Esse texto1 tem por objetivo analisar as propostas formativas de dois pensadores medievais, Cassiodoro (490-591) e o Infante D. Pedro (1392-1449). Pertencentes a tempos distintos - épocas limítrofes da Idade Média -, esses dois intelectuais são fontes para a História e para a História da Educação2, pois explicitam em seus escritos a importância do conhecimento passado para a conservação da sociedade no presente.
Cassiodoro, coetâneo de Boécio (480-525), ocupou cargos elevados3: “(...) foi sucessivamente questor, cônsul e magister officiorum, isto é, ministro para a política interna” (REZENDE, 2018, p. 10), no reinado de Teodorico, o Grande (454-526) - um dos primeiros reis ostrogodos a governar o que restara do antigo império romano do Ocidente. Segundo Muñoz (2002), Teodorico, o Grande, pretendia latinizar e romanizar os seus bárbaros e, para tanto, convocou pensadores como Cassiodoro e Boécio, eruditos romanos que ocuparam altos cargos políticos no seu reino. O projeto de formação monástica de Cassiodoro não era percebido, portanto, como algo desvinculado da vida política em seu tempo. Pelo contrário, o seu desempenho intelectual, sua erudição, foram percebidas pelo governante como fundamentais para o projeto político do reino. É possível considerar que, por ser um homem comprometido com a preservação e o desenvolvimento do conhecimento, era uma peça-chave para a preservação e o desenvolvimento do império. Ao considerarmos o projeto de formação monástica, ou seja, compreendê-lo como um intelectual vinculado a uma instituição religiosa e educativa, não significa que descuramos da sua atuação política, pois isso seria impossível, na medida em que uma pessoa é um todo em suas ações. A escolha da atuação monástica de Cassiodoro para refletir sobre suas ações reside no fato de que o mosteiro foi fundamental para a preservação da cultura ocidental.
O Infante D. Pedro, duque de Coimbra, por sua vez, foi conselheiro do seu irmão, o rei D. Duarte (1391-1438), que governou Portugal entre os anos de 1433 e 1438. Esse monarca teria a árdua tarefa de consolidar a dinastia de Avis, iniciada por seu pai, conservar as conquistas realizadas no reinado anterior, especialmente Ceuta e, acima de tudo, confirmar as alianças iniciadas por D. João entre a nobreza, a igreja e o terceiro estado. Em virtude desse complexo cenário político é que D. Duarte pede ao Infante D. Pedro, considerado por ele um sábio, que o orientasse/aconselhasse no seu reinado. É, pois, nesse contexto que D. Pedro escreveu dois textos dirigidos ao futuro monarca: Carta de Bruges e o O Livro da Virtuosa Benfeitoria, fonte desse estudo. D. Pedro também ficou conhecido como um dos mais importantes tradutores da Dinastia de Avis.
Ambos mostram que a sabedoria constitui, na maioria das vezes, o caminho para se chegar à virtuosidade e que aqueles que governam precisam ser virtuosos, portanto, precisam conhecer. O entendimento de virtuosidade tanto em Cassiodoro como em D. Pedro segue os princípios conservados ao longo do medievo, ou seja, as virtudes cardeais apresentadas por Platão no livro quarto da República (prudência, justiça, tolerância, força) e as virtudes teologais (fé, esperança e caridade). Todavia, é preciso destacar que ambos os autores consideram como parte da virtuosidade humana um conjunto de virtudes como respeito, dignidade, dulia, dentre outras. Essa continuidade, que entrelaça antiguidade e medievo, é a característica marcante da época e ainda que já seja muito reconhecida, precisa ser destacada, especialmente no campo da História da Educação, por ser um sustentáculo do desenvolvimento do conhecimento ocidental. Atualmente, é natural pensar no conhecimento compartimentado, em cada ciência de modo quase independente, mas para esses pensadores o sentido de totalidade é que era o ‘natural’. Nesse sentido, temos como vislumbrar ‘linhas’ que conectam, por exemplo, o conhecimento platônico - bem como o aristotélico - a autores de tempos posteriores, nas mais diferentes áreas do conhecimento. Essas ‘linhas’ constituem a memória, a capacidade que têm os homens de contemplar, assimilar, discernir e modificar suas ações no tempo. As virtudes citadas, comumente consideradas sociais, estão presentes na obra de Cassiodoro, são analisadas por Tomás de Aquino (2005), Suma Teológica, II seção da II parte e são a base para as formulações sobre o bom governante elaboradas pelo Infante D. Pedro. Essas conexões não ocorrem, portanto, somente em termos intelectuais e/ou abstratos, são parte integrante dos homens e da vida em sociedade. Pensar em virtudes, em comportamentos polidos para a vida política e social, significava pensar em desenvolvimento intelectual, pois os âmbitos material e mental eram percebidos como indissociáveis.
Assim, consideramos esses autores segundo os princípios da história e os encaramos como intelectuais ativos, que apresentaram caminhos para os seus respectivos tempos. É oportuno esclarecer que o conceito de intelectual que trazemos está relacionado à própria ideia construída na Idade Média, especialmente a partir do século XIII (LE GOFF, 2003; OLIVEIRA, MENDES, SANTIN, 2016). Sob este aspecto, é intelectual todo aquele cujo trabalho não se constitui em atividade manual. Essa clareza de que o estudo se configura como trabalho pode ser encontrada na obra de Tomás de Aquino (1984) intitulada Contre ceux qui attaquent le culte de Dieu et la vie religieuse, na qual defende que os pregadores mendicantes podem viver do ócio contemplativo para terem tempo de se dedicarem aos estudos e a oração e, por conseguinte, terem suas subsistências materiais asseguradas por meio das esmolas e doações da comunidade.
Essa mesma constatação também é apresentada por Brochiere (1989), no texto denominado Intelectual, ao refletir sobre o papel dos mestres universitários no século XIII, quando recupera duas passagens de dois dos principais mestres mendicantes universitários, o franciscano Boaventura de Bagnoregio e o dominicano Tomás de Aquino.
<<[BOAVENTURA] Se tivéssemos de viver do mero trabalho manual estaríamos tão preocupados com o trabalho a executar que não poderíamos dedicar-nos aos assuntos dos outros nem celebrar condignamente os ofícios divinos ou dedicar-nos com igual liberdade à oração [...]. Na realidade, à excepção dos enfermos, todos trabalhamos: alguns estudando para instruir os fiéis, outros celebrando o ofício divino e erguendo louvores a Deus, outros recolhendo esmolas para o sustento comum e outros ainda executando com livre obediência os trabalhos domésticos ...>>.
[...]
<<[TOMÁS DE AQUINO] Aqueles que arranjam com que viver de outra forma que não seja o trabalho manual não são os obrigados a trabalhar com as mãos; se assim não fosse, todos os ricos, clérigos ou leigos, que não trabalham com as mãos, viveriam em estado de perdição, o que é um absurdo>> (BROCHIERI, 1989, p. 131).
As formulações trazem à tona a ideia de que já era usual, no século XIII, ao menos para professores da Universidade, considerar o estudo e a pregação como trabalho. Os dois mestres retomados por Brochieri são nomes expressivos e, com certeza, influentes tanto na universidade como na sociedade e suas obras, continuam a ocupar espaços expressivos na academia. Tomás de Aquino, por exemplo, na Suma Teologia apresenta uma síntese sobre as questões que compõem uma sociedade [leis, moral, religião, instituições, natureza, dentre tantos outros temas], ou seja, buscou compreender o sentido pleno de Homem, Deus, sociedade e natureza, de modo que suas aulas, pregações e escritos influenciaram na sua época.
Justamente porque os próprios medievais se viam como intelectuais que julgamos não ser despropositado considerar Cassiodoro e D. Pedro como intelectuais, posto que se colocaram como atores em seus respectivos tempos históricos. Também é sob este ângulo que observamos que foram as questões políticas que nortearam suas preocupações e, por isso, buscaram, por meio da escrita e da prática de vida, alterar os rumos ‘tortuosos’ que suas respectivas sociedades tomavam.
A aproximação entre ambos não tem por finalidade atenuar as diferenças existentes entre os dois, especialmente em virtude do tempo histórico e da pessoa a ser formada. Além de estarem a praticamente dez séculos de distância temporal, Cassiodoro dirigia-se à formação de monges e D. Pedro à formação de um príncipe. Todavia, tanto um como o outro possuíam a mesma base do conhecimento, o conhecimento da filosofia antiga e dos escritos sagrados, ou seja, aspectos da civilidade medieval ocidental os aproximam. Um período histórico que perdurou por mais de mil anos, que teve a sua fundamentação teórica pautada em duas naturezas distintas de saberes, a clássica e a cristã, preservou, dentre muitas diferenças, conflitos, guerras e crises, o conhecimento e, portanto, as condições para a vida em sociedade. As duas obras, fontes deste texto, foram produzidas por dois homens que participaram desse processo e estão carregadas de filósofos antigos e de escritos sagrados. É preciso destacar, sob este aspecto, a forte influência de autores como Platão, Aristóteles, Sêneca e Cícero nesses escritos.
A relevância de ambos se encontra justamente nos aspectos que os aproximam, pois mesmo em circunstâncias distintas recorreram ao conhecimento já produzido para orientar suas decisões. Nesse sentido, a permanência do conhecimento antigo e do saber cristão como ‘fundamentos’ da conduta social no presente de cada um dos autores os aproxima e os torna exemplos históricos ou da História. O que, portanto, salientamos, é a importância da conservação de uma base do conhecimento para a manutenção do desenvolvimento científico, político, social, ou seja, das condições de civilidade. Arendt (2009), em A crise na Educação, ressalta o abandono dessa tradição na formação intelectual e ressalta que, em meados do século XX, esse era o principal motivo para as dificuldades enfrentadas na educação dos mais jovens.
A crise de autoridade na educação está intimamente ligada com a crise da tradição, isto é, com a crise da nossa atitude face a tudo o que é passado. Para o educador, este aspecto é especialmente difícil uma vez que é a ele que compete estabelecer a mediação entre o antigo e o novo, razão pela qual a sua profissão exige de si um extraordinário respeito pelo passado. Ao longo dos séculos, isto é, durante o período da civilização romano-cristã, o educador nunca teve necessidade de tomar consciência desta sua qualidade especial. A reverência relativamente ao passado era parte essencial da estrutura romana de pensamento, estrutura essa que o cristianismo não alterou nem suprimiu antes estabeleceu sobre diferentes fundamentos (ARENDT, 2009, p. 243-244).
Para a autora, no momento em que os professores desconsideram a conservação do passado como condição de permanência de civilidade na e para as próximas gerações, ocorre a crise na educação. O respeito ao conhecimento passado de geração para geração é que reforçaria a autoridade do professor, pois sua função basilar seria justamente mediar a interação entre o conhecimento - já formulado e estabelecido - e a criança, o ser novo que ainda não possui essa base razoavelmente estável na qual poderá se desenvolver. Assim, ainda que a base do saber medieval seja sobejamente conhecida, especialmente em manuais de história da educação e simplificada de modo aligeirado como escolástica (fusão entre fé e razão) ocorreu um abandono desse conhecimento como fundamento para a constituição intelectual das novas gerações. Essa constatação de que houve um abandono da tradição é que nos move a buscar as semelhanças entre autores de tempos distintos, destacar o que os une em torno de conceitos e ideias que visavam a conservação de uma vida social mais harmônica. Entendemos que esses conceitos e ideias nos levaram a formação de instituições importantes, das leis e ao progressivo aumento da necessidade da educação como meio de conservação das relações sociais.
CAMINHAR TEÓRICO SEGUNDO OS CONCEITOS DE TRADIÇÃO E LONGA DURAÇÃO
Nas Institutiones, Cassiodoro trata das concepções de alma e de virtude platônicas e, na parte segunda da obra, das disciplinas do Trivium, especialmente da retórica. A presença de Cícero é constante: “(...) como disse Cícero, corrigindo-se, no livro Sobre o Orador, a transferência deve ser incluída nos status legais” (Cassiodoro, 2018, p. 157)4 ou ainda “Como diz Cícero, toda controvérsia é simples ou complexa” (Cassiodoro, 2018, p. 159)5. Indubitavelmente, Cassiodoro não só conhecia os autores gregos e romanos como serviu-se dos seus escritos para construir os seus argumentos.
Infante D. Pedro, por seu turno, também ficou conhecido por suas traduções. Uma das principais foi a obra De officiis, de Cícero. Todavia, os escritos do Duque de Coimbra, como também é conhecido, evidenciam forte influência de autores da antiguidade, dentre eles Aristóteles “E para melhor conhecimento disto, saibamos que Aristóteles, no III livro da moral filosófica, e Tulio, em sua retórica, puseram VIII circunstâncias pertencentes aos atos dos homens” (D. PEDRO, 1981, p. 564, trad. nossa)6.
Essa fundamentação teórica comum nos permite tecer aproximações entre eles e observarmos outros aspectos similares nas obras analisadas. Em primeiro lugar, consideram que a virtuosidade é possível mediante a sabedoria intelectiva. Em segundo, acreditam que, de modo algum a humanidade poderia abrir mão do conhecimento produzido pela antiguidade greco-latina. Em terceiro, ambos tinham um projeto de formação humana voltada à virtuosidade. Cassiodoro estabeleceu um projeto de formar monges copistas, tradutores e comentadores para preservar a cultura; D. Pedro tinha o propósito de formar virtuosamente o governante de modo que, por meio do seu exemplo, a sociedade adquirisse princípios do bem comum. Em quarto lugar, exerciam a função de conselheiros dos seus respectivos governantes, ou seja, eram intelectuais que estavam junto ao poder, desempenhando papéis essenciais. Por conseguinte, a defesa do conhecimento e da virtude como condição do bem governar, a ideia de que é possível e, mais ainda, é preciso produzir o conhecimento a partir da conservação de uma tradição filosófica e cristã os aproximam.
O fato de entendermos a história segundo a perspectiva de longa duração nos possibilita examiná-los como partícipes do mesmo ‘banquete’. Estamos nos referindo às formulações apresentadas na clássica obra de Braudel (2016) O Mediterrâneo ... e em seus Escritos sobre a história (BRAUDEL, 2011), nos quais podemos perceber as diferenças entre a História de curta duração e a de longa duração, o que nos permite afiançar, mais uma vez, a relevância de um estudo histórico sob a perspectiva da longa duração.
Depreendemos das reflexões de Braudel as diferenças acerca dessas duas formas de se fazer a História. Tendo o termo evento como referência, o autor delineia a fragilidade da História de curta duração
Assim a palavra evento. De minha parte, quisera acantoná-la, aprisioná-la no tempo curto: o evento é explosivo, ‘novidade sonante’, como se dizia no século XVI. Com sua fumaça excessiva, enche a consciência dos contemporâneos, mas não dura, vê-se apenas sua chama (BRAUDEL, 2011, p. 45, grifo do autor).
O evento, em si, não nos permitiria compreender a história em razão de apresentar somente uma fagulha do longo processo de maturação do acontecimento. Exatamente pela sua fragilidade, o autor destaca a relevância de se considerar o acontecimento a partir de uma longa duração.
Os historiadores do século XVIII e do início do século XIX haviam estado mais atentos às perspectivas da longa duração que, a seguir, somente grandes espíritos como um Michelet, um Ranke, um Jacob Burckhardt, um Fustel souberam redescobrir. Se aceitarmos que essa superação do tempo curto foi o bem mais precioso, porque o mais raro, da historiografia dos últimos cem anos, compreenderemos o papel eminente da história das instituições, das religiões, das civilizações, e, graças à arqueologia, a qual necessita de vastos espaços cronológicos, o papel de vanguarda dos estudos consagrados à Antiguidade clássica. Ontem, eles salvaram nossa profissão (BRAUDEL, 2011, p. 47).
O tributo de Braudel, aos autores do passado, nos possibilita observar que foram eles que nos permitiram salvaguardar uma compreensão da história de longa ou mesmo de longuíssima duração. Sua percepção do tempo fica ainda mais evidente quando define, adiante, que
(...) todos milhares de estouros do tempo da história se compreendem a partir dessa profundidade, dessa semi-imobilidade; tudo gravita em torno dela. (...) a história é a soma de todas as histórias possíveis - uma coleção de misteres e de pontos de vista, de ontem, de hoje, de amanhã (BRAUDEL, 2011, p. 53).
Suas formulações acerca do tempo da/na história são muito mais do que uma definição dos tempos curto, médio e longo. Constituem a defesa da ideia de que o tempo é crucial ao historiador, mas a sua divisão entre passado, presente e futuro é tênue e esse aspecto nos permite compreender a história e o próprio homem. Essa percepção dos homens e da história aproxima, inclusive, a formulação de Braudel da já consagrada de Bloch (2001) de que a ‘história é os homens no tempo’.
Ainda acerca da história como um longo processo, retomamos o exemplo de um professor e historiador do século XIX, François Guizot. Na obra Essai sur l´histoire de France (1857), ao estudar o fenômeno da Revolução Francesa, ele sustenta não ser possível entender um fato histórico se considerar somente o momento da sua eclosão.
As causas das revoluções são sempre mais gerais do que se supõe; o espírito mais penetrante e mais vasto não o é nunca o suficiente para perceber desde a primeira origem e as abarcar em toda a sua extensão. E não falo aqui deste encadeamento necessário dos acontecimentos que faz com que eles nasçam constantemente uns dos outros, e que, o primeiro dia traz em seu seio o futuro inteiro. Independentemente deste laço eterno e universal de todos os fatos, é verdadeiro dizer que essas grandes vicissitudes das sociedades humanas que denominamos de revoluções, o deslocamento dos poderes sociais, a subversão das formas de governo, a queda das dinastias, datam de mais distante do que diz a história, e provêm de causas bem menos especiais do que aquela que se lhe atribui comumente. Em outras palavras, os acontecimentos são maiores do que sabem os homens, e aqueles mesmos que parecem a obra de um acidente, de um indivíduo, de interesses particulares ou que qualquer circunstância exterior, têm fontes bem mais profundas e de outro alcance (GUIZOT, 1857, p. 57, trad. nossa)7.
Para Guizot, não é possível compreender qualquer fato histórico sem considerar sua origem e, ainda assim, não se o conhece no seu todo. Todavia, cometer-se-ia menos equívocos na medida em que se tentaria entendê-lo no todo. Ainda de acordo com este autor, os ‘acontecimentos sempre são maiores’ que as ações dos homens de um dado tempo presente, razão sempre oportuna na história recuperar o passado longínquo.
Logo, ao seguirmos as pegadas de Guizot e de Braudel, consideramos que nas obras de Cassiodoro e do Infante D. Pedro é possível observar um movimento semelhante de conservação e difusão do passado. Assim, por meio da memória e da história, esses dois autores, apesar de distantes dos eventos, conseguiram usá-los para agirem nas suas respectivas épocas sociais, ou seja, no seu presente.
REFLEXÕES SOBRE CASSIODORO
As reflexões sobre Cassiodoro estão vinculadas a dois aspectos essenciais: primeiro, ao seu papel como intelectual e sua preocupação com a formação intelectiva dos monges; o segundo, ao lugar no qual desenvolveu suas atividades, o mosteiro.
Cassiodoro está associado ao mosteiro, inclusive, foi o responsável pela fundação de um dos mais notáveis do Ocidente, o Vivarium (OLIVEIRA, 2008). É importante salientar que os mosteiros se constituíram no início da Idade Média como locus de preservação e produção do conhecimento (GUIZOT, 1990; DURKHEIM, 2002). Essas instituições também podem ser identificadas como espaços de formação humana, como podemos ver nas Institutions, de Jean de Cassien (360-435), na Regra de São Bento, de Bento de Núrsia (480-543/8) ou, ainda, na Doutrina Cristã, de Agostinho de Hipona. Os mosteiros estiveram presentes na sociedade durante todo o período do medievo, a exemplo dos mosteiros femininos de Gandersheim, no qual atuou Roswita no século X, e de Rupertsberg, fundado por Hildegard de Bingen no século XII. Ou ainda a Abadia de Bec, um mosteiro beneditino no qual viveu o mestre Anselmo de Bec ou o mosteiro dos Vitorinos, no qual as ideias de Hugo e Ricardo de Saint-Victor foram difundidas. Esses são mencionados apenas como exemplo de mosteiros que se tornaram pontos de iluminação cultural e lugar de ensino no período medieval, uma vez que neles e deles emergiram figuras centrais da intelectualidade medieval (SANTSCHI, 1995; BASCHET, 2000; OLIVEIRA, 2008; GIOANNI, 2009; SANTOS, 2012; GRIPPA, 2015).
O mosteiro é, portanto, um local de desenvolvimento intelectual no medievo e a obra Institutiones é, segundo Rezende (2018), um exemplo do trabalho realizado por Cassiodoro no Vivarum e que se tornou um dos textos mais influentes no medievo. Observa-se que o mosteiro Vivarium se destacou exatamente pelo projeto educativo de Cassiodoro que decidiu fundar um local no qual as pessoas pudessem se proteger, fisicamente, do caos que imperava no que restara da sociedade romana e do que permanecia dos costumes dos ‘povos novos’8. Ao mesmo tempo, edificou um lugar de preservação e difusão da cultura greco-latina e cristã, “(...) o autor [Cassiodoro] salienta que a educação não deve ser vista como um fim em si, mas como um meio que fornece instrumentos adequados para a reta compreensão das Sagradas Escrituras” (REZENDE, 2018, p. 11).
Ao instituir o Vivarium, Cassiodoro pôs em prática o seu projeto político e educacional: formar pessoas cristãs e preservar a cultura, ou seja, constituir um lugar de conhecimento para a humanidade cristã. Destaca-se que seu projeto não é uma proposta original, pois a ideia de formar a pessoa cristã e preservar a cultura antiga é comumente encontrada na maioria dos autores da patrística. Mencionamos, como exemplo, as Epístolas de Eusébio Sofrônio Jerônimo e a Doutrina Cristã, de Agostinho de Hipona. Nesses escritos encontramos a explícita relevância dos autores da antiguidade nas ideias apresentadas. Entretanto, nas Institutiones nos deparamos com uma sistematização e detalhamento do ensino para preservação de escritos filósofos e clássicos para o conjunto de pessoas que habitavam o mosteiro, característica que não estava, comumente, presente em obras anteriores.
Segundo Gladysz (1936), uma das preocupações de Cassiodoro era exatamente difundir a religiosidade cristã por meio da disseminação dos escritos sagrados e, ao mesmo tempo, preservar as ‘ciências profanas’.
O conhecimento e a preservação para as gerações futuras das Sagradas Escrituras era o objetivo que perseguia e, para isso, queria educar seus monges para que pudessem entender bem a Bíblia e copiá-la corretamente. (...) Cassiodoro, ao contrário de Cassiano e São Gregório Magno, encoraja seus monges não apenas a estudar teologia, mas também ciências seculares, como eram então entendidas sob a forma das sete artes liberais, ‘artes liberais’ (GLADYSZ, 1936, p. 52)9.
As palavras do autor evidenciam os objetivos de Cassiodoro que, além de formar monges dedicados aos ensinamentos sagrados, buscava proporcionar a conservação e difusão desses saberes, bem como dos saberes filosóficos contidos no Trivium e no Quadrivium. Sobre esse aspecto, podemos afirmar que Cassiodoro desempenhou papel fundamental na cultura ocidental, pois preocupou-se com a conservação da civilidade, como é possível observar nas Institutiones.
O oitavo códice contém as cartas canônicas dos Apóstolos. Mas logo no início da minha leitura, encontrei alguns comentários sobre as treze cartas de São Paulo Apóstolo. O fato de esses comentários serem tão célebres levou homens muito doutos a dizer que foram escritos por São Gelásio, Papa de Roma. É o que costumam fazer os que querem defender certos vícios com a autoridade de um nome ilustre. A partir das leituras posteriores, restou claro que em algumas de suas declarações, breves e sutis, estava disseminado o veneno do erro de Pelágio; assim deviam ser cuidadosamente retratadas. E para que essa heresia fosse expelida para longe de vós, corrigi a primeira Epístola aos Romanos e deixei-vos as restantes num códice de papel para serem depois corrigidas. Esse trabalho de correção se torna mais fácil à medida que o sucessor é encorajado em seu trabalho de imitação pelo modelo de seu antecessor (CASSIODORO, 2018, p. 55)10.
Os comentários feitos às cartas dos apóstolos patenteiam a preocupação de Cassiodoro em explicar aos monges o cuidado que se deveria ter com as cópias já realizadas dos documentos, pois poderiam ter sido adulteradas, de acordo com os interesses do comentador. No caso das cartas do apóstolo Paulo, segundo Cassiodoro, o comentarista informava que as anotações anteriores pertenciam a um personagem importante, São Gelásio, que expressava a autoridade necessária para que o documento pudesse ser considerado verdadeiro. Cassiodoro alerta que o documento, ao ser lido e copiado, precisa ser analisado com muito cuidado pelo monge copista para que não fosse perpetuado um erro. Esse zelo por parte do autor revela, a nosso ver, uma questão importante em relação à formação do monge: ele precisava conhecer o teor do documento a ser copiado a ponto de discernir a veracidade dos comentários já feitos e que margeavam o texto da carta. Logo, para o autor, o trabalho do copista não pode ser mecânico e destituído do conhecimento do material a ser preservado.
Ainda nessa citação, outro aspecto importante da atividade do copista e que, ao mesmo tempo, revela a produção do saber medieval, incide no fato de Cassiodoro avisar que já havia corrigido os erros na primeira carta, deixando as demais para serem corrigidas pelo copista que prosseguiria o trabalho. O autor, inclusive, alerta para o fato de que as próximas correções devem seguir o seu exemplo, pois “(...) o sucessor é encorajado em seu trabalho de imitação pelo modelo de seu antecessor” (CASSIODORO, 2018, p. 55)11.
Em outra passagem, Cassiodoro destaca o cuidado que se deve ter com as traduções e as interpretações12.
Quanto à Epístola aos Hebreus, analisada por São João, bispo de Constantinopla, em trinta e quatro homilias proferidas em língua grega, fizemos com que Muciano, um homem de grande eloquência, traduzisse-a para o latim a fim de não romper a ordem constituída das epístolas com uma conclusão súbita e inapropriada. O presbítero Clemente de Alexandria, também conhecido como Stromatheus, fez algumas declarações em grego ático sobre as epístolas canônicas, especialmente sobre a primeira Epístola de São Pedro, a primeira e a segunda Epístolas de São João e sobre a de Tiago. Ele teceu muitos comentários que são certamente sutis, mas também alguns descuidados. Fizemos com que essas observações fossem traduzidas ao latim, de modo que, excluídos certos obstáculos, sua doutrina fosse purificada e se tornasse uma fonte (CASSIODORO, 2018, p. 54)13.
Ao prosseguir nas orientações ao monge copista, Cassiodoro salienta a relevância de confiar em um bom tradutor para ter a veracidade da Carta. Ele pediu a uma pessoa que considerava de ‘grande eloquência’ para traduzir do grego para o latim a epístola aos hebreus, comentadas por São João. Esse zelo leva-o a afirmar que o importante Clemente de Alexandria havia feito boas traduções e comentários das cartas, mas que em algumas situações tinha sido descuidado. Todavia, em relação às traduções e comentários de Agostinho de Hipona, Cassiodoro as recomenda por considerá-lo muito cuidadoso: “Santo Agostinho tratou da Epístola do Apóstolo Tiago com a diligência de costume. Deixei-vos uma cópia disso em pergaminho” (CASSIODORO, 2018, p. 55)14.
A disposição em ensinar o monge para que o saber fosse salvaguardado é a tônica da primeira parte da obra.
Deixei uma exposição dessas epístolas em grego feita por João Crisóstomo no oitavo armário, onde estão reunidos os códices gregos. Caso comentários mais abrangentes não possam ser encontrados em latim, que seja traduzido do grego aquilo que fornece uma compreensão bastante completa. Assim, por bondade do Senhor, as exposições dos antigos sobre todos os setenta e um livros canônicos (esse número é dado por Santo Agostinho) vos serão oferecidas em vosso banquete como se fossem frutos espirituais do Paraíso (CASSIODORO, 2018, p. 59)15.
Cassiodoro não precisava apenas ensinar o monge como copiar, como discernir o texto do documento, dos comentários escritos, de outros leitores anteriores que, na sua maioria, eram autoridades cristãs, como Clemente de Alexandria (150-215), Santo Agostinho (354-430), São Gelásio (410-496), ou seja, não era um monge qualquer que tinha lido o códice e feito as anotações que o copista precisava perceber. Na verdade, ele também necessitava conscientizar o copista de como o trabalho precisava ser bem feito e, ao mesmo tempo, fazer com que se inteirasse da importância do documento para a preservação do saber e dos valores cristãos. Tinha, igualmente, que incutir no monge o entendimento de que aquele documento era importante para a conservação da sociedade cristã.
Exatamente por isso informa o local onde guardava o códice, solicita que os textos que estivessem em grego fossem traduzidos para o latim por ser importante que fossem compreendidos e aprendidos. Para Cassiodoro, a preservação e difusão dos saberes contidos nos livros canônicos devem ser comparados ao ‘banquete espiritual do paraíso’. Trata-se de formar pessoas e, sobretudo, torná-las capazes de preservar um modo de vida cristão, o que implica em uma atitude de natureza política e uma luta ferrenha para preservar a civilização.
Assim, ao zelar minunciosamente pela formação dos monges e pelo árduo trabalho do copista com o fito de que o trabalho produzido no mosteiro fosse o mais fiel possível ao texto original, Cassiodoro atuou, conscientemente, na tarefa de educar e de preservar o conhecimento antigo/filosofia e na difusão dos escritos sagrados, agindo, de fato, como um lídimo intelectual do seu tempo, do mesmo modo que D. Pedro veio a elaborar em seus escritos.
INFANTE D. PEDRO
Para Dom Pedro, Duque de Coimbra (1392-1449), um dos príncipes da dinastia de Avis - que recebeu uma educação excepcional para a sua época, tornando-se, consequentemente, um dos homens mais cultos de então -, a instrução e a justiça são pontos vitais na formação de um bom governante, tornando-o uma pessoa virtuosa.
Ao escrever o Livro da Virtuosa Benfeitoria, o autor se preocupa em definir princípios para a formação de um bom governante como um espelho de príncipe. A obra foi endereçada a D. Duarte I (1391-1438), seu irmão, herdeiro da coroa portuguesa. Nela, o Infante estabelece que as ações do governante devem possuir planejamento e responsabilidade, visando o bem comum da sociedade e, para isso, o líder deve possuir virtude e sabedoria. Ainda segundo ele,
E, porém, a minha vontade se inclinou a fazer esta obra, aos príncipes muito concernente, entre os quais por mercê do nosso imperial e muito grande senhor, eu fui provocado sem merecimento próprio. E como ela é necessária (D. PEDRO, 1981, p. 536)16.
Dom Pedro defende que sua doutrina deve ser mais bem desfrutada pelos príncipes, pois, além de possuírem riquezas, regem a sociedade, podendo beneficiar muitos. Para isso, devem possuir os conhecimentos necessários para governar de maneira correta e virtuosa. Segundo Fonseca (1993, p. 232), “Subtilmente, D. Pedro impõe aos príncipes, responsáveis pela governação do mundo, um estudo moral de singular perfeição, transferindo para Deus uma especial influência sobre eles, de modo a poderem pôr em obra os actos de benfeitorias”. Há uma clara ideia de que os príncipes devem, pela posição que ocupam na sociedade e por sua formação, zelar pelo bem do povo, portanto, serem governantes justos.
De acordo com Fonseca (1993, p. 233), para D. Pedro: “Os príncipes estão, em natureza, para com os súditos, como os pais para com os filhos e esta relação é geradora de obrigações, nomeadamente a de socorrer às minguas de feitorias, ou seja, prover às faltas, caso necessário se torne”. As palavras de Fonseca reiteram a ideia que anunciamos, a de que D. Pedro propõe uma governança com capacidade de gerir as ‘coisas’ do reino segundo os interesses coletivos com vistas ao bem comum. É importante destacar que essa concepção se encontra em sintonia com o que apresentara Sêneca (1998) no Tratado da Clemência e com as reflexões de Tomás de Aquino (1995) em Sobre o governo de Chipre. Em ambos, a figura do governante precisa vincular-se à prática de ações virtuosas. Seguindo essa tradição de conhecimento e de fundamentação política romana e escolástica, o governante, para o Infante, deveria, necessariamente, ser virtuoso e pensar no bem comum, pois todos os súditos dependem diretamente dele.
Para D. Pedro, a sociedade está envolta em maldade e ignorância por conta da falta de virtudes, sendo necessário promover os ensinamentos indispensáveis para que os homens fossem capazes de reconhecer seus erros e melhorar seu comportamento por meio das benfeitorias. Em sua obra, cita diversos autores, entre eles Sêneca, para fundamentar o seu discurso sobre as virtuosas benfeitorias17 - princípio que estabelece que é necessário fazer o bem a todos e este bem deve ser realizado em conformidade com o status e as posses do benfeitor. Do mesmo modo, D. Pedro afirma que escreve para todos que possuem algum poder para fazer boas obras.
A preocupação com a formação está muito presente em sua obra tanto em relação ao príncipe e aos governantes quanto em relação à sociedade em geral
A culpa maliciosa em que a nossa natureza primeiramente caiu foi azo [causa, motivo] de nos incorrermos na ignorância e na maldade porque as nossas obras carecem por vezes das virtuosas perfeições, de que deviam ser acompanhadas. Essa carência os sábios consideraram antigamente. E, por isso, se ocuparam de dar ensinamentos aos homens com que lhes pudessem vir em auxílio. E entre eles o grande filósofo moral Sêneca esguardou [considerou com atenção] os erros em que nos autos de benefício eram acostumados, dos quais muitos agindo como não devem [agir], não sabem fazer mercês, nem as receber, nem as agradecer, do que muitas geram e dão ocasião de serem benfeitorias viciosamente incomodadas. E com grande desejo de colocar alguma correção de maneira que tão nobre auto e tão perfeito como é o bem fazer não perecesse. Compôs em latim sete pequenos livros, dando ensino aos homens que disto quisessem razoavelmente usar. Dos quais a sentença e ordenança porque é curta e muito escura, e do falar que agora usamos desacostumado. Ocupei-me de a inserir toda com as outras coisas que a isto eram úteis, fazendo nova compilação proveitosa para mim e para todos os outros que são obrigados a praticar o poder que tem para fazerem boas obras (D. PEDRO, 1981, p. 534, trad. nossa)18.
De acordo com o Infante, a ignorância é a mãe de todos os males, especialmente daquele que governa, pois este é o responsável por fazer a ‘benfeitoria’ na sociedade e, se não tiver o conhecimento para ser virtuoso, só cometerá injustiças. Para evitar a injustiça é preciso ensinar aos homens, especialmente àqueles que ocupam cargos no governo. Fez, por isso, a tradução de obra de Sêneca na qual o filósofo estoico escreve sobre a maneira como os homens devem agir em sociedade. Assim, retoma o conhecimento romano para ensinar aos homens de seu tempo que a justiça é indissociável do conhecimento, especialmente no que se refere ao governante. Do mesmo modo que Cassiodoro, conforme salientado, D. Pedro busca a sabedoria do passado para formar seus contemporâneos.
Adiante, no Livro Virtuosa Benfeitoria, continua a ressaltar o fato de que são os príncipes, pela sua liderança e pela sua formação, que devem ficar à frente da sociedade e praticar o bem com vistas ao bem comum.
E tanto mais a eles que aos outros homens, mostrasse pelas seguintes razões, das quais a primeira fundada sobre a disposição conveniente é esta. Àqueles é mais conveniente o ensino, que são melhores [mais] dispostos a usar o que aprenderam. Segundo, vemos que a arte do canto mais deve ser ensinada a quem tem boa voz e harmoniosa, e é poderoso para bem usar a música, que ao rouco e desafinado, o qual nunca pode ser pela voz nomeado cantor. De modo semelhante, porquanto os príncipes são possuidores de riquezas temporais, das quais podem fazer bem e mercês a muitos. Mostra-se que eles têm melhor disposição para usar desta doutrina, do que os outros homens, os quais ainda que a saibam e queiram colocá-la em prática, por constrangimento da miséria, cessam de fazer o que desejam. Duas razões fundadas no bem que deste auto se pode seguir. Tanto cada um é mais obrigado a aprender a coisa quanto do uso do seu saber pode sobrevir a ele maior proveito (D. PEDRO, 1981, p. 536, trad. nossa)19.
Ainda que nessa passagem, em particular, D. Pedro não mencione Aristóteles (385-322 a.C.), como fez em outras, podemos inferir que, ao aconselhar os homens que possuem o poder a agir com virtuosidade, retoma uma máxima aristotélica presente no livro II da Ética a Nicômaco (1985), no qual o filósofo destaca que as pessoas habituadas a fazer bem uma dada atividade, a exemplo do tocador de cítara, do juiz, dentre outras profissões, fazem-na ‘naturalmente’, já que criaram o hábito de praticá-las. Para D. Pedro, os príncipes deveriam habituar-se a praticar o bem na sociedade, tanto pelo hábito quanto por sua condição de nascença (origem e linhagem). Em razão disso, destaca que da pessoa que tem a voz rouca certamente não sairá um belo canto, do mesmo modo que as boas ações devem sair das ações dos príncipes.
Em outra passagem da obra, mas seguindo o mesmo fio, o de defender a ideia de que as ações do príncipe devem ser virtuosas, D. Pedro retoma Platão (2010), especialmente em A República20
E disto deveriam os príncipes terem grande cuidado, guardando aqueles dois preceitos que Platão filósofo põe no livro da vida filosofal. E o primeiro é este. Um só cuidado devem ter os príncipes, que é guardar em todas as suas obras o proveito dos súditos, esquecer os próprios desejos. Outro mandado é que de tal maneira curem eles o corpo da comunidade que, em dando saúde a uma parte, não desamparem o todo (D. PEDRO, 1981, p. 579, trad. nossa)21.
Seguindo os princípios apresentados por Platão, o Infante destaca que o príncipe virtuoso (em Platão seria o rei filósofo) não pode descurar de duas questões. Primeiro, não pode cuidar dos seus interesses pessoais em detrimento dos interesses dos súditos e, segundo, não pode pensar em privilegiar somente uma parte da sociedade. Ao contrário, é preciso governar para o todo, porque o reino é um conjunto.
No livro IV da República, Platão explicita como deve ser organizada a sociedade e mostra o papel que cada um dos segmentos desempenha em prol da res publica, ou seja, dos assuntos que dizem respeito ao conjunto social. Isso também D. Pedro faz no Livro da Virtuosa Benfeitoria: o conceito de res publica passa a ser ‘bem comum’, contudo, o princípio filosófico permanece o mesmo.
E considerando nós que o bem comum é melhor que o pessoal, acorreremos [acudiremos/valer-nos-emos] a ele. E curando suas necessidades faremos no geral [em todo] corpo bem a todos os membros, esquivando aquela maldade, da qual falando Platão filósofo, segundo escrito no livro da vida e costumes filosofais, disse que a má vida da comunidade é a cousa pior que se pode padecer. E porem cada um e principalmente os príncipes que sobre isto têm o encargo todo, para tirar as misérias das comunidades, devem trabalhar, com tal vontade, e desprezem sua vida corporal, por fazerem melhoramentos em suas terras, de cujos padecimentos os [razoados] senhores não ficam sem dor. E os que tal sentimento têm por estrangeiro, não cuidando de fazer aquele proveito que os mesquinhos amiúde requerem, por se acabarem seus pertences, fazem desobrigação entre si e o corpo comum do qual não poderão ser ajudados quando cumprir. Que não se esquenta ao fogo quem o apaga, nem deve esperar o fruto das árvores quem as corta em partes muito pequenas/miúdas (D. PEDRO, 1981, p. 588, trad. nossa)22.
O príncipe, para o autor, zelava pelo bem da comunidade e, se preciso, deveria esquecer inclusive as suas necessidades corpóreas, uma vez que o seu papel, no conjunto dos segmentos que constituíam o reino, era conduzir todos para o bem viver. O governante precisava estar atento a tudo e a todos, pois era de sua responsabilidade conservar o conjunto. Não poderia, portanto, beneficiar um grupo em detrimento de outro, sequer defender os interesses de particulares, pois isso poria em risco a sociedade. Exatamente por isso que D. Pedro aconselhou o príncipe a não dividir para governar usando dois exemplos platônicos: a) não se deve podar muito uma árvore porque ela deixará de dar frutos, logo a sociedade será aniquilada; b) se se deseja aquecer ao fogo, é preciso mantê-lo aceso, ou seja, se quer ter o apoio dos súditos é preciso primeiro protegê-los.
Deduzimos das formulações de D. Pedro, que o Livro da Virtuosa Benfeitoria é um projeto de governança dirigido ao príncipe e aos segmentos dominantes da sociedade porque eles deveriam ter a virtude da sabedoria para bem governar e conduzir os homens na sociedade com vistas ao bem comum. Nesse projeto de formação social, no qual congrega todos os segmentos, D. Pedro evidencia, claramente, a relevância de se manter o saber antigo e nos exemplos que trouxemos aqui, particularmente Platão, Aristóteles e Sêneca.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inferimos de nosso estudo sobre Cassiodoro e o Infante D. Pedro e suas respectivas obras que ambos se portaram como intelectuais por estarem comprometidos com as questões de suas épocas. Ambos buscaram o saber no passado para atuar como conselheiros do governante e propuseram a formação de pessoas que seriam responsáveis pelos caminhos dos demais homens da sociedade.
Cassiodoro, ao criar o mosteiro Vivarium e ensinar aos monges copistas como deveriam copiar, guardar e mesmo buscar pessoas capazes de traduzir as obras antigas, para as conservá-las e permitir a sua disseminação, apresentou um projeto de formação que abrangia o conjunto da sociedade cristã. Sua obra revela, desse modo, a preocupação em salvaguardar a cultura greco-latina e difundi-la aos cristãos.
D. Pedro, por seu turno, ao escrever a Virtuosa Benfeitoria, composto por conselhos dirigidos ao futuro rei, para que pudesse ser um governante justo e zeloso do bem comum, enfaticamente defendeu o princípio de que o conhecimento é condição para a prática de ações virtuosas.
Dessa maneira, ao estudarmos esses dois pensadores depreendemos a importância que os intelectuais podem ter para o desenvolvimento dos seus respectivos tempos históricos e das sociedades a que pertencem. Podemos afirmar que um conselheiro sábio pode fazer toda a diferença no governo de uma nação.
Ambos usam o conhecimento filosófico e cristão do mundo greco-romano como base de seus respectivos projetos formativos, evidenciando, portanto, a importância de se conservar o conhecimento do passado como base da formação dos homens no presente. Eles nos permitem considerar a relevância de uma tradição de conhecimento que foi salvaguardado e por isso possibilitam a conservação de um ‘fundo permanente de humanidade’, preservado pela longa duração do conhecimento filosófico greco-romano e cristão. Esses dois ramos do saber ainda impregnam nossas ações sociais, nossas academias, nossas leis e, por conseguinte, a vida comum. Sob essa perspectiva, os dois textos e seus respectivos autores nos servem de exemplos para entender a importância da História e da História da Educação para a construção de projetos formativos visando a preservação da civilização em um dado tempo histórico.