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História da Educação

versión impresa ISSN 1414-3518versión On-line ISSN 2236-3459

Hist. Educ. vol.26  Santa Maria  2022  Epub 15-Oct-2022

https://doi.org/10.1590/2236-3459/113824 

Artigo

EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA NO BRASIL. HISTÓRIA, ATUALIZAÇÕES NO PRESENTE E AS CAPTURAS EM TORNO DO CONCEITO DE AUTOGESTÃO: O HOMESCHOOLING

EDUCACIÓN LIBERTARIA EN BRASIL. HISTORIA, ACTUALIZACIONES EN EL PRESENTE Y APROPIACIONES EN TORNO AL CONCEPTO DE AUTOGESTIÓN: EL HOMESCHOOLING

LIBERTARIAN EDUCATION IN BRAZIL. HISTORY, UPDATES IN PRESENT TIME AND THE CAPTURES AROUND THE CONCEPT OF SELF-MANAGEMENT: HOMESCHOOLING

ÉDUCATION LIBERTAIRE AU BRÉSIL HISTOIRE, ACTUALITÉS AU PRÉSENT ET APPROPRIATIONS DE LA NOTION D'AUTO-GESTION: ÉCOLE À DOMICILE

Roberta Mendonça Porto* 
http://orcid.org/0000-0002-1370-4328

*Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil.


Resumo

Mobilizado pelos questionamentos acerca dos interesses do Estado na implantação dos sistemas de ensino este artigo tem como objetivo percorrer por alguns fatos históricos da educação libertária e apresentar os tensionamentos em torno de sua organização no Brasil no final do século XIX e início do século XX. Em seguida, analisamos os desdobramentos do pensamento libertário em certas práticas de educação contemporânea, dando destaque para as bases conceituais dessas experiências ancoradas no conceito de autogestão. Por fim, problematizamos os deslocamentos em torno do conceito de autogestão, conforme proposto pelo pensamento libertário, e examinamos as capturas em torno deste conceito exercidas pelo neoliberalismo e pelo conservadorismo religioso, expressas nas propostas do homeschooling e um prolongamento deste pensamento conservador que é o projeto de lei Escola Sem Partido e todo o movimento político e social que insiste na regulamentação dessa modalidade de ensino no Brasil.

Palavras-chave: educação libertária; autogestão; neoliberalismo; homeschooling; escola sem partido

Resumen

Movilizado por los cuestionamientos referentes a los intereses del estado en la implantación de los sistemas educativos, este artículo tiene como objetivo hacer un recorrido por algunos hechos históricos de la educación libertaria y presentar las tensiones alrededor de su organización en Brasil a finales del siglo XIX y al inicio del siglo XX. A continuación, analizamos ciertas derivaciones prácticas del pensamiento libertario en ciertas prácticas de la educación contemporánea, especialmente las bases conceptuales de estas experiencias ancladas en el concepto de la autogestión. Finalmente, problematizamos las dislocaciones alrededor el concepto de la autogestión, según lo propuesto por el pensamiento libertario, y examinamos las capturas en torno de este concepto ejercidas por el neoliberalismo y el conservadorismo religioso, las que se expresan en las ofertas de homeschooling y una prolongación de este pensamiento conservador que es el proyecto de ley escuela sin partido y todo el movimiento político y social que insiste en la reglamentación de esta modalidad de educación en Brasil.

Palabras clave: educación libertaria; autogestión; neoliberalismo; homeschooling; escuela sin partido

Abstract

Driven by questionings concerning the interests of the State in the implementation of education systems, we intend to cover some historical facts of the libertarian education and to present the tensions around its organization in Brazil in late 19th century XIX and early 20th century. Next, we analyze the developments of libertarian thinking in certain contemporary education practices, highlighting the conceptual bases of these experiences anchored in the concept of self-management. Finally, we problematize on developments around the concept of self-management as postulated by libertarian thinking, and we analyze how neoliberalism and religious conservatism capture this concept, which can be identified in homeschooling propositions, along with an extension of this thinking which is the school without party bill and all the political and social movements insisting on the regulation of this education modality in Brazil.

Keywords: libertarian education; self-management; neoliberalism; homeschooling; no indoctrination

Résumé

Mobilisé par des questions sur les intérêts de l'État dans la mise en œuvre des systèmes d'enseignement, cet article vise à couvrir quelques faits historiques de l'éducation libertaire et à présenter les tensions autour de son organisation au Brésil à la fin du 19e siècle et au début du 20e siècle. Ensuite, nous analysons le déroulement de la pensée libertaire dans certaines pratiques éducatives contemporaines, en mettant en évidence les bases conceptuelles de ces expériences ancrées dans le concept d'autogestion. Enfin, nous problématisons les glissements autour du concept d'autogestion, tel que proposé par la pensée libertaire, et examinons les prises autour de ce concept exercé par le néolibéralisme et le conservatisme religieux, exprimé dans les propositions de l’école à domicile et une extension de cette pensée conservatrice qu'est le projet de loi école sans parti et tout le mouvement politique et social qui insiste sur la régulation de ce type d'éducation au Brésil.

Mots-clés: education libertaire; autogestion; néolibéralisme; école à domicile; école sans parti

Considerações iniciais

As questões que mobilizam este artigo estão relacionadas ao impasse entre o capitalismo e a educação e seus efeitos na organização de um sistema que produz modos de subjetivação para responder suas demandas. Reconhecemos que em uma sociedade capitalista a educação se constitui assumindo sua face e se expressa modulada pela lógica do capital, diante disso, nos interessa trazer para o debate sobre educação, a força política das práticas e as linhas que operam suas lógicas.

Ao partir dos questionamentos sobre os interesses do Estado na implantação dos sistemas de ensino este artigo tem como objetivo percorrer alguns fatos históricos da educação libertária e os tensionamentos em torno de sua organização no Brasil. Em seguida, propomos analisar a base conceitual dessas experiências ancoradas no conceito de autogestão e as capturas em torno deste conceito exercidas pelo neoliberalismo e pelo conservadorismo religioso, expressas nas propostas do homeschooling e no prolongamento deste pensamento conservador que é o projeto de lei 193/2016 que propõe o Escola Sem Partido e todo movimento político e social que insiste na regulamentação desta modalidade de ensino no Brasil.

Educação libertária e seu percurso histórico: concepções e práticas

Herdeiros do iluminismo, os anarquistas foram os primeiros a questionar a educação universal e a escolarização clerical. A educação, desde seus primeiros movimentos, por volta de 1756 na Europa, foi considerada um vetor importante capaz de provocar mudanças nos modos de pensar da sociedade. Historicamente a educação é um dos temas centrais da luta anarquista, sendo reconhecida como o caminho para a formação de mulheres e homens libertários. Suleados pelos princípios da autogestão, as ações educativas são tidas como recursos que devem ser concebidos, construídos e gerenciados coletivamente pelas pessoas e pela comunidade envolvida no processo educacional.

Alguns dos primeiros pensadores da filosofia anarquista como Proudhon (França, 1809-1865) e Bakunin (Rússia, 1814-1876) foram bastantes críticos do sistema educacional organizado pelo Estado, segundo eles, voltado aos interesses da classe burguesa. Tais críticas eram dirigidas às práticas escolares vinculadas ao conservadorismo religioso e empresarial organizada para favorecer os proprietários e gerentes dos meios de produção, o que tem como efeito, a divisão de classes e a formação das desigualdades sociais.

Para Proudhon, filósofo francês anarquista, a luta por uma educação igualitária passa pela luta de classes, precisa se aproximar das necessidades dos trabalhadores, já que a educação burguesa se constitui para o controle dos processos de produção, circulação e consumo, consolidando os papéis na hierarquia social. O filósofo propõe a ideia de politecnia do aprendizado, o ensino dado por completo, de modo que o trabalhador tenha acesso simultâneo ao centro de produção e ao ensino, reconhecendo este como o único meio de evitar cisão entre aprendizado e instrução, cisão esta que mantém a reprodução da sociedade de classes (LIPIANSKY, 1999).

Além disso, Proudhon defende a ascensão do trabalhador por todos os níveis de formação, tanto profissional, quanto intelectual, a educação do corpo e do intelecto. Isso seria possível por meio da junção entre ‘oficina-escola’, em que as empresas e centros de produção, ao mesmo tempo, fossem capazes de oferecer teoria e aplicação, ou seja, centros de formação, a teoria, coexistindo com os estabelecimentos de produção.

O filósofo anarquista chama a atenção para a necessidade de romper a barreira dos privilégios de classe, reconhece que o progresso resulta das oportunidades, do contato com as realidades de trabalho e assim deve ser ao longo da vida. Há uma força política no pensamento de Proudhon que reconhece a educação como principal caminho para emancipação dos trabalhadores e das trabalhadoras, como uma atividade coletiva e pública que vai além da escola “delimitada por um período da existência”. Essa força política vem com a ideia de uma educação de responsabilidade partilhada (a comuna, a profissão, os sindicatos), que deve atender as demandas e as reivindicações sociais.

Ele alerta, não existe gratuidade do ensino, esta ideia é equivocada diante do que o Estado arrecada do povo, além disso, a maior fatia deste ensino beneficiará os mais ricos (LIPIANSKY, 1999, p. 21).

Nesse sentido, Proudhon defende a democratização do ensino, realizável a partir da justiça na igualdade de oportunidades para que todas as pessoas tenham acesso à educação. A educação se constitui nessa filosofia como um espaço de exercício democrático por meio da autogestão, a democracia expressa o princípio da autonomia e com isso a autogestão é colocada como elemento central nas relações educativas (GALLO, 1993).

Outro pensador anarquista, Bakunin, levanta temas provocados por Proudhon, defende a educação integral e segue com críticas voltadas para o ensino burguês, que considera um marcador divisório das classes e deve ser repensado politicamente para que a educação seja capaz de incluir as necessidades do conjunto da sociedade. Ele defende que tanto o trabalho quanto a instrução devem ser acessíveis a todos e todas, sejam operários, operárias ou doutores, doutoras e coloca como eixo fundamental da formação, que seja capaz de formar pessoas para questionar a ordem do Estado.

Nesse percurso histórico diversos pensamentos manifestaram os ideais de lutas anarquistas e por algum tempo a educação libertária não podia ser pensada no interior da escola. Ainda que seus primeiros pensadores do século XIX como Proudhon, Bakunin e outros como Stiner, Godwin, reconhecessem a importância dos ideais iluministas de educação presentes na escola contrapostos aos ideais teológicos (acesso às ciências, leitura, escrita), também reconheciam as amarras da razão moderna, tida como impessoal e universal e não estavam convencidos de que por meio desta escola, fossem capazes de produzir as transformações sociais que almejavam. Pelo contrário, enxergavam aquele projeto de escola como uma adaptação aos novos tempos, em que a escolarização e a educação estatal estavam organizadas em torno da consolidação de um estado burguês (AUGUSTO E PASSETTI, 2008).

Esse caminho entre o pensamento de se constituir uma educação não escolar até admitirem as possibilidades de uma escola de caráter libertário, foi construído principalmente através dos encontros de luta pela emancipação dos trabalhadores, como os ocorridos em 1860 na Internacional dos Trabalhadores (AIT), em que emergiram pensamentos e outras propostas sobre educação, tanto das crianças, filhos e filhas dos trabalhadores e das trabalhadoras, quanto voltado a elas e eles próprios (AUGUSTO E PASSETTI, 2008).

Esta época foi marcada pela aproximação de cientistas com os anarquismos, como o caso do geógrafo e cientista Élisée Reclus (FRANÇA, 1984). De alguma forma, a militância do cientista influencia a filosofia a pensar sobre a elaboração de uma escola a partir da perspectiva anarquista. Na medida em que Reclus “não dissociava sua pesquisa científica de sua militância política, considerando a ciência e a sua difusão como um dos meios mais importantes para elaborar uma teoria científica” capaz de favorecer a luta pela igualdade, ele influenciou um projeto de escola libertária (CODELLO, 2007, p. 196 apudSILVA, 2016, p. 2).

Élisée Reclus era um defensor da difusão científica entre trabalhadores e, tinha isso, como uma militância política. Sua presença nos congressos da AIT, ao lado de outros pensadores interessados pela temática da educação, como Paul Robin e o próprio Mikhail Bakunin, levou a uma série de propostas concretas acerca da educação científica para as escolas libertárias, como a Educação integral. O fio condutor desse pensamento trouxe a escola para um lugar de reivindicação e concretude dos princípios anarquistas através de experiências como a de Cempuis, de La Ruche e das escolas modernas europeias e brasileiras.

Esses espaços tornaram-se mais do que espaços de formação, eram lugares de articulação das diferentes frentes e ações de lutas anarquistas, serviam como lugar de “aglutinação de diversas ideias-força libertárias. Educação, escola e revolução eram indissociáveis e simultâneos, aconteciam no momento em que o jornal era escrito, quando era distribuído, ao inflamar os leitores para luta imediata, e ao sinalizar para a utopia igualitária” (AUGUSTO E PASSETTI, 2008, p. 64).

As práticas destas primeiras escolas destoavam das práticas vigentes, nelas não existiam exames, notas, concursos e tinham como princípio a participação responsável à vida coletiva. Algumas de suas experiências como em Cempuis extrapolaram as práticas libertárias e contribuíram para algumas concepções das pedagogias contemporâneas (MORAES & SILVA, 2013).

O Orfanato de Cempuis (França) administrado pelo professor Paul Robin funcionou entre 1880 e 1894, teve como base das práticas a educação integral, voltada a atender os diferentes aspectos dos sujeitos: físicos, profissionais, intelectuais e morais, centradas na coletividade e corresponsabilidade para sua manutenção. Baseada na igualdade e no direito de todos e todas desenvolverem suas habilidades, a educação integral foi considerada o caminho para se assumir a posição de transformação e a superação da sociedade de exploração. Com a integração entre trabalho manual e o trabalho intelectual, buscou-se a harmonização entre essas faculdades, que passava também por uma formação para a vida (GALLO, 1995).

Alguns anos mais tarde o espanhol Francisco Ferrer, inspirado pelas ideias de Robin fundou em Barcelona a “Escola Moderna” (1901), que seguiu os mesmos passos da educação integral. As escolas modernas foram baseadas em práticas e concepções que visavam possibilitar o desenvolvimento de todas as capacidades dos indivíduos, a partir de métodos ativos, coeducação social e sexual e a integração da escola à comunidade (MORAES & SILVA, 2013). Rompendo padrões da época era uma escola mista, aberta, laica, racional e científica, considerada um espaço de cultura popular, dotada de biblioteca, tipografia, serviço de edição, voltada para a emancipação e propagação de ideias libertárias (LIPIANSKY, 1999).

As ideias de Ferrer e a experiência da escola moderna rapidamente ultrapassaram territórios. Em menos de uma década escolas modernas foram abertas em vários estados espanhóis e em outros países, incluindo o Brasil. As ideias libertárias no campo da educação chegam ao país junto ao movimento anarquista, por volta de 1890 e por iniciativa de militantes imigrantes e brasileiros, como Edgar Leuenroth, Octávio Brandão, Adelino Pinho, João Penteado, José Oiticica, Rodolfo Felipe, Zeferino Oliva, Pedro Catalo, entre outros, práticas das Escolas Modernas puderam ser disseminadas no Brasil e um pouco mais tarde foram abertas as primeiras escolas modernas brasileiras (MORAES & SILVA, 2013).

Além das escolas modernas, outras escolas libertárias foram fundadas, como a Escola União operária no Rio Grande do Sul (1895), Escola Elisée Reclus em Porto Alegre (1906), Escola Libertária Germinal (1903), Escola Sociedade Internacional, Escola Noturna (1907), as Escolas Livres como as de Campinas (1909) e a Escola da União Operária de Franca (1912), dentre outras. Além das escolas, outras iniciativas de cunho educacional/cultural foram inauguradas, como as bibliotecas populares, os centros de estudos, os centros de cultura social, os grupos de teatro, os centros libertários, os jornais, as revistas, entre outros (MORAES & SILVA, 2013).

No Brasil as ideias libertárias se associaram aos movimentos sindicalistas e tomaram força especialmente entre trabalhadores/as imigrantes italianos, espanhóis e portugueses, o que passou a ser conhecido como movimento anarcosindicalista brasileiro, que tinha no projeto educacional um grande aliado para sua organização e disseminação (BERON KASSICK, 1996).

Como em outros países, o projeto de educação libertária além de destinado aos operários e seus familiares também se organizaram em torno de atividades comunitárias e culturais como: teatro, centros culturais, universidades populares, imprensa, com o objetivo de alcançar o maior número e uma maior diversidade de pessoas. Entretanto, essa efervescência cultural e política destoaram do contexto conservador brasileiro e logo essas ações passaram a ser alvo de constantes ataques por parte do Estado e da Igreja (BERON KASSICK, 1996).

Corroborando com os ataques, identificamos seus efeitos na historiografia oficial do campo educacional no Brasil, que dá por encerrado o movimento de educação libertária das escolas anarquistas brasileiras, a partir do fechamento das escolas modernas de São Paulo e São Caetano, no ano de 1919, sob a alegação de não estarem de acordo com os requisitos legais para o funcionamento (BERON KASSICK, 1996).

O fechamento aconteceu após a explosão de uma bomba que resultou na morte de quatro militantes anarquistas, dentre eles o diretor da Escola Moderna de São Caetano. Na ocasião a mídia produziu a criminalização do movimento e fez circular a ideia de que as Escolas Modernas promoviam a disseminação de ideias subversivas (MORAES & SILVA, 2013). Apesar do golpe sofrido por essas duas importantes escolas, o movimento educacional desenvolvido pelos anarquistas fazia parte do grande projeto de oposição ao Estado e manteve-se disseminando suas ideias por meio de outros projetos articulados às atividades de militância, às greves, às panfletagens e, sobretudo à imprensa, que por meio de seus jornais e revistas serviram como uma importante fonte de estudo às escolas, aos grupos de estudos, aos centros culturais, entre outras diversas ações militantes. Os artigos de militantes brasileiros e as traduções de autores internacionais publicados nesses veículos eram meios de divulgação das ideias anarquistas e das experiências libertárias que aconteciam mundialmente.

A articulação entre educação e imprensa anarquista, a exemplo do que já acontecia em outros países como França e Espanha, tinha a dupla função de integrar os movimentos de luta, bem como constituir um acervo crítico, organizado em oposição aos livros de tradição burguesa que a igreja e o Estado se utilizavam. A imprensa anarquista promoveu a articulação entre as várias frentes de militância e foi um importante aliado para a organização de grupos de estudos, aquisição e divulgação do material de educação. Por meio desse canal de circulação de informações, trabalhadores tinham acesso a instrumentos que os permitiam avaliar, discutir e buscar alternativas às precárias condições de trabalho e às precárias condições de educação a que tinham acesso.

O entrecruzamento entre educação, cultura e imprensa foi fundamental para o avanço das ideias anarquistas e serviu de inspiração às diversas lutas engajadas no ideal de educação política, coletiva e autogestionária. São ideias que ainda hoje se expressam por meio de práticas que insistem em anarquizar o presente como as Okupas e as iniciativas coletivas de educação¹, por exemplo. Isso não significa dizer que são ações que se reconheçam anarquistas, mas sim, são ideias anarquizantes que se expressam nessas práticas.

Como destaca Daniel Barret (2011 apudMARQUES2017) o movimento anarquista vive uma mudança de época, novas expressões dos anarquismos podem ser identificadas em grupos, atividades, iniciativas e não mais se restringe às organizações como o anarcossindicalismo. São iniciativas que devem ser consideradas ponto de renovação no movimento, mas que suas bases, seu éthos libertário de crítica radical ao poder e a irremovível ética da liberdade mantém-se como direções nas práticas atuais.

Quando estes autores chamam a atenção para estas novas expressões dos anarquismos, eles apontam para ideias que circulam, que se desprendem das fixações e que atuam como forças nos conjuntos moleculares, forças maleáveis, que agem em uma esfera micropolítica, capazes de escapar dos sistemas molares macropolíticos com maior facilidade. Isso produz rupturas, cria novas possibilidades com a invenção de outros modos, e fazem emergir movimentos que subvertem as relações sociais moldados pela lógica capitalista.

Ao retomar a história da educação libertária compreendemos que é possível reativar tais ideias e forças no presente e com isso apontar para possibilidades de se produzir práticas de educação como lócus da heterotopia de invenção,

O espelho, afinal de contas, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar. No espelho, eu me vejo onde não estou, em um espaço irreal que se abre virtualmente atrás da superfície; estou ali onde não estou; uma espécie de sombra que me confere minha própria visibilidade, que me permite olhar-me ali onde sou ausente: utopia do espelho. Mas é igualmente uma heterotopia, na medida em que o espelho existe realmente e tem, no local que eu ocupo, uma espécie de efeito de retorno; é a partir do espelho que me descubro ausente do local onde estou, já que me vejo ali. A partir desse olhar, que de certa forma se dirige a mim, do fundo desse espaço virtual do outro lado do vidro, eu retorno a mim e recomeço a dirigir meus olhos a mim mesmo e a me reconstituir ali onde estou. O espelho funciona como uma heterotopia, no sentido de que ele torna esse local, que eu ocupo no momento em que me olho no vidro, ao mesmo tempo absolutamente real, em ligação com todo o espaço que o cerca, e absolutamente irreal, já que tal local precisa, para ser percebido, passar por esse ponto virtual que está ali (FOUCAULT 2011, p. 415).

Nesta proposição, Foucault convida olhar para as mudanças e revoluções de outra maneira, assim como completa Passetti (2002), pelos espaços que se encontram no meio, como quem olha para o espelho, que expressa um lugar sem lugar real e um contra posicionamento, como uma utopia realizada, ao mesmo tempo, mítico e irreal, contrapostos ao real representado, invertido.

Um campo de disputas: tensionamentos em torno do conceito de autogestão

Essa contextualização apresenta como historicamente a educação libertária insiste em ampliar o significado de educação. Toda a articulação entre as ações ligadas à cultura e à imprensa eram pensadas como estratégias de formação dos trabalhadores e das trabalhadoras, como espaços de estudos e trocas de saberes.

É interessante notar essa ampliação de sentidos dado ao termo educação através da multiplicidade de ações que pode ser visto neste movimento de voltar ao passado para olhar o presente. Nesse movimento nos deparamos com as naturalizações e disso emerge o questionamento sobre aquilo que nos é dado como obrigatório, necessário e universal e nos mobiliza a pensar os sentidos da escola no tempo presente: o que se passa hoje em termos de educação?

A aproximação histórica apresenta certo conjunto de práticas que tornaram possível formas outras de organizar a educação. Ainda que certas ideias a respeito da educação tenham se hegemonizado por um conjunto de práticas carregadas de interesses políticos, culturais e sociais (como apontou a educação libertária na sua história), entende-se que no tempo presente outras formas de educar podem insurgir, não há pontos fixos nessa história. E ainda mais, pensar a história a partir do presente, nos abre possibilidades parciais e espaços transitórios de liberdade, sem fixações, em confronto direto e constante com aquilo que fazemos, pensamos e dizemos ‘ser’ educação (RODRIGUES, 2015).

Olhar por essas lentes traz um movimento para a história à medida que reativa as forças do passado e atualiza o debate político, reconhecendo-o como componente fundamental dos processos de formação, seja na escola ou em outros espaços de educação. E nesse percurso interessa-nos analisar o conceito de autogestão, reconhecido como um constante processo de aprendizagem, tendo em vista que os modos de organização social hegemônicos produzem cada vez mais o distanciamento dos sujeitos de práticas baseadas na coletividade e a desresponsabilização pelas decisões políticas do entorno e da comunidade, esvaziando o sentido da luta política.

Isso significa dizer sobre o distanciamento das pessoas com as ações pensadas coletivamente, tendo em vista que as decisões, os problemas cotidianos, as demandas dos sujeitos e dos grupos podem ser respondidas por um conjunto de normas, serviços, prescrições ou protocolos. As respostas e as referências para as práticas, em geral, estão exteriores aos próprios sujeitos e escapam de qualquer conexão ou reflexões sobre o que precisam ou desejam. Isso tem como efeito a constante terceirização das vidas, em que as necessidades são transformadas em serviços, o reflexo disso está na dificuldade de se pensar sobre a força da coletividade e de promover ações coletivas no contexto do capitalismo neoliberal.

O próprio neoliberalismo capturou os discursos sobre autogestão e deu a ele uma nova roupagem, por isso é preciso atenção quanto a sua utilização, sobre o contexto e significado em que é empregado. Deslocado das ideias de coletividade e democracia que estão atreladas ao conceito utilizado na perspectiva libertária, na perspectiva neoliberal o conceito de autogestão define maneiras individualistas de se alcançar aquilo que se considera como sucesso no capitalismo. Nesta captura do conceito, o indivíduo torna-se o principal responsável por suas conquistas e com méritos individuais pela realização de si mesmo e pela maximização de sua qualidade de vida, traduzida nesse contexto como consumo e acumulação de bens, resultado de suas próprias escolhas.

Assim o neoliberalismo produz a ideia de autogestão individualizada, diretamente relacionada aos processos de autogestão de carreiras profissionais, em que os indivíduos são levados à crença de que possuem autonomia e liberdade de definirem e conduzirem as carreiras, tudo isso com a finalidade de tornarem-se consumidores de bens, o que significa nesse sistema, ascensão social.

Trata-se de um modo de subjetivação que produz indivíduos-empresa, ou, os empreendedores de si, pessoas que não fazem a distinção entre vida privada e trabalho, as vidas são movidas pelo desejo e ideal de sucesso econômico. Carregam consigo toda a responsabilidade do sucesso e do fracasso e anulam das produções as noções de oportunidades e privilégios materiais e simbólicos. Um modo de vida que gera duplamente a sensação de liberdade na condução das vidas/carreiras, bem como a perspectiva de ter como única premissa os caminhos indicados pelo mercado.

Diferente disso, o conceito de autogestão, a partir de um referencial libertário, renuncia à ideia de sucesso atrelado às ações individualistas e regidas pelo mercado. Suas ações estão organizadas em torno da coletividade e participação ativa de todas as pessoas que compõem os coletivos nos processos de tomada de decisão. Estão opostos aos discursos de liberdade individual, associado às realizações pessoais, as práticas são impulsionadas pela possibilidade de encontrar pontos de ruptura das lógicas que regem a organização social e liberdade, nesse contexto, é a possibilidade da organização coletiva na tomada de decisões, de abrir frestas no instituído e inventar outros modos de vida.

Ao apontar para a autogestão como caminho de desenvolvimento das ações, afirmam a possibilidade de construir espaços de horizontalidade, de apoio mútuo e de cooperação como realizáveis na vida cotidiana e que se apresentam de maneira bastante plural, parte integrante do presente (IBAÑEZ, 2011; WARD 2013, apudMARQUES 2017, p. 110). Estas ideias seguem na aposta da invenção de possibilidades para a resolução dos problemas do/no cotidiano, no movimento de “empurrar a sociedade para uma maior anarquia” que se expressam por meio de ações diretas e diversas (MARQUES, 2017, p. 111).

As capturas do conceito de autogestão: O homeschooling

Dentre os discursos e práticas de educação que se referem apoiadas no conceito de autogestão está o homeschooling, uma modalidade de ensino que têm despertado interesse nos meios de comunicação (O GLOBO, 09/09/2017; 12/01/2019; 04/04/2021; CORREIO BRASILIENSE 21/02/2018; GAZETA DO POVO 14/06/17; 13/09/19 NOVA ESCOLA 26/02/18), na comunidade acadêmica (VASCONCELOS, 2016; KLOH, 2014; BASTOS 2013) frente às propostas do atual governo de regulamentar essa modalidade de ensino no Brasil.

Uma dissidência de outro movimento chamado de unschooling, ambos têm sido são tratados como sinônimos apesar de suas divergências e posições contrárias. De acordo com as pesquisas de Zaldívar (2015), isso está relacionado ao fato do unschooling aparecer de forma bastante tímida na maioria dos países, o que faz com que ele seja assemelhado ao homeschooling, já que esta última vem sendo bem mais difundida e ganha força, principalmente, nos Estados Unidos e no Brasil.

O homeschooling ganhou força nos anos setenta e abarcou as contestações relacionadas à educação e à escolarização das crianças dentro do movimento de contracultura, e na sua contestação incorporou tanto discursos progressistas², quanto discursos conservadores³, nas críticas voltadas às instituições e na compreensão da educação como serviço estratégico na sociedade de conhecimento e meio de formação de capital humano. Tais críticas emergiram especialmente no período em que as agências internacionais, como Unesco, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e Banco Mundial, assumem posições estratégicas nos acordos voltados para a educação.

Frente as contestações, do final da década 1960 e da década de 1970, desenvolveram-se uma geração de pensadores críticos à educação escolarizada que influenciaram diferentes iniciativas. Suas teorias tiveram penetração em diferentes discursos, como Ivan Illich, Everett Reimer e John Holt, este último, especialmente, motivou as práticas ligadas ao homeschooling. Em função de seu engajamento no movimento que reivindicava o direito por outras formas de aprender, Holt elaborou críticas em relação à escolarização a partir da perspectiva das crianças, diferente do que foi produzido na época por Illich e Reimer, que estavam mais centrados nas questões voltadas à instituição escolar e à pedagogização da vida.

Segundo Zaldívar (2015), nas produções de Holt encontram-se questões específicas voltadas para o processo de aprendizagem, a forma como a escola se organiza, a dinâmica das salas de aula, em que apontava críticas em torno da integração e da normalização de estudantes e professores.

Em seu livro How children learn (1967), centrado nas questões relacionadas à escola e ao desempenho pedagógico das crianças, Holt é enfático em sua oposição às práticas pedagógicas de maneira geral, que segundo ele, limitam a capacidade de desenvolvimento das crianças. Holt limitava-se a pensar sobre os aspectos relacionados ao sistema pedagógico, sem considerar os aspectos sociais e políticos da educação. No intuito de pensar estritamente a escola, abarcava os discursos tanto progressistas-libertários, quanto conservadores, e assumia que no homeschooling qualquer discurso questionador voltado para a escola poderia ser usado como sinônimo independente de suas motivações. Contudo, aconteceram tensionamentos dentro do movimento devido as diferentes motivações que aproximava as pessoas, nesse jogo de forças havia um grupo em defesa da regulamentação de um modelo de educação/escola domiciliar embasada por discursos conservadores religiosos, bastante diferente daqueles que se colocavam críticos aos ideários educacionais burgueses.

Por algum tempo, as ideias de Holt contemplaram os diferentes discursos e práticas que questionavam a escola, independentemente de suas motivações, até que nos anos de 1980, os trabalhos de Dorothy Moore e Raymond Moore vinculados a grupos religiosos protestantes dos Estados Unidos se acoplaram ao homeschooling, o que produziu uma minuciosa seleção de métodos, materiais e argumentos pedagógicos ligados ao conservadorismo religioso (ZALDÍVAR, 2015).

Como efeito, aqueles motivados pelas reivindicações progressistas e libertárias passam a ser denominados de unschoollers e suas reivindicações, carregadas pelas contestações sociais e políticas direcionadas à educação institucional, aproximaram-se das críticas elaboradas por dois importantes pensadores da época, Everett Reimer e Ivan Illich, relacionadas à pedagogização da sociedade,

Muitos estudantes, especialmente os mais pobres, percebem intuitivamente o que a escola faz por eles. Ela os escolariza para confundir processo com substância. Alcançado isto, uma nova lógica entra em jogo: quanto mais longa a escolaridade, melhor o resultado...sua imaginação é escolarizada a aceitar serviço em vez de valor (ILLICH, 1973, p. 21).

As obras produzidas por estes autores são fruto de quinze anos de pesquisas juntos, em que analisaram as relações estabelecidas entre as instituições e a produção de sujeitos, voltando suas análises para a produção de sujeitos a partir das demandas do capitalismo. Ivan Illich (1971) com o livro Sociedade sem escolas e Everett Reimer (1970) com o livro A escola está morta: alternativas em educação. Ambas problematizam a relação prescritiva das instituições e a noção de verdade que estas prescrições adquirem perante a sociedade. Elas se dirigem à relação de dependência entre sociedade e instituição, ou como chama Illich, como esta relação produz o subdesenvolvimento da autoconfiança, de modo que, nossas demandas sejam sempre respondidas por alguma instituição, ao invés de nos organizarmos coletivamente para pensar estratégias. Sejam elas no campo da educação, da saúde, da justiça, entre outras, daí vem sua afirmação de que a sociedade como um todo precisa passar pela (des)escolarização do pensamento.

Baseados nessas ideias o movimento unschooling reconhece a aprendizagem como um processo contínuo e reivindica as possibilidades de aprendizagem fora do conceito moderno de educação, incorporando ensinar e aprender a partir de diferentes formas e espaços, para além dos modelos de aprendizagem promovidos pelas escolas convencionais ou escolas transferidas para dentro de casa. Esse posicionamento demonstra a radicalidade do unschooling e sua oposição às ideias que legitimam os modos hegemônicos de funcionamento social, o que nesse sentido, cria uma fissura no sistema de categorias pelas quais funciona a racionalidade.

Além disso, sua prática muitas vezes é tomada como ofensiva no espaço de dominação do discurso da educação institucionalizada, isso porque coloca em evidência o discurso da pedagogização que governa todos os campos de existência. Em outra direção, o unschooling traz uma contestação radical a qualquer tipo de instrumentalização universal do processo de aprendizagem, seja no homeschooling, seja nas escolas oficiais ou não oficiais. Nesse sentido, o unschoolings e apresenta como uma contestação política, contra a pedagogização da vida, o que aproxima o movimento do diálogo com os ideários libertários, que se opõem a qualquer autoridade externa que determine o processo de aprendizagem do sujeito.

Por outra direção, as ideias que ancoram as práticas do homeschooling são baseadas em discursos que se colocam no lugar de criticar a escola e o currículo baseados no fundamentalismo religioso. Essa onda conservadora na educação não se restringe às propostas de escola em casa, ela tem se ampliado e tentado alcançar as diferentes iniciativas, com a finalidade de tornar seus discursos hegemônicos, incluindo a própria escola, como pode ser visto por meio do projeto “Escola sem Partido”. Uma proposta apoiada em discursos ultraconservadores no plano social e político que se acopla ao moralismo fundamentalista religioso para conduzir suas práticas (FRIGOTTO, 2017, p. 29).

Essa iniciativa tem forte inspiração no movimento americano “No Indoctrination”, que se coloca em defesa de denunciar atitudes de professores críticos ao conservadorismo, denominando-se de ‘apartidários’. O homeschooling e o movimento Escola sem partido estão em forte sintonia em seus princípios e se unem para dar maior força a este projeto de educação ultraconservadora e moralista, como se pode ver na página virtual do Creation Studies Institute, organizado por um grupo cristão ligado ao “No Indoctrination”, em que divulgam ações e incentivam denúncias a professores. Neste mesmo site eles incentivam o homeschooling oferecendo material para sua prática, defendendo a liberdade dos pais em conduzir a escolarização da criança em casa (ESPINOSA e QUEIROZ, 2017).

Sob os mesmos argumentos e sob as mesmas condições estão embasados os discursos do homeschooling e do projeto Escola sem Partido no Brasil. Adaptados à realidade de casa ou da escola os discursos seguem as mesmas lógicas, um currículo pautado em convicções religiosas e morais acima dos discursos científicos. Por essas mesmas convicções devem estar balizadas as práticas dos professores, seus apoiadores questionam a autonomia escolar e o exercício da docência e não admitem o pluralismo de ideias. Pelo contrário, se colocam como combatentes da pluralidade, que segundo eles, é fruto da ideologia político-partidária implantada nos intelectuais formados pelas universidades públicas brasileiras, repassadas por esses ‘professores doutrinadores’ nas escolas de ensino básico e fundamental (HOMESCHOOLING BRASIL, 2013).

É comum entre os defensores destes discursos a defesa pelo ‘direito individual’, acreditando que “cada indivíduo, a partir do conhecimento imparcial, seria capaz de escolher para si as ideias que estejam de acordo com seus princípios, pensamentos e forma de ver o mundo” (HOMESCHOOLING BRASIL, 2013). O caráter coletivo, a diversidade de ideias e posicionamentos políticos são vistos como nocivos para sociedade, de modo que eles denominam como ideologia político-partidária, e criticam inclusive a diversidade ao se analisar a sociedade.

As críticas lançadas ao Estado, em geral, voltam-se para a reivindicação do direito de escolha da família, descolando os filhos da convivência plural, da diversidade cultural, racial, sexual, ou do que eles chamam de doutrinação estatal, como podemos constatar em uma das três páginas de grupos do facebook, com mais de nove mil seguidores, criada e, defesa da regulamentação do homeschooling,

O melhor professor pode ser eu mesmo (pai/mãe). Só existe uma maneira de uma família ter absoluta certeza de que não há doutrinação no aprendizado pelos filhos. Somente saberá a família que tomar para si a responsabilidade de educar seus filhos em casa. O ensino doméstico, ou homeschooling, seria a solução para os pais que desejam retirar seus filhos da doutrinação estatal (HOMESCHOOLING BRASIL, 2013).

O discurso de defesa “pela qualidade e neutralidade” do ensino fortalece os dois projetos e avança entre os diferentes arautos do:

fundamentalismo do mercado e do fundamentalismo religioso em um território que historicamente desembocou na insanidade da intolerância e da eliminação de seres humanos sob o nazismo, fascismo e similares. Uma proposta que é absurda e letal pelo que manifesta e pelo que esconde (FRIGOTTO, 2017, p. 31).

O movimento Escola sem Partido (sem?) ao se acoplar a outros projetos, como o homeschooling, mostra um posicionamento que, mais partidário, impossível, à medida que se coloca em defesa de um partido absoluto e único, marcado pela intolerância com as visões de mundo diferentes das que defendem (FRIGOTTO, 2017, p. 31).

Tais expressões conservadoras agem na captura, são as linhas duras que atravessam as iniciativas que tentam se desviar dos discursos hegemônicos. Mas elas não são únicas, ainda que estejam presentes no movimento do campo, essas linhas se prolongam, se desdobram, se desterritorializam e se reterritorializam. Por isso, ao resgatar o conceito de autogestão, interessa-nos ativar a história da educação libertária e abrir a possibilidade de se pensar educação como um processo de invenção, expressas a partir do desejo que se efetiva no cotidiano, com encontros que insistem em anarquizar o presente e trazer potência de vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O percurso proposto neste artigo buscou revisitar a história da educação libertária, a fim de, identificar os pontos de ruptura desta história, sobretudo aqueles relacionados ao conceito de autogestão em que estão ancoradas as práticas libertárias. Pode-se observar nessa trajetória as estratégias de resistência, os deslocamentos e as capturas desse conceito que operam na tentativa de apagar a capacidade autogestionária dos movimentos, forças tão ameaçadoras ao Estado. Um dos efeitos disso foi o apagamento histórico e o não reconhecimento da importância das escolas modernas e do movimento anarcossindicalista para a educação brasileira.

A partir disso buscou-se analisar para o termo ‘Educação’, que na racionalidade moderna mantém-se fortemente atrelado à escolarização, de modo que “só é caracterizada como educação aquela fornecida pelo Estado ou pelo mercado como saberes empacotados em embalagens, meras mercadorias e serviços oferecidos por instituições legitimadas pela burocracia estatal” (MARQUES, 2017, p. 117). Corroborando com Illich (1973), estas críticas estão voltadas para um fenômeno que o autor chama ‘desescolarização do pensamento’, quando ele problematiza a relação de dependência que se estabelece entre os sujeitos e as instituições.

A contrapelo desta lógica, a história da educação libertária e sua trajetória no Brasil nos apresenta uma organização que abarca uma série de práticas pensadas como práticas educativas (oficinas, cine debates, bibliotecas, fanzines, produção de alimentos, grupos de estudos) guiadas pelo princípio da autogestão, pensadas e realizadas coletivamente, ampliando a dimensão do conceito de educação. Nesse movimento, as práticas insistem em ampliar os contornos daquilo que socialmente se considera como educação e contribui na ampliação do pensamento de que educação é sinônimo de escola.

Nessa inflexão emerge o conceito de autogestão, um conceito central na educação libertária que ativa nos dias atuais o pensamento sobre uma atitude, sobre um éthos capaz de produzir deslocamentos sobre a natureza de nosso presente, ou ao menos, impulsiona questionamentos sobre o que somos nós como presente. São fissuras produzidas pela emergência daquilo que é, mas que nem sempre foi, ou que pode ser por outras racionalidades. Esse pensamento insiste em subverter a ordem e aponta para a construção de espaços de liberdade que produzem a anarquia em ação (COLIN WARD,1973 apudMARQUES, 2017), colocando em movimento o conceito de educação ao questionarem as lógicas que movem as práticas educativas.

A partir disso, ao trazer os tensionamentos e os deslocamentos em torno do conceito de autogestão jogamos luz para as disputas políticas e sociais em torno dos conceitos e das experiências. Neste sentido, ao colocar em análise o homeschooling e o prolongamento desse pensamento que se expressa no projeto Escola sem Partido foi possível olhar para os engendramentos das relações sociais e as múltiplas forças presentes, entendo-as como históricas, transitórias, passíveis de serem combatidas e transformáveis.

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NOTAS

11 As experiências das Okupas e dos coletivos de educação são apresentadas e analisadas na tese de doutorado da autora: PORTO, R.M. Vidas outras para mundos outros: Sobre desescolarizar as práticas de educação. Tese de doutorado apresentada ao Programa de pós-graduação em Políticas Públicas e Formação. Universidade do estado do Rio de Janeiro, 2020.

22 Termo criado pelos ideais iluministas referindo-se ao progresso científico. Historicamente o conceito sofreu alterações e atualmente pode ser pensado por dimensões sociais, culturais e políticas, tanto nas agendas das chamadas posições políticas de esquerda quanto da direita. Neste estudo nos referirmos como progressistas ideias e posicionamentos políticos que estão vinculados a projetos e políticas de combate às desigualdades sociais, em defesa aos direitos humanos e das minorias.

33 Referimos-nos a conservadorismo os posicionamentos políticos que defendem um modelo único e verdadeiro de sociedade baseado no fundamentalismo religioso, nos princípios repressivos e punitivos das relações entre as pessoas e no liberalismo econômico e meritocrático.

Recebido: 08 de Maio de 2021; Aceito: 12 de Outubro de 2021

E-mail: bethamendonca10@gmail.com

ROBERTA MENDONÇA PORTO é professora Adjunta do Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-doutora em Terapia Ocupacional pela Universidade Federal de São Carlos. Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Editora responsável:

Dóris Almeida

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