores e correram à aventura: “O Diabo, então, deixando de rir à socapa, rangeu os dentes, ameaçou com o punho, berrou: Maldita geringonça! E eclipsou-se” (FERRIÈRE, 1928, pp. 15-16). E assim desapareceu a “escola antiga” e nasceu a “escola nova”, atenta às crianças, às suas motivações e aos seus interesses.

A Escola Nova foi o mais importante, e influente, movimento educativo do século XX, tendo mesmo moldado a “modernidade pedagógica”. O ideário que ainda hoje é o nosso, da autonomia dos educandos à diferenciação pedagógica, dos métodos ativos à criatividade, dos projetos educativos ao trabalho cooperativo, foi elaborado nesta altura. Recorde-se apenas a crítica, ao mesmo tempo brilhante e injusta, de Hannah Arendt quando, em 1957, acusa “essa mistura de teorias modernas de educação, que vêm do centro da Europa e consistem num amálgama surpreendente de coisas sensatas e absurdas, de revolucionar, de uma ponta à outra, todo o sistema educacional, sob a bandeira do progresso da educação” (ARENDT, 1972, p. 229).

É impossível negar a influência da Escola Nova, em todo o mundo. Mas esta geração ignorou o aviso de John Dewey e procurou colocar “ideias novas” em “odres velhos”, procurou alterar os processos pedagógicos sem pôr em causa as quatro características do modelo escolar acima definidas. No final, prevaleceu a força da “maquinaria escolar”, com a frustração de milhares de educadores que foram tentando, com pouco ou nenhum sucesso, construir e consolidar dinâmicas de inovação pedagógica ao longo do século XX.

1970

A reprodução e Sociedade sem escolas

Depois da II Guerra Mundial (1939-1945), os países e as novas organizações internacionais, como a UNESCO, deram grande importância à expansão da educação no âmbito dos processos de reconstrução da Europa, mas também no contexto das dinâmicas de descolonização. Foi um tempo de consolidação e de reforço do modelo escolar. Porém, cedo começaram a surgir movimentos de renovação pedagógica, alguns dos quais ainda na linha da Escola Nova. Nos anos sessenta, as pedagogias alternativas e não-diretivas ganham grande relevância. Os diversos “Maios de 1968”, mundo afora, revelam a força da contestação a modelos autoritários de ensino, incapazes de integrarem a palavra e a participação dos estudantes.

Em 1970, dois livros notáveis, escritos a partir de posições totalmente distintas, ilustram bem o estado dos debates sobre educação: A reprodução, de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron; e Sociedade sem escolas, de Ivan Illich. É importante assinalar o seu cinquentenário.

Estes livros têm em comum títulos fortes, demasiado óbvios, que conduziram a leituras equívocas e até pouco conformes aos propósitos dos autores. Em 1989, Pierre Bourdieu afirma que a palavra “reprodução” teve um efeito catastrófico: é verdade que contribuiu para o sucesso da obra, sobretudo nos Estados Unidos, firmando o “paradigma” de que o sistema escolar contribui para reproduzir a estrutura social, mas, ao mesmo tempo, bloqueou a sua leitura. E acrescenta: “A história da literatura mostra muito bem que o que é comum à vida intelectual de uma época, muitas vezes, não é o conteúdo dos livros, mas os seus títulos” (BOURDIEU, 2002, p. 75). Ivan Illich queixar-se-á do mesmo, ainda que a versão original da sua obra tenha um título mais adequado: Deschooling society. Mas, na edição portuguesa, o título passou a ser Sociedade sem escolas, sugerindo uma leitura errada do seu conteúdo.

A reprodução é uma das obras mais emblemáticas, e problemáticas, do século XX, pois foi lida como uma fatalidade, uma inevitabilidade, tendo “fechado” qualquer tentativa de transformação da escola. O seu autor dirá, anos mais tarde: “A palavra [reprodução] circulou, mas as pessoas não leram o livro e disseram - sobretudo os sociólogos: Bourdieu diz que o sistema escolar reproduz as classes” (BOURDIEU, 2002, p. 76). Segundo ele, não foi isso que escreveu e o título “matou” o livro. Vale a pena registar o seu pensamento exato: “O sistema escolar contribui para legitimar as desigualdades económicas e sociais atribuindo a uma ordem social fundada na transmissão do capital económico e, cada vez mais, na transmissão do capital cultural as aparências de uma ordem fundada nos méritos escolares e nos dons individuais” (2002, p. 60).

Apesar das posições críticas de autores tão influentes como Antoine Prost ou Alain Touraine, a obra tornou-se uma “bíblia” para várias gerações de educadores. A fatalidade predominou sobre a possibilidade. Pierre Bourdieu defende-se: “É porque conhecemos as leis da reprodução que podemos ter uma possibilidade, mesmo pequena, de reduzir a ação reprodutora da instituição escolar” (BOURDIEU, 2002, p. 77). Diga-se o que se disser, ficou uma interpretação “literal” do título da obra, que, num certo sentido, “deslegitimou” os esforços de inovação pedagógica, tidos por “inocentes” ou “ingénuos”. Ao colocar o debate no plano dos “sistemas de ensino”, Pierre Bourdieu também não pôs em causa as características do modelo escolar, considerando-as apenas meras questões “organizacionais”, desvalorizando a força da “maquinaria” na perpetuação das instituições.

A obra de Ivan Illich teve um destino diferente, apesar dos equívocos abertos pelo título em português. Devia ter sido Desescolarizando a sociedade, mas a escolha recaiu sobre Sociedade sem escolas, o que está longe de ser a mesma coisa. O livro foi recebido com escândalo, devido à forma como o autor questiona todas as crenças e instituições do único melhor sistema. Mas foi rapidamente colocado numa gaveta e, contrariamente ao livro A reprodução, as suas ideias foram ignoradas.

No entanto, a obra de Ivan Illich, escrita há cinquenta anos, parece antever a realidade dos nossos dias. Logo nas primeiras páginas, afirma-se que a procura de novas soluções educacionais deve ser feita numa lógica inversa ao modelo escolar, valorizando teias educacionais que permitam a cada um transformar os diferentes momentos da vida em momentos de aprendizagem, de partilha e de cuidado (ILLICH, 1973, p. 18). O autor faz mesmo uma ressalva dizendo que a palavra “teia” é estranha, mas é a que melhor traduz a sua ideia de uma educação “extensiva”, isto é, presente em todos os tempos e lugares. Pela primeira vez na história da educação, uma corrente de pensamento, a desescolarização, punha em causa, radicalmente, as bases e as características do modelo escolar, tal como ele se havia consolidado no final do século XIX.

A maneira como as sociedades reagiram à Covid-19 veio confirmar a justeza de muitas propostas de Ivan Illich. Como se ele tivesse antecipado o que, agora, nos está a acontecer. Mas será que foi a Covid-19? Ou algumas destas tendências já se vinham manifestando nas sociedades e nas políticas? Uma coisa é certa: de forma confusa, caótica, desordenada, estamos a viver a maior experimentação na história da educação. O ano de 2020 marca, inevitavelmente, um tempo de transformações profundas na educação, na escola e nas aprendizagens. Positivas? Negativas? Desejáveis? Indesejáveis?

2020

A Covid-19

O século XX terminou com muitas críticas à escola, isto é, ao modelo escolar. Curiosamente, estas críticas mudaram de lado em poucas décadas. Nos anos sessenta, eram sobretudo as forças progressistas, defensoras de uma educação pública, que se revelavam insatisfeitas com uma escola autoritária, burocrática, rígida, incapaz de acolher dinâmicas de inovação. É neste movimento que se compreende a escrita de A reprodução e de Sociedades sem escolas. Nos anos noventa, a insatisfação passou para o lado das correntes neoliberais, defensoras da privatização da educação, e de uma menor intervenção do Estado, agrupadas sob as bandeiras da “escolha” e da “liberdade de ensino”.

Na ambiência de fim de milénio, foram-se desenvolvendo propostas “futuristas” de transformação da educação com alguns pontos em comum, nomeadamente:

  1. um regresso da educação a esferas domésticas e familiares, ou “comunitaristas”, isto é, a um recolhimento das crianças no seio de grupos sociais, culturais ou religiosos mais homogéneos, retirando-as dos espaços escolares públicos;

  2. um esforço de personalização das aprendizagens, em grande parte assente nos estudos dos neurocientistas sobre o cérebro, que têm conhecido um grande sucesso nas últimas décadas;

  3. um recurso sistemático às tecnologias e, cada vez mais, à inteligência artificial, procurando desenhar dispositivos e soluções mais eficazes do que a tradicional relação entre professores e alunos.

Estas propostas transportam uma visão “individualizada”, perspectivam a educação como um “bem de consumo” e põem em causa o modelo escolar, de tal maneira que chegam mesmo a defender o “desaparecimento da escola”. Como salienta Evgeny Morozov, “a desconfiança pós-moderna diante de tudo o que seja remotamente consolidado - de imediato percebido como corrupto e a serviço de interesses escusos” e o “triunfo da ideologia neoliberal” podem ajudar-nos a compreender a força da retórica anti-institucional e as soluções emancipatórias por meio do consumo (2018, p. 19).

As perspectivas “individualistas” de educação estão muito visíveis em movimentos recentes no Brasil, como a educação domiciliar ou o Escola sem Partido. A alegada defesa da “liberdade de escolha” das famílias e da “liberdade de aprender” dos estudantes é a base de sustentação de lógicas de desescolarização que, na verdade, transportam uma matriz conservadora de crítica à escola pública.

Seja através do confinamento dos alunos no ambiente doméstico, seja pela defesa do primado da “educação moral familiar” sobre a educação escolar, o “desaparecimento da escola” faz-se pela corrosão dos laços sociais e dos vínculos pedagógicos entre professores e alunos. A escola sempre teve duas missões principais: conseguir que, através do conhecimento, os alunos aprendam a estudar e a trabalhar; conseguir que, através da relação, os alunos aprendam a viver uns com os outros. Esta segunda missão não se pode concretizar fora de um espaço escolar, público, de partilha e de convivialidade.

O “desaparecimento da escola” conduz, também, ao desaparecimento do professor, pois esvaziam-se as suas dimensões profissionais, nomeadamente enquanto coletivo docente, e desvaloriza-se o seu conhecimento próprio, a sua capacidade de construir pedagogia e de “fazer escola”.

Um acontecimento vai tornar nítidas estas tendências: a Covid-19. De repente, o que parecia impossível tornou-se inevitável: as escolas fecharam, as crianças foram para casa, o ensino passou a basear-se nas tecnologias, etc. Nos últimos meses temos assistido, em todo o mundo, às mais diversas e díspares experiências para assegurar a famosa “continuidade educativa”. Será isto que Ivan Illich sonhou? Não. Será isto que as correntes dos últimos anos vinham desenhando? Sim. Será este o futuro da educação? Provavelmente. É este o futuro que desejamos? Não.

O vírus da “escola em casa” propaga-se, facilmente, numa sociedade atomizada, fortemente individualista, fechada sobre si mesma, facilmente manipulada, orgulhosa de uma liberdade feita da indiferença em relação aos outros e ao nosso destino comum. Essa sociedade já cá estava antes da Covid-19, mas tornou-se mais forte. O nosso receio maior é que seja esta a matriz de um mundo pós-pandemia, marcado por desigualdades e divisões ainda mais profundas.

Mas há sempre alternativas. Como explica Roger Sue, na sua última obra, Le spectre totalitaire (2020), não devemos desvalorizar a existência, nos últimos anos, de outras evoluções, como o desenvolvimento de uma economia da relação, do serviço, da reciprocidade, do comércio entre pessoas, da troca de conhecimentos e do bem comum. Estas realidades também se têm afirmado nas sociedades do princípio do século XXI, acentuando as dimensões conviviais e a construção de uma humanidade comum.

É nesta outra mundividência que podemos encontrar soluções para um mundo pós-pandémico e para um futuro que, reconhecendo a obsolescência do modelo escolar, não deixe de promover a educação como um bem público e comum.

Voltemos ao início do nosso texto para assinalar que o processo de expansão da “escola de massas” (mass schooling) é indissociável da difusão mundial do modelo escolar e da construção de cidadanias nacionais. Hoje, o princípio da educação como bem público e comum passa pela defesa da escola como instituição democrática, emancipatória e inclusiva, o que nos recoloca diante da histórica e multifacetada relação entre escola e cidadania.

Já não nos basta uma pátria comum (a cidadania nacional) e, por isso, precisamos de recorrer a duas outras metáforas para explicar o que se espera da escola: uma Terra comum e uma Humanidade partilhada. A Terra comum, a Terra-pátria de Edgar Morin (1993), revela-nos a importância do planeta que, em conjunto, habitamos e de todos os temas relacionados com a crise climática e a sustentabilidade. Hoje, não é possível pensar a educação fora dos debates ecológicos e da nossa responsabilidade face a estilos de vida, a modelos económicos e a práticas de consumo que estão a destruir a nossa “casa comum”. A Humanidade partilhada chama-nos a atenção para a diversidade cultural, para as diferentes maneiras de ver e de agir. Hoje, não é possível pensar a educação fora dos debates sobre a importância de distintas epistemologias, sobre a necessidade de conhecer e reconhecer o papel de grupos e culturas que a história dominante foi empurrando para as margens, sem se ter apercebido que, como diz Jean-Luc Godard (2004), “são as margens que definem a página”.

Não se trata de unir, artificialmente, o que é diferente, mas de criar os ambientes que permitam trabalhar em comum, pensar em conjunto, partilhar uma reflexão sobre os mesmos objetos e, em particular, sobre os objetos do conhecimento. Este trabalho, este pensamento e esta partilha não se fazem no vazio, necessitam de instrumentos, de linguagens, que só a ciência, a criação e o conhecimento nos podem dar. O cibermundo está a incentivar uma sucessão interminável de monólogos entre iguais. A escola tem de construir as condições para um diálogo entre diferentes, assente no conhecimento, na compreensão mútua e num debate esclarecido e informado.

A cidadania do nosso tempo não cabe nas fronteiras nem do “cidadão nacional” nem do “cidadão consumidor”, implica, isso sim, uma filiação que nos permita viver em paz com a Terra (“casa comum”) e em paz com os Outros (“humanidade partilhada”). E implica, também, processos de participação e de deliberação no espaço público. Não se trata, apenas, de estar presente e informado, de acompanhar, de ser consultado; trata-se, acima de tudo, de ter uma voz na decisão, do poder de decidir. Neste sentido, importa fortalecer a escola como arena onde se firma a compreensão das regras da vida coletiva como resultado de um debate público.

Retomemos as quatro características do modelo escolar, apresentadas no início deste ensaio, procurando repensá-las à luz de uma valorização do comum:

  1. em vez de uma educação em edifícios próprios, que funcionam de forma relativamente separada do resto da sociedade, pensemos no princípio da capilaridade educativa, isto é, de uma educação numa diversidade de tempos e de espaços (escolas, casas, associações, centros de arte, de ciência e de cultura, empresas, comunidades, etc.);

  2. em vez de um dia-a-dia escolar organizado apenas dentro da sala de aula, pensemos em novos ambientes educativos, abertos e flexíveis, nos quais possa ter lugar uma grande diversidade de atividades (estudo individual, estudo em grupo, trabalho de pesquisa e de criação, escrita individual e coletiva, etc.);

  3. em vez de um programa de ensino com disciplinas fixas, pensemos em combinar disciplinas e áreas transversais ou grandes questões do mundo, como, por exemplo, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, levando a cabo um ensino por temas e problemas, por pesquisa e criação;

  4. em vez de professores exercendo as suas funções a título individual, pensemos em professores trabalhando colaborativamente, assumindo, como coletivo, a responsabilidade pela educação do conjunto dos alunos de uma escola.

Dir-nos-ão que nada disto é novo. Sem dúvida. Há milhares de experiências em todo o mundo que procuram pôr em prática estas orientações. É verdade. Mas tem faltado um enquadramento mais amplo e consistente e, sobretudo, uma continuidade que permita construir estas “experiências” como uma verdadeira alternativa ao modelo escolar. Precisamos de sair desta crise pandémica com um projeto claro para o futuro da educação, sabendo que são muitos e diferentes os caminhos a ser percorridos, mas mantendo sempre a defesa da educação como bem público e comum e reconhecendo a necessidade de uma transformação profunda do único melhor sistema.

O fim da educação?

Num texto notável de 1974, Olivier Reboul afirma que a nossa civilização está em crise e que o sinal mais forte é o falhanço da nossa educação: “provavelmente pela primeira vez na história, os seres humanos confessam-se incapazes de educar os seus filhos” (REBOUL, 1974, p. 15). Vinte anos mais tarde, em 1995, o filósofo Neil Postman, um dos membros dos círculos illichianos, publica uma obra na qual nos inspirámos, O fim da educação. O autor interroga-se sobre a crise escolar, mas interessa-se sobretudo por novas narrativas que possam dar sentido à intenção de educar: “O que torna públicas as escolas públicas não é tanto o fato de terem objetivos comuns, mas o fato de os seus alunos partilharem narrativas comuns. A razão é simples: a educação pública não serve um público, cria um público”.

Há 150 anos que não vivíamos um tempo tão decisivo na história da educação. Mais do que numa crise estamos numa encruzilhada. Temos vários caminhos pela frente. Qual ou quais vamos seguir? A decisão é nossa.

Se quisermos simplificar, quiçá em demasia, diremos que uma via nos conduz à privatização da educação, não no sentido tradicional do termo, mas na perspectiva de um fechamento da educação em ambientes de proximidade, familiares ou comunitários, com o recurso a estratégias de personalização das aprendizagens, cada vez mais sofisticadas, através do uso das tecnologias e da inteligência artificial. Talvez este “admirável futuro” seja o mais provável.

Mas há uma outra via, que nos conduz a reforçar a educação como um bem público e comum, reconhecendo a importância das famílias, mas sem nunca fechar a educação em “círculos de proximidade”, reconhecendo a importância das tecnologias, mas sem nunca ceder a uma educação que vem “de fora”, antes valorizando a produção autónoma, “de dentro”, de professores e alunos.

Num e noutro caso, e esse é o argumento que quisemos desenvolver neste ensaio, o modelo escolar está a acabar. Depois da pandemia uma nova realidade educativa vai emergir em todo mundo. Por causa da pandemia? Não. Porque nas últimas décadas esta mudança tornou-se necessária e até inevitável. Mas as reações à pandemia mostraram que, para além de necessária, esta mudança é possível.

Num certo sentido, a pandemia libertou o futuro, alargou o leque das possibilidades. Agora, sabemos que o impossível pode acontecer. O que faremos com este conhecimento? Depende de nós. A vida é mesmo um escândalo para a razão.

Referências

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1Artur do Cruzeiro Seixas é um dos mais importantes surrealistas portugueses. Faleceu em 2020, a poucas semanas de celebrar o seu centenário.

2Em trabalho anterior, explicámos a diferença entre vários conceitos que procuram traduzir esta mesma realidade: cultura escolar (Dominique Julia), forma escolar (Guy Vincent), modelo escolar (António Nóvoa) e gramática da escola (David Tyack e William Tobin) (Nóvoa, 2006).

Recebido: 12 de Janeiro de 2021; Aceito: 25 de Janeiro de 2021

E-mail: novoa@reitoria.ulisboa.pt

E-mail: yaralvim@yahoo.com.br

ANTÓNIO NÓVOA é Reitor da Universidade de Lisboa (2006-2013) e professor do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Ele obteve um Doutoramento em História na Universidade de Sorbonne (Paris) e um Doutoramento em Ciências da Educação na Universidade de Genebra (Suíça). Várias universidades brasileiras e portuguesas lhe deram o título de Doutor Honoris Causa. Ao longo de sua carreira acadêmica, foi professor em várias universidades internacionais (Genebra, Wisconsin-Madison, Oxford e Columbia-Nova York). Entre 2000 e 2003, atuou como Presidente do ISCHE (Associação Internacional de História da Educação). Atualmente, é Embaixador de Portugal na UNESCO e membro da Comissão Internacional sobre os futuros da educação.

YARA CRISTINA ALVIM é professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG-Brasil), atuando na formação inicial e continuada de professores das áreas de História e Pedagogia. Licenciada em História e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil). Atua na área de Metodologia do Ensino de História. Tem experiência na formação inicial e continuada, por meio do PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Formação Inicial de Professores) e do Programa de Residência Docente (UFJF). Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa em Ensino de História (CNPq), a partir do qual tem desenvolvido suas ações de pesquisa em Ensino de História.

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