Introdução
“Converter os mancebos que lhe são confiados em bons militares e bons cidadãos a fim de bem servirem a Pátria e a Armada”. Essa era a missão da Escola de Alunos Marinheiros, fundada em Lisboa, pela Carta de Lei de 21 de fevereiro de 1876. Diante desse cenário, tal escola surge com o intuito de suprir os quadros da Armada com pessoal apto a desempenhar os serviços dos oficiais inferiores, além de ser uma alternativa de profissionalização dos órfãos e desamparados.
Em Portugal, verifica-se que existe desde o século XVIII a preocupação em instruir e capacitar os meninos desvalidos para um ofício. Nessa perspectiva, a Escola de Alunos Marinheiros de Lisboa cumpre essa tarefa a partir das últimas décadas do século XIX. Portanto, objetivamos descrever e discutir, neste artigo, a presença dessa instituição militar na formação e na profissionalização de crianças pobres e desvalidas, nos afazeres de marinheiro em terras lusitanas1.
Para alcançar o objetivo proposto, o presente artigo embasa-se numa pesquisa bibliográfica e documental, que fundamenta nossa análise da história social. Considerando a dimensão desse tema, a problemática aqui formulada pauta-se nos grupos sociais e nos estudos relativos aos marginalizados, excluídos e trabalhadores2.
A escolha desse recorte para investigação justifica-se por nos possibilitar a discussão de vários temas, tais como origem social, trabalho e assistência. Sobre origem social, buscamos subsídios em Edward P. Thompson (1987), especialmente na formulação do conceito de classe como fenômeno sócio-histórico e como experiência manifesta nas relações humanas. Essas relações não ocorrem de forma determinada, mas sim como capacidade de percepção e de articulação de interesses de alguns indivíduos contra os interesses de outros. Assim, partimos do entendimento de classe social (mais especificamente a classe pobre) como resultado de uma formação cultural e econômica, determinada pelas relações de produção.
Tendo em vista a clientela da instituição em estudo - crianças e jovens desvalidos - pretendemos discutir também a relação entre estabelecidos e outsiders e as relações geracionais por meio das contribuições do sociólogo Norbert Elias (2000; 1994). A partir de seus escritos, será possível analisar as proposições de assistência à infância e de formação moral como investimentos políticos e institucionais, cujo intento é o de evitar uma situação de anomia a ser vivenciada por esses indivíduos.
Para tanto, o artigo organiza-se em três partes: A primeira analisa os antecedentes da criação da Escola de Alunos Marinheiros por meio do panorama histórico da Casa Pia, importante instituição assistencial portuguesa. A segunda trata do recrutamento de aprendizes de marinheiro em Portugal e, por fim, a terceira descreve a organização e o funcionamento da Escola de Alunos Marinheiros de Lisboa a partir dos seus regulamentos.
A Casa Pia e sua relação com a Marinha Portuguesa
Para Ernesto Candeias Martins (1995), foi a partir dos anos setecentos que começou a se desenvolver em Portugal uma atitude humanitária, assistencial e educacional. Para tanto, foram criadas instituições com o objetivo de proteger e recolher as crianças órfãs, abandonadas, desamparadas, desvalidas, vadias ou vagabundas, mendigas e em perigo moral. Aos poucos, surgiam também as instituições assistenciais/educativas e correcionais, com intuito de regenerar ou recuperar moral e educativamente essas crianças. O primeiro movimento desse processo ocorreu com a fundação da Casa Pia em 1780 e com a oficialização das Rodas de Expostos em 1783.
De acordo com Martins (1995), foi com a criação da Casa Pia de Lisboa que se iniciou em Portugal a preocupação com o social e com a educação dos inadaptados sociais3. Essa instituição recolhia e educava os órfãos, desamparados, vadios e mendigos da cidade de Lisboa, sendo, portanto, o primeiro estabelecimento público destinado à infância desvalida.
Conforme registros feitos por Francisco Simões Margiochi (1895), a Real Casa Pia de Lisboa foi fundada em 1780, instalou-se no Castelo de São Jorge e foi inicialmente uma casa de reclusão. Essa instituição objetivava regenerar pelo trabalho os vadios de ambos os sexos. Além disso, a Real Casa dedicava-se a proteger, educar e instruir as crianças abandonadas e órfãs. Exercia, assim, uma dupla ação beneficente: a regeneração coercitiva e a providência tutelar.
Na época da inauguração, esse estabelecimento congregava diferentes formas escolares: possuía um colégio onde se ensinava instrução primária a órfãos e desvalidos, um internato para órfãos de cada sexo e um refúgio para antigos internos desempregados. Havia, ainda, casas de correção e uma casa para onde eram transferidos aqueles já corrigidos, a fim de que aprendessem os deveres religiosos e civis. “A Casa Pia como estabelecimento de correção terminou com as invasões francesas em 29 de novembro de 1807, tendo ressurgido em 1814 com outro caráter diverso, principalmente de recolhimento e casa de educação de órfãos.” (MARTINS, 1995, p. 81).
Sobre os órfãos e desvalidos, Norbert Elias (2000) contribui com algumas questões muito importantes para a discussão da situação de marginal ou outsider4. O autor destaca a necessidade de compreender a natureza dos laços de interdependência que hierarquizam indivíduos e grupos sociais e de se questionar sobre as formas de poder que permitem determinado grupo firmar sua superioridade estigmatizando outros.
No caso das crianças outsiders, Norbert Elias (1994) chama a atenção para o fato de suas especificidades variarem de acordo com as relações entre elas e os adultos e não se apresentarem de maneira uniforme em todas as épocas históricas. Na perspectiva das relações geracionais5, a partir do século XVII, observa-se que ocorreram mudanças nos comportamentos entre adultos e crianças no que tange ao desenvolvimento das sensibilidades entre eles, favorecendo a conscientização da necessidade de cuidar e proteger a infância. De acordo com Cynthia Greive Veiga,
No âmbito das sociedades modernas, a estruturação de práticas de assistência a crianças esteve associada às mudanças das sensibilidades e a reordenação familiar desde o século XVIII. Também nesse período, e com ênfase no século XIX, executaram-se muitos estudos sobre a condição da infância pela sistematização de conhecimentos sobre o desenvolvimento físico e psíquico das crianças. Como consequência, as atitudes de abandono e de violência dos adultos sobre as crianças se tornaram comportamentos cada vez mais rejeitados, e por sua vez ampliaram-se as regulamentações e ações com ênfase na proteção da infância e prevenção da delinquência. (VEIGA, 2012, p. 29).
É necessário salientar ainda que a própria infância como geração se apresentou de modo marginal na sociedade durante muitos séculos, como observado por Philippe Ariès (1978), um dos pioneiros nos estudos sobre a história da infância. Essa condição de marginal também se fez por questões religiosas, culturais e sociais.
Dessa maneira, no século XIX, construiu-se uma imagem do menor que se caracterizava especialmente como a criança pobre, desprotegida moral e materialmente e que assinalava a necessidade de cuidado e proteção por viver em tais condições. Ou seja, construiu-se a imagem da criança desvalida. Assim, é importante destacar que as ações, individuais ou públicas, em prol dessa infância tinham como objetivo a inserção social por meio da integração pelo trabalho.
Para Manuel Dias da Silva (1892), acolher a criança desvalida e ministrar-lhe uma instrução rudimentar era pouco. Era necessário que os educandos aprendessem também um ofício que lhes servisse de ganha-pão e que, ao mesmo tempo, se radicasse neles o amor e o hábito do trabalho. Nesse contexto, criaram-se as oficinas, que, além de habilitar a ganhar a subsistência pelo trabalho, se tornaram também um poderoso fator de moralização.
Dessa maneira, a todos os alunos da Casa Pia era ministrado o ensino da instrução primária elementar. Os que não apresentavam capacidade para prosseguir os estudos, ao completarem 14 anos, eram encaminhados pela instituição para seguir aprendizagem nas casas dos mestres de ofícios ou nos estabelecimentos destinados a instruir as praças da Marinha e os oficiais inferiores, tais como as Escolas de Alunos Marinheiros, estabelecidas a partir de 1876. Outros passavam a frequentar as próprias escolas da Casa, onde se ofereciam os cursos de alfaiate, sapateiro, canteiro e relojoeiro. (MARGIOCHI, 1895, p. 16).
De acordo com documentação encontrada no Arquivo da Marinha em Lisboa, a prática de enviar meninos órfãos da Casa Pia para servirem à Armada e aprenderem um ofício é antiga. Algumas fontes localizadas datam de 1818. Nesses documentos, os mestres de cada oficina do Arsenal da Marinha declaravam o progresso e o comportamento de cada aprendiz. Seguem dois exemplos dessas declarações:
Os aprendizes da oficina de sapateiros deste Arsenal da Marinha, juntamente à Casa Pia, por nomes Francisco José, Vicente Antônio, José Nunes Rosa e Bernardo Antunes continuam na aplicação e perfeição das obras desta oficina, esses são obedientes no que lhes ordeno. Arsenal Real da Marinha, 30 de Junho de 1818. Dionísio José de Figueiredo (Arquivo Geral da Marinha, cx. nº 103)
Os aprendizes de carpinteiro que vieram da Casa Pia para aprenderem o ofício neste Arsenal Real da Marinha vão trabalhando com aterramento segundo as suas forças. Com muito jeito e agilidade para o dito ofício, e segundo o que está estabelecido durante o tempo de aprendiz, são bem comportados e sem nota alguma, é o que se me oferece participar a V.S.ª sobre este objeto. Arsenal Real da Marinha, 01 de Julho de 1818. Joaquim Raimundo (Arquivo Geral da Marinha, cx. nº 103)
Consoante Margiochi (1895), o ensino profissional em terras lusitanas destinava-se apenas às camadas mais desprotegidas da população. Tal ensino previa que os menores trabalhadores gozassem de proteção especial para que seus direitos econômicos, educativos e culturais fossem assegurados, principalmente no acesso à formação, à cultura, ao trabalho e à promoção profissional. As experiências de aprendizagem de um ofício como aquelas ofertadas pela Casa Pia de Lisboa e pelas Escolas de Alunos Marinheiros proporcionavam à criança inadaptada, na falta de escolaridade obrigatória, um complemento profissionalizante válido para o mundo laboral.
O recrutamento de alunos marinheiros em Portugal
Em Portugal, identificamos quatro instituições de formação de pessoal para a marinha, quais sejam: a Companhia de Guarda-marinha (1761); a Academia Real de Guardas-marinha (1782); o Corpo de Marinheiros da Armada (1851); e a Escola de Alunos Marinheiros (1876). As duas primeiras dedicavam-se à formação dos oficiais e, posteriormente, foram substituídas pela Escola Politécnica (1837) e pela Escola Naval (1845)6; já as duas últimas foram criadas para suprir a necessidade de marinheiros na Armada e eram direcionadas a jovens órfãos e desvalidos.
Segundo Nuno Valdez dos Santos (1985), havia a bordo dos navios portugueses três distintas classes de oficiais: A primeira era composta pelos capitães, oriundos de famílias fidalgas, normalmente não possuíam grandes conhecimentos náuticos; a segunda era formada pelos pilotos, geralmente filhos de pilotos, que aprenderam com seus pais a atividade que exerciam; e, por fim, a terceira era a dos mestres, antigos pescadores ou simples homens do mar, com longos anos de práticas e experiências nessa função. É válido ressaltar, ainda, que essa diferenciação de origem social corrobora a problematização posta por Norbert Elias (2006) quanto às tensões de classe na origem da organização da profissão naval.
De acordo com Manuela Rute Martins de Passos Teodoro (2008), o recrutamento em Portugal, tanto no Exército como na Armada, ocorria por meio do serviço obrigatório ou pelo voluntariado remunerado. É necessário ressaltar, no entanto, que a tendência majoritária para o serviço nacional obrigatório recaía sobre os indivíduos mais desfavorecidos. Ou seja, eram os vadios, os incorrigíveis e aqueles cujo trabalho era improdutivo que compunham preferencialmente as tropas de primeira linha.
Fortunato de Almeida (1903) afirma que a formação dos quadros da Marinha portuguesa acontecia incialmente por recrutamento voluntário ou forçado. Entretanto, ainda no século XVIII, ocorreram as primeiras iniciativas de organização da recruta quando o reformador Marquês de Pombal decidiu fomentar e melhorar a instrução geral da Armada. Para tanto, em 1761, criou-se a Companhia de Guardas-marinha, com o efetivo de 48 guardas, os quais recebiam instrução naval e militar.
Essa Companhia admitia indivíduos entre 14 e 18 anos de idade. O regulamento adotado para a admissão era o seguinte: provas, exigidas para cadetes; filhos de capitães-tenentes; e alunos da Academia Real de Guardas-marinha de Lisboa que comprovassem ter estudos matemáticos e que tivessem sido aprovados com prêmio.
Desse modo ficaram a existir em Lisboa dois estabelecimentos - A Academia Real de Guardas-Marinha e a Companhia dos Guardas-Marinha - ministrando um ensino similar e com a finalidade de formar oficiais de marinha. Simplesmente, na Companhia dos Guardas-Marinha só eram admitidos alunos que apresentassem provas de nobreza, os quais, findo o curso, ingressavam no quadro de oficiais da Armada, enquanto que, na Academia Real de Marinha, atendia-se mais a determinados graus de habilitações do que a ascendência, mas os seus alunos seriam, principalmente, destinados a oficiais da marinha mercante e, só em alguns casos especiais, ingressariam na Armada. (SANTOS, 1985, p. 34).
Outra medida tomada com vistas a concorrer à divulgação e ao desenvolvimento do ensino naval foi a criação da Biblioteca dos Guardas-marinha em 18037. É importante salientar que tanto a Academia Real de Guardas-Marinha como a Companhia dos Guardas--Marinha foram instituições voltadas para a instrução dos oficiais da Armada.
Para a formação de marinheiros, segundo o autor de época José Silvestre Ribeiro (1871), estabeleceu-se em Lisboa, em 1851, o Corpo de Marinheiros da Armada, com sede na Nau Vasco da Gama. Antes da fundação dessa instituição, os marinheiros ou eram voluntários, ou eram apanhados à força. Nessa instituição, havia a escola de instrução primária, cujo diretor e responsável a ensinar os marinheiros e grumetes a ler, escrever e contar era o Capelão.
O Corpo de Marinheiros da Armada foi criado pelo decreto de 22 de outubro de 1851 e reorganizado em virtude da Carta de Lei de 08 de agosto de 1854. Tinha satisfeito ao fim principal da sua instituição, ministrando aos navios do Estado, disciplinadas e instruídas tripulações. Quando mais tarde, em 1868, entendeu o governo que era possível simplificar o seu organismo, tornando-o menos dispendioso para a nação sem, contudo, arriscar a sua força e eficácia [...]. E pela Carta de Lei de 21 de fevereiro de 1876 cria uma escola de habilitação para marinheiros, com denominação de Escola de Alunos Marinheiros, estabelecida a bordo de um navio surto no Tejo preparado única e convenientemente para esse fim. (RIBEIRO, 1871, p. 127).
A Escola de Alunos Marinheiros foi criada a partir do Projeto de Lei de Outubro de 1870, elaborado por Antônio Eleutério Dantas, então 1º Tenente da Armada. Essa instituição destinava-se a:
Habilitar marinheiros com a precisa e indispensável instrução, como os não dar simplesmente o recrutamento; estabelecer que de entre eles saiam todas as mais classes de servidores de bordo a que este preceito pode e deve ser aplicado, conseguindo deste modo que as guarnições dos navios sejam, tanto quanto possível, compostas de gente com aptidão marítima e militar, abrindo ao mesmo tempo mais amplo futuro, e estabelecendo uma justa recompensa às praças de marinhagem, dar arrimo e proteção às crianças desprotegidas de todo o amparo e cuidado: eis os dois pontos a que principalmente tive em vista satisfazer. (ApudRIBEIRO, 1871, p. 109).
O tenente Antônio Eleutério Dantas, por sua vez, comunicou sobre o seu projeto ao Marquês de Sá da Bandeira, ex-ministro da marinha portuguesa. O Marquês então lhe respondeu nos seguintes termos:
[...] Li com muito interesse o v. projeto relativo à criação de uma escola de alunos marinheiros e parece-me que a sua adoção há de ser de grande utilidade, tanto para o serviço da armada, como para os indivíduos a que diz respeito e bem assim para a moralidade pública. Na Casa Pia, e em outros estabelecimentos de caridade, um considerável número de jovens são sustentados e educados à custa do Estado, e por isso, seria justo, que este fosse indenizado pelo serviço dos alunos a quem beneficiara, segundo possibilidades destes. Há já bastantes anos que eu, sendo Ministro da Marinha, procurei organizar uma companhia de pajens, que, em parte, seria composta de alunos da Casa Pia. Para esse fim, mandei propor à administração da mesma casa, que ela anuísse ao projeto, e que concorresse com metade da despesa que houvesse de fazer-se com a alimentação e vestuário dos seus alunos. A proposta foi bem acolhida, mas não teve seguimento, e não sei agora, por que motivos.
[...] Estimarei que o governo adote, e ponha em execução o plano de v. nisso faria um bom serviço ao país, e em especial a Marinha de Guerra. Aceite v. os meus agradecimentos pela sua carta e creia-me de v. amigo e obrigado, Sá da Bandeira. (ApudRIBEIRO, 1871, p. 110).
Apesar da anuência do ex-ministro, a Escola de Alunos Marinheiros foi inaugurada apenas cinco anos depois, em 1876, com o objetivo de formar os quadros para a Armada e profissionalizar adolescentes e jovens nos afazeres de marinheiros para se tornarem úteis ao Estado. Além disso, a Escola também contribuiu para a moralidade pública.
De acordo com o Artigo 4º e 5º da Carta de Lei de 21 de fevereiro de 1876, para ser admitido na Escola de Alunos Marinheiros de Lisboa era preciso ser português, ter entre doze e quinze anos de idade e ser julgado pela junta de saúde naval como apto para o serviço no mar. Uma vez aceito, o aprendiz deveria servir à marinha por oito anos a contar do dia em que assentasse praça no corpo de marinheiros. A escola admitia preferencialmente os órfãos e desamparados, os filhos das praças efetivas da marinha e os que comprovassem sua pobreza. Ademais, essa instituição recebia também os meninos encaminhados pela Casa Pia e por outras instituições de proteção à infância portuguesa.
Todos os indivíduos que se enquadrassem nas normas estabelecidas pelos artigos citados acima poderiam ser admitidos como alunos da escola, desde que o número de lotação (100 candidatos) não excedesse. A Escola de Alunos Marinheiros de Lisboa se estabeleceu na Corveta Duque de Palmella e foi a primeira das três Escolas fundadas em Portugal. De acordo com Almeida (1892), o Decreto de 21 de fevereiro de 1876, que criou a escola de Lisboa, foi substituído pela Carta de Lei de 27 de Julho de 1882, implantando duas outras escolas semelhantes, sendo uma no Porto8 e outra em S. Miguel.
Organização e funcionamento da Escola de Alunos Marinheiros de Lisboa
Em 22 de fevereiro de 1876, foi estabelecida a primeira escola a bordo de um navio ancorado no Tejo, a Escola de Alunos Marinheiros de Lisboa. Sua finalidade era educar adolescentes e jovens menores de idade para o serviço da Marinha. Essa instituição funcionou até 1895 quando o Decreto de 18 de Abril de 1895 estabeleceu nova organização das escolas, transferindo a Escola de Lisboa para o Departamento Marítimo do Sul, em Faro.
De acordo com Caetano Rodrigues Caminha (1892), a Escola de Alunos Marinheiros de Lisboa entrou em plena atividade em setembro de 1876 e foi regida pelo Regulamento provisório de 13 de dezembro do mesmo ano. Esse regulamento previa para a instrução dos alunos um curso com duração de três anos. Finalizado esse período, aqueles que obtivessem aprovação no exame final passavam ao Corpo de Marinheiros, com a obrigação de servir nas diferentes classes da Armada pelo tempo de oito anos. Tal curso foi dividido nos seguintes estágios, conforme o artigo abaixo:
Art. 6º - A instrução aos alunos da escola divide-se em três partes: 1ª Instrução Primária, dirigida pelo capelão, coadjuvada por um dos oficiais inferiores; 2ª Instrução profissional do marinheiro, compreendendo aparelho, pano (coser), exercícios de gáveas, de remos, de sonda, natação, princípios elementares de navegação, agulha de marear, manobra, governo do navio e todos os trabalhos próprios do marinheiro; esta parte é dirigida pelo mestre e oficiais marinheiros, sob a inspeção imediata e efetiva dos oficiais; 3ª Instrução militar, compreendendo: exercícios de infantaria e artilharia, conforme os regulamentos e ordenança, estabelecidos para o corpo de marinheiros e escola prática de artilharia naval e serviço militar de bordo; esta parte é dirigida pelos oficiais inferiores e cabos marinheiros e artilheiros da escola, sob a inspeção imediata e efetiva dos oficiais. (CARTA DE LEI de 21 de Fevereiro de 1876).
O desenvolvimento do curso permitia aos alunos que tivessem adquirido uma longa prática de serviço no mar o preenchimento das vagas abertas nos quadros de marinheiros e de sargentos. Todo o serviço de escola e de instrução estava sob as ordens da direção geral da Marinha, que deveria, também, corrigir a bordo a falta de disciplina dos alunos. Caso a indisciplina fosse um crime ou delito, o aluno deveria ser expulso da escola e entregue ao poder judicial, não podendo ser readmitido.
Para atrair os adolescentes e jovens, a instituição supracitada estabeleceu algumas vantagens, como instrução educacional, moral e religiosa; formação profissional; e alimentação e vencimento de 3$000 réis mensais, do qual era descontado o valor do fardamento que o aluno recebia. Porém, segundo Caminha (1892), apesar das diligências feitas e das vantagens oferecidas, as vagas disponíveis não foram preenchidas durante os primeiros anos.
Para atender a necessidade de preparar rapidamente os alunos para a vida no mar, realizaram-se algumas mudanças no Regulamento de 1876. Entretanto, somente dez anos depois, em 19 de fevereiro de 1886, é que foi aprovado o novo Regulamento para as Escolas de Alunos Marinheiros. Nesse documento, introduziram-se várias alterações, sendo as principais: a idade de admissão dos candidatos - passando de 12 a 15 anos para 13 a 17 -; a exigência de que todos os anos fossem apresentados ao Corpo de Marinheiros os alunos habilitados para o serviço; e a redução do curso para dois anos de duração.
A partir dessa nova organização, a instrução ministrada na Escola constava de três partes distintas divididas em dois anos do curso escolar, a saber: instrução primária e canto dirigidos pelo capelão, com auxílio de um oficial inferior do Corpo de Marinheiros; instrução profissional de marinheiro dirigida pelo mestre, pelos oficiais marinheiros e pelos cabos marinheiros; e instrução militar dirigida pelos oficiais inferiores e pelos cabos artilheiros e fuzileiros.9
Embora a Escola de Alunos Marinheiros tenha reduzido o curso de três para dois anos, a proposta educacional para a formação dos aprendizes se apresentava mais abrangente, menos teórica e mais prática. Caminha afirma ser esta uma garantia para que “(...) os alunos saíssem da Escola com uma soma de conhecimentos bastante variados e aptos para desempenhar os diversos encargos que o marinheiro tem na vida do mar.” (CAMINHA, 1892, p. 6).
Segundo Caminha (1892), o método de ensino adotado na Escola era o individual e o mútuo, com aulas ministradas para até 130 jovens. Mas, apesar da grande quantidade de alunos, do pouco tempo disponível para a instrução e da porcentagem dos que entravam analfabetos, o número de reprovações era relativamente baixo.
Outra questão importante era a organização das atividades que os alunos da Escola deveriam cumprir diariamente. De acordo com o horário estabelecido pelos superiores, o tempo era assim distribuído (Quadro 1).
Quadro 1- Horário do serviço na Escola de Alunos Marinheiros
| HORÁRIO DO SERVIÇO | |
|---|---|
| a.m. | Nos dias de atividade escolar |
| A hora superiormente determinada | - Tiros e toques de alvorada. |
| 4h e 50 min. | - Acordar os alunos e marinhagem. |
| 5 horas | - Primeiro toque de faxina de macas. Formatura e oração. Arrumar macas. |
| 5h e 20 min. 5h e 35 min. | - Segundo toque de faxina de macas. Formatura e oração. Arrumar macas. |
| 5h e 45 min. | - Toque de rancheiros. Abrir portas. Adriçar toldos. Içar ventiladores. Varrer a tolda. |
| 6h e 15 min. | - Toque ao almoço. Formatura a postos de rancho. Tirar bonets e sentar. |
| 7h e 15 min. | - Distribuição da gente para a baldeação. Largar para a terra a embarcação com os compradores. |
| 7h e 30 min. | - Terminar a baldeação. Lavagem de corpos. Enxugar o navio. Limpeza do costado. Vestir os alunos para a embarcação de serviço. |
| 8 horas | - Faxina da bateria. Limpeza de metais e do trem de rancho. Embarcação ao médico. Largar a embarcação das licenças. |
| 8h e 30 min. | - Içar a bandeira e Jack. Embarcação ao estado menor. Visita sanitária (α). Vestir alunos e marinhagem de fato da faxina limpo. Examinar exteriormente o navio. |
| 8h e 45 min. | - Içar o sinal da embarcação que tiver ido ao estado menor, etc. Formatura das Companhias e revista dos copos e uniformes passados pelo oficial de serviço. - Leitura das instruções para a guarda e sinaleiros feita pelo sargento de dia. |
| 8h e 50 min. | - Arriar o sinal para largar de terra a embarcação com o estada menor, etc. Escalar a divisão. |
| 9h e 25 min. | - Evoluções de mastaréus, vergas e pano. Largar Toldos |
| 9h e 30 min. | - Toque as aulas. A companhia de serviço forma no toldo e a de folga na coberta. |
| 11h e 30 min. | - Começa a instrução. A companhia de folga recebe instruções de leitura e a de serviço instrução profissional. |
| 12 horas | - Termina a instrução. Formatura. Destroçar. Toque de rancheiros. Revista de ranchos. Toque no jantar. Formaturas a postos de rancho. Tirar bonets e sentar. |
| (α) A hora da visita sanitária poderá ser mudada para as 11 horas e 30 minutos (a.m.) ou quando melhor convenha. | |
| p.m. | Nos dias de atividade escolar |
| 12h e 30 min. | - Levantar corpos e pôr bonets, destroçar. Toque para a bebida. Formatura e distribuição na tolda. Em seguida limpeza e arrumação do trem dos ranchos e varrer todos os pavimentos do navio. |
| 1 hora | - Toque as aulas. Formatura como de manhã. Começa a instrução. A companhia de folga tem instrução literária e a de serviço instrução militar ou profissional. |
| 2h e 20 min. | - Toque de descanso. Destrocar. Toque a ordem. |
| 2h e 30 min. | - Toque as aulas. Continuação da instrução como no primeiro tempo. |
| 3 horas | - Embarcação a ordem. |
| 3h e 30 min. | - Toque de cessar a instrução (a). Atraca a embarcação para os oficiais. Formação das companhias a tolda. Destroçar. |
| 3h e 40 min. | - Atraca a embarcação para o estado menor. |
| 3h e 45 min | - Evoluções de pano, vergas e mastaréus. Adriçar toldos. |
| 15min. antes do toque da ceia | - Toque de rancheiros. |
| 4h e 30min. ou 5h (dependendo da estação) | - Toque a ceia, formatura com ao jantar. |
| 30 min. após o toque da ceia | -Toque para a bebida. Formatura e distribuição na tolda. Em seguida execução dos castigos mandados na véspera, aplicar aos alunos (b). Limpeza e arrumação do trem de ranchos, faxina de bateria, levantar cabos, varrer navio, içar escaleres, encapar escotilhas, abarracar ou ferrar toldos, fechar portas e etc. Liberdade. Os alunos de serviço guardam lenços e fitas. |
| 15 min antes do pôr do sol | - Toque a guarda (c). Acender luzes. |
| Ao pôr do sol | - Tiros. Arriar a bandeira e jack. Formatura das companhias na tolda (d). Oração. Leitura dos castigos mandados aplicar aos alunos e da escala de serviço do dia seguinte. Distribuição de macas, marchando primeiro a companhia de folga para o bailéu e depois a de serviço para a coberta. Correr xadrezes nas escotilhas de serventia para a coberta dos alunos. Toque da faxina de macas. |
| 5 min depois do toque de faxina de macas | - Toque as aulas para a companhia de serviço, que forma na coberta e entra em seguida para as aulas, tendo os monitores acendido previamente as luzes (e). |
| 1h depois de começar | - Termina o estudo. O sargento manda levantar e sair. O cabo da guarda coloca os plantões na coberta e no bailéu. |
| 15 min depois do estudo | - Recolher as macas. A hora conveniente apitar a silêncio. |
| 10 min antes dos tiros | - Começar o toque de recolher. |
| A hora superiormente determinada | - Tiros. Segunda parte do toque de recolher. |
| 30 min depois dos tiros | -Toque de silêncio. Inspeção ao navio, a fim de verificar se existem luzes extraordinárias, etc. |
| (a) Este toque far-se-á 15 minutos antes da hora marcada, nos dias de lavagem de roupa durante os meses de inverno. (b) Não podendo os castigos cumprir-se por inteiro depois da ceia, terá lugar a sua execução antes ou depois desta refeição, e em caso necessário verificar-se-á aos sábados, domingos e dias santificados. (c) e (d) Quando, no inverno, estes serviços não possam ser efetuados nas condições designadas, por se verificar muito cedo o ocaso do sol, far-se-ão o mais próximo possível das indicadas ocasiões. (e) Durante o inverno poderá o estudo da sexta ser transferido para o sábado. | |
| a.m. | Nos sábados (a) |
| 8 horas | - Vestir os alunos para a embarcação de serviço. |
| 8h e 20 min. | -Embarcação ao médico. |
| 9 horas | - Terminar a baldeação. Lavagem de corpos. Enxugar o navio. |
| 9h e 30 min. | - Inspeção e visita sanitária (b). Em seguida faxina de bateria, limpeza de metais, trem de ranchos, costado, etc. |
| 10 horas | - Arriar a roupa (estando enxuta). Escalar a divisão. |
| 10h e 30 min. | - Toque a vestir alunos e marinhagem. Primeiro toque para a guarda. |
| 11 horas | - Formatura das companhias e destacamento. Segundo toque a guarda, a qual arma com sabre bayoneta. Revista de corpos e uniformes passada pelo segundo comandante. Concessão de licença aos alunos de serviço. |
| Depois da bebida do jantar | - Formatura das praças de marinhagem para concessão de licenças. |
| p.m. | Nos sábados |
| 1 hora | - Tratar da roupa e calçados. Os cabos e marinheiros comandantes vigiam, junto dos alunos, este serviço, fornecem- lhes agulhas, linhas, botões, etc. |
| 3h e 45min. | - Guardar as roupas nos sacos e arrecadações das esquadras. Varrer trincheiras do bailéu. |
| 4 horas | - Arrumar os sacos nas trincheiras. |
| Cinco minutos antes do pôr do sol | - Toque a guarda para continência à bandeira. Observações - Quando o sábado for santificado, passará esse horário a vigorar na sexta-feira anterior. Havendo lavagem de macas, serão estas desaranhadas pela manhã ao primeiro toque de faxina, e os colchões, arangas e travesseiros ferrados dentro das mantas, ficando estas com os números para fora. A lavagem terá lugar logo após o almoço, içando-se as macas, em seguida a enxugar. À tarde, depois de arrumados os sacos nas trincheiras, serão as macas arriadas, dobradas com os números para fora e guardadas convenientemente, as da companhia de serviço na coberta, e as da companhia de folga no bailéu. À noite, tendo os alunos recebido os colchões e descido a coberta e bailéu, serão as macas distribuídas e aranhadas. Havendo lavagem de mantas ou de capas de colchão e travesseiros, proceder-se-á de modo análogo. |
| (a) A hora da visita sanitária poderá ser mudada para as 11 horas e 30 minutos (a.m.) ou quando melhor convenha. (b) Em tudo que não é alterado por estes horários excepcionais, seguir-se-á o horário estabelecido para os dias de atividades escolares, eliminando o que se refere a instrução. | |
| a.m. | Nos domingos e dias santificados (a) |
| 7h e 40 min. | - Vestir alunos para a embarcação de serviço. |
| 7h e 55 min. | - Toque a guarda para continência à bandeira. |
| 8 horas | - Içar bandeira e jack. Toque a vestir alunos e marinhagem para a missa. Primeiro toque a guarda. Embarcação ao capelão e médico. |
| 8h e 30 min. | - Visita sanitária (b). |
| 8h e 45 min. | - Segundo toque a guarda, a qual forma com carabina e sabre. Formatura das companhias e destacamento. Revista de corpos e uniformes passada pelo oficial de serviço. Render a guarda. |
| 9 horas | - Prática moral e religiosa, ou instrução de ajudar a missa. |
| 9h e 30 min. | - Formatura na tolda e marcha para a coberta. Celebração da missa. |
| 10 horas | - Escalar a divisão. Lancha ao arsenal com as licenças, acompanhadas pelo sargento. Os alunos, exceto a guarda, moços de cabo e sinaleiros, vetem fato de faxina lavado, ficando calçados e com lenço e fita. |
| 10h e 45 min. | - Içar o sinal da lancha. |
| 11 horas | - Arriar o sinal para largar de terra lancha com as famílias que desejarem ver os alunos. |
| 11 h e 30 min. | - Vestir de faxina a guarnição das embarcações. |
| p.m. | Nos domingos e dias santificados |
| 1 hora | - Embarcação levar as famílias a terra. Cumprir castigos. Guardar lenços, fitas e calçado, a exceção dos alunos que estão de guarda, os quais procederão a este serviço a seguir a faxina de macas, devendo na mesma ocasião vestir faxina. |
| Depois da ceia | - Toque a guarda para continência à bandeira. |
| 5 min antes do pôr do sol | Observações - Nos dias de grande gala observar-se-á este mesmo horário, eliminando-se o que diz respeito à missa. Os alunos e a guarnição conservar-se-ão uniformizados de azul até o pôr do sol. |
| (a) Em tudo que não é alterado por estes horários especiais, seguir-se-á o horário estabelecido para os dias de atividades escolares, eliminando o que se refere à instrução. (b) A hora da visita sanitária poderá ser mudada para as 11 horas e 30 minutos (a.m.) ou quando melhor convenha. | |
Fonte: CAMINHA, Caetano Rodrigues. Breve notícia sobre a Escola de Alunos Marinheiros. Lisboa: Imprensa Nacional, 1892.
Diante do que foi exposto no quadro anterior, percebe-se que havia um rígido controle das atividades e do tempo das crianças e jovens na Escola de Alunos Marinheiros de Lisboa. Essa rigidez era comum a todas as instituições militares, tanto em Portugal quanto no Brasil. Com a aplicação de um sistema disciplinar rigoroso, acreditava-se que se regenerariam os jovens que as famílias e a sociedade não conseguiam mais controlar.
Os resultados colhidos com a aplicação do sistema tem sido profícuos, e é disto prova a regeneração de muitos rapazes que as famílias mal podiam conter e que no rigor disciplinar encontraram fácil corretivo as demasias a que estavam habituados. (CAMINHA, 1892, p. 09).
Portanto, à medida que os resultados e as vantagens que a Escola de Alunos Marinheiros oferecia iam se popularizando, o número de pretendentes a entrar na instituição aumentava. De acordo com o autor supracitado, de todos os pontos do país, chegavam rapazes que procuravam nesse modo de vida uma colocação honesta e digna, embora árdua.
A partir do novo Regulamento, implantado em 19 de fevereiro de 1886, para o processo de inscrição dos candidatos, eram necessários os seguintes documentos: requerimento preenchido pelo pai ou pela mãe do menino, ou pelo tutor, ou por quem fizesse suas vezes, solicitando a admissão na Escola de Alunos Marinheiros; certidão de idade, pela qual se provava que o candidato não tinha menos de 13 anos nem mais de 17 (esse documento devia ser reconhecido por notário ou autenticado com o selo da paróquia); documento comprovando que sabia ler, escrever e contar; e atestado provando ser o candidato robusto, não sofrer de moléstia contagiosa e haver sido vacinado. Por fim, no caso de ser admitido na Escola Alunos Marinheiros, exigia-se a autorização do responsável pelo menor para que este pudesse assentar praça no Corpo de Marinheiros da Armada.
Além dos documentos citados, os requerentes poderiam anexar outros que possibilitassem sua preferência na admissão. Esses documentos adicionais deveriam comprovar que os candidatos eram:
1º Filhos de praças da armada; 2º Filhos de praças do exército; 3º Desamparados ou expostos, ou órfãos de pai ou mãe; 4º Filhos de marítimo; 5º Pobres. Os requerimentos devem ser entregues de 15 de junho a 15 de julho de cada ano à autoridade civil da localidade onde residir o candidato. (Regulamento de 19 de fevereiro de 1886, Cx. 297).
No Arquivo da Marinha, encontramos 45 fichas de alunos, datadas de 1877 até 1897. Dos anos de 1877 a 1894, existem apenas os documentos necessários para a inscrição. Somente a partir de 1895 é que se encontram os documentos com o resultado da seleção anexado. O maior número de fichas é do ano de 1895 (15 inscrições). Nessas fichas, estão descritos vários motivos pelos quais os rapazes foram considerados incapazes para frequentar a escola, entre eles estão a baixa estatura, a falta de robustez, a opacidade da córnea, a hipertrofia das amídalas e a curva dentária extensa.
A partir da análise das fichas, constatamos que tanto o propósito com que essas instituições foram criadas quanto o público ao qual se destinavam foram atingidos. Porém, é válido ressaltar que a análise das fichas de alunos localizadas durante a pesquisa demonstra uma incongruência, uma vez que não foram localizados documentos que comprovassem que os candidatos sabiam ler, escrever e contar, conforme previsto no novo Regulamento. Essa ausência de documento levou-nos a conjecturar o quão pouco era importante esse pré-requisito para a admissão, tendo em vista que os alunos eram órfãos ou oriundos de famílias pobres; além disso, havia a oferta da instrução primária na própria escola.
Além de atender as finalidades a que se propôs - oferta de educação para jovens desvalidos e formação de quadros da armada -, a Escola de Alunos Marinheiros também colaborava com outras instituições do Estado. Como vimos, este é o caso da Casa Pia, que enviava seus alunos para aprenderem o ofício de marinheiro na Escola, tornando-os úteis a si e à pátria. Entre os que exemplificam essa prática, destaca-se Alfredo Pires Ribeiro, um jovem de 15 anos, encaminhado da Casa Pia para a Escola de Alunos Marinheiros em 13 de julho de 1895.
A documentação, nesse caso, variava um pouco, pois quem encaminhava o candidato era o provedor da Casa Pia, mas o responsável pelo menino também precisava autorizar. Segue a transcrição dos documentos relacionados à inscrição:
1º documento: Declaração de autorização de admissão do menino, expedida pelo representante da Casa Pia. Francisco Simões Margiochi, Provedor da Real Casa Pia de Lisboa. Declaro que autorizo, na qualidade acima referida, o aluno Nº 2050 deste estabelecimento, Alfredo Pires Ribeiro, natural de Mação, filho de Isidoro Marques Ribeiro e de Maria Felícia, a servir a bordo dos navios do estado, como praça de marinhagem, ou em qualquer das outras classes efetivas de bordo pelo tempo de oito anos, a contar da data em que assentar praça no corpo de marinheiros, se for admitido na escola de alunos marinheiros estabelecida a bordo da corveta “Duque de Palmella”. Real Casa Pia de Lisboa, Francisco Simões Margiochi (Arquivo Geral da Marinha, cx. 298-1)
2º documento: Certidão de idade reconhecida por notário ou autenticada com o selo da paróquia, pela qual se prove que o candidato não tem menos de 13 nem mais de 17 anos. José Maria Monteiro Junior, chefe da secretaria da Real Casa Pia de Lisboa, por Sua Majestade El-Rei, que Deus guarde: Certifico que no arquivo da repartição a meu cargo existe o processo de admissão do aluno nº 2050, Alfredo Pires Ribeiro, e que faz parte do mesmo processo o documento do teor seguinte: Lugar do selo a tinta e d’óleo da taxa de oitenta réis. O Presbítero Jacinto Antônio Martins, cura coadjunto da freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Mação, do mesmo conselho, Diocese de Portalegre: certifico que revendo os livros dos batismos desta freguesia, em um que diz respeito ao ano de mil oitocentos e oitenta a folha vinte verso e vinte e um encontrei o assento seguinte à margem número sessenta e cinco: Alfredo Castelo = no assento a que segue = Aos quinze dias do mês de agosto do ano de mil oitocentos e oitenta, nesta paróquia Igreja Nossa Senhora da Conceição de Mação do mesmo conselho da Diocese de Castelo, batizei solenemente a um indivíduo do sexo masculino a quem dei o nome de Alfredo, e que nasceu no lugar do Castelo, desta freguesia, no dia nove de julho do ano supracitado pelas duas horas da tarde, filho legítimo, o primeiro deste nome e de segundo matrimonio da parte do pai, e primeiro da mãe, de Isidoro Marques Ribeiro, negociante, e Maria Felícia, de serviço doméstico, ambos naturais da Aldeia d’Eiras, freguesia d’Amendoa, ali recebidos e moradores da mesma, neto paterno de José Esteves Ribeiro e Francisca Marques, e materno de Pedro Antônio e Felícia Pires, todos da Aldeia d’Eiras, freguesia d’Amêndoa. Foram padrinhos Manuel Pombo Filho, solteiro, maior e sui juris, negociante, natural de Lisboa, que passou procuração devidamente legalizada a Honório Marques Morgado, casado, do Castelo, que o representou no batismo, e madrinha Maria Luiza, casada, natural de Alfalhão, que passou procuração devidamente legalizada a Francisca Marques Morgado, casada, natural do Castelo, que a representou no batismo. E para constar lavrei em duplicado este assento que depois de ser lido e conferido perante os padrinhos e por estes achado em conforme, o que fez as vezes de padrinho comigo assina, menos a madrinha por não saber. Pelo padrinho Honório Marques Morgado. O vigário encomendado, Manuel Antônio Correia da Silva. E nada mais se continha no dito assento, que bem e fielmente para aqui copiei do próprio livro a que me reporto. E por ser verdade esta que assino e juro in verbo sacerdotis. Mação, treze de novembro de mil oitocentos e nove. O Cura coadjunto, Padre Jacinto Antônio Martins = Reconheço a letra e assinatura supra. Mação, quinze de novembro de mil oitocentos e oitenta e nove. Em fé - sinal público - de verdade. O Tabelião, Faustino Emydio de Figueiredo. Reconheço sinal supra. Lisboa, dezesseis de novembro de mil oitocentos e oitenta e nove. Em testemunho - sinal público de verdade - o Tabelião, Emydio José da Silva. Lugar de duas estampilhas do imposto do selo da taxa de dezesseis réis cada uma devidamente inutilizadas. Nada mais contém o referido documento ao qual me reporto. E para constar se passou o presente, que vai devidamente selada com o selo em branco e relevo das armas deste estabelecimento. E eu, José Maria Monteiro Junior, chefe da secretaria, confiro e assino. Real Casa Pia de Lisboa, 13 de julho de 1895. José Maria Monteiro Junior. (Arquivo Geral da Marinha, cx. 298-1)
3º documento: Autorização do responsável (neste caso a mãe do menino) para assentar praça no Corpo de Marinheiros da Armada. Eu, Maria Felícia Pires, viúva, de serviço doméstico, residente no Castelo, freguesia de Mação, declaro pelo presente título, que autorizo meu filho Alfredo Pires Ribeiro, de menor idade, aluno nº 2050 da Real Casa Pia de Lisboa, a concorrer ao concurso, que se acha aberto, na escola de Aprendizes Marinheiros. E para que esta minha autorização produza os devidos efeitos, por não saber escrever, roguei a João de Oliveira Tavares, tabelião, residente nesta vila, que este por mim fizesse e a Antônio Dias Mora, casado, negociante, também desta vila, que por mim o assinasse, o que tudo se fez sendo testemunhas presentes Agostinho Gueifão Bello, casado, empregado d’obra pública e Manoel Thomaz, casado, distribuidor do correio, ambos moradores nesta vila, que assinaram igualmente. Mação, onze de julho de mil oitocentos e noventa e cinco. Eu, João de Oliveira Tavares, o escrevi. À rogo = Antônio Dias Mora Agostinho Gueifão Bello Manoel Thomaz Reconheço as três assinaturas supra. Por serem feitas na minha presença. Mação, 11 de Julho de 1895. João de Oliveira Tavares (Arquivo Geral da Marinha, cx. 298-1)
4º documento: Atestado que prove ser o candidato robusto, não sofrer de moléstia contagiosa e haver sido vacinado. Antônio S. Azevedo Médico cirurgião Atesto que Alfredo Pires Ribeiro foi vacinado, goza de perfeita saúde, não sofre de doença contagiosa e tem robustez precisa para o serviço marítimo. E por ser verdade o que atesto passo esta que vai e assino. Lisboa, 14 de Julho de 1895. Antônio S. Azevedo. (Arquivo Geral da Marinha, cx. 298-1)
5º documento: Encaminhamento dos candidatos pelo Provedor da Casa Pia, atestando que eram órfãos; ou seja, aqueles que segundo as Ordenações Filipinas não tinham pai, oriundos de tal instituição e solicitando admissão na Escola de Alunos Marinheiros. Real Casa Pia de Lisboa número oitenta e oito. Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor. Tendo a honra de passar às mãos de Vossa Excelência o adjunto requerimento e respectivos documentos no qual, na qualidade do Provedor da Real casa Pia de Lisboa, peço a admissão dos alunos números 2041, Manoel Ribeiro, 2050, Alfredo Pires Ribeiro - estes dois órfãos de pai - 2075, Eduardo Barreto - órfão de pai e mãe, na escola de alunos marinheiros sob mui digno comando de Vossa Excelência. Deus Guarde a Vossa Excelência. Belém, treze de agosto de 1895. Ilustríssimo Excelentíssimo Senhor Comandante da Corveta Duque de Palmella. O Provedor Francisco Simões Margiochi. Está conforme Bordo da Corveta Duque de Palmella escola de alunos marinheiros, 16 de agosto 2º Comandante Francisco Pereira dos Reis. (Arquivo Geral da Marinha, cx. 298-1)
Apesar de toda documentação solicitada ser entregue, ao final do processo, o jovem Alfredo Pires Ribeiro de 15 anos, natural de Mação e órfão da Casa Pia, foi considerado incapaz pela Junta de Saúde Naval porque apresentava artrite crônica do testículo esquerdo e atrofia do testículo direito. Por isso, sua admissão na Escola de Alunos Marinheiros foi recusada. Nota-se que os alunos encaminhados pela Casa Pia para a Escola de Alunos Marinheiros apresentavam um documento a mais, qual seja, a solicitação do Provedor da Casa Pia atestando que eram órfãos advindos desta instituição.
Como em outras instituições da Armada, a Escola de Alunos Marinheiros de Lisboa previa em seu código disciplinar a aplicação de faltas e castigos àqueles que transgredissem as regras. De acordo com o Art. 165º do Regulamento de 1886, as penas correcionais que poderiam ser impostas aos alunos eram:
- Admoestação;
- Repreensão;
- Repreensão na ordem ao navio-escola;
- Privação de recreio;
- Carregar maca;
- Serviços de castigo, tais como rancheiros, sinaleiros ou guardas;
- Pelotão de castigo;
- Prisão no alojamento;
- Prisão a ferro no alojamento;
- Prisão isolada;
- Prisão isolada a ferro;
- Prisão isolada a ferro e pão e água.
No entanto, em sintonia com as discussões pedagógicas da época, a Escola passou a estimular mais as recompensas que os castigos, como incentivo aos alunos pelo bom comportamento e pela disciplina. Dentre as recompensas que foram instituídas, elencamos: a comutação de penas impostas; louvores em ordem ao navio-escola; licenças extraordinárias; passagem à classe superior, além de prêmios e distinções - tudo isso registrado em livros ou em artigos de uso do marinheiro, conforme julgasse o conselho escolar; e graduação a cabo, chefe de seção ou chefe de quarto.
O Regulamento de 1886 estabelecia também que, para a aplicação dos castigos correspondentes às faltas cometidas, os alunos se classificariam em três classes de comportamento: 1ª, bom; 2ª, regular; 3ª, mau. Para conseguir mudança de classes, o aprendiz deveria ter bom comportamento e bom aproveitamento nos afazeres e não poderia cometer transgressões ou ter sido recompensado por algum ato.
Num levantamento dos primeiros quinze anos de funcionamento da Escola de Alunos Marinheiros de Lisboa realizado por Caetano Rodrigues Caminha (1892), constata-se que a instituição recebeu 1.676 inscrições de candidatos e formou 534 alunos, transformando-os em marinheiros militares. Dos 534 alunos, ao saírem da Escola, 38 tinham quatorze anos; 194, quinze; 162, dezesseis; 89, dezessete; 39, dezoito; e 12 alunos tinham dezenove anos de idade. Segundo esse autor, o aumento sucessivo do número de candidatos cresceu à medida que as vantagens oferecidas pela Escola foram se popularizando.
Conclusões
O objetivo deste artigo foi descrever e discutir a importância da Escola de Alunos Marinheiros para formação e profissionalização de crianças pobres e desvalidas. Cientes disso, a investigação possibilitou-nos constatar que, em Portugal, antes da fundação dessa instituição, já existia uma preocupação com a profissionalização dos órfãos e desvalidos, sobretudo pelo funcionamento da Casa Pia. Todavia, foi com a criação da escola supracitada que essa iniciativa ocorreu pela primeira vez no âmbito militar.
A partir das contribuições de Elias (2000), foi possível analisar as proposições de assistência à infância e de formação moral, em terras lusitanas, como investimentos políticos e institucionais capazes de evitar que as crianças e os jovens desvalidos vivenciassem uma situação de anomia. Para atingir tal intento, as instituições investigadas ofertavam uma educação que proporcionava, ao mesmo tempo, instrução e aprendizagem de ofícios para que os alunos atendidos deixassem de ser desvalidos socialmente.
Apesar da existência de instituições voltadas para a assistência à infância desvalida em Portugal, a proposta de criação da Escola de Alunos Marinheiros de Lisboa foi muito positiva, uma vez que caracterizava o assistencialismo pela profissionalização, possibilitando aos alunos a construção da autonomia, de modo a reduzir a marginalidade. Segundo Caminha, ao passo que essa instituição “produz cidadãos prestantes, concorre de certa maneira para afastar do crime e do vício algumas centenas de crianças, que mais tarde iriam naturalmente, em grande parte, povoar as prisões”. (CAMINHA, 1892, p. 08).
O entendimento educacional da instituição pautava-se na necessidade de uma educação profissional com conotação de reabilitação social e moral, de modo que sua clientela - crianças e jovens órfãos e desvalidos - se tornasse útil a si e à pátria. Constatamos, ainda, que essa proposta de instituição educativa com função de preparar, qualificar e disciplinar os futuros marinheiros da Armada, oferecendo o ensino de primeiras letras e a formação profissional, diferenciava-se das escolas regulares, pois tinha o claro objetivo de inclusão social ancorada na assistência pelo trabalho como solução para a pobreza e o abandono no século XIX.














