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História da Educação

Print version ISSN 1414-3518On-line version ISSN 2236-3459

Hist. Educ. vol.27  Santa Maria  2023  Epub May 20, 2023

https://doi.org/10.1590/2236-3459/123624 

Artigo

ARTHUR RAMOS E A CRIANÇA PROBLEMA: CONEXÕES ENTRE A PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO NAS TECNOLOGIAS DA CORREÇÃO

ARTHUR RAMOS Y EL NIÑO PROBLEMA: CONEXIONES ENTRE PSICOANÁLISIS Y EDUCACIÓN EN TECNOLOGÍAS CORRECCIONALES

ARTHUR RAMOS AND THE PROBLEM CHILD: CONNECTIONS BETWEEN PSYCHOANALYSIS AND EDUCATION IN CORRECTION TECHNOLOGIES

ARTHUR RAMOS ET L'ENFANT À PROBLÈME: CONNEXIONS ENTRE PSYCHANALYSE ET ÉDUCATION AUX TECHNOLOGIES DE CORRECTION

José dos Santos Costa Júnior* 
http://orcid.org/0000-0002-0629-3217

* Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), São Gonçalo do Amarante/RN, Brasil.


RESUMO:

O texto parte de uma pesquisa sobre a história do dispositivo da menoridade no Brasil, isto é, a rede de saberes e poderes que articulou instituições, profissões, discursos, leis e práticas educativas variadas para fabricar a diferença entre a criança e o menor a partir da Primeira República (1889-1930). Mobiliza-se mais detidamente para este texto a obra “A criança problema” (1939) de Arthur Ramos para fazer ver e dar a ler os modos de constituição do saber sobre a criança “desajustada” ou em situação psíquica e social que a levaria a praticar atos infracionais como roubo. A partir das ferramentas teórico-metodológicas da genealogia do poder e da arqueologia do saber de Michel Foucault, problematiza-se uma série de casos clínicos registrados em diferentes fichas provenientes dos arquivos do Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental (SOHM), no Rio de Janeiro, e as insidiosas articulações entre Educação e Psicanálise e seus modos de constituir saberes e exercer poderes sobre os corpos infantis.

Palavras-chave: história da educação; Arthur Ramos; educação e psicanálise; criança problema; infância

RESUMEN:

El texto parte de una investigación sobre la historia del dispositivo minoritario en Brasil, o sea, la red de saberes y poderes que articuló instituciones, profesiones, discursos, leyes y variadas prácticas educativas para fabricar la diferencia entre el niño y el menor de edad. la Primera República (1889-1930). Para este texto se moviliza con más detalle la obra de Arthur Ramos “El niño problema” (1939) para mostrar y dar a leer los modos de constitución del conocimiento sobre el niño “desadaptado” o en una situación psíquica y social que lo llevaría a cometer actos delictivos como el robo. Con base en las herramientas teórico-metodológicas de la genealogía del poder y la arqueología del saber de Michel Foucault, se discute una serie de casos clínicos registrados en diferentes archivos del Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental (SOHM) en Río de Janeiro, y las insidiosas articulaciones entre Educación y Psicoanálisis y sus formas de constituir saberes y ejercer poderes sobre los cuerpos de los niños.

Palabras-clave: historia de la educación; Arthur Ramos; educación y psicoanálisis; niño problema; infancia

ABSTRACT:

The text starts from a research on the history of the minority device in Brazil, that is, the network of knowledge and powers that articulated institutions, professions, discourses, laws and varied educational practices to manufacture the difference between the child and the minor from of the First Republic (1889-1930). For this text, Arthur Ramos’s work “The problem child” (1939) is mobilized in more detail to show and give to read the ways of constituting knowledge about the “disadjusted” child or in a psychic and social situation that would lead him to commit criminal acts such as theft. Based on the theoretical-methodological tools of the genealogy of power and the archeology of knowledge by Michel Foucault, a series of clinical cases recorded in different files from the archives of the Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental (SOHM) in Rio de Janeiro is discussed, and the insidious articulations between Education and Psychoanalysis and their ways of constituting knowledge and exercising powers over children's bodies.

Keywords: history of education; Arthur Ramos; education and psychoanalysis; problem child; childhood

RÉSUMÉ:

Le texte part d'une recherche sur l'histoire du dispositif minoritaire au Brésil, c'est-à-dire le réseau de savoirs et de pouvoirs qui articule les institutions, les professions, les discours, les lois et les pratiques éducatives variées pour fabriquer la différence entre l'enfant et le mineur à partir de la Première République (1889-1930). Pour ce texte, l'ouvrage d'Arthur Ramos « L'enfant à problèmes » (1939) est mobilisé plus en détail pour montrer et donner à lire les manières de constituer des connaissances sur l'enfant « désajusté » ou dans une situation psychique et sociale qui le conduirait à s'engager. des actes criminels comme le vol. Sur la base des outils théoriques et méthodologiques de la généalogie du pouvoir et de l'archéologie du savoir de Michel Foucault, une série de cas cliniques enregistrés dans différents dossiers des archives du Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental (SOHM) à Rio de Janeiro est discutée ., et les articulations insidieuses entre Éducation et Psychanalyse et leurs manières de constituer des savoirs et d'exercer des pouvoirs sur les corps des enfants.

MOTS-CLÉS: histoire de l'éducation; Arthur Ramos; éducation et psychanalyse; enfant à problème; enfance

INTRODUÇÃO

“O sujeito” costuma ser interpretado por aí como se fosse intercambiável com “a pessoa” e “o indivíduo”. A genealogia do sujeito como categoria crítica, no entanto, sugere que o sujeito, em vez de ser identificado estritamente com o indivíduo, deveria ser descrito como categoria linguística, um lugar-tenente, uma estrutura em formação. Os indivíduos passam a ocupar o lugar do sujeito (o sujeito surge simultaneamente como um lugar) e desfrutam de inteligibilidade somente se, por assim dizer, estabelecem-se primeiro na linguagem. O sujeito é a ocasião linguística para o indivíduo atingir e reproduzir a inteligibilidade, a condição linguística de sua existência e ação. Nenhum indivíduo se torna sujeito sem antes se tornar subjetivado ou passar por uma “subjetivação” [...] (BUTLER, 2017, p. 19).

O texto parte de uma pesquisa sobre o dispositivo da menoridade no Brasil, isto é, a rede de saberes e poderes que instituiu o conceito-imagem do menor infrator a partir da Primeira República (1889-1930), enredando uma série de processos de sujeição. O dispositivo, como define Agamben (2009, p. 29), possui três elementos:

é um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas, etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos; b) o dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder; c) como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber.

Isso permite ler como ocorrem os processos de constituição do sujeito, pois “os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito” (AGAMBEN, 2009, p. 38). O sujeito criança, longe de ser algo natural, sempre aí no mundo, é efeito de uma rede ampla e complexa que articula saberes, mobiliza forças e valores específicos em um dado momento. A infância é uma invenção moderna (ARIÈS, 2006) efetuada a partir daquilo que Sandra Mara Corazza (2004) nomeou de “dispositivo da infantilidade” para se referir aos múltiplos campos de saber e exercícios de dominação que a partir da Modernidade fabricou esse sujeito como objeto de cuidados e intervenções variadas.

A epígrafe de Butler (2017) permite educar o olhar para as práticas sociais variadas que nos constituem como sujeitos. Mas, levando em conta aquilo que Foucault afirmou em sua obra A arqueologia do Saber (1969 [2016]) de que o sujeito é um lugar vazio, pode-se repensar que “homem”, “mulher”, “homossexual”, “criança”, “feminista”, entre múltiplas outras identidades foram constituídas de forma contingente, logo, sem qualquer traço de universalidade ou essencialidade. Assim, falar em invenção da criança como sujeito é lê-la como “lugar vazio”, uma posição a ser ocupada e reiterada por indivíduos. Nisto, a educação é fundamental pois ela participa da produção da subjetividade, moldando, criando condições para que um indivíduo se reconheça como sujeito criança e exerça as funções e compartilhe das vivências que tal posição lhe propicia. Portanto, mobiliza-se aqui o livro “A criança problema: a higiene mental na escola primária”, de Arthur Ramos (1903-1949), publicada em 1939 para problematizar: como foi construído o conceito-imagem da “criança problema” a partir das práticas de diagnóstico e correção dos comportamentos desviantes de crianças atendidas pelo Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental (SOHM) no Rio de Janeiro nos anos 1930?

Faz-se uso metodológico da arqueologia e genealogia de Michel Foucault para não atualizar a fantasmagórica figura do autor como critério assertivo de originalidade, fidedignidade e verdade, desempenhando uma “função fundadora” do discurso. Para os fins de uma análise histórica da educação, as obras de intelectuais podem ser mobilizadas documentalmente como de linhas na composição de uma prática discursiva mais ampla e variada. Isso considera os variados acidentes e divisões entre obras, teorias, conceituações e modos de organização do saber científico. Portanto, em termos teórico-metodológicos, construir uma análise dos discursos (FOUCAULT, 2016; FISCHER, 2001), pressupõe não reduzir o discurso à forma texto/imagem/ato de fala, mas reconhecê-lo como uma prática que constitui os objetos de que fala e é articulado em positividades materialmente distribuídas, selecionadas, censuradas e dispostas no campo social. Assim, o enunciado participará da tessitura do discurso, ligando uma “enunciação” particular a uma prática mais ampla da qual provém. Exemplo: no amplo discurso que se constituiu no Brasil sobre o direito à educação infantil desde os anos 1930, um pronunciamento ou texto isolado de um indivíduo como a poeta Cecília Meireles (1901-1964), um decreto ou uma notícia de jornal que sigam na direção de afirmar a importância desse direito, se constituem, cada uma, como “enunciações” específicas, mas não como “fundadoras do discurso”.

Cada enunciação operará dentro de certos regimes de verdade e regras de enunciabilidade contidas naquilo que Foucault chamou de “formação discursiva”. Isso indica como cada ato de fala, texto, pronunciamento ou outra materialidade imagética, pictural, textual ou sonora funcionarão como elementos que podem tanto reafirmar determinados postulados e aspectos do discurso, como também poderão questionar, incidir criticamente provocando reordenação, reagrupamento ou redefinição. Outro exemplo: no discurso em favor da educação infantil, alguém que erguesse a voz para mostrar a diferença das crianças com deficiências não estaria em desacordo com o discurso, mas mostrando o seu limite, uma diferença a ser considerada (FOUCAULT, 2016).

De Pilar à capital federal

Arthur Ramos era natural de Pilar (AL), tendo nascido no dia 7 de julho de 1903, filho do Dr. Manoel Ramos de Araújo Pereira e de D. Ana Ramos de Araújo Pereira. Inicialmente, estudou na sua cidade natal e também na capital alagoana, diplomando-se mais tarde na Faculdade de Medicina da Bahia. Trabalhou inicialmente no Hospital Psiquiátrico São João de Deus, em Salvador, e, depois de exercer diferentes cargos, assumiu uma cátedra de Antropologia e Etnologia da Faculdade Nacional de Filosofia (Universidade do Brasil). Depois assumiu, a convite da Unesco1, a chefia do Departamento de Ciências Sociais. Faleceu em Paris, em 1949, tendo deixado vasta obra sobre educação, psicologia social e sendo um dos intelectuais que partiram do Nordeste para morar no Rio de Janeiro, compondo um grupo de letrados inspirados nos debates provenientes da Escola Nina Rodrigues. Esses intelectuais articularam o problema da nação, da miscigenação e dos fatores hereditários na configuração da criança, do criminoso, da mulher e dos povos considerados não civilizados.

Chegou ao RJ em 1933, onde construiu uma relação com Afrânio Peixoto (1876-1947) e Anísio Teixeira (1900-1971). Eles participaram do movimento em prol da Escola Nova e assinaram o Manifesto dos Pioneiros da Educação em 1932, do qual também foram signatários Cecília Meireles, Lourenço Filho (1897-1970), Edgard Roquette Pinto (1884-1954), entre outros.

Em 1910, a Associação Internacional de Psicanálise (International Psychoanalytical Association - IPA) passou a reunir as diferentes sociedades de Psicanálise, garantindo certa unidade institucional para um debate teórico em curso desde a segunda metade do século XIX. Os trabalhos teóricos de Ramos passaram a circular no fim dessa década quando, em 1919, ele publicou Ensaios de crítica, folk-lore e psychanalyse em periódicos, entre 1919 e 1928. A sua reflexão teórica se deu na interface Psicanálise e Educação e permite pensar a figura da criança problema, assim como os traços psíquicos e sociais que seriam configuradores daquilo que os criminologistas da época chamavam de uma “constituição delinquencial”, noção criticada por ele em A criança problema. Lendo tal obra como documento/monumento, isto é, partindo do princípio da exterioridade do discurso enquanto prática dispersa, procurarei ler os diversos atravessamentos e conexões que criaram as condições para que esta obra fosse constituída.2 Ao definir o objeto da “higiene mental”, o autor enfatiza que:

Todos os círculos sociais - de família, de religião, dos vários agrupamentos espirituais, recreativos, as várias instituições... - tudo isso tem que ser investigado do ponto de vista da higiene mental, que penetra “intersticialmente” na sua urdidura íntima. O estudo pormenorizado dessas instituições compete à sociologia. A higiene mental indaga das repercussões que sobre a personalidade têm esses círculos sociais (RAMOS, 1939, p. 37).

O livro tem 407 páginas com um estudo que durou cinco anos. Refere-se ao período em que o médico trabalhou no Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental (SOHM). Este serviço foi criado em 1933 no Instituto de Pesquisas Educacionais dentro da reforma do ensino municipal promovida por Anísio Teixeira na gestão de Pedro Ernesto (LOPES, 2002). Trata-se de uma ampla pesquisa, analisando as 2.000 (duas mil) fichas de “crianças problema” das escolas da capital federal. Quanto ao método, Ramos diz que seu procedimento combinava métodos como observação incidental, fragmentos biográficos, observação sistemática, questionário, história de casos, tests e medidas, experimentação etc.

É, porém, o método clínico, que reúne a maior soma de processos de investigação da personalidade, o mais comumente empregado por nós. Poderemos chamá-lo de método de observação “pologional”, pois ele utiliza de todos os dados de observação da criança, fornecidos pelo professor de classe, pelos pais, etc., tudo isso devidamente controlado pelo pessoal técnico do Serviço (RAMOS, 1939, p. 23, grifos no original).

Como “leitor atento às variações do pensamento psicanalítico”, como enfatiza Elisabete Mokrejs (1987), ele já teria se deixado conduzir por esse referencial teórico, principalmente embasado em Sigmund Freud (1856-1939), Alfred Adler (1870-1937) e Carl Gustav Jung (1875-1961). Isso se pode perceber nos primeiros estudos como Primitivo e Loucura para o doutoramento em 1926, assim como na obra Sordície nos Alienados - Ensaio de uma Psicopatologia da Imundície em 1928, trabalho por meio do qual ele conseguiu o título de docente livre na Faculdade de Medicina da Bahia (MOKREJS, 1987). Foi Afrânio Peixoto que, ao perceber a notória adesão dele às ideias de Freud, o convidou para compendiar o que a Psicanálise estava fazendo no que se referia ao domínio da Pedagogia. A partir disso surgiram as duas obras que, de maneira mais incisiva, constroem essa articulação Psicanálise-Educação: Educação e Psicanálise (1934) e A criança problema (1939).

Ele disse que “psicanalistas e não-psicanalistas [...] mostram o papel da infância, na espécie humana, como uma fase em que a sua exposição inerme à cultura vai moldar impressões definitivas na vida adulta” (RAMOS, 1939, p. 10). Dado o interesse sobre a criança, uma questão de método aparece quando ele disse que “jamais adotamos o critério de interrogar diretamente a criança” (RAMOS, 1939, p. 282). Isso indica um traço relevante em termos epistemológicos e políticos: as crianças a que ele se refere e sobre as quais narra diversos casos não tomaram a palavra capturada diretamente. Foram sempre lidas a partir do olhar dos educadores, puericultores e técnicos do SOHM. Porém, não partilho da ideia de que se as crianças analisadas tivessem os seus relatos apresentados diretamente por meio de entrevista ou técnica semelhante se poderia acessar mais ou menos o real vivido. Não se trata disso, pois me refiro ao fato de que ao fazer essa escolha metodológica que, por sua vez, estava embasada juridicamente no dispositivo do próprio Código de Menores sobre a proteção da identidade dos menores de 18 (dezoito) anos de idade, coloca-se um elemento a ser considerado: as infâncias e as crianças ali narradas são produzidas discursivamente pelos atores responsabilizados e autorizados para observá-las e narrar suas histórias e personalidades a partir de critérios que elas não conheciam.

Sobre a situação das crianças da capital federal, descreveu

as condições de vida da criança carioca explanadas sob o ponto de vista da higiene mental. Os dois polos da sua vida em casa: ou a criança mimada, vivendo como prisioneira no lar, cercada de cuidados, impedida de procurar o contato com os outros meninos da vizinhança, ou a criança do “morro”, da “favela”, do “barracão”, em vida promíscua, dormindo em condições precárias (RAMOS, 1939, p. 39).

Questionando a divisão entre o normal e patológico, a criança sã e a doente, assim como possibilitando a construção de uma clínica do social, a sua leitura foi relevante nos debates em que o problema da infância abandonada e delinquente passava por dois conceitos-chave: trabalho e educação.

Uma clínica do social: o lugar da criança e da família

No prefácio à segunda edição, Ramos situou as condições sociais e políticas em que A criança problema foi construída como reflexão teórica e social sobre a infância. Remete às mudanças empreendidas pelo Estado Novo (1937-1945) na política educacional com a incorporação dos princípios da disciplina rígida, desconfigurando as características da gestão de Anísio Teixeira, afetando o SOHM:

[...] as causas geradoras de problemas se ampliaram de maneira trágica no Rio de Janeiro. Em primeiro lugar estão as condições criadas pela própria guerra,3 o que pela segunda vez neste século, veio convulsionar o mundo e complicar o problema dos ajustamentos pacíficos entre os homens. Em seguida estão as próprias condições deficitárias, no Brasil, e em condições especiais no Rio de Janeiro. Crise alimentar. Crise de habitações. Índices assustadores de mortalidade e morbilidade infantis. Fatores deficitários em todos os sentidos, que vieram complicar tremendamente o problema da assistência aos menores. E a delinquência infantil? E o menor abandonado? Nunca a higiene mental teve a lidar com tantos fatores primários, que converteram a capital do país num grande feudo urbano, desprotegido e entregue à sua própria sorte [...]. (RAMOS, 1939, p. 8).

Foi um investimento crítico e clínico em relação à situação não somente escolar, mas socioeconômica e psíquica das crianças:

a nossa experiência, no exame dos escolares “difíceis” mostrou que havia necessidade de inverter os dados clássicos da criança chamada “anormal”. Esta denominação - imprópria em todos os sentidos - englobava o grosso das crianças que por várias razões não podiam desempenhar os seus deveres de escolaridade, em paralelo com os outros companheiros, os “normais” (RAMOS, 1939, p. 8).

Este foi o ponto de partida para uma longa análise sobre as condições de educação das crianças no RJ. E foi apenas em um momento de toda essa obra que o termo “menor” foi mobilizado para categorizar o perfil de um sujeito, por meio da expressão francesa meneur. Tal termo ganhou significado na teia conceitual mais ampla da qual proveio. Invertendo uma leitura linear da obra, começo a análise dos casos clínicos pela seguinte cena:

Obs. 175 (Escola “General Trompowiski”, ficha nº 70 do S.O.H.M). C. G., menino de 10 anos, cor preta. O pai, brasileiro, pedreiro, não goza de boa saúde; castiga os filhos com “chicote de borracha”, alcooliza-se com frequência. A mãe, brasileira, empregada doméstica, não goza de boa saúde; apanha do marido. 4 irmãos, mocinha de 14 anos, dois meninos de 8 e 3 anos, menina de 5 anos. O irmão de 8 anos está também matriculado nesta Escola. Moram em barracão de morro, sem acomodação para a criança. O menino trabalha em casa: faz o café, carrega água, cuida dos irmãos mais moços. Nada de anormal na história obstétrica. Nascimento a termo, em condições normais. Algumas dificuldades no desenvolvimento do menino. Subalimentação. Deita-se às 20 horas, levanta-se às 6; dorme no mesmo leito com o irmão de 8 anos. Não apresentava, em 1935, nenhum problema de comportamento na Escola. Do seu registro de observações:

“1936 - Perguntou à professora de religião se podia pedir a Deus que o “pai ficasse bom”, e se seria atendido se rezasse. A professora respondeu-lhe que sim.

“1937 - Contou que o pai “não estava melhor” e que ele agora não rezava mais, mas queria que o pai morresse... Começou a mudar. Tornou-se uma criança problema. Furtou dinheiro da professora. Foi encontrado furtando outros objetos: brinquedos dos colegas, etc.

“12-11-1937 - C.... fugiu de casa. Grande aflição dos pais, que o procuraram por toda parte, inutilmente. O menino fora bater à porta da casa de uma família, pedindo auxilio e dizendo que o pai o pusera para fora de casa. A cozinheira desta casa, porém, conhecia os pais, a quem entregou a criança. No dia seguinte, fugiu novamente, e foi encontrado vagando na rua, com um bando de meninos.

O pai esteve na Escola, a nosso chamado. Queixou-se muito do filho: sabe que ele lhe fazia acusações, dizendo que é muito castigado, “mas não é verdade, não lhe toco o dedo”.

Sabemos, porém, que ele se alcooliza muito e castiga os filhos, especialmente C... Proibiu o menino de frequentar a Escola prendendo-o em casa.

“1938 - Não se matriculou este ano. Sabemos que fugiu de casa, levando desta vez o irmão de 8 anos. Estiveram fugidos por 4 meses. O irmão voltou para casa, mas C... foi levado para S. Paulo por uma família” (RAMOS, 1939, p. 255).

Procurou descrever as relações sociais que produziam “comportamentos desajustados” ou “perigosos”. Evitou naturalizar ou biologizar as condutas, pois entendia que eram os arranjos familiares, as relações de afeto, os conflitos de ordem psíquica e as necessidades de ordem material que contribuíam para a produção da subjetividade. A estrutura em que os casos foram apresentados não variava: apresentação da escola; número da ficha com o registro de observações; iniciais do nome da criança, protegendo a sua identidade; a raça/etnia; informações sobre o pai, a mãe, irmãos e sobre a rotina da criança (horário de dormir e acordar; tempo de sono durante a noite; condições da gestação da criança para mapear possíveis problemas; as condições do leito da criança; descrição sobre o comportamento em determinado período de tempo, a fim de mapear mudanças ou agravamentos). Era um registro produzido a partir da observação dos profissionais do SOHM.

O nome da instituição era sintomático do tipo de diagnóstico que se desejava promover. Ortofrenia parte etimologicamente do termo grego orto + fren que significa a arte de corrigir as tendências morais e/ou intelectuais. Como sugere o radical orto (certo, reto) se tratava de uma concepção moral que também estava em jogo e que funcionou para gerar hierarquias entre os comportamentos das crianças, classificando e pautando formas de controle e correção daqueles tidos como “fora do padrão”. Isso constituiu a atuação tanto da Liga Brasileira de Higiene Mental, criada em 1923.

a nossa experiência, no exame das crianças “difíceis” mostrou que havia necessidade de inverter os dados clássicos da chamada “criança anormal”. No entanto [...], somente uma percentagem insignificante destas crianças mereceria, a rigor, a denominação de “anormais”, isto é, aqueles escolares que, em virtude de defeitos constitucionais hereditários, ou de causas várias que lhes produzissem um desequilíbrio das funções neuropsíquicas, não poderiam ser educados no ambiente da escola comum (RAMOS, 1939, p. 13).

A orientação partia dessa inversão da análise, pois

em vez partimos do estudo da criança “anormal”, começamos a estudar a criança “normal”, a criança dentro das suas constelações totais de vida e de experiência. A criança é turbulenta, agitada, desobediente, desatenta...? Na grande maioria dos casos, não se trata de nenhuma anormalidade constitucional, mas tudo aquilo pode revelar a existência de reações de desajustamento. A criança furta, mente, tem muitos desses “maus hábitos”, catalogados pelo educador clássico? Não se trata igualmente de nenhuma cerebrina “constituição delinquencial”, sobre que tanto se discute nos congressos doutos de criminologia, mas de crianças abandonadas ou escorraçadas moralmente, “anormalidade” pelo meio, verwahrloste4... no sentido de Aichorn (RAMOS, 1939, p. 13).

Essa análise clínica visava não “apenas” - o que não seria pouco nem simples - a criança individualmente, mas vista nas relações sociais. O procedimento desenhado por ele deixava previamente claro que não se articulava diretamente com as análises que circulavam no momento sobre a “constituição delinquencial”, com um enfoque não no crime, mas no criminoso. Ali visava-se a configuração de um perfil a partir da determinação natural, racial. Afastando-se da teoria lombrosiana sobre o “criminoso nato”, Ramos trouxe outras referências.5

Embora a teoria do criminalista italiano Cesare Lombroso (1835-1909), apresentada em O homem delinquente (1882), não se dirigisse ao campo educacional, sua interferência foi relevante para pensar políticas de recuperação do menor abandonado no país. Talvez por ter se afastado de tal referência teórica - mas também por seu posicionamento crítico em relação ao Estado Novo e as suas políticas de educação - a obra de Ramos não circulou nos mesmos meios intelectuais. Ele disse, no prefácio à 2ª edição, que

se o livro não teve […] nenhuma repercussão nos meios oficiais então responsáveis pela educação no Distrito Federal, foi recebido com carinho e palavras de louvor por aqueles que lhe compreenderam a mensagem “cheia de calorosa e sincera simpatia humana” (RAMOS, 1939, p. 9).

A sua oposição ao conceito de criança anormal parece sintomática de um procedimento e de uma compreensão pessoal e intelectual sobre a infância. A respeito disso, tem-se uma genealogia do conceito de “indivíduo anormal” feita por Foucault sobre o campo da anomalia no século XIX. Tal epíteto se referia à condição de uma criança com perturbações na sua constituição física e psíquica, algo que deveria ser objeto de correção. Foucault descreve como o domínio da anomalia foi constituído no século XIX pela definição de três figuras.

A primeira […] é a que o chamarei de “monstro humano”. O contexto de referência do monstro humano é a lei, é claro. A noção de monstro é essencialmente uma noção jurídica - jurídica, claro, no sentido lato do termo, pois o que define o monstro é o fato de que ele constitui em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza. [...] O campo de aparecimento do monstro é, portanto, um domínio que podemos dizer “jurídico-biológico”. [...]

A segunda [...] é a que poderíamos chamar de figura do “indivíduo a ser corrigido”. [...] O indivíduo a ser corrigido é, no fundo, um indivíduo bem específico dos séculos XVII e XVIII - digamos da Idade Clássica. O contexto de referência do monstro era a natureza e a sociedade, o conjunto das leis do mundo: o monstro era um ser cosmológico ou anticosmológico. O contexto de referência do indivíduo a ser corrigido é muito mais limitado: é a família mesma, no exercício de seu poder interno ou na gestão da sua economia; ou, no máximo, é a família em sua relação com as instituições que lhe são vizinhas ou que a apoiam [...].

Quanto ao terceiro, é o “masturbador”. O masturbador, a criança masturbadora, é uma figura totalmente nova no século XIX (é na verdade própria do fim do século XVIII), e cujo campo de aparecimento é a família. É inclusive, podemos dizer, algo mais estreito que a família: seu contexto de referência não é mais a natureza e a sociedade como [no caso de] o monstro, não é mais a família e seu entorno como [no caso de] o indivíduo a ser corrigido. É um espaço muito mais estreito. É o quarto, a cama, o corpo; são os pais, os tomadores de conta imediatos, os irmãos e irmãs; é o médico - toda uma espécie de microcédula em torno do indivíduo e do seu corpo. [...] a genealogia do indivíduo anormal nos remete a estas três figuras: o monstro, o incorrigível, o onanista (FOUCAULT, 2010, p. 47-51).

Esta genealogia do indivíduo anormal faz pensar de que maneira a oposição de Ramos ao conceito de anormalidade funciona em sua crítica tanto à Pedagogia quanto aos métodos da Psiquiatria na patologização das condutas. Seu pensamento apontava as questões sociais que incidiam na configuração das condutas. Esteve no horizonte das suas críticas as posturas pedagógicas baseadas na crença de que os testes seriam suficientes para realizar uma avaliação, enquadrando uma criança na categoria “anormal” ou com base na categoria de “atraso mental”. Porém, “logo se verificou que uma enorme percentagem de crianças classificadas como ‘anormais’, não eram portadoras de nenhuma anomalia mental, mas sofriam a ação de causas extrínsecas” (RAMOS, 1939, p. 18).

Isso não significa dizer que não havia em seu entendimento uma proposta de governo da infância, pois a higiene mental se caracterizava para ele em dois largos traços: um trabalho preventivo e uma intervenção corretiva. Seriam estudados o desenvolvimento e a formação dos hábitos na primeira e segunda infância, acompanhando a criança na escola primária. Seria assistido o desabrochar da adolescência, tendo em vista que esse era o processo de preparação do jovem para a perfeita adaptação à vida adulta. A prevenção era a principal e a primeira tarefa da higiene mental, ajustando a criança ao seu meio. Por esse motivo a correção seria dada como processo posterior, quando os esforços iniciais não houvessem logrado êxito.

Essa correção partiria do princípio de que era preciso “ajustar a criança desajustada” (RAMOS, 1939, p. 21-22). Assim, para compreender as condições sociais, familiares, afetivas e psíquicas em que as ditas “crianças problema” estavam situadas se tornava primordial a elaboração de informações a partir da ficha de observação. Para ele, “o aspecto social é que antes de tudo […], deve definir a noção de um ‘desvio’” (RAMOS, 1939, p. 19). A intervenção deveria atuar sobre esse contexto no qual a criança estava inserida e não em uma patologia neurologicamente diagnosticável e individualmente atribuída. Para tematizar o ajustamento ou desajustamento dos indivíduos à sociedade, ele fez referência ao psiquiatra e pedagogo Erich Stern (1889-1959):

psiquicamente desviado podemos chamar, pois, a um homem quando não pode responder às exigências da sociedade quando sua capacidade de acomodação a ela é nula ou escassa, quando as relações com seus semelhantes são difíceis. Enfermidade psíquica é, pois, perturbação da capacidade de adaptação social. O conceito de enfermidade resulta deste modo deslocado, em grande parte, para o aspecto social (RAMOS, 1939, p. 19, grifos meus).

A presença da ótica de Stern para a análise da configuração corporal e subjetiva do indivíduo se dá não em função de sua singularidade, mas da sua adaptabilidade às regras sociais que o antecedem e que oportunizam a sua existência social. Cabia à higiene mental das escolas fugir das rígidas classificações que criava um “rótulo” para as crianças desajustadas. Mesmo vindo do estudo do material clínico, o interesse maior deveria ser voltado para a compreensão do psiquismo normal e das influências deformantes do meio social e cultural. Em sua leitura, “para fins de ciência, não há, em rigor, o normal e o anormal (RAMOS, 1939, p. 19, grifos meus), ambos esses termos designando, tão somente, posições relativas, de um, ou outro, ou muitos fatores, em uma situação altamente complexa”. Disso resulta que, em se tratando de medida orgânica e mental, são “imprecisos os limites entre o normal e o anormal. O conceito de sanidade física e mental é relativo. São conceitos fenomenológicos, fundados na noção de média” (RAMOS, 1939, p. 18).

Afirma que se criou o conceito de “criança problema” em substituição ao termo pejorativo e estreito de “criança anormal”. Alguns autores tomavam esse conceito de “problema” para englobar todas as dificuldades infantis, fossem físicas, mentais e sociais. A expressão passou a designar os casos-limite do distúrbio mental constitucional. Ao nomear tal sujeito de criança problema obteve-se outro alcance do ponto de vista analítico e interventivo. Lopes (2002) enfatiza que foi se baseando nas ideias de Oskar Pfister (1873-1956) acerca da Psicanálise como um “instrumento de trabalho” que tal nomeação se tornou possível. Tal entendimento contribuiria para a Pedagogia por meio da “investigação da vida psíquica profunda, do inconsciente”. Dialogando com tais referenciais foi que Ramos se convenceu de que os testes haviam fracassado. Isso, todavia, foi um elemento que o orientou em sua experiência no SOHM e, posteriormente, em sua teorização sobre a criança problema.

Uma vez que nomear é fazer existir, a mudança do termo “criança anormal” para “criança problema” foi importante, pois cada conceito recobria compreensões e intervenções distintas. Com o conceito “criança-problema” outro horizonte se abria para a descrição das vivências, experiências, afetos, aprendizados, não aprendizados, hábitos e comportamentos. Para ele, não havia “criança problema” como tipo único de reação e sim “problemas da criança”, apresentando-se sempre em

graus variados, subindo a escala de uma complexidade crescente. Para a solução desses “problemas”, devemos armar a equação da criança com os termos fornecidos, em primeiro lugar pelas pessoas e “imagens” da sua ambiência familiar (RAMOS, 1939, p. 44).

A objetivação do menor delinquente foi constituída a partir da observação e descrição das condições de abandono, estruturas familiares, sistema de inclusão e exclusão econômico-social. Alguns conceitos se articularam: criança anormal, criança problema, criança escorraçada, criança turbulenta, pré-delinquência. Mas em quais relações de força tal vocabulário foi possível? Ramos chegou a propor uma diferença sutil nessa terminologia a partir de um caso.

Obs. 126. (Escola “General Trompowski”, ficha nº 2 do S.O.H.M).

M. F., menino de 11 anos, cor branca. O pai, português, falecido; não gozava de boa saúde, muito nervoso e irascível, era violento para com toda a família, espancava muito o menino, que fugia para o mato. A mãe, brasileira, não goza de boa saúde. 2 irmãos, de 17 e 14 anos. O menino está em companhia da avó materna, há três meses. A vida matrimonial dos pais sempre foi muito desorganizada; muitos conflitos; o marido era um algoz para a família, obrigando a mulher a trabalhar para prover a subsistência da casa. Traumas morais durante a gravidez materna. Dificuldades no desenvolvimento da criança. Subalimentação. O sono é agitado; loquacidade hipnagógica6. Na Escola, o menino é desobediente, com tendência a dominar os companheiros nos jogos. Atormenta os colegas, agredindo-os às vezes violentamente. É insociável, agitado, agressivo, irascível, desconfiado, fanfarrão, bulhento. Nada de anormal nas funções psíquicas. Tem 1m39 de altura e pesa 35 quilos e 500 gramas. O exame orgânico revelou sinais de lues7 congênita e verminose. Do seu registro de observações.

“1937 - O menino esteve dois anos no Instituto Ferreira Viana, onde nada aproveitou e de onde voltou empregando termos obscenos. Na turma de M... foi encontrado um frasco de cola, com urina. O fato foi atribuído ao menino. Há dias em que está agitadíssimo, chegando a andar de gatinhas na classe.

“Agosto de 1937 - A professora, conquistando a afetividade do menino, tem conseguido modificá-lo um pouco, dando-lhe tarefas de responsabilidade e trabalhos manuais. Mas o menino continua a ter momentos de raiva, em que agride os colegas, destrói os objetos de massa, etc. (RAMOS, 1939, p. 203).

Sobre este caso, Ramos diz o seguinte:

Todas essas observações mostram o dinamismo afetivo da criança turbulenta. Considerados isoladamente, os problemas de turbulência e agressividade poderiam ser relacionados à existência de “desvios”, de “anormalidades” psicológicas, reveladores de uma cerebrina “constituição delinquencial” na criança. Se a estudarmos, porém, dentro do jogo afetivo das suas constelações familiares, os problemas de turbulência e agressividade logo se esclarecem a uma luz nova de explicação. Estes problemas são comportamentos reacionais, movimentos-símbolo de vingança, de ódio, de fuga e evasão diante de situações de desajustamento, tudo isso às vezes facilitado pela existência de “fixações” da personalidade a uma fase pré-genital da libido, de acordo com a hipótese psicanalítica (RAMOS, 1939, p. 203).

Além dos conceitos mobilizados, o seu procedimento não isola dois fatores: abandono e delinquência.

No órfão de ambos os pais, os seus problemas estão ligados ao fator do abandono. Alguns autores clássicos que estudaram a delinquência na infância assinalaram que a orfandade de pai e mãe não é o maior mal, porém, o abandono produzido por aquela condição. As nossas observações, conduzidas na sua maior parte em meios economicamente pobres, mostram uma grande percentagem de problemas de comportamento nas crianças órfãs de ambos os pais. Quando não há o abandono, surge o problema da criança recebida em lar de alheio, ou da criança internada em asilo. Por isso, o estudo do órfão de ambos os pais está intimamente ligado ao da criança abandonada, asilada ou adotada (RAMOS, 1939, p. 125).

O autor foge de uma abordagem instintivista e essencialista sobre o abandono e a marginalização como fatores que contribuem para a emergência da delinquência infantil:

[...] é, portanto, a constelação familiar que influiria na fachada de comportamento da criança, atendo-se à sua posição na família. E os estudos sobre as reações delinquenciais na infância, vêm comprovar essas vistas. Foram as escolas da psicanálise e da psicologia individual que acentuaram o papel das influências familiares no desenvolvimento psicológico da criança (RAMOS, 1939, p. 144).

Quando narrativas disputavam a definição e as formas de corrigir a infância abandonada e delinquente, ele alertava:

é perigoso o diagnóstico simplista da criança, isolada dos seus círculos de influência. Considerada num corte da sua personalidade, sem as amarras que a prendem no tempo e no espaço, a criança nunca se apresenta em seus aspectos reais de vida. O heredologista apelaria para as famosas leis da herança e falaria em “taras”, e outras coisas; o psiquiatra puro faria diagnósticos com rótulos pomposos, na classificação de uma “anormalidade” ou “psicopatia” qualquer; o testólogo (o aplicador primário de tests) apelaria para um atraso mental, visto ter achado um Q.I. abaixo da “média”... Quanta ilusão, porém! Vejam-se as duas observações precedentes. Em ambas ou se falaria erradamente de anormalidade, de atraso mental, ou de taras nervosas, “constituições delinquenciais”... que sei mais? (RAMOS, 1939, p. 41).

Tratava-se, em sua ótica, de observar não momentos isolados, mas o desenvolvimento de comportamentos e condutas no tempo, pois

a simples leitura do curriculum vitae dessas crianças mostra as influências poderosas dos meios desajustados, de conflitos domésticos, de escorraçamento afetivo, de péssimos modelos a imitar, de fadiga em consequência de subnutrição e do trabalho... tudo isso determinando mau ou nenhum rendimento na Escola e problemas de personalidade e de conduta” (RAMOS, 1939, p. 41, grifos no original).

A centralidade da família se dá não apenas na ótica de um controle a exercer, mas de um diagnóstico a realizar e, assim, evitar a culpabilização da criança. No capítulo sobre a “criança turbulenta”, diz:

[...] Dentre os problemas de comportamento do escolar, é este um dos que mais ferem a atenção dos educadores. A fachada motora é o traço mais aparente da personalidade, e por isso, dentre a população escolar, a criança turbulenta é a que se destaca mais ao vivo, contrariando as “regras” da disciplina escolar. Sob este termo “turbulência”, acham-se compreendidos aliás, os aspectos mais diversos de comportamento motor: a turbulência simples, a agressividade, a instabilidade, a impulsividade, etc.

Os primeiros estudiosos da criança escolar difícil consideraram a turbulência um sintoma geral da “anormalidade” infantil existente nos atrasados e em certos anormais, neuro-orgânicos. É neste sentido que foi escrita a obra clássica de Wallon, por exemplo, sobre a criança turbulenta. Já no subtítulo da obra nos esclarece sobre os objetivos do autor: “estudos sobre os atrasos e as anomalias do desenvolvimento motor e mental”. Realmente, toda a casuística do autor foi recrutada nos serviços parisienses de “crianças anormais”, propriamente ditas: Asilo de Bicêtre, Fundação Valée, Dispensários de feridos nervosos e da Salpêtrière... É toda a obra dedicada ao estudo das “crianças anormais” no seu “espetáculo de uma agitação frenética ou estereotipada”. Estuda Wallon as causas da anormalidade infantil, para em seguida fazer largas digressões sobre os “estados do desenvolvimento psicomotor” e as “síndromes psicomotoras”. Mostra as relações estreitas entre a emoção e a impulsão nos atrasados, a sua mímica, os seus gestos e atitudes, etc.; estuda as correlações íntimas entre os estados sensitivo e motor; para terminar abordando o estudo do que ele chama o estado projetivo; atividade motora que condensa elementos afetivos e representativos (RAMOS, 1939, p. 193-194). Essas descrições indicam as referências teóricas e os espaços clínicos dos quais partiram as primeiras análises. Indicam também as complexidades inerentes ao trabalho da Pedagogia e, pelo fato de não se referirem intrínseca nem unicamente à aprendizagem, careciam do repertório crítico e clínico da Psicanálise. Reconhece-se:

Hoje, porém, há necessidade de estabelecer-se uma discriminação indispensável no largo grupo das “crianças turbulentas” das escolas. Num primeiro grupo, vem a turbulência ligada a condições mórbidas; incluímos aqui os atrasados, portadores da síndrome de debilidade motora de Dupré, os instáveis, ligados a vários estados mórbidos, e os impulsivos. Num segundo grupo, consideramos todas as demais formas de turbulência devido a condições afetivas e ambientais sem nenhum déficit ou distúrbio psíquico. Ao contrário dos velhos autores, que consideravam o primeiro grupo mais extenso, achamos, ao revés, que o segundo grupo constitui a grande maioria dos turbulentos da população escolar; grupo constituído de crianças que sofrem desgostos afetivos e morais, crianças abandonadas ou escorraçadas, crianças incompreendidas, que reagem na indisciplina e na turbulência. Neste grupo está o grosso das crianças “caudas de classe”, turbulentas, agressivas, desobedientes, desatentas... Os dois grupos, porém, confluem frequentemente. Encontramos, na prática, a ação das duas causas neuro-orgânicas e ambientais, às vezes em proporção equivalente, outras vezes com predomínio de uma sobre a outra. No problema da turbulência, temos ainda o destaque de um traço de comportamento psicomotor. Ora é a turbulência simples propriamente dita, que aparece em primeiro plano. Outras vezes, temos a turbulência unida à agressividade. Ou ainda são aspectos escolares de indisciplina e desobediência que chamam a atenção. Estes aspectos se entrosam e se conjugam, na maior parte dos casos [...]. Para o nosso estudo da turbulência infantil, vamos inverter a ordem clássica desses assuntos, considerando: 1.º) a turbulência ligada a condições ambientais e afetivas e2.º) a turbulência ligada a distúrbios neuro-orgânicos do desenvolvimento psicomotor (RAMOS, 1939, p. 195, grifos no original).

Invertendo a ordem das definições e das prioridades, Ramos apresenta um outro caso. Parte da noção de criança turbulenta para definir os traços do que ele chamou de “líder de bando”. Esta noção servirá, posteriormente, para ampliar a diferenciação sobre a criança escorraçada:

Obs. 27 (Escola “Manuel Bomfim”, ficha n.º 253 S.O.H.M).

B. G. A., menino de 12 anos, cor branca. O pai é português, negociante, enérgico; corrige os filhos a bordoadas. A mãe, portuguesa, não goza de boa saúde, 5 irmãos, sendo uma moça de 21 anos, duas meninas de 8 e 3 anos, e dois meninos de 11 e 1 ano. Moram em casa alugada, situada nos fundos de uma casa de negócios; não há acomodação para a criança; pátio muito acanhado. Em casa castigam com brutalidade as crianças, mas não as assistem como necessitam. Há a influência desfavorável da vizinhança. Nada de anormal na história obstétrica materna. O menino se desenvolveu sem anormalidade. Subalimentado. Não tem hora certa para deitar-se nem para se levantar. Vive na rua e em más companhias de botequins e tavernas. Na Escola, brinca muito com companheiros, com tendência a dominar. Gosta muito de meninas; tem várias namoradas e escreve no braço, a tinta, o nome delas. Na Escola, é líder de um bando mal ajustado: fuma, diz palavrões, vive a mexer nos órgãos genitais. Conta fanfarronadas, atormenta os colegas, furta. É alegre, irônico, bulhento, irreverente. Atenção e memória fracas. Aprendizagem medíocre. O exame orgânico revelou lues congênita e hipertrofia das amígdalas.

Do seu registro de observações:

“Maio de 1935 - Difícil a adaptação à Escola. Este menino vive à solta, brincando na rua. Mostra-se irreverente com as professoras quando admoestado, replica: “eu sou assim mesmo!” É falastrão, seus movimentos são desordenados.

“Novembro, 1935 - B... saiu com seus companheiros da Escola a vadiar pelos arredores, e tomar banho no “Trapicheiro”; mas desavieram-se e o resultado foi que um relatou todas as irregularidades praticadas: furto de cigarros, nomes feios...” (RAMOS, 1939, p. 84).

Desorganização familiar, uso precoce de drogas, conflitos de ordem emocional. Estes e outros fatores são usados para caracterizar as identidades dessas crianças e os seus conflitos. Adiante, sobre a criança escorraçada, objeto posterior ao da criança turbulenta, afirma:

A grande maioria das crianças escorraçadas, como se pode ver nas observações do Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental, vem de lares desajustados, de meios economicamente pobres. O pauperismo carrega em seu bojo múltiplas condições de desajustamento: a subalimentação, o alcoolismo, a doença, as reações anti-sociais... É por isso que os educadores e psico-sociólogos assinalam tanta importância ao estudo da criança vinda de meios pobres. Esse estudo vem de milênios e é uma das preocupações mais angustiosas da humanidade. Doutrinas e diretrizes político-sociais têm sido aventadas para atacar o mal fundamental do pauperismo.

Meng Tseu dizia, no seu tempo, que os anos de miséria e esterilidade arrastam consigo as más ações; as boas ações são frutos dos anos de abundância. O efeito desmoralizador da miséria tem sido abordado por inúmeros ensaístas e escritores de ficção. As estatísticas mostram uma diminuição da delinquência com a melhoria do estado econômico e social; de outro, a fome a miséria impulsionam ao furto e outras reações anti-sociais [...].

Na infância, os seus problemas de desajustamento, principalmente no caso da criança escorraçada, reconhecem numa grande percentagem, fatores de miséria social. E a delinquência [...] é o delito filho da miséria. [...] (RAMOS, 1939, p. 91-92).

Embora a análise das condições socioeconômicas seja fundamental para uma compreensão crítica da pobreza e da violência, deve-se manter a observância de não criminalizar a pobreza nem a vincular de modo direto à criminalidade. Este, obviamente, não foi o objetivo do autor, mas, ao longo da história do Brasil, as formas de criminalização da pobreza para justificar dominações e exclusões têm longa data. Acerca do espaço em que vive a criança, afirma:

O papel do ambiente é decisivo nessas transformações dos impulsos de agressão. A repressão exagerada pode gerar perigos tão grandes quanto a libertação pura e simples dos impulsos. Já vimos as consequências nefastas que, para a personalidade da criança, traz o sadismo dos pais e educadores, os castigos corporais, o escorraçamento afetivo, etc. é porque o maior número de crianças turbulentas e agressivas se encontra entre aquelas que, de um lado, tiveram graves fixações da libido anal-sádica, de outro lado, sofreram violentas restrições e inibições, desde o escorraçamento afetivo e moral até os castigos corporais.

A escola de Adler estudou também o Agressionstrieb8 infantil, o desejo de domínio que anima as crianças, nas suas relações familiares, nos seus jogos, no seu comportamento geral. Estas manifestações de agressividade e turbulência estariam ligadas, segundo Adler, ao “protesto viril”, à super-compensação a sentimentos de inferioridade. A criança turbulenta, na escola, é sempre portadora de um sentimento de inferioridade (orgânico, econômico, afetivo, etc.) e deseja compensá-lo, “explodindo” na turbulência, chamando a atenção sobre si, querendo levantar, por esse meio inadequado, o seu sentimento de personalidade...

Com o que estão de acordo, adeptos de Freud e de Adler, é sobre o papel da ambiência e da educação no aparecimento dos traços agressivos da personalidade e na turbulência do escolar, na classe e nos jogos... Vamos examinar, nas observações do Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental, casos de a) crianças turbulentas e agressivas; b) crianças desobedientes e indisciplinadas; c) crianças com outros traços psico-motores do comportamento. Estes problemas de turbulência, desobediência, teimosia, etc., nunca vêm isolados; acham-se, na maior parte dos casos, intimamente conexos, sendo impossível, assim, uma distinção absoluta. [...] (RAMOS, 1939, p. 199).

Na leitura de Ramos, a relação entre abandono e delinquência era intrínseca e deveria ser analisada e definida como objeto de intervenção. Mas se devia evitar a criminalização da postura dos pais. Ailton Moreli (1996) chama a atenção para

as variações da situação de “menor abandonado”, ou seja, além de estar abandonado ele pode ser enquadrado como vadio, mendigo e/ou libertino. Uma atitude própria dos defensores de que o estado de abandono é o caminho mais curto para a delinquência. Dessa forma, visando a preservação dos “menores”, acabam confundindo o abandono com atitudes que dele podem derivar (MORELLI, 1996, p. 90).

Embora se atribua causas para os processos de socialização violenta, as observações indicam: a) a reflexão sobre o caráter arbitrário da personalidade, constituída não com base em uma natureza intrínseca, mas em uma socialização a ser considerada; b) a relevância de considerar a violência como efeito da cultura, com suas causas emocionais e sociais que figuram como respostas a determinadas formas e condições de vida.

Pode haver, sem contestação, causas individuais, constitucionais. Certas personalidades histéricas, mitomaníacas, esquizoides, ou alguns psicopatas abúlicos e apáticos, poderão justificar o abandono como uma neurose (Cimbal). Mas quase sempre há a associação com fatores ambientais. O problema do abandono, é, antes de tudo, social. O seu estudo pormenorizado excede o do escolar-problema. Constitui o problema de pesquisa, por excelência, das psicoclínicas dos juizados de menores, onde o problema do abandono está intimamente correlato com o da delinquência infantil (RAMOS, 1939, p. 260).

Assim, como crer no mito da infância feliz? Qual a criança, afinal?

Não se pense que a infância é a idade feliz, livre dos temores, das inquietações, das angústias, que martirizam a alma do adulto. Pelo contrário, a angústia infantil toma às vezes, uma intensidade extraordinária. Quase sempre, aliás, são os adultos os responsáveis, criando para o psiquismo infantil, processos os mais complexos e esquisitos de amedrontamento. Está aí o folk-lore para prová-lo, este folk-lore das lendas, das abusões, dos fantasmas, dos bichos-papões, das almas penadas, dos lobisomens [...] (RAMOS, 1939, p. 316).

A desnaturalização da infância e o rompimento com o mito da criança feliz ocorreram na análise histórica das circunstâncias em que direitos e exclusões foram negociados. Na análise sobre o menor, diz:

muitas vezes, os furtos na infância se apresentam como uma atividade de jogo, ligada ao espírito de aventura e imitação. São os furtos da terceira categoria, geralmente de crianças pré-adolescentes, abandonadas moralmente, meninos que vivem nas ruas em “bandos” ou associações, que fazem proselitismo para as suas atividades sociais. Em rigor, esses casos entram no capítulo da criança abandonada e “delinquente”, das crianças que fazem “gazeta” à escola, etc. Aqui há a distinguir a figura do meneur, do chefe do grupo, que age sobre os outros, os “cúmplices”, estes quase sempre sugestionados, muitos débeis de inteligência e vontade (RAMOS, 1939, p. 373).

Conclui a investigação dizendo:

Cada clínica de higiene mental que se abre, é uma “escola de anormais” que se fecha. As escolas de anormais, como os reformatórios, os depósitos “fechados” de crianças... são antecâmaras da loucura e do crime, para parodiar uma velha frase de Tarde9, com relação aos estabelecimentos de correção (RAMOS, 1939, p. 395).

Nota-se como nos anos 1930 a conexão entre educação e saúde produziu efeitos na política social, racial e econômica, assim como foi o período no qual começou a se configurar o campo de estudos sobre a infância. O contraponto entre a clínica de higiene mental e as “escolas de anormais” se dá na medida em que o diagnóstico sobre as condições de internação e cuidado dos doentes - e mesmo daqueles em situação de privação de liberdade no âmbito penal à época - estava sendo objeto de redefinição.

os serviços de higiene mental são derivados das instituições europeias, principalmente francesas, que remontam às experiências de [Philippe] Pinel e dos chamados sanatórios mentais. Na realidade eram locais de depósitos de seres humanos, todos mentalmente perturbados e, portanto, obrigados a viver separados e apartados do convívio social (GARCIA, 2014, p. 959).

O primeiro serviço voltado para a higiene mental surgiu nos Estados Unidos em 1907, espalhando-se posteriormente por todo o mundo. “A denominação higiene mental permaneceu até 1950, quando por indicação da Organização Mundial de Saúde (OMS) passou a adotar a terminologia saúde mental, que se mantém até hoje” (GARCIA, 2014, p. 959). A chegada desse movimento no Brasil a partir de 1923 com o surgimento da Liga Brasileira de Higiene Mental por Gustavo Capanema indica a inserção do país nos debates internacionais sobre educação e saúde da criança, algo que também ocorreu na América Latina por meio da interlocução com a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), fundada em 1902.

Considerações finais

Ao partir da análise do livro A criança problema, de Arthur Ramos, fez-se a análise das condições de emergência do discurso sobre os comportamentos infantis, lidos a partir da experiência do SOHM-RJ, nos anos 1930. A partir de casos clínicos foi possível perceber como esse autor mobilizou referenciais teóricos da Psicanálise para propor medidas de saúde e higiene mental para a escola pública. A junção da Pedagogia e a Psicanálise de matriz freudiana e adleriana permitiu-lhe fazer uma clínica do social, isto é, um laboratório de descrição e análise das condições em que se encontravam as crianças da capital federal.

Analisou os excessos retóricos e as generalizações a que se prestaram políticos e intelectuais quando se inventava a diferença entre a criança e o menor. Ramos contribuiu para a definição dessa diferença ao usar a noção de “bando” como aglomeração, ajuntamento, constituição coletiva de um grupo liderado por certa figura de comando e que, esta sim, poderia ser nomeada como meneur. Era o símbolo de um certo desajuste em grau elevado e que tinha como um dos seus efeitos a associação com outros indivíduos de idade assemelhada, conduzindo ações violentas e contrárias ao que se esperava de uma criança educada e psiquicamente ajustada.

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1Sigla de Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), agência da Organização das Nações Unidas (ONU), criada em 1945 em Londres.

2O livro divide-se em duas partes e uma introdução: I - As Causas, com os capítulos: I - Herança e ambiente; II - A criança mimada; III - A criança escorraçada; IV - A criança escorraçada (continuação); V - A criança escorraçada (continuação); VI - A criança escorraçada (conclusão); VII - As constelações familiares; VIII - O filho único; IX - Avós e outros parentes. Parte II - Os problemas com os capítulos: X - A criança turbulenta; XI - A criança turbulenta (conclusão); XII - Tiques e ritmias; XIII - As fugas escolares; XIV - Os problemas sexuais; XV - Os problemas sexuais (continuação); XVI - Os problemas sexuais (conclusão); XVII - Medo e angústia; XVIII - Medo e angústia (conclusão); XIX - A pré-delinquência infantil: a mentira; XX - A pré-delinquência infantil: os furtos. A conclusão geral Tratamento e Assistência contém o capítulo XXI com o mesmo título.

3Referência à Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

4Termo de origem alemã que significa “negligenciada”.

5Ao analisar a recepção da obra de Lombroso por intelectuais das áreas de Direito e Medicina, Gaudêncio (2004) indica que “o que é central na teoria de Lombroso é que, primeiro, não lhe interessava tanto o crime, como nos tratados dos autores clássicos, quanto lhe interessava a figura do criminoso, e, segundo, é que ele fez uma leitura do crime enquanto fato social, usando os óculos, não das ‘ciências morais’, como até então, mas das ‘ciências naturais’. Fundiu [Charles] Darwin, para quem tudo é luta de espécies, com [Auguste] Comte, para quem somente através da ordem, dá-se o progresso, e com [Rudolf] Virchow, para quem a ontologia recapitula a filogenia, fazendo de saberes velhos, saberes novos” (GAUDÊNCIO, 2004, p. 127).

6Refere-se ao fato de a criança falar enquanto dorme.

7Sífilis.

8Termo em alemão que designa “impulso de agressão”.

9Referência ao sociólogo e criminologista francês Gabriel Tarde (1843-1904).

Recebido: 08 de Abril de 2022; Aceito: 28 de Agosto de 2022

Email: jose.junior010@gmail.com

JOSÉ DOS SANTOS COSTA JÚNIOR é doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Licenciado em História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

Editora Responsável: Doris Bittencourt Almeida

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