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História da Educação

versão impressa ISSN 1414-3518versão On-line ISSN 2236-3459

Hist. Educ. vol.27  Santa Maria  2023  Epub 08-Ago-2023

https://doi.org/10.1590/2236-3459/128993 

Seção Especial

INTELECTUAIS E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: DESAFIOS À PESQUISA E À ATUALIDADE EDUCACIONAL

INTELECTUALES Y HISTORIA DE LA EDUCACIÓN: DESAFIOS À LA INVESTIGACIÓN Y A LA EDUCACIÓN ACTUAL

INTELLECTUALS AND HISTORY OF EDUCATION: CHALLENGES FOR THE RESEARCH AND THE ACUAL EDUCATION

INTELLECTUELS ET L’HISTOIRE DE L’ÉDUCATION: DÉFIS À LA RECHERCHE ET À L’ÉDUCATION ACTUELLE

1Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói/RJ, Brasil.


Resumo

O presente texto procura trazer elementos para a reflexão a respeito da crescente circulação da categoria “intelectuais” na pesquisa em História da Educação no meio acadêmico brasileiro. Na primeira parte, apresenta alguns indícios que marcam a emergência da temática e a importância que adquiriu nessa área de pesquisa, a partir da análise dos eixos temáticos norteadores dos Congressos Brasileiros de História da Educação. Na segunda parte, concentra-se na operação historiográfica associada à utilização de categorias de análise da vertente da história dos intelectuais, enfocando alguns dos desafios que se apresentam ao pesquisador. Na terceira parte, aborda aspectos da possível contribuição dos resultados da pesquisa sobre intelectuais na História da Educação brasileira para os debates e desafios que se apresentam aos projetos democráticos de educação na atualidade.

Palavras-chave: intelectuais; pesquisa histórica; História da Educação

Resumen

El presente texto coloca elementos para la reflexión sobre la creciente circulación de la categoría "intelectuales" en la investigación en Historia de la Educación en el ambiente académico brasileño. En la primera parte, presenta algunas indicaciones que marcan el surgimiento del tema y la importancia que adquirió en esta área de investigación, a partir del análisis de los ejes temáticos que guían los Congresos Brasileños de Historia de la Educación. En la segunda parte, se centra en la operación historiográfica asociada al uso de categorías de análisis de la línea de la historia de los intelectuales, centrándose en algunos de los desafíos que se presentan al investigador. En la tercera parte, aborda aspectos de la posible contribución de los resultados de las investigaciones sobre intelectuales en la Historia de la Educación Brasileña a los debates y desafíos que se presentan ante los proyectos de educación democrática en la actualidad.

Palabras clave: intelectuales; investigación histórica; Historia de la Educación

Abstract

The aim of the current study is to present elements for reflections about the growing circulation of category “intellectuals” in research conducted in the History of Education field in the Brazilian academic environment. The first part of it presents some evidence about this topics’ emergence topic and the importance acquired by it in this research field, based on the analysis of thematic axes guiding Brazilian Congresses on History of Education. The second part of it focuses on the historiographical operation associated with the use of analysis categories applied to intellectuals’ history, with emphasis on some of the challenges faced by researchers. The third part of it addresses aspects of likely contributions from research results about intellectuals in History of Brazilian Education to debates held in this field and to challenges faced by democratic education projects, nowadays.

Keywords: intellectuals; historical research; History of Education

Résumé

Ce texte cherche à apporter des éléments menant à la réflexion à propos de la croissante circulation de la catégorie «intellectuels» dans la recherche de l’Histoire de l’Éducation au milieu académique brésilien. La première partie présente quelques indices qui marquent l'émergence de la thématique et l’importance acquise dans ce domaine de recherche, à partir de l'analyse des axes thématiques directeurs des Congrès Brésiliens de l’Histoire de l’Éducation. La deuxième partie se concentre sur l’opération historiographique associée à l’utilisation des catégories d’analyse du volet de l’histoire des intellectuels, tenant comme foyer quelques-uns des défis qui se présentent au chercheur. La troisième partie évoque des aspects de la possible contribution des résultats de la recherche sur des intellectuels dans l’Histoire de l’Éducation brésilienne pour les débats et défis qui se présentent face aux projets démocratiques de l’éducation dans l’actualité.

Mots-clés: intellectuels; recherche historique; Histoire de l’Éducation

Intelectuais e história da educação foram, desde sempre, termos indissociáveis. Como é sabido, nossa área de estudos e pesquisas tem sua identidade construída sobre o esforço de compreender os modos, os critérios de seleção e organização, os materiais e lugares mobilizados nos processos de mediação edificados historicamente na formação de novas gerações, nos seus contextos sociais e culturais. No centro dessa construção histórica, obviamente, estiveram sujeitos individuais e coletivos, apropriando-se e dispostos a colocar em circulação saberes específicos, destinados a cumprir uma gama inumerável de funções intelectuais.

Embora estejamos coletivamente identificados com a grande denominação História da Educação, sabemos que a enorme expansão da pesquisa, propiciada, tanto pelo crescimento da pós-graduação e da educação superior - principalmente, embora não exclusivamente, pública -, quanto pela organização da área de estudos, permitiu e incentivou que vertentes de pesquisa, com temáticas específicas, ganhassem relativa autonomia. Assim, as histórias das disciplinas, dos manuais, das instituições escolares, dos níveis de escolarização, da arquitetura escolar, das correntes de pensamento educativo, dos impressos educacionais etc., alcançaram volume e identidade, com capacidade de geração de eventos; proposição de núcleos e projetos interinstitucionais de pesquisa; de geração de acervos importantes, tanto de fontes, quanto de artigos e livros.

A temática relativa a intelectuais emergiu nessa historiografia, inicialmente, em trabalhos isolados ou imbricada nas pesquisas das vertentes já organizadas. Em verdade, podemos afirmar que nenhuma linha de pesquisa pode ser pensada sem relação com outras tantas, já que as temáticas se entrecruzam, se imbricam, solicitam dados associados a diferentes ângulos de abordagens. Dessa forma, agentes intelectuais demonstraram-se como presença indispensável, quando se tratava de perspectivar diferentes processos educativos sob o prisma da história. Como tratar dos manuais, sem colocar em foco os seus autores? Ou da arquitetura, sem referir os formuladores de projetos? Correntes de pensamento pedagógico foram enunciadas, defendidas ou combatidas, difundidas por pessoas intelectualizadas, empenhadas e capazes de propor experiências e caminhos de ação, mesmo que partindo de pressupostos e portando valores muito distintos entre si. A imprensa pedagógica, assim como a imprensa em geral, tornou-se veículo para expressão de debates, de projetos de escolarização de diversos níveis e tipos. Mesmo nas experiências não institucionalizadas, a ação de propositores e executores, homens e mulheres, foi necessária para que se tornassem fato, trazido à narrativa histórica pelo trabalho de historiadores e historiadoras.

Mas é visível que houve uma mudança qualitativa, algo que se impôs no cenário como uma vertente com alguma especificidade, requerendo uma reflexão sobre as categorias, sobre os modos de abordagem, sobre o diálogo com as fontes. Emergiram narrativas que trouxeram ao centro da cena a preocupação em compreender como e por que determinados sujeitos desempenharam, na construção da história, papéis tão característicos e fundamentais.

A CATEGORIA “INTELECTUAIS” NA PESQUISA HISTÓRICA DA EDUCAÇÃO

Tornou-se evidente o forte interesse que passou a despertar o tema dos e das intelectuais na pesquisa histórica em Educação, que tem resultado em uma produção expressiva de pesquisas, tanto de teses e dissertações, quanto de projetos específicos, conduzidos por historiadores reconhecidos na área. Diante desse cenário, já iniciamos, nesse coletivo que conta com grande organização em fóruns próprios, esboços de avaliação a respeito dos impactos dessa produção no conjunto do conhecimento elaborado sobre a história da educação no Brasil.1

Parece-nos importante buscarmos distinguir, então, mesmo que de forma pouco detalhada, o que marca essa inflexão. Se agentes intelectuais sempre estiveram presentes, de alguma forma, na pesquisa histórica em Educação, o que caracteriza esse movimento renovado de aproximação dessa categoria? A resposta a esta pergunta nos exige estender o campo de observação, tanto em direção aos esforços de renovação e aprofundamento da pesquisa em História da Educação no Brasil, quanto aos campos de diálogo abertos no plano internacional e com outras áreas de estudo e a circulação e apropriação de abordagens que trouxeram novas questões à pesquisa histórica como um todo. Esses âmbitos se entrecruzam nos trânsitos operados na História da Educação no Brasil, que configuram a emergência de uma vertente de pesquisas ocupada em trazer para o centro de suas preocupações a figura dos e das intelectuais.

Escolhemos partir de um indício entre os muitos que poderiam ser tomados como expressão desse trânsito. Buscamos os eixos temáticos dos Congressos Brasileiros de História da Educação, evento organizado pela Sociedade Brasileira de História da Educação2, entidade que emergiu dessa coletividade de historiadores da educação. Vale lembrar que os eixos temáticos são fruto de deliberação coletiva, debatidos e votados em assembleia ou fórum próprio, a partir das sugestões dos historiadores presentes. Pelo levantamento que efetuamos, a partir da página da SBHE, pudemos constatar que a palavra “intelectuais” não aparece nos eixos do I Congresso Brasileiro de História da Educação3. Mas aparece no II Congresso, no eixo “Intelectuais e memória da Educação”4. Desse Congresso, também resultou um livro intitulado “Intelectuais, Estado e Educação”5.

A palavra desaparece nos eixos do III CBHE e retorna no IV Congresso, no eixo “Intelectuais, pensamento social e educação”. Não há registro dos eixos do V CBHE na página da entidade. Mas, por três Congressos seguidos, do VI ao VIII, o eixo “Impressos, intelectuais e História da Educação” permanece. Nos três últimos Congressos, inseriu-se a redação “Intelectuais e projetos educacionais” em um dos seus eixos temáticos.

A escolha desse indicador, admito, pode ser questionada como restrita. Levantamentos de artigos publicados em periódicos especializados, textos de coletâneas e livros de autoria individual, assim como eventos dedicados à temática, poderiam trazer elementos mais consistentes. Mas, não dispondo de tempo para uma pesquisa dessa envergadura, defendo que os eixos temáticos de nosso principal congresso, pela experiência que acumulei participando de várias dessas discussões, expressam, sim, tendências das preocupações e dos enfoques que ganham força em nossa área de pesquisa.

Tomo a liberdade, então, de partir desse dado como apoio para me aproximar daquilo que trago aqui como um “trânsito”, observado por vários de nossos historiadores. Desse ponto de vista, parece-me bastante significativa a distância do título adotado para o eixo do II Congresso - “Intelectuais e memória da educação” - em relação ao que permaneceu nos últimos: “Intelectuais e projetos educacionais”, tendo as formas que associavam “Intelectuais, pensamento social e educação” e “Impressos, intelectuais e História da Educação” ficado no meio desse percurso.

Partiremos da publicação originária do II Congresso, o livro “Intelectuais, Estado e Educação”, organizado por seis historiadoras importantes na nossa área.6 Sua publicação ocorreu no ano de 2006, mas reúne textos das exposições proferidas no congresso de 2002. O tema do congresso havia sido “História e memória da educação brasileira”, e os textos reunidos integraram mesas de diferentes temáticas: uma comemorativa dos 70 anos do Manifesto dos Pioneiros, de 1932; outra intitulada “Intelectuais e memória da educação brasileira”; outra com o tema “Estado, nação e educação”; uma quarta dedicada às categorias “Raça, gênero e etnia”. Um último texto reflete sobre a relação da historiografia com a história e a memória da educação brasileira.

Todos os textos trazem, obviamente, grandes contribuições e as figuras de intelectuais - homens e mulheres - povoam as narrativas que expressam percursos de pesquisa consistentes, descortinando novos ângulos de análise. Mas o que nos interessa assinalar é o que se anuncia nessa publicação como indicador do trânsito para o qual desejamos chamar a atenção. O enfoque sobre sujeitos individualizados aparece somente em dois dos textos, um deles sobre a trajetória de uma intelectual, Armanda Álvaro Alberto, pesquisada por Ana Chrystina Venancio Mignot (2006); o outro focado em Bergström Lourenço Filho, de autoria de Carlos Monarcha (2006). Mas Fernando de Azevedo, Manoel Bonfim e Anísio Teixeira têm traços de suas biografias recuperados para análises, nos textos de Luiz Antônio Cunha (2006) e Marcos Cezar de Freitas (2006), ladeando com professoras de uma colônia japonesa em São Paulo, pesquisadas por Zeila Demartini (2006): dona Akama, dona Celina, dona Ercilia.

Então, o que já podemos observar nessa publicação, aqui tomada como fonte para o problema de investigação que estou propondo, acerca do trânsito na nossa historiografia? Observamos que nomes destacados na nossa historiografia, de intelectuais que ocuparam posições de destaque na edificação e implementação de projetos que conquistaram espaço nas instâncias estatais mantêm seu lugar na galeria dos consagrados “intelectuais da educação brasileira”. Mas o pedestal a que poderiam ser alçados é demolido e as interrogações sobre as contradições em que estavam mergulhados assume a frente das análises, sem que isso ponha em xeque a importância histórica de suas contribuições.

Assim, Luiz Antônio Cunha, focado em pensar a autonomização do campo educacional, tomando o Manifesto dos Pioneiros como fonte, considerado na sua dimensão sociopolítica, reitera seu questionamento sobre a autoria exclusiva do Manifesto assumida por Fernando de Azevedo (2006, p. 45-46), indicando nomes de intelectuais associados à matriz socialista, que poderiam ter influído nos termos mais radicais do texto (2006, p. 47). O protagonismo de Anísio Teixeira (p. 50), de um lado, e Francisco Campos (2006, p. 55), de outro, são recuperados como indicadores das disputas que marcaram o contexto histórico. Dados biográficos de Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira integram os argumentos que amparam a hipótese relativa aos esforços na busca de autonomização do campo educacional.

Anísio volta a aparecer, ao lado de Manoel Bomfim, no texto de Marcos Cézar de Freitas. O tratamento deste autor concentra-se na análise “da dificuldade em realizar transposições conceituais” (2006, p. 85) por parte desses dois intelectuais - Anísio, dos paradigmas estadunidenses, e Bomfim, da matriz francesa (2006, p. 86). Ocupa-se, portanto, das ideias que os dois intelectuais formularam, com foco nas “contradições analíticas” (p. 86) em que se viram enredados, no confronto com a realidade brasileira. Interessa-lhe, fundamentalmente, os itinerários de leituras e de apropriação de vertentes interpretativas, por parte desses dois intelectuais.

Carlos Monarcha debruça-se sobre o relato de Bergström Lourenço Filho, elaborado a partir de sua viagem à cidade de Juazeiro, no ano de 1923, quando trabalhava na reforma de ensino para o governo do Ceará (2006, p. 110-112 e 114). O historiador busca elementos na formação intelectual do reformador paulista (2006, p. 112-113), presentes no modo como interpretou a realidade da cidade nordestina e a liderança do Padre Cícero Romão Batista (2006, p. 117-123). Valoriza o aprendizado que o intelectual manteve com vários intelectuais cearenses, somados ao próprio contato com uma realidade social distinta, como parte de uma “viagem de formação” (2006, p. 119). Mas entende que a marca do pensamento social dominante no meio intelectual brasileiro, desde fins do século XIX, associada ao repertório proveniente do naturalismo científico que fundamentava a perspectiva do debate modernizador, forjaram o alicerce, tanto para a interpretação cunhada nos seus textos, quanto para a recepção calorosa de que foram alvo (2006, p. 122-125).

O texto de Ana Chystina Venancio Mignot avança, em outra direção, no sentido do trânsito que desejo assinalar. Além de enfocar uma mulher, Armanda Álvaro Alberto, sua abordagem é norteada por uma questão que se desloca do plano das ideias para o da própria construção do lugar da intelectual (2006, p. 63). Fruto da sua pesquisa de doutorado, as fontes ganham destaque, pelo acesso conseguido ao acervo pessoal da Armanda. Nesse texto, norteado pela questão acerca da sua inclusão entre as três mulheres signatárias do Manifesto dos Pioneiros da Educação, de 1932, a historiadora demonstra que a fundadora da Escola Regional de Merity já era uma personalidade de projeção na década de 1920, integrando redes de sociabilidade associadas a lutas das classes populares e, em particular, das mulheres, por conquistas que ampliassem seus direitos de cidadania (2006, p. 66 e 68-75). As fontes pesquisadas deram acesso a nomes de muitos homens e mulheres, alguns muito próximos da intelectual, outros participando de entidades e instâncias de direção política nas quais Armanda Álvaro Alberto agia e interagia como intelectual engajada.

O último texto a ser aqui relatado, da coletânea que estamos tomando como fonte, é de autoria da historiadora Zeila de Brito Fabri Demartini, intitulado “Relações interétnicas na prática pedagógica”. Vale notar que o título indica o centro das preocupações de pesquisa da autora: as experiências de escolarização entre grupos imigrantes, no estado de São Paulo, buscando compreender os sentidos emergentes nas formas de troca e apropriação cultural que a escola, nas suas especificidades, oportuniza (2006, p. 163-164). A via de acesso a essa vivência histórica, trazida no texto, concentra-se na biografia de três professoras que atuaram em escolas de colônias japonesas, antes da Segunda Guerra Mundial (2006, p. 166). Uma professora é japonesa, outra é nissei e a terceira é descendente de alemães e italianos. O que nos importa, para a presente análise, entretanto, não é a questão das relações interétnicas, mas a inclusão dessas professoras primárias, na publicação do II Congresso Brasileiro de História da Educação, que buscava discutir a relação entre intelectuais, Estado e educação na história brasileira. Interessa-nos frisar o quanto essa inclusão pode ser tomada como indicador de uma tendência na historiografia da educação, nas últimas décadas, qual seja, a da ampliação do conceito de “intelectual”. Nos dados biográficos das professoras, Zeila Demartini identifica que a primeira delas, formada ainda no Japão, criou uma escola em São Paulo, com um projeto de formação das mulheres japonesas das novas gerações nascidas no Brasil (2006, p. 167-169). A segunda escreveu e publicou poemas, tendo recebido uma crítica elogiosa por parte do poeta Guilherme de Almeida (2006, p. 170-174). A terceira comparece com a sua elaboração oralizada do aprendizado e presença no ensino da língua portuguesa aos imigrantes japoneses (2006, p. 175-183).

Fiz questão de trazer algum detalhamento dos textos que compõem essa coletânea, com o objetivo de destacar as escolhas de seus autores, com relação aos aspectos a serem selecionados na aproximação dos intelectuais que colocavam em foco. Tomado aqui como signo de um tempo na historicidade de nossa produção textual coletiva, o livro resultante do II CBHE anunciava, a nosso ver, algumas tendências da pesquisa histórica em educação no Brasil, quais sejam: os intelectuais já reconhecidos por uma liderança destacada no campo educacional passam a ser interrogados a partir de novos ângulos das suas trajetórias e as articulações que as caracterizaram, em diversos âmbitos; intelectuais de menor projeção passam a receber atenção nas suas iniciativas; as mulheres são alvo de uma consideração específica na historicidade dos enfrentamentos que precisaram efetuar; as categorias profissionais aliadas ao magistério são perspectivadas a partir do grande leque que abarca a denominação “intelectuais”.

Apesar de a palavra “intelectuais” ter desaparecido dos eixos temáticos do III CBHE7, com certeza, muitos trabalhos apresentados no Congresso, em sessões coordenadas ou não, debruçavam-se sobre aspectos dessa categoria analítica. O movimento teórico que encaminhava os historiadores da educação a se debruçarem sobre esse segmento só tendeu a crescer e ganhar consistência. A formulação atual, presente desde 2017, que associa “intelectuais” e “projetos educacionais” denota uma ampliação da abrangência das interrogações que trouxeram para o centro das pesquisas a ação individual, logicamente inserida em coletivos, de homens e mulheres, que exigia uma compreensão que considerasse os aspectos complexos de sua própria existência, imbricados às circunstâncias sócio-históricas em que estavam mergulhados.

Após os primeiros trabalhos, elaborados como teses, que desafiaram o arcabouço estruturalista e tomaram, como objeto de estudo, biografias de intelectuais do campo educacional8, abriu-se uma senda produtiva, que se enriqueceu com as novas perspectivas teóricas, cada vez mais presentes no campo intelectual brasileiro. Os historiadores da educação valeram-se desse patrimônio para penetrar em âmbitos dos temas de seu interesse por novos ângulos, além de se verem com possibilidades de descortinarem projetos e realizações caídos no esquecimento, passíveis de serem iluminados pela articulação com as trajetórias de intelectuais.

Por essa via, muitos atores foram trazidos à cena histórica, transformando profundamente o cenário geral do que se convencionou nomear como “intelectuais da educação”. A distribuição territorial dos grupos de pesquisa já vinha redesenhando a configuração de processos significativos dessa história. A atenção despertada pelo foco na categoria “intelectuais” atuou como estímulo à incorporação de muitos agentes, demonstrando a potencialidade de iniciativas locais. A variedade de vínculos, entre a dimensão local e a nacional, emergiu comportando níveis que só poderiam ser descortinados no acompanhamento aparentemente circunscrito de percursos individuais. Sujeitos, por vezes, inimaginados, como pessoas pretas, mulheres, indígenas, imigrantes etc., passaram a ocupar a cena da narrativa histórica, com o registro de protagonismos antes insuspeitados.

Mas o que nos parece mais significativo nesse trânsito, para além dessa ampliação, é o conjunto de novas interrogações ou, melhor dizendo, os novos lugares a partir dos quais se passou a formular as questões a serem investigadas. Ao trazer para os sujeitos o olhar que pode conduzir a investigação, as pesquisadoras e pesquisadores da história da educação depararam-se com a oportunidade de rever linhas interpretativas e chaves de leitura assentadas na historiografia. Fatos surpreendentes na sua desafiadora novidade enriqueceram o campo de possibilidades que confrontaram, em contextos históricos diversos, tendências hegemônicas, projetos dominantes e parâmetros socioculturais enraizados.

Por outro lado, cabe manter o cuidado, para que uma vertente que se apresenta com tanta potencialidade não se esvazie em fórmulas aparentemente consensuais, que empobreçam os resultados de pesquisa. Com o objetivo de contribuir no sentido da manutenção da fertilidade dessa via, que pode e, com certeza, continuará gerando uma produção historiográfica instigante, trago alguns desafios que percebo a partir da minha própria prática de pesquisa envolvendo a categoria “intelectuais”.

OS MEANDROS DA PESQUISA COM HISTÓRIA DOS INTELECTUAIS

Os estudos das décadas finais do século XX mergulharam em buscar compreender as especificidades das relações sociais pertinentes à categoria “intelectuais”, a partir de novos ângulos e ferramentas conceituais que auxiliassem a percebê-los para além da aura construída no imaginário social, desde o século XIX, em torno dessas figuras.

Sem dúvida, a responsabilidade de gozar de uma posição, que é privilegiada, de manejo de formas mais sofisticadas de pensamento, que incluem não só conhecimento, mas um conjunto de operações mentais que não se encontram disponíveis para a grande maioria da humanidade, pressiona por uma reflexão ética inevitável. A relação entre ideias e realidade social revolve o solo do movimento da história, interrogando sobre as possibilidades de interferência no curso dos acontecimentos. A aproximação ou o distanciamento dos mecanismos que envolvem os poderes e as relações de força assombram a atividade intelectual de variadas formas. A vida é posta em risco de modo mais ou menos consciente, como se isso fosse fundamental para fazê-la valer a pena. (CHOMSKY, 1969; BASTOS e RÊGO, 1999; LOURAU, 2001; SAID, 2005)

Não se trata de resvalar para uma visão romantizada dos intelectuais que sabemos serem, muitas vezes, cooptados, manipuladores, incoerentes, competitivos, ávidos de um poder bem maior do que aquele que advém da palavra que encontra acolhida no público. Mas temos de reconhecer que o risco do degredo, da prisão, da morte física, assim como o da desmoralização, do desconcerto e do esquecimento rondam as trajetórias intelectuais, como parte intrínseca da sua realização no mundo social. Nas malhas do poder, o artifício do argumento, da busca de novos ângulos, da revelação de realidades que se queiram ocultar tornam-se ameaças e instigam represálias. Hoje, como em tempos passados, intelectuais comprometidos com valores e propostas associadas a uma ética humanizadora correm riscos e sofrem perseguições.

Na expansão dessas novas frentes de pesquisa, várias vertentes teórico-metodológicas demonstraram-se úteis e marcam presença na produção acadêmica, não somente nos textos que publicizam resultados de pesquisas, mas em artigos que buscam explicitar seus conceitos e modos de operá-los no diálogo com as fontes. Eu tenho concentrado meus estudos e prática de pesquisa na história dos intelectuais, de matriz francesa, adotando, principalmente, suas indicações metodológicas.

Com base nos autores dessa vertente, com destaque para Jean-François Sirinelli, três categorias têm organizado os passos na linha de pesquisa que temos adotado (ALVES, 2017 e 2019): itinerários de formação, redes de sociabilidade e geração. Tive oportunidade de escrever sobre elas em artigos publicados. Nesta conferência, optamos por trazer algumas reflexões a respeito de sua operacionalização no ato de pesquisa, a partir da experiência que vivencio atualmente. Neste momento, juntamente com dois colegas credenciados à Linha de Pesquisa Intelectuais, Juventudes e Educação Democrática, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, onde atuo, estou participando de uma experiência que vem adquirindo grande significado na minha construção, não somente como pesquisadora, mas como pessoa.

Eu, o prof. Elionaldo Fernandes Julião e o prof. Marcos Marques de Oliveira estamos auxiliando o Prof. Osmar Fávero, hoje com 89 anos de idade, a escrever a sua autobiografia. Trata-se, portanto, de um trabalho de história oral, pois estamos realizando gravações do seu relato, em encontros realizados na sua residência, cada um deles dedicado a um momento da sua vida, contando não somente com a sua memória pessoal, mas com seu acervo pessoal, que reúne fotografias, materiais impressos e objetos de recordação familiar. Penso que podem imaginar como está sendo fascinante e rica essa oportunidade.

Nesta exposição, escolhi partilhar alguns aprendizados e exercícios teórico-metodológicos que esse empreendimento tem me possibilitado experimentar e que podem ser úteis para colegas que aqui encontro. Não tratarei da metodologia da história oral, embora seja pertinente pressupor que estamos lidando com ela (FERREIRA e AMADO, 2005). A atenção estará concentrada nas três categorias que enumerei anteriormente, procurando identificar como elas podem auxiliar-nos na leitura dos dados que se apresentam nos relatos, mas, também, nos desafios que encontramos na sua operacionalização. Vale relembrar as linhas gerais do tratamento dessas categorias, para que não percamos de vista a que se refere cada um desses termos.

Podemos iniciar pela categoria relativa a itinerários de formação, que Sirinelli reconhece ter origem na percepção de René Remond sobre a necessidade de se recolher itinerários intelectuais, de um número significativo de indivíduos em posições representativas, para se obter maior precisão na abordagem das tendências de pensamento (SIRINELLI, 1986, p. 101). Sirinelli considerou essa via na sua potencialidade para se compreender como se constroem os intelectuais, de modo a se evitar a projeção de uma representação do sujeito a partir do presente para o passado, como se aquilo que seria o seu futuro já estivesse determinado e se buscasse somente os elementos confirmadores do que veio a se tornar. A reconstituição de itinerários também foge à simplificação do acaso, na medida em que aposta na contextualização dos momentos do percurso. Muitos aspectos da vida cotidiana ganham valorização para a pesquisa histórica, quando se busca compreender a edificação de interesses e sensibilidades, a partir da inserção do indivíduo em múltiplas dimensões espaço-temporais.

Trazendo para um exemplo vivenciado no projeto de biografia do professor Osmar Fávero, há uma passagem que nos ajuda a trazer para a prática da pesquisa. No seu primeiro relato, o nosso intelectual afirmou: “Cresci em uma casa que não tinha livros.” No encontro seguinte, porém, ele quis retornar ao tema, tratando de retificar: “Eu disse que cresci em uma casa que não tinha livros, mas meu avô lia o jornal diariamente e comentava as notícias.” A retificação trazia um dado importante, do qual o intelectual tinha consciência: a presença do texto impresso, desde a sua primeira infância, no cotidiano do seu ambiente familiar. Um fato que poderia ser desprezado adquire, na história dos intelectuais, um lugar de significado particular na persecução do itinerário de formação do intelectual.

Mas, para que ganhe sentido na análise, precisa ser associado a um conjunto de traços que o historicizem. O avô do Osmar era um agricultor, sitiante, produtor de alimentos para um mercado próximo, posição que, no Brasil de meados do século XX não garantiria o hábito da leitura. A situação de imigrante italiano precisa ser agregada para compor o cenário de acesso ao letramento e interesse pelos acontecimentos que envolviam, sobretudo, sua nação de origem, onde crescia o movimento fascista e as tensões que desaguaram na Segunda Guerra Mundial. Também cabe destaque o fato de ser o representante do sexo masculino, na posição de patriarca, esse leitor de jornal diário. São simbologias que atravessam o acontecimento cotidiano que, tendo ocupado, na memória individual do sujeito, um lugar que não pôde ser contornado, despertam no historiador a atenção com o papel que desempenharam no itinerário de formação do intelectual.

A recomposição dos itinerários de formação não pode se restringir, portanto, à vivência escolar, mas encontra na escola um espaço de enorme importância. Essa instituição necessita, entretanto, ser historicizada para que a sua presença na construção do sujeito intelectual não se torne anódina. Não basta, então, uma informação que nomeie as escolas sem situá-las no contexto de escolarização em que se inserem, na relação com o processo mais geral e no quadro das escolas de mesmo tipo. À formação escolar deve ser agregada aquela obtida no meio social e familiar, de modo a enriquecer a percepção sobre o impacto da origem social, assim como dos grupos de pertencimento na condução das buscas, das escolhas e das afinidades (ALVES, 2017, p. 116).

No relato de Osmar Fávero, emerge com força a expectativa das famílias da cidade onde cresceu, no interior de São Paulo, pela chegada do ginásio público. Ele integrou a primeira geração a ter essa oportunidade, frente à inexistência de instituições desse tipo em uma localização geográfica que permitisse a frequência. Mas não bastava a existência da instituição escolar naquele sítio urbano. Além de terem de esperar por sua instalação alguns anos após a conclusão do então ensino primário, os jovens da cidade precisaram se preparar para enfrentar os exames de admissão àquele nível de um ramo de ensino que, mesmo se difundindo, preservava as características de destinação a uma elite intelectual. Para vários deles, o trabalho se impunha como condição de sobrevivência, tornando impossível uma dedicação exclusiva aos estudos que lhes permitisse usufruir daquela escolarização que se estendia.

Para além das dificuldades vivenciadas por parte das famílias residentes na própria cidade e seus arredores, o embate com as forças políticas que se opunham ao crescimento da escola pública se fazia presente nas vivências juvenis. É muito viva, para nosso depoente, a lembrança dos sermões dominicais do padre católico detratando o ginásio que se anunciava, bem antes mesmo de sua instalação. A luta da Igreja Católica pela preservação de seu espaço privilegiado de fornecer o ensino secundário, mais do que comprovada na pesquisa histórica em educação no Brasil, evidencia-se nessa memória persistente, que marcou o itinerário de formação de nosso intelectual. Pode-se, até mesmo, levantar a hipótese - que exigiria muito cuidado, logicamente, da parte de quem faz a pesquisa - de que o padre, contrariamente às suas intenções, plantou uma interrogação no espírito do futuro intelectual que o ouvia: “Por que o padre diverge tão frontalmente de algo que se apresenta como um desejo tão importante para a comunidade de quem ele deveria cuidar?” Como parte do itinerário de formação, aquele confronto mais teria contribuído para formar o espírito crítico do que para plantar uma adesão àquela visão de mundo.

Itinerários de formação imbricam-se a redes de sociabilidade, embora guardem distinções enquanto categorias de análise (ALVES, 2017, p. 117). Os itinerários acompanham a trajetória individual, enquanto as redes de sociabilidade emergem dos encontros, configurando práticas coletivas e identidades grupais. Para isso, o mapeamento dos elos de ligação com pessoas e lugares demonstra-se como um trajeto potente na pesquisa, com vistas a interrogar que forças de atração orientam a organização coletiva e movem as ações dos grupos intelectuais. Nesse sentido, cabe identificar as representações em torno das quais se organizam projetos comuns, assim como as práticas que viabilizam a existência dos grupos, tais como a correspondência, a presença em determinados lugares, a publicação em periódicos etc. (CHAUBET, 2003, p. 186).

No exemplo da frequência ao ginásio que chegava à cidade, torna-se possível identificar a interrelação entre as três categorias elaboradas no âmbito da história dos intelectuais, quais sejam, itinerários de formação, redes de sociabilidade e geração. Lugares e constituição de redes de sociabilidade estão presentes no itinerário de formação, contextualizados no interior de uma história geracional (SIRINELLI, 1994 e 2008). O ginásio levou, para a cidade, um conjunto de professores e professoras que passaram a conviver com os jovens, para além das salas de aula, pois, em boa parte, eram pessoas que para lá se mudaram, ou se hospedavam temporariamente nos dias em que ali trabalhavam. A oportunidade de ter chamado a atenção, de um professor, o gosto pela leitura do jovem Osmar, a quem passou a apresentar obras de escritores brasileiros, para ele até então desconhecidas, exemplifica esse cruzamento. No ginásio, configura-se uma nova rede de sociabilidade, que enriquece o itinerário de formação, mas que só pode ser compreendida a partir da vivência histórica de uma geração.

Também nessa memória é possível identificar a delicadeza do conceito de geração. Como assinalam os historiadores dessa vertente, não se trata de uma configuração simplesmente demarcada por uma faixa etária (ALVES, 2017, 119-121). Quando tratamos de uma geração intelectual, estamos delimitando um grupo que teve sua ação coletiva oportunizada por circunstâncias históricas de diferentes dimensões. Assim, na vivência particular de um intelectual, encontramos acontecimentos que foram comuns a muitas outras trajetórias de mulheres e homens que viveram em determinada época e integraram coletivos engajados em determinada conjuntura. A difusão de ginásios públicos, por exemplo, demarcou uma inflexão na história de famílias de trabalhadores brasileiros, nas quais pais, avós e mesmo filhos mais velhos encerraram sua escolarização bem cedo ou nem tiveram possibilitado o acesso ao letramento. Trata-se de um acontecimento que poderia ser desvalorizado, frente às mudanças políticas e econômicas de grande amplitude, mas que ganha o seu lugar na análise da pesquisa histórica sobre os intelectuais, contextualizado na relação com os âmbitos sócio-políticos, culturais e econômicos.

Basta que observemos a presença recente de uma quantidade expressiva de jovens intelectuais negras e negros, assim como mulheres e homens indígenas, na cena brasileira, para constatarmos o papel da escolarização no desenho da cultura política. As lutas democráticas, de setores majoritários da classe trabalhadora no Brasil, confluíram historicamente para a demanda por escola, atingindo o patamar de conquistas configurado pelas cotas no acesso ao ensino superior público. A história das gerações intelectuais é marcada por embates os mais diversificados, complexos na sua magnitude e movimentação, o que a torna de grande interesse para a compreensão do presente e os desafios com que convivemos na atualidade.

HISTÓRIA DOS INTELECTUAIS: REFLEXÕES PARA A ATUALIDADE

Somando-se a vozes e preocupações de vários outros intelectuais, Jean-François Sirinelli expressou, em 2010, sua observação com relação à “mutação cultural sem precedentes” por que passava o panorama intelectual no mundo, atravessado por processos decorrentes da mudança nas formas de circulação do saber. Referia-se, é claro, à crescente penetração dos meios digitais, amplificando o espaço da oralidade e da imagem, e reduzindo o espaço do texto escrito. Preocupava-se, em particular, com a desestabilização do meio acadêmico francês, em virtude da penetração de um padrão anglófono, associado a mecanismos de avaliação dos pesquisadores, ao mesmo tempo em que se reduziam os postos de trabalho e se esgarçavam as relações na comunidade intelectual de seu país (SIRINELLI, 2011). Sua perspectiva crítica fundava-se na percepção histórica consolidada em anos de liderança de uma importante frente de pesquisa sobre essa temática.

Doze anos depois, relendo suas palavras, sinto-me provocada a tomá-las como ponto de partida para uma reflexão incontornável sobre o que estamos vivendo hoje como repercussão desdobrada daquilo que já se apresentava como ameaça a essa configuração contemporânea que assumiu um lugar na história: a personagem intelectual. Penso que o Brasil, este país para o qual se voltam as atenções de boa parte do mundo intelectualizado neste momento histórico por que passamos, transformou-se em uma espécie de laboratório, em que a experiência relativa aos processos que preocupavam Sirinelli assumiram uma forma radical.

Contraditoriamente, essa radicalidade decorreu justamente da potencialidade de resistência que aqui se desenhou e que surpreendeu o mundo. Vou tentar explicar melhor essa minha percepção (que não é exclusivamente minha, mas que não estou tomando de ninguém em particular). Quando li aquele texto do Sirinelli, em 2010, em estágio pós-doutoral em Paris, com bolsa do CNPq, a realidade do meio acadêmico brasileiro parecia bastante distante do que eu presenciava no meio francês. A distância de nossa posição no Sul global em relação àquele Norte imperialista que sempre guardara uma conotação que nos posicionava no polo negativado, desguarnecido, menorizado, adquiria um formato novo e inusitado.

Entendi a preocupação de Sirinelli a partir do que eu estava presenciando naquela experiência renovada, anos após ter vivenciado a bolsa de doutorado sanduíche na mesma cidade de Paris. Era muito evidente, por exemplo, o estrago que o Acordo de Bolonha, que unificou a estrutura da universidade nos países da União Europeia - impondo um modelo que não cabe tratar aqui agora - havia promovido no meio universitário francês. O nível de participação dos estudantes em aulas da Sorbonne, como nos seminários da École de Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, sofrera uma queda assustadora. O entusiasmo que me encantara anos antes havia cedido lugar a um desinteresse, uma apatia e demonstrações de desconhecimento antes impensáveis naquelas instituições marcadas por um rigor reconhecido historicamente.

Mas, enquanto aquele historiador constatava a redução dos postos de trabalho na universidade francesa, assistíamos, no Brasil, ao ingresso de jovens pesquisadores, em concursos para universidades públicas, tanto novas, quanto antigas em expansão. Uma nova geração intelectual se punha em cena, para suceder a minha geração, usufruindo de conquistas sonhadas por nós, que sobrevivemos ao período ditatorial, e efetivadas para a geração seguinte. Nessa nova geração, as características étnico-raciais adquiriram, finalmente, novas tonalidades, com a emergência de uma intelectualidade negra e indígena, que pôde penetrar no debate, não só acadêmico e cultural, mas social e político, com grande qualificação. Periódicos, livros, eventos científicos se multiplicavam, consolidando áreas de pesquisa, dentre as quais a História da Educação, colhendo resultados dos anos anteriores e plantando para o futuro. Contando com financiamento público, a pesquisa realizada no Brasil, por pesquisadores formados aqui, nas mais diversas áreas de conhecimento, ganhou novos espaços de circulação e reconhecimento internacional.

Sabíamos que tais conquistas não se materializavam como um privilégio de setores intelectualizados. Estavam articuladas a um projeto nacional mais amplo, que, mesmo sujeito a críticas e demonstrando-se problemático em vários aspectos, evidenciava avanços inegáveis, sobretudo no que dizia respeito à educação, no sentido mais amplo desse termo. O espaço concedido à pesquisa adquiriu sua expressão simbólica mais significativa fora das universidades. O que quero dizer com isso? Sabemos todos que as universidades públicas compõem a maior rede de pesquisas do país, seguidas por alguns institutos e fundações importantes. Mas o resultado de pesquisa que sintetizou o novo tempo e, ao mesmo tempo, chamou a atenção para a extensão ameaçadora que poderia assumir o projeto como um todo foi, sem dúvida, a descoberta dos campos de petróleo na costa brasileira, pelos pesquisadores da Petrobrás. A descoberta, no ano de 2006, apresentou ao mundo uma reserva inimaginada do produto mais cobiçado do planeta.

Mas por que eu fui parar no petróleo? O que isso tem a ver com a nossa discussão a respeito dos intelectuais? Tomo aqui a descoberta do pré-sal como uma espécie de ícone que sintetiza, ao mesmo tempo, a potencialidade de conquistas e a sede de destruição que se projetou sobre o que vinha sendo edificado. O pré-sal é resultado de trabalho intelectual, de hipóteses de pesquisa por longo tempo desacreditadas, que ganharam permissão, financiamento, publicização. Sabendo que foi a cobiça por essas reservas e a necessidade imperialista de impedir que o Brasil mudasse o seu patamar de inserção nas relações de poder em nível internacional que estiveram no centro da motivação do golpe de Estado, em 2016, parece-me possível dimensionar a preocupação expressa por Sirinelli, no passado recente, a partir de um novo ângulo.

Isso porque, no momento atual, a experiência de corrosão do trabalho intelectual parece ter assumido, aqui, a forma de um projeto que costura todas as pontas em um enredo para o qual se pretende um final já previsto. Para aprofundar essa reflexão, é necessário retomar os elementos históricos presentes na emergência da categoria dos intelectuais tal como identificada na pesquisa contemporânea.

A figura do intelectual, como uma construção histórica, reconhecida pelos estudiosos dessa temática, surgiu no contexto de emergência da sociedade burguesa. O século XVIII é tomado como um momento chave nesse processo, pelos pesquisadores da vertente francesa da história dos intelectuais, que ali reconhecem um trânsito de nova qualidade.

Escolarização e emergência da intelectualidade são processos históricos que se imbricam de muitas maneiras. A mais evidente delas diz respeito ao papel da escola, não somente como agência que introduz o indivíduo ao mundo letrado, mas legitima sua participação na vida social em um patamar distinto, conferido pelo domínio do código linguístico, assim como de outros códigos que dele se desdobram ou com ele se relacionam. Quando se elege, portanto, o século XVIII como aquele em que se pode observar um câmbio significativo na relação entre os produtores de materiais intelectuais e os espaços sociais, é preciso lembrar que, naquele século, também o lugar da escola passou a ser concebido de um modo novo, associado ao papel do Estado e à noção de público que se difundia no âmbito de uma concepção que fundava o conceito de cidadão.

A formação dos intelectuais tornou-se cada vez mais associada a percursos escolarizados, porque a escola se impôs como mediadora no acesso ao acervo cultural. Além de mediadora, ela conquistou um lugar importante na legitimação daquilo que seria digno de ser considerado como representativo, significativo, passível de incorporação ao acervo cultural selecionado e hierarquizado. Logicamente, essa é uma história marcada por muitas disputas, onde os conflitos ocuparam um espaço considerável, porque não há legitimação possível sem exclusões, sem apagamentos, sem subalternização, pois está sempre amalgamada às relações de poder. A educação escolarizada legitima quando certifica, legitima quando seleciona, legitima quando põe em circulação.

Mas, talvez, a dimensão mais intensa em que escolarização e intelectualidade se imbricam esteja na formação de públicos. Nesta dimensão, a pesquisa histórica em educação compromete-se e contribui sensivelmente para a história dos intelectuais enquanto campo de estudos. Na verdade, a atividade intelectual e o lugar que os intelectuais passaram a ocupar na cena histórica contemporânea estiveram intimamente ligados à sua capacidade de influir nos acontecimentos, por meio da relação com uma audiência, constituída de leitores e ouvintes. A escola constituiu-se na grande formadora dessa plateia que passou a consumir e interagir com textos, imagens e formas artísticas com interesse crescente.

No centro dessa intensa atividade, catalisando os esforços de criação, circulação e apropriação desses produtos, encontrava-se o imaginário de nação para o qual deveriam confluir as representações em disputa. Tratava-se de disputas intensas, que comportaram enormes graus de violência, sempre descortinados pelos historiadores. A atividade intelectual, de forma alguma, esteve delas apartada, e a noção de “engajamento” trazida para a análise histórica, como parte da caracterização da categoria “intelectuais” demonstra isso. Trabalho intelectual e cultura política compõem uma espécie de massa a ser moldada, adquirindo formas complexas, não necessariamente previsíveis, de estabilidade variável, sempre imbricadas com confrontos de variadas dimensões.

A pesquisa histórica da educação no Brasil, para nos restringirmos à “parte que nos cabe nesse latifúndio”, já reuniu um extenso patrimônio de memória sobre a relação entre intelectuais e projetos de nação, suficiente para demolir qualquer formulação simplória. Muitas mulheres e muitos homens colocaram-se em ação, mesmo antes do século XIX (quando se demarca o rompimento da submissão ao Império Português), mas sobretudo a partir dele, na edificação de possíveis projetos de nação, que requisitavam intelectuais da educação.

Não cabe aqui inventariar o rol de descobertas da pesquisa histórica, obviamente, porque seria impossível cumprir essa tarefa. Também tenho certeza de que cada pessoa desse público que agora me ouve consegue acessar ao seu repertório particular de leituras e estudos, que trazem à mente uma multiplicidade imensa de relatos de experiências do campo educacional, conduzidas nos mais diversos pontos desse território nacional que herdamos, em diferentes tempos e circunstâncias, sempre em meio a embates e dificuldades, com realizações e frustrações, viabilizando projetos associados a correntes pedagógicas, forças políticas e sociais, grupos religiosos, interesses econômicos, enfim, um panorama histórico cada vez mais difícil de ser submetido a uma síntese narrativa.

O que me interessa reter desse conjunto multifacetado é a unidade conferida pelas disputas em torno dos projetos de nação e o lugar simbólico que o conhecimento passou a ocupar nessa construção. Esse me parece, sem dúvida, um ponto que pode ser trazido para iluminar, não somente o processo histórico mais amplo, mas a especificidade de sua realização em território brasileiro. Esclareço que o meu objetivo se concentra em buscar uma possível contribuição do conhecimento que produzimos com as nossas pesquisas sobre as relações entre intelectuais e educação - que abarca muitos ângulos - para as leituras a respeito das tramas que envolvem hoje o trabalho intelectual. Afinal, o nosso próprio engajamento, como intelectuais, nos constitui como sujeitos históricos.

Referi anteriormente minha própria experiência de pesquisadora que viveu as oportunidades de formação e intercâmbio em um país do norte global, em um momento fértil para um certo projeto nacional. Financiar a educação e a pesquisa, sabemos muito bem, é uma decisão política que nunca gozou de um acordo consensual entre as classes dirigentes deste nosso país. É consensual, entretanto, a percepção de que o momento histórico em que isso se processou com maior fôlego foi sucedido de uma desmontagem tão acelerada quanto avassaladora.

Mas o meu interesse aqui não está vinculado a uma possível avaliação. Desejo chamar a atenção para a conexão da nossa experiência presente com a observação de Jean-François Sirinelli (2010) com relação à mutação por que passava o trabalho intelectual e os riscos que ela trazia. Sabemos que essa reflexão não se inaugurava ali, e que seguiu avançando após aquele momento. Selecionei a observação desse autor, sobretudo, pelo seu vínculo com o tema que nos interessa: a história dos intelectuais. Mas penso que temos, principalmente, uma contribuição própria a acrescentar às suas preocupações, a partir da experiência recente, neste lugar do Sul global. O que presenciamos talvez não encontre parâmetros de comparação em outro país do mundo, pela radicalidade e rapidez com que saímos de um polo a outro.

Vivíamos um momento histórico em que a rede escolar, não somente pública, ampliou-se de maneira evidente. Como estamos tratando do meio intelectual, vou me restringir às evidências vivenciadas pelos historiadores da educação. Nos anos iniciais do século XXI, tornamo-nos uma comunidade numericamente superior às dos demais países integrantes dos principais organismos e eventos dessa área de estudos. Nos eventos ibero-americanos, a diferença era gritante. Na Reunião da International Standing Conference for the History of Education (ISCHE), de 2007, o número de pesquisadores brasileiros já era o dobro da segunda nacionalidade mais representada, a francesa. Não tenho pesquisa que possa trazer dados mais atuais, mas uma visão geral, mesmo que superficial, retrata a intensidade da circulação de pesquisadores brasileiros e seus trabalhos, pela comunidade internacional.

Talvez nem tivéssemos a medida da força em que nos constituímos! Veio o golpe de 2016 e uma das primeiras medidas do novo governo foi a relativa ao “teto de gastos”, que atingia diretamente os investimentos em Educação. Movimentos organizados da sociedade civil ganharam força nos seus ataques à escola, representados pelo chamado “Escola sem partido”. Outras reformas se sucederam, afetando o conteúdo da Educação Básica, assim como a formação de professores, mas boa parte dos intelectuais não parecia perceber o risco que se anunciava. O plano só seria completamente desnudo a partir de 2019. Os ataques à universidade pública foram desencadeados logo de início, inaugurando um ciclo de medidas políticas que, para além de retirar recursos, dirigiam-se a abalar todos os alicerces institucionais que resultaram de décadas de investimentos públicos. Não vou aqui listar os fatos que são do conhecimento geral da comunidade científica, da qual fazemos parte.

Para esta nossa reflexão, darei destaque a dois fatos, dentre os muitos assinalados pelos intelectuais da educação que têm se dedicado a analisar as ameaças que se projetam sobre a educação escolar no Brasil: o primeiro deles, a difusão das escolas cívico-militares; o segundo, a penetração das plataformas digitais para cursos presenciais e a distância, que tomaram conta do mercado educacional. Selecionei esses dois elementos por identificar neles um potencial de revelação de um aspecto para o qual a História da Educação, na vertente concentrada nos intelectuais, pode aportar uma contribuição particular.

Nas nossas pesquisas, intelectuais são tomados como sujeitos históricos que desempenharam papéis fundamentais em um processo que se apresenta como cultural, mas que é pensado como também político, social, econômico (ALVES, 2019). Há, porém, um pressuposto dessa centralidade que se torna indispensável para compreendê-la, e que se refere ao lugar assumido pelo conhecimento. As disputas que atravessaram a construção histórica das disciplinas escolares, que se constituíram em espaços privilegiados para a intervenção intelectual, foram movidas por um valor atribuído à busca de conhecer, que se confrontava com narrativas fundadas em tradições, sobretudo, na tradição religiosa.

Basta lembrar o confronto entre a teoria da evolução das espécies, formulada por Charles Darwin, com a narrativa bíblica de criação do ser humano, que ainda disputa a legitimidade com relação ao que deve ser ensinado às novas gerações, em pleno século XXI. Pois, bem, a interrogação da realidade, na intenção de compreender o vivido de modo liberto das explicações sacralizadas plantou, como sabemos, o alicerce do que se constituiu como ciência na modernidade. A pesquisa histórica sobre a educação demonstrou como os espaços escolares, não somente abrigaram, mas tornaram-se solo fértil na produção de conhecimentos em vários níveis.

Isso porque o aprender superou o catequizar, e gerou todo um campo de criação e formulação de hipóteses e experiências sobre o que, como, quando e por que aprender. Intelectuais da educação foram sujeitos históricos que se sentiram convocados, compromissados, atraídos, surpreendidos ou provocados por essa quebra de fronteiras, estivessem eles posicionados em qualquer dos exércitos em luta por uma fatia de poder de influência no rumo a ser tomados pelos debates.

A imagem de “exércitos” que aqui trazemos, entretanto, mantém uma distância fundamental em relação às escolas cívico-militares que se multiplicam no território brasileiro. Além do sentido figurado, a metáfora está referida aos exércitos modernos, que atuaram, também, como agentes do conhecimento científico, enquanto desempenhavam seu papel de forças de repressão (ALVES, 2010).

As escolas cívico-militares da atualidade - que recorrem, sem dúvida, à elegia à repressão - fazem mais do que retroceder a métodos disciplinares exaustivamente criticados por sua violência - tanto psicológica, quanto física. Esse projeto, em verdade, desloca o valor do conhecimento para um patamar de desqualificação, enquanto o comportamento disciplinado é erigido ao ideal por excelência e em si mesmo, a ser atingido pela educação escolarizada. Um conjunto de sentidos emergem dessa configuração, que apontam para o não-lugar daquele agente intelectual caracterizado por perguntar, contradizer, argumentar, duvidar, desorganizar, criar, inventar, testar, experimentar, enfim, os muitos e variados movimentos inseridos no ato de pensar. A mensagem mais profunda daquilo que se configura no projeto educativo dessas escolas é: “Não pense! Obedeça!”

Por outra via, assistimos à crescente penetração de uma mercadoria que, sobretudo após a pandemia do coronavírus e aproveitando-se dela, adentra a escola, nos seus diversos níveis, com maior presença nos níveis mais avançados, o Ensino Médio e a Educação Superior. Trata-se das plataformas digitais, que oferecem aulas prontas, como produtos a serem consumidos, e que não se restringem aos cursos no formato de Educação a Distância. Mesmo cursos presenciais passaram a recorrer a essas ferramentas, inclusive em cursos superiores. O efeito de empobrecimento, sob a onda de unificação das aulas, pode ser percebido de forma imediata.

O conhecimento perde a sua dimensão dinâmica, daquela incerteza que se encontra na base dos questionamentos que provocam o recurso à atividade mental. A abordagem está pré-determinada. Os conteúdos foram selecionados de modo apartado da interação entre professores e estudantes. Os limites foram estabelecidos a partir de fora, até mesmo do país, sem comportar qualquer adequação a uma realidade pedagógica considerada como uma experiência em aberto no tempo.

Essa mercadoria generaliza, por consequência, a própria representação da educação como mercadoria. Não por acaso, ganha maior circulação na rede privada de ensino, moldando-se e atendendo aos anseios de conquista de mercados.

Para nós, historiadores da educação, não é difícil depreender as consequências, para a história futura dos intelectuais da educação, assim como dos intelectuais em geral, caso essas tendências alcancem o nível de consolidação que parecem buscar. Nas “novas formas de circulação do saber” evidenciam-se as novas estratégias de negação do acesso ao saber. Inverte-se a equação que pautou o processo histórico de expansão do saber escolarizado, no rastro do método moderno de construir conhecimento, que tomou sua forma mais acabada na ciência.

Tais conhecimentos continuarão a ser construídos, por formas ainda mais sofisticadas, mas ensaiam-se procedimentos que desmontem a incorporação de contingentes massivos na possibilidade de sua criação. Reduz-se, portanto, o espaço da intelectualização, assumida como privilégio para poucos. Nós, historiadores da educação, podemos dimensionar o efeito da desqualificação da figura do professor como intelectual, porque nossas pesquisas demonstraram a importância que tiveram as Escolas Normais, os colégios secundários, as instituições de ensino profissional, assim como as de ensino primário ou elementar, tanto quanto as de ensino superior, na formação de gerações intelectuais.

A precarização do trabalho do magistério, como parte da precarização do trabalho em geral, apresenta-se, para nós, como uma questão que não se limita à perda de direitos - que obviamente configura -, mas à corrosão de um padrão civilizatório, no qual os intelectuais da educação desempenharam um papel central.

Quero retomar a metáfora do laboratório. Elegi esta imagem, porque penso que ela recoloca nossa experiência nacional em um plano mais amplo, que integra um campo de relações capitalistas em nível internacional. Somente a partir desse ponto de vista torna-se possível dimensionar o grau de inflexão para o trabalho intelectual e, dentro dela, o sujeito intelectual.

Posicionado na periferia do capitalismo, o lugar do intelectual, no Brasil, foi, historicamente, proporcional à limitada extensão da escolarização e, portanto, do acesso à leitura e escrita, que configurava um público reduzido. Os historiadores da educação, mesmo tendo trazido à luz as iniciativas de tantas mulheres e homens, nossas e nossos intelectuais da educação, também confirmam os obstáculos e retrocessos vivenciados. A premência da destruição dos meios de produção intelectual, seja no âmbito das artes, da educação ou da pesquisa, conecta-se com a premência de dissolução das formas reguladoras do trabalho em geral, como parte da demolição do horizonte de qualquer projeto democrático.

A memória dos intelectuais da educação possui, então, uma dimensão política que não podemos perder de vista. Não estamos arquivando relatos para uma coleção a ser exposta para uma assistência passiva. Nosso encontro com essas mulheres e homens, sujeitos das lutas de seu tempo, ilumina as lutas de nosso próprio tempo. Nós, também, nos comprometemos e encontramos, nas suas vidas, motivação e força para a nossa resistência da nossa geração e a das gerações que nos sucederão. Seguimos na luta por uma educação democrática!

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1A título de exemplo, citamos, nas referências bibliográficas, algumas das coletâneas dedicadas ao tema intelectuais: FREITAS e KUHLMANN JR. (2022); LEITE e ALVES (2011); VIEIRA, STRANG e OSINSKI (2015); VIEIRA, OSINSKI e BENCOSTTA (2015); VIEIRA, OSINSKI e OLIVEIRA (2019); VIEIRA, BONTEMPI JUNIOR e OSINSKI (2019); VIEIRA, OSINSKI e GONDRA (2019).

2A Sociedade Brasileira de História da Educação foi fundada em 1999 e realizou o I Congresso Brasileiro de História da Educação no ano 2000 (SBHE, Sobre. Disponível em: https://sbhe.org.br/sobre)

3Informação disponível na página eletrônica da Sociedade Brasileira de História da Educação (https://sbhe.org.br), no link: https://drive.google.com/drive/folders/1c-edYbu1KS1Z2wc-WTTFXlfP5gNPYriF. Acesso em 12-08-2022.

4Informação disponível na página eletrônica da Sociedade Brasileira de História da Educação (https://sbhe.org.br), no link: https://drive.google.com/drive/folders/1GxyMblNGO_uBPsn_H9icczOFj3IQq55M. Acesso em 12-08-2022.

6Seus nomes aparecem na referência indicada na nota anterior.

7Informação disponível na página eletrônica da Sociedade Brasileira de História da Educação (https://sbhe.org.br), no link: https://drive.google.com/drive/folders/1XMEqQ5DYh9U5zJFoF7xi4uuvOiG86hSR

8A título de exemplo, vale lembrar algumas dessas teses: em 1991, Clarice Nunes defendeu sua tese sobre Anísio Teixeira, publicada em 2000, pela EDUSF; em 1992, Zaia Brandão defendeu sua tese sobre Paschoal Lemme, publicada em 1999, pela EDUSP/IFAN-CEDAPH; em 1997, Marcos Cezar de Freitas defendeu sua tese sobre Álvaro Vieira Pinto, publicada em 1998, pela Cortez Editora; ainda em 1997, Ana Chystina Venancio Mignot defendeu sua tese sobre Armanda Álvaro Alberto, publicada em 2002, pela EDUSF.

Recebido: 20 de Dezembro de 2022; Aceito: 06 de Abril de 2023

E-mail: cmcalves@yahoo.com

CLAUDIA ALVES é Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Departamento de Fundamentos Pedagógicos da Universidade Federal Fluminense. Presidente da SBHE na gestão 2007-2009.

Editora responsável:

Patrícia Weiduschadt

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