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História da Educação

versión impresa ISSN 1414-3518versión On-line ISSN 2236-3459

Hist. Educ. vol.28  Santa Maria  2024  Epub 31-Dic-2024

https://doi.org/10.1590/2236-3459/133506 

Artigo

O ensino de enfermagem em Sergipe: da escola profissional à criação do curso de enfermagem da UFS (1949-1975)

La educación en enfermería en Sergipe: de la escuela profesional a la creación del curso de enfermería de la UFS (1949-1975)

Nursing Teaching in Sergipe: From the Professional School to the Creation of the Nursing Course at UFS (1949-1975)

L'enseignement infirmier à Sergipe: de l'école professionnelle à la création de la formation infirmière à l'UFS (1949-1975)

Elizabete Lima1 

ELIZABETE LIMA é Doutora em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (PPGED/UFS), Mestre em Enfermagem pela Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Enfermeira, Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre História do Ensino Superior (GREPHES). Possui experiência na área de Educação Profissional, ensino superior a nível de graduação e pós-graduação, Terapia intensiva Adulto e Neonatal, Gestão de processos e Educação Permanente da Equipe de enfermagem. É Servidora da Universidade Federal de Sergipe.


http://orcid.org/0000-0002-1832-6135

Josefa Eliana1 

JOSEFA ELIANA é Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006), Mestrado em Educação obtido na Universidade Federal de Sergipe - UFS (1998), Bacharela em História pela Universidade Federal de Sergipe (1984) e Graduada em História, também pela Universidade Federal de Sergipe (1979). Professora Associada do Departamento de Educação e membro do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFS. estão voltados para discussões que dizem respeito ao Ensino Superior no Brasil.


http://orcid.org/0000-0002-8091-5061

1Universidade Federal de Sergipe (UFS), São Cristóvão/SE, Brasil.


Resumo

O objetivo foi descrever a trajetória histórica do ensino de enfermagem em Sergipe, um recorte entre 1949-1975. Períodos compreendidos entre o advento da Lei 775 que demarca a regulamentação do ensino de enfermagem no Brasil e o decreto de autorização da criação do Curso de graduação em enfermagem da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Os pressupostos teóricos amparam-se na história cultural, onde prática e cultura social são constituídas. A metodologia foi a análise documental histórica, através de documentos textuais, e história oral, mediante a narrativa de uma egressa e uma professora. O artigo concluiu que o processo de profissionalização da enfermagem teve como fundamentação o advento da lei 775 e, no curso do aprimoramento das técnicas e práticas do cuidado em enfermagem, o campo científico é consolidado com a criação do curso de enfermagem da UFS.

Palavras-chave: História da Educação; Ensino de Enfermagem em Sergipe; Universidade Federal de Sergipe

Resumen

El objetivo fue para describir la trayectoria histórica de la educación de enfermería en Sergipe, entre 1949 y 1975. Períodos entre el advenimiento de la Ley 775, que delimita la regulación de la enseñanza de enfermería en Brasil, y el decreto que autoriza la creación del curso de graduación en enfermería en la Universidad Federal de Sergipe (UFS). Los supuestos teóricos se basan en la historia cultural, donde se constituyen la práctica y la cultura social. La metodología fue el análisis documental histórico, a través de documentos textuales, y la historia oral, a través de la narrativa de un egresado y un docente. El artículo concluye que el proceso de profesionalización de la enfermería se basó en el advenimiento de la ley 775 y, en el curso del perfeccionamiento de las técnicas y prácticas de atención de enfermería, el campo científico se consolida con la creación del curso de enfermería de la UFS.

Palabras clave: Historia de la Educación; Educación de Enfermería en Sergipe; Universidad Federal de Sergipe

Abstract

The objective was to describe the historical trajectory of nursing education in Sergipe, a period between 1949-1975. Periods between the advent of Law 775 that demarcates the regulation of nursing education in Brazil and the decree authorizing the creation of the undergraduate nursing course at the Federal University of Sergipe (UFS). The theoretical assumptions are supported by cultural history, where practice and social culture are constituted. The methodology was historical documentary analysis, through textual documents, and oral history, through the narrative of a graduate and a teacher. The article concluded that the nursing professionalization process was founded on the advent of law 775 and, in the course of improving nursing care techniques and practices, the scientific field was consolidated with the creation of the UFS nursing course.

Keywords: History of Education; Nursing Education in Sergipe; Federal University of Sergipe

Résumé

L'objectif était de décrire la trajectoire historique de la formation infirmière à Sergipe, une période comprise entre 1949 et 1975. Périodes entre l'avènement de la loi 775 qui délimite la réglementation de la formation infirmière au Brésil et le décret autorisant la création du cours de premier cycle en sciences infirmières à l'Université fédérale de Sergipe (UFS). Les hypothèses théoriques sont étayées par l’histoire culturelle, où se constituent la pratique et la culture sociale. La méthodologie était l'analyse documentaire historique, à travers des documents textuels, et l'histoire orale, à travers le récit d'un diplômé et d'un enseignant. L'article concluait que le processus de professionnalisation des soins infirmiers s'est fondé sur l'avènement de la loi 775 et que, dans le cadre de l'amélioration des techniques et des pratiques de soins infirmiers, le domaine scientifique s'est consolidé avec la création du cours de soins infirmiers de l'UFS.

Mots-clés: Histoire de l’éducation; Formation infirmière à Sergipe; Université fédérale de Sergipe; Allaitement

Introdução

Os primeiros decênios do século XX foram marcados por um período de efervescência nos diversos setores da sociedade, uma vez que o Brasil passava por um processo de reconstrução nacional, onde alinhamentos políticos foram constituídos em prol do progresso e avanços prementes, nesta república. O campo social é repensado, saúde e educação ganham relevo e, por consequência, as práticas de saúde são repensadas à luz do cientificismo e da tecnologia que emergia neste cenário e que refletia nas demandas sociais.

Em que pese retroceder no tempo, as práticas de saúde eram pautadas no cuidado com os enfermos e executadas por pessoas leigas, em sua maioria, mulheres religiosas, pertencentes às ordens sacerdotais missionárias que atribuíam, neste cuidado com o outro, um sentimento de ajuda, caridade e, sobretudo, de altruísmo, valores inestimáveis pregados na doutrina cristã. As ações de atenção e promoção à saúde eram incipientes, e geradas de acordo com os fenômenos que acometiam o cenário nacional que, à época, sofria com epidemias, moléstias e agravos prevalentes de comprometimento individual, coletivo e seus impactos eram diversos e difusos.

Para Moreira (1999), havia a necessidade de construir emblemas e sinais de distinção da profissão enfermagem, a criação de uma Escola e a delimitação de um campo de prática profissional constituíram os pré-requisitos necessários para que fossem retirados do cenário público os visitadores de saúde, agentes leigos que cuidavam da população com conhecimento empírico, sem organização e controle formal. Neste contexto, o ensino em enfermagem é instituído.

A criação da Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública (EEDNSP) representou um marco para a profissionalização da enfermagem no país, a proposta de ensino foi concebida sob um enfoque técnico-científico e, sobre este prisma, difundiu para as capitais do país um novo modelo assistencial de enfermagem, onde as práticas do cuidado foram repensadas e ampliadas para além da simples tarefa reprodutora de auxílio, ajuda e atenção ao outro, mas, uma nova configuração alicerçada com a regulamentação do ensino em enfermagem no país, contemplada na Lei nº 775/ 1949. Ação empreendedora que estabeleceu foco para a enfermagem como prática assistencial regulamentada e ancorada em princípios técnicos e científicos.

Não desvalendo do conhecimento empírico desenvolvido a partir das práticas de saúde realizadas no campo da enfermagem, por pessoas disponíveis e inclinadas para o exercício genuíno do cuidar, acrescido dos achados científicos da época que apontavam para novas incursões neste campo, podemos enxergar fractais sobre o ensino de enfermagem, na perspectiva de um modelo de ensino prático baseado na demonstração, repetição e reprodução. E nessa dinâmica cíclica e contínua, em que pese o referido contexto social e a contribuição de agentes condutores nesse processo educativo: médicos, irmãs de caridade e os profissionais “práticos” em determinados cenários de atuação.

O texto em tela faz referência ao ensino de enfermagem de modo processual, a partir do aprimoramento de suas práticas nos diversos cenários sociais, sob o resguardo de uma determinada fonte de conhecimento. Narra sobre os movimentos emblemáticos que corroboraram a profissionalização deste ofício no cenário nacional e, especificamente, sua ressonância em um determinado estado, no nordeste do país.

Em Sergipe, a assistência de enfermagem apresentava similaridade com a de outras regiões do país, onde as ações eram desenvolvidas nos átrios dos ambientes hospitalares, por profissionais leigos, cujos procedimentos técnicos eram repassados através do profissional médico que, à época, salvaguardava o conhecimento científico neste campo. Contudo, os deslindes sobre acontecimentos históricos que contribuíram na conformação de um saber e, portanto, ratifica a tarefa do historiador no processo de investigação e elucidação sobre os acontecimentos.

Em que pese evocar o conceito de trajetória em Bourdieu (2008), no que tange ao estruturalismo construtivista, cujo entendimento é de um percurso processual e dinâmico, onde os formatos existentes no mundo social podem repercutir na ação das pessoas envolvidas no processo. Isso posto, a trajetória do ensino de enfermagem em Sergipe será descrita em conformidade com as preservações de cultura, hábitos, especificidades e contexto social. Nesse sentido, nosso objetivo foi o de descrever sobre a trajetória histórica do ensino de enfermagem em Sergipe.

Neste estudo a temática estará assentada sobre a história do ensino de enfermagem em Sergipe, cujo objetivo é um recorte entre 1949-1975. Períodos compreendidos entre o advento da Lei 775, responsável pela regulamentação do ensino de enfermagem no Brasil e o decreto de autorização para a criação do Curso de graduação em enfermagem da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Trata-se de um estudo de natureza histórico-social, com vistas a investigação dos fenômenos sociais geradores de “movimentos”, na vida das pessoas, que direta ou indiretamente contribuíram na construção e preservação da história, com destaque para a história cultural como base de abordagem, acerca da trajetória histórica do ensino de enfermagem em Sergipe.

Para Barros (2010), a história cultural é considerada como campo de produção do conhecimento, onde se preservam “homem” e sociedades humanas como objeto de estudo. O que permite trazer, para o cerne da investigação, os possíveis atores sociais envolvidos neste contexto histórico a partir das vozes, dos espaços visitados, ocupados e das memórias responsáveis por deslindar a constituição dos fenômenos, em que pese a sua preservação. Assim, há de se preservar as especificidades e características da enfermagem sergipana, em razão da singularidade, cultura, hábitos e a repercussão desses elementos na composição de um ofício, na sociedade.

Diante do relevante panorama, anteriormente discorrido, o presente estudo tratará sobre a história do ensino em enfermagem a partir dos acontecimentos nacionais que foram ressonantes e que culminaram no processo de implantação de um modelo técnico-científico da enfermagem em Sergipe. Sobre este aspecto, para Certeau (2011), uma reflexão sobre a história é pertinente quando a prática histórica se torna o lugar de um questionamento. Portanto, apoiada neste estudioso, segue a seguinte questão condutora do estudo: como foi concebida a trajetória do ensino de enfermagem em Sergipe?

Barros (2004) alerta quanto a necessidade do diálogo entre os variados campos de conhecimento da história, contudo, sinaliza que o mundo humano não pode ser decalcado do social, do político e do mental. As fontes coletadas no referido estudo compreenderam os documentos oficiais, jornais, revistas e escritos afinados com a temática do ensino de enfermagem em Sergipe, inseridos no recorte cronológico proposto.

O texto está organizado em duas partes: a primeira, intitulada “a primeira Escola profissional em Sergipe” contextualiza ações que resultaram na criação da primeira escola profissional de enfermagem no estado, os passos iniciais para a sua implantação e funcionamento, a disposição da matriz curricular, os impactos para a sociedade e as alunas ingressantes e egressas das turmas iniciais; na segunda parte, “movimentos sociais e a criação do curso de enfermagem da UFS” o presente artigo abordará os movimentos sociais e a criação do Curso de Enfermagem da UFS, o contexto nacional que propiciou o investimento de tamanha monta no estado, a estruturação da representatividade profissional da enfermagem em Sergipe, o processo evolutivo das práticas do cuidado, e a demarcação do campo científico com a criação do curso de enfermagem da UFS.

Como arcabouço metodológico utilizamos a história oral, onde as memórias dos personagens sociais constituem fontes, na narrativa histórica. As entrevistas seguiram um instrumento de coleta de dados, com perguntas semiestruturadas, onde as narrativas foram gravadas no gravador em MP3, seguidas de transcrição direta para a língua escrita. Após transcrição, o participante recebeu uma cópia da entrevista na íntegra, com possibilidades para alterar, suprimir ou acrescentar informações que julgassem necessárias. Foram entrevistadas duas participantes, Sr.ª Maria Vanilde Muniz Barreto, egressa da segunda turma (1956) da Escola profissional de Auxiliares de Enfermagem, e Profª Amélia Maria Torres Aguiar, professoras aposentadas, primeira chefe do departamento e integrante do quadro docente de inauguração do Curso de graduação em enfermagem da UFS.

Sobre a história oral, Alberti (2004) define como um método que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram ou testemunharam acontecimentos, conjunturas, de forma a se aproximar do objeto de estudo que, na perspectiva deste estudo, testemunharam direta ou indiretamente, o percurso de institucionalização do ensino de enfermagem em Sergipe. Visto sob outra lente, Meihy (2006) atesta que o uso da história oral se aplica onde os documentos convencionais não atuam, revelando segredos, detalhes, ângulos pouco ou nada prezados pelos documentos formalizados.

Ademais, utilizamos a análise documental histórica no diálogo com as fontes (textos acadêmicos, documentos oficiais, iconografia, materiais didáticos e buscas em bases de dados, bibliotecas físicas em Instituições de Ensino Superior, arquivo público estadual de Sergipe (APES).

A PRIMEIRA ESCOLA PROFISSIONAL EM SERGIPE

Em Sergipe, o ensino de enfermagem demarca posicionamento técnico-científico nos anos iniciais da década de 50, com a criação da primeira escola profissional de enfermagem, que funcionava no interior de um hospital geral, na capital sergipana. Segundo Vieira e Faro (2001), no “âmago” do Hospital Geral do Estado, cenário de práticas assistenciais de saúde à população sergipana e regiões circunvizinhas, dirigida pela enfermeira Isabel Colquhun Macintyre , sob a indicação do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) que, por sua vez, assim como outras enfermeiras da época, advinham de outras escolas. As circunstâncias provocativas para a sua criação convergem com o contexto social, político e econômico circulantes no país, demarcado pela esperança do progresso emergido pela industrialização, e como reboque, a necessidade de se instituir uma política profissional capaz de regulamentar atos e ofícios que já existiam na sociedade, de modo incipiente e ineficiente, por sua vez, carentes de um olhar sistematizado e oficial.

Para Santos et al (2002), o problema é que a escassez de pessoal para o trabalho de enfermagem tornava-se crítica ao se tornar conhecida a precariedade da saúde pública fora da capital da República. A realidade brasileira era de total escassez de enfermeiras diplomadas e, grande parte dessas profissionais se concentravam no entorno da capital federal. Porém, é preciso que se localize o trabalho do SESP no âmbito do trabalho de assistência à saúde pública pois, no Governo Dutra uma outra situação paralela em relação à enfermagem se desenvolvia com a mudança do modelo de saúde pública para o modelo hospitalocêntrico, ou seja, o avanço da instalação de grandes hospitais nas cidades, deixava clara a insuficiência de pessoal de enfermagem para assistir aos internados.

Indo de encontro com as políticas de atenção à saúde pública difundidas e, por consequência, capitaneadas pelo pragmatismo promovido pelo organismo da enfermagem moderna, planejada e organizada através da celebração entre Fundação Rockefeller e ENSP, cuja proposta de atuação encontrava apoio na compreensão da vida em sociedade, condições sanitárias, habitus , cultura, entre outras variáveis corroborativas na construção de uma identidade social e, por consequência, sanitária. Tal iniciativa provocou uma dissenção, sob o ponto de vista ideológico e programático, haja vistas para a reforma sanitária idealizada e promovida nas décadas passadas. Consoante ao exposto, diante do percurso instituído, as atividades de enfermagem ganhariam uma compreensão alinhada ao formato técnico profissional definida através da sua linha de execução e constante diálogo com o pragmatismo progressista, lactente no campo da industrialização que traz, como desdobramento, a regulamentação do seu ensino.

Ao encontro deste entendimento, a lei nº 775, de 6 de agosto de 1949 dispõe sobre o ensino de enfermagem no País, e sob esse aspecto, atesta que a profissionalização será compreendida sobre dois aspectos: o curso de enfermagem e o curso de auxiliar de enfermagem, onde respectivamente, o primeiro terá a duração de trinta e seis meses, compreendidos os estágios práticos, de acordo com o Regulamento que for expedido, enquanto o segundo terá duração de dezoito meses. Ademais, estabelece condições para o ingresso e dá outras providências, com destaque para as descritas nos seguintes artigos,

Art. 20. Em cada Centro Universitário ou sede de Faculdade de Medicina, deverá haver escola de enfermagem, com os dois cursos de que trata o art. 1º.

Art. 21. As instituições hospitalares, públicas ou privadas, decorridos sete anos, após a publicação desta Lei, não poderão contratar, para a direção dos seus serviços de enfermagem, senão enfermeiros diplomados (BRASIL, 1949).

A referida Lei estabeleceu limites para o exercício da profissão, conforme o nível de habilitação, e ratificou aquilo que estava posto, como habitus, contudo, ocorria de modo usual, quase que automatizado: o alinhamento entre o ensino em enfermagem e o ensino da medicina, por outro lado, personifica a figura do enfermeiro, que à época era denominado “enfermeiro diplomado”, o tornando liderança central e insubstituível para a direção dos serviços de enfermagem. E com essas prerrogativas é criada a escola de auxiliares de enfermagem (Figura 1), configurando o capital social em Sergipe, fruto da união entre os ensinos da enfermagem e da medicina.

Capital social é o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento ou, em outros termos, à vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são unidos por ligações permanentes e úteis. Essas ligações são irredutíveis às relações objetivas de proximidade no espaço físico (geográfico) ou no espaço econômico e social porque são fundadas em trocas inseparavelmente materiais e simbólicas cuja instauração e perpetuação supõe o re-conhecimento dessa proximidade (BOURDIEU, 2007, p. 67).

Figura 1- Portaria nº 504 de 20 de dezembro de 1950. Fonte: Acervo da Escola Augusto Leite (2020). 

Onde se lê, na íntegra, sob o formato de transcrição:

  1. Portaria nº50 de 20/12/1950

  2. Autoriza o funcionamento do curso de auxiliar de enfermagem da Escola de Auxiliares de Enfermagem da Fundação do Hospital de Cirurgia de Sergipe.

  3. O Ministro da Educação e Saúde, nos têrmos do artigo 10, da Lei 775 de 6 de agosto de 1949, e atendendo o quanto se contém no processo no processo 43.570/50,

  4. Resolve:

  5. Artigo único: É concedida autorização para funcionamento do curso de auxiliar de enfermagem da Escola de Auxiliares de Enfermagem da Fundação do Hospital de Cirurgia de Sergipe, com sede em Aracajú, no Estado de Sergipe e mantida pela mesma Fundação.

  6. Rio de janeiro, 20/12/1950.

  7. Pedro Calmon

Desse modo, a escola de auxiliares de enfermagem da fundação do hospital de Cirurgia de Sergipe teve autorização para funcionamento através da portaria nº 50 de 20/12/1950, contudo, iniciou suas atividades no dia 15 de agosto de 1952. Conforme descrito no Histórico da referida instituição,

Iniciaram-se oficialmente as atividades de tal instituição em 15 de agosto de 1952, e pelo Decreto nº 35.783 de 07/07/1954, no governo do presidente Getúlio Vargas teve seu curso reconhecido na gestão do benemérito, Drº Augusto Leite então diretor do Hospital de Cirurgia, ficando a frente da Escola de Enfermagem, a Enfermeira Isabel Colquhoum Macentyre cedida pelo Serviço Especial de Saúde Pública (SESP). Em 04/06/1954, o parecer do relator da Comissão de ensino Superior, Dr Paulo Parreira Horta, acata a decisão da Escola de Enfermagem passar a ser chamada de “Escola de Auxiliar de Enfermagem Drº Augusto Leite”, em homenagem ao seu fundador, no dia 24 de agosto do mesmo ano foi aprovado o uso do selo nacional pelo Ministério da Guerra (ETSAL, 2020, não paginado).

A década de 1950 é marcada, em Sergipe, como um período de elevado investimento técnico e científico no campo da saúde, onde a educação, a partir da composição do seu espaço geográfico, ou seja, do seu campo, se apresenta como pedra angular dessa estrutura, em um respectivo espaço, que em Bourdieu (2008), o define como fator determinante para o campo, onde sua posição é compreendida por um certo estado do espaço, com variação quanto a sua posição mais ou menos singular na sua ocupação e, avaliação diferenciada conforme as disposições que deve a sua origem social.

Assim, houve significativa contribuição desse campo, com o funcionamento de uma escola de auxiliares de enfermagem nos átrios de um Hospital Geral de grande porte e importância para a referida sociedade, empreendimento imponente que representou um sentimento de esperança e novas possibilidades para os jovens sergipanos, em especial, as moças que, a partir de então, iniciariam novos sonhos e projetos de vida que não seriam restritos, unicamente, ao casamento.

Sobre esse aspecto Prost (2008) nos alerta, como questão inerente do historiador, a indissociabilidade entre o documento e o procedimento adotado para abordá-lo, como vestígios, rituais, símbolos e cerimônias para identificar as práticas sociais e culturais. Acrescenta “a investigação oral fez testemunhar os sobreviventes silenciosos da história”.

[...] Ave maria não gostava mesmo de hospital, mas um dia eu vi as alunas descendo da escada, tinha o serviço de puericultura e lá em cima, eram primeiro e segundo andar, e aquelas moças tudo descendo e tinha o uniformezinho todo listradozinho em avental, umas de touca outras sem touca, ai quando eu vi aquilo ali me apaixonei, ai eu cheguei fui logo no outro dia pra falar que queria saber como era, por que eu queria ir pra essa Escola (BARRETO, 2021).

A memória feminina traz para junto de si um misto de sentimentos e emoções que se sobrepõe a razão, que para muitas almas femininas retratam o sentido da vida. Assim, no depoimento de Barreto (2021), em suas memórias, nos revela o sentimento de repulsa sobre o ambiente hospitalar e, por outro lado, o sentimento de afeição despertado pela imagem das alunas devidamente uniformizadas, descendo as escadas. Em Perrot (1989), uma mulher inscreve as circunstâncias de sua vida nos vestidos que ela usa, seus amores na cor de sua echarpe ou na forma de um chapéu. Uma luva, um lenço são para ela relíquias das quais só ela sabe o preço.

Cena significativa ocorre no dia 1º de julho de 1952 que, segundo Etsal (2020) discorre sobre a publicação no Diário Oficial do Estado, o 1º edital de convocação de candidatos ao curso, onde além dos documentos exigidos por lei, o candidato deveria apresentar no ato da inscrição, certificado de conclusão do curso primário. Após exame de seleção constando de: português, aritmética e conhecimentos gerais. Foi inaugurada a escola no dia 15 de agosto do mesmo ano, com início das aulas no dia 16, constando de 30 alunos (Quadro 1). Quanto ao corpo docente, havia dificuldade para a aquisição de enfermeiras, com isso, a diretora da escola compunha o quadro docente, e mais 03 enfermeiras. Diante da escassez, registra-se a contribuição de alguns médicos do hospital, entre eles: Fernando Sampaio, Hugo Gurgel, Lourival Bonfim, Osvaldo Souza, Osvaldo Leite, Lauro Pôrto, José Machado de Sousa. A Escola formou até o ano de 1969, 25 turmas, um total de 299 auxiliares de enfermagem espalhados por quase todo Brasil. Até o presente momento registra-se que a referida escola era mantida pelo Hospital de Cirurgia.

[...] Eram dezoito meses na escola, mas tinha alunas que ficavam internas, as vezes vinham do interior, como umas meninas, uma era de Propriá e outra do Pão de Açúcar, então todas duas eram do SESP que era o Serviço Especial de Saúde Pública, ai vinham e ficavam internas... tinha refeitório para almoçar, lanche, tudo... e a gente ainda ganhava cinquenta cruzeiros por mês que dava pra comprar lápis, naquela época né... você veja bem minha turma foi 55B, a gente vestia só a fardinha assim azul, as formaturas eram ali no Instituto Histórico, na rua de Itabaiana (BARRETO, 2021).

Para Perrot, (1989) no teatro da memória, as mulheres são sombras tênues, os modos de registros estão ligados à sua condição, ao seu lugar na família e sociedade, neste sentido fica evidente a primazia e zelo envolvidos no processo de condução das ações prestadas e dos recursos disponíveis às alunas desta escola.

Quadro 1 -  Disciplinas cursadas no curso profissionalizante nos anos iniciais do curso de auxiliar de enfermagem da escola profissional Drº Augusto Leite. 

DISCIPLINAS PROFISSIONALIZANTES
Ética e História da Enfermagem
Noções de anatomia e fisiologia humana
Noções sobre nutrição e dietética
Noções sobre microbiologia, parasitologia e patologia
Fundamentos da Enfermagem (Técnicas básicas)
Enfermagem da comunidade
Noções sobre higiêne e profilaxia
Enfermagem em clínica médico-cirúrgica
Enfermagem em primeiros socorros
Enfermagem em centro cirúrgico
Enfermagem em clínica pediátrica
Enfermagem em clínica de doenças transmissíveis
Enfermagem em clínica psiquiátrica
Enfermagem em clínica urológica (sexo masculino)
Educação moral e cívica
Educação Física

Fonte: Histórico escolar do curso concluído, disponível no acervo da Escola Augusto Leite (2020).

Chama atenção a quantidade de disciplinas profissionalizantes de atenção à saúde do paciente, em comparação com a disciplina “enfermagem na comunidade”, praticada na saúde pública, e as disciplinas básicas: educação física e educação moral e cívica, ambas do eixo pré-profissional que, respectivamente, primavam pela saúde e bem estar, e promoviam o sentimento de civismo como eixo formador dos cidadãos para o trabalho e vida racional, porém, há de se inferir possíveis controvérsias quanto a sua autonomia ou doutrina, mas não cabe nesta discussão.

Assim, na descrição das disciplinas contidas no histórico escolar do curso de auxiliar de enfermagem da Escola de auxiliar de enfermagem Drº Augusto Leite, compreende-se o perfil do egresso que se pretendia formar, um profissional ético, disciplinado e capacitado para o exercício da enfermagem, em nível elementar, inclinado, sobretudo, para a prática clínica promovida no ambiente hospitalar, nas casas de saúde e demais cenários de prática que atuavam na assistência ao doente. Sob esta égide, compreende-se todo o processo formativo e, por fim, a certificação do curso (Figura 2).

Figura 2 - Certificado da 1ª turma da Escola de auxiliar de enfermagem “Dr. Augusto Leite” Fonte: Acervo da Escola Augusto Leite (2020). 

A certificação para o exercício da profissão representou uma quebra de paradigma para a sociedade sergipana, uma vez que propiciou a oficialização de uma atividade, já conhecida, consolidada e essencial na sociedade, executada através de um jugo que se limitava ao exercício das reproduções e representações balizadas sob uma ação específica e intencional, cuja eficiência e base científica eram rasas e insuficientes, haja vistas o ritmo e avanços que permeavam o campo, à época. Ademais, atribuiu valor e, por consequência, elevou a autoestima de uma classe trabalhadora que, até o presente contexto, não enxergava outras possibilidades de ascensão econômica e social, senão, por força de caminhos já conhecidos, consolidados e disponíveis no referido contexto.

[...] Eu trabalhei ali por 12 anos, eu como auxiliar de enfermagem cheguei a ser chefe de sessão... tinha sessão feminina, naquela época veja como era, você boa aluna tinha 10% do ordenado por eu ter chefia mais 10% [...] trabalhei com Dr José Machado de Souza no hospital infantil muito meu amigo, mas depois a gente sempre procura ganhar mais um pouquinho...foi quando eu fiz concurso pro DASP e passei. Agora você vê... eu fui noiva de aliança três vezes, brinquei muito, namorei, viajava muito, mas a minha missão era outra (BARRETO, 2021).

Perrot (1989) assinala que, nos interrogamos sobre o papel das mulheres nos acontecimentos públicos, a memória das mulheres é verbo, ela está ligada a oralidade das sociedades tradicionais, em razão do seu obscurantismo e invisibilidade, buscou-se fazer surgir o testemunho oral, na falta dos testemunhos escritos. Nas memórias descortinadas por Barreto (2021) que, em alguns momentos de voz embargada, orgulhosa do seu feito, inquietou-se por dizer repetidas vezes, “essa foi a minha história”.

Portanto, a história da enfermagem sergipana descortinou uma intimidade existente entre o papel da mulher, no tocante à sua ascensão e ruptura com a hegemonia social idealizada e imposta sobre a sua figura como ser meigo, frágil, e, sobretudo, com necessidades de proteção e sustento; por outro lado, as condições limitantes que lhe foram atribuídas nesta sociedade ganharam fissuras decorrentes das demandas emergidas neste cenário que, por consequência, promoveram novos olhares, não mais restritos aos afazeres domésticos, e neste processo evolutivo, o olhar feminino enxergou uma real possibilidade de visibilidade cultural, econômica e social.

A imagem (Figura 3) nos apresenta a formatura da 2ª turma, denominada turma 55-B, onde se registra a imagem das seguintes formandas: Josete Lima, Marcelina da Silva, Ilná Franscisca Santos, Clara Maria Santana, Maria do Carmo Luz, Maria Vanilde Barreto, Maria de Lourdes Prado, Maria José Pinto, Maria Helena Soares de Melo, Maria Cândida Sampaio, Maria de Nazareth Velozo, Vilma Alves da Mota e Cosete Lima Santos. Como personalidades homenageadas, destaque para a Diretora da Escola, a Enfermeira Isabel Colquhoum Macintyre e para o Drº Augusto Leite.

Figura 3 - Foto da 2ª turma da Escola de auxiliar de enfermagem “Dr. Augusto Leite” Fonte: Acervo da Escola Augusto Leite (2020). 

Desse modo, podemos atestar que a história da enfermagem sergipana tem como um de seus pilares, a escola de auxiliares de enfermagem “Drº Augusto Leite”, compreendida como uma valiosa relíquia de estima inigualável para a compreensão da composição deste cenário e, sobretudo, da sua representatividade, como instituição-modelo para o ensino profissionalizante em Sergipe, fato que reverbera inquietação e aprofundamento em novas proposituras no tocante a sua própria história.

MOVIMENTOS SOCIAIS E A CRIAÇÃO DO CURSO DE ENFERMAGEM DA UFS

No campo social, Norbert Elias (1987) diz que a sociedade somos nós, ou seja, uma porção de pessoas juntas com características próprias e, portanto, com especificidades que se estabelecem entre elas, a exemplo de pessoas de países distintos que se agrupam e carregam entre si, um perfil único e inerente de um devido contexto social construído e reproduzido que, sem intenção ou provocação, sofrem mudanças, originárias de seus países diferentes. E acrescenta, “Decerto nos apercebemos, ao mesmo tempo, de que na realidade não existe esse abismo entre o indivíduo e a sociedade. Ninguém duvida de que os indivíduos formam a sociedade ou de que toda sociedade é uma sociedade de indivíduos” (ELIAS, 1987, p. 14)

Sob esta ótica, a sociedade sergipana se estrutura, se organiza e se debruça sobre a sua gente, suas características, necessidades e aspirações, de igual modo, reflete sobre suas práticas e em especial, as práticas assistenciais em enfermagem. A consolidação organizativa social no entorno da enfermagem sergipana é selada com a criação da Associação Brasileira de Enfermagem - seção Sergipe (ABEn-SE). Isto posto, Mattos e Campos (2011, p. 399-401) assinalam,

[...] no período de 1954-1957, exatamente em 12 de abril de 1954 o grupo de enfermeiras, presididas por Isabel C. Macintyre, diretora da Escola de Auxiliares de Enfermagem, do Hospital de Cirurgia, cria a diretoria provisória da ABEn-SE, com a finalidade de organizá-la e eleger sua diretoria efetiva, um mês depois tomou posse a primeira diretora, tendo como presidente Opelina Rollemberg [...] destacam o entusiasmo das abenistas impregnadas da ideia de que a ABEn seria a grande alavanca de mudanças na enfermagem sergipana e dá visibilidade aos feitos realizados pelos profissionais de enfermagem local, destacando como fio condutor: garra, vontade e coração.

Fato que obteve êxito, no tocante ao que fora proposto: fomento às programações culturais, diálogo com frentes de trabalho, elaboração de eventos e, incentivo às pesquisas no campo científico e cenário de debates e diálogos sobre a valorização, reconhecimento e cientificismo da enfermagem em Sergipe. Questionamentos, reflexões e proposituras que provocaram uma nova postura profissional e, portanto, alinhamento às demandas que emergiam no cenário nacional e por conseguinte, em Sergipe.

As condições de saúde e educação aspiravam por medidas austeras capazes de impactar nas condições de vida da população, sob outra vertente, o país protagonizava um movimento industrial que promovia um ambiente fecundo de ascensão econômica, política e social, marca registrada do então presidente Jucelino Kubtischek de Oliveira, de modo que se assiste ao deslocamento gradativo da sociedade agrária pela industrial. Rovai (2010) chama atenção para o modelo educacional que se encontrava em voga, onde a formação acadêmica era revestida de um caráter ilustrativo para os jovens de classe alta, responsáveis pela formação dos quadros políticos e administrativos, enquanto os cursos profissionalizantes eram considerados meros preparadores de mão de obra para o trabalho manual, o que foi perpetuado por algumas décadas.

E nesse aspecto, a prática do exercício em enfermagem ganha um novo tom, sobretudo oficial, com as condições necessárias e determinantes para o ensino de enfermagem, com a definição de regras, prazos e níveis de competência e grau de habilitação que, para alguns historiadores do tema, foi encarado como retrocesso e desvalia no que concerne ao investimento cultural, social e econômico, capitaneado pelo modelo instituído como padrão, nas décadas passadas, sob os auspícios da enfermagem moderna que alinhava o cuidado às práticas assistenciais prestadas nos hospitais mas, sobremaneira, apoiava o foco na saúde pública como modus operandi no exercício da profissão, através da assistência e promoção da saúde, tal qual proposto na reforma sanitária. Todavia, a dicotomia construída neste exercício encontra convergência em sua estrutura, que encontra amparo no ato de ensinar.

O que se trata de ensinar é essencialmente um modus operandi, um modo de produção científico que supõe um modo de percepção, um conjunto de princípios de visão e de divisão, a única maneira de adquirir e de ver operar praticamente ou de observar o modo como esse hábito científico reage perante ações práticas (BOURDIEU, 1989, p. 21-22).

E sob esta conformação de ensino, a profissionalização da enfermagem empreende novos olhares e cria um ambiente propício à execução de um cuidado genuíno e intuitivo, com raízes e características sedimentadas na cultura da sua gente, mas, alinhado às tecnologias reproduzidas e aplicadas em outros cenários e contextos que, em virtude disso, se desloca em direção ao afinamento desse novo olhar e, por consequência, da implantação de um novo habitus, o científico.

Portanto, os acontecimentos significativos que transcorreram ao longo das décadas anteriores a criação do curso de enfermagem da UFS, refletiram sobre a necessidade de um aprimoramento necessário e natural dessas práticas e, em razão disso, uma nova compreensão sobre o cuidado passou a compor essa memória social, sob um caminho nada linear. Ora, partindo dessa assertiva, há de se pensar a prática do cuidado como algo que historicamente encontrava abrigo nas primícias da benignidade e irmandade religiosa, mas, ao se transpor como prática de enfermagem, perde a estabilidade e, com os impactos gerados nesta sociedade, se aprimoram com as experiências de cada singularidade do cuidar e, posteriormente, repousam como uma vertente do conhecimento.

Tal reflexão nos remete à compreensão apresentada pela Profª Mª Helena Pereira Toledo Machado (2007), ao tratar sobre a ideia de história universal que exclui grupos dominados, vozes subalternas e minorias, a favor de uma história pronta, ou seja, estática e linear, e para isso, usa a metáfora da árvore, e destaca como sendo “uma árvore maravilhosa, cheia de raízes, que tem um tronco forte e cheio de galhos”, sob outra vertente, nos dá como exemplo a imagem de um bulbo, cuja raiz se apresenta de modo plural, em constante sintonia entre si, uma vez que sua estrutura não está alicerçada sob uma estrutura única e, sim, através de uma trama de ramificações que se espraiam sob uma dinâmica constante; de sorte que a figura de linguagem retratada, de ilustração pouco encantadora, nos traz novas proposições para que a história seja retratada, uma vez que reverbera as marcas da provisoriedade, fragmentação e constante reinvenção, sem que haja uma estrutura hierarquizada, tal qual se alinha com o percurso adotado pela prática do cuidado em enfermagem, ao longo dos anos (Figura 4).

Figura 4 -  O aprimoramento do cuidado em enfermagem e a metáfora do bulbo: o caso de Sergipe Fonte: Idealização da autora (2021).  

Na representação histórica sobre os caminhos percorridos pela enfermagem sergipana, desde as ações incipientes de atenção à saúde, o ensino do cuidado demarcado com a criação da primeira escola profissional de enfermagem no estado, até a criação do curso de enfermagem da UFS, reverbera uma trilha, ou seja, o aprimoramento de um cuidado que emergiu de modo genuíno, nato, há quem o assemelhe ao cuidado da mãe com seu filho, na melhor das comparações possíveis, tamanha abnegação e doação para tal ato, contudo, a metáfora do bulbo, traz a figura horizontalizada das suas raízes, na perspectiva de uma representação sob o formato de teia, que dialogam entre si e estabelecem conexões e sem que para isso haja uma estrutura hierarquizada.

Isto posto, o caminho trilhado pelo cuidado em enfermagem trouxe como marco zero, o cuidado empírico, pautado no conhecimento popular, validado pelas experiências e executado por leigos inclinados para a arte de cuidar; a reprodução do cuidado através dos práticos, que tinha na figura do médico, o guardião do conhecimento e responsável pela demonstração e reprodução desse cuidado aos chamados “práticos”; educação do cuidado, através do curso de visitadora, organizado e conduzido pela presença da enfermeira diplomada, representante do ministério da educação e saúde no estado, via DSPSE; ensino do cuidado, regulamentado por imperativo legal e, posteriormente implantado com a criação da escola profissional de auxiliares de enfermagem; estruturação do cuidado configurado através da organização social das enfermeiras diplomadas, com vistas a consolidação do habitus e, por conseguinte, estruturação de organismos responsáveis por instituir o exercício profissional no estado.

E nesta compreensão inicia-se a conformação deste movimento, sob o incremento da escolarização e as tecnologias do ensino em enfermagem; práticas afinadas em direção à consolidação do hábito científico. E sob esse eixo, a proposta do ensino profissionalizante emerge no cenário nacional, a exemplo de Sergipe. Chamo atenção que sob essa égide, os olhares para o fenômeno são ampliados, há investimentos para uma nova propositura em razão do ambiente propício e favorável para as ações de aproximação entre cuidado, tecnologia e ensino em enfermagem, contudo, o ato contínuo de cuidar se mantém alicerçado sob uma essência naturalmente altruísta, genuína e intuitiva, que decorre de uma bagagem moral e ética individual, enraizada sob pilares inegociáveis e de vontade própria que se disponibiliza a favor das tecnologias emergentes que representavam um novo modus operandi para a execução de novas práticas assistenciais.

Dessarte, o ensino superior no país teve real investidura nas primeiras décadas do século XX, cabe acrescentar que as tentativas anteriores foram compreendidas como ações isoladas, porém determinantes para a construção de um novo cenário, neste campo. O novo ensino apresentava como eixo condutor, um alinhamento entre as diversas práticas sociais e o aprimoramento nos meios de produção e, sobre este aspecto, buscava no campo educacional, instrumentalizar a população através do campo científico, logo, propunha um afinamento entre educação e os demais setores desta sociedade, com enfoque exclusivamente profissional. Evento que ganha musculatura e significativa prospecção no governo Vargas, cujo o status das universidades foram retratados como o lócus do ensino, pesquisa, formação acadêmica e profissional, demandas disparadas nas primeiras décadas do novo século e que permaneciam latentes no referido contexto, com destaque para a hegemonia das instituições religiosas, fenômeno evidente em Sergipe que avançava no campo do ensino superior, com progressão tímida e pouco efetiva que corrobora as desigualdades sociais e déficits nos variados espaços de atuação profissional.

Em Sergipe as faculdades isoladas já eram realidades em Sergipe. Segundo Santos (2017), o ensino- superior em Sergipe, no século XX, encontrava-se em fase de implantação e se restringia ao campo religioso, todavia, ainda era latente a necessidade de se criar uma instituição para a formação da elite local, bem como, novos espaços para atuação profissional.

Em sua obra, História e Memória: Universidade Federal de Sergipe, Eliana Souza (2015) pontua que, o Estado de Sergipe precisou aguardar para ver realizado o sonho de implantação das faculdades locais, mencionando tentativas não exitosas, em momentos distintos da história. O sentimento era de recomeço e vigor, segundo a autora: “O novo século chegaria respirando ares de república e permeado de sonhos, entre eles, o de criar uma escola de ensino superior” (SOUZA, 2015, p. 32).

Bretas (2014) pontua que, o ensino superior no Estado de Sergipe se configura no cenário nacional, primeiramente, com a instituição das Faculdades isoladas. Considerado muito recente, o ensino no Estado foi iniciado em 1920, vindo a funcionar formalmente nos primeiros anos da década de 1950, no período político de federalização das Universidades, com quatro faculdades que ofereciam os cursos de Química, Economia, Direito, Filosofia, um tempo depois, a escola de serviço social e, finalmente, a faculdade de ciências médicas. A UFS começou a ser criada no ano de 1963, pela lei n. 1.194, de 11 de junho, quando o governador do Estado de Sergipe, João de Seixas Dória (1963-1964), autorizou a transferência dos estabelecimentos de ensino superior existentes no Estado para a Universidade Federal de Sergipe.

A criação do curso de Enfermagem da UFS fez parte de um amplo projeto nacional de difusão do ensino superior no país. Para Aguiar (2021), a criação do Curso se deu por decreto assinado pelo presidente Ernesto Geisel, que presidiu a República do Brasil nos anos de 1974 a 1979, no qual determinava a criação nos 22 estados brasileiros, onde o curso não existia. Sobre esta questão, acrecenta,

[...] Não me consta nenhum fenômeno especial, no campo da saúde, que motivasse a criação, exceto o próprio crescimento das capitais contempladas e consequentemente o aumento populacional dos mesmos, que começaram a ter novos hospitais, como aqui em Aracaju: as Clínicas Santa Helena, Santa Lúcia, a Clínica Renascença e o hospital São Lucas. Assim, a cada dia, o aumento da necessidade de profissionais qualificados. Na época, as Enfermeiras, que aqui trabalhavam ou eram sergipanas que iam cursar enfermagem em outros estados, ou eram de diferentes estados do Brasil e até estrangeiras (AGUIAR, 2021).

Destarte que a criação do curso de enfermagem da UFS representou o apogeu da profissão em Sergipe, com novas perspectivas, cenários e proposições consubstanciadas no campo técnico e científico, sob o auspício de um “novo tempo”, propulsor de novas possibilidades e avanços.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste texto, procuramos descrever acontecimentos e avanços sociais que repercutiram significativamente para o desenvolvimento profissional da enfermagem em Sergipe, através da implantação e, posteriormente, consolidação do ensino de enfermagem no estado. No desenrolar dos fenômenos, neste campo, foi possível evidenciar a conformação de um ensino profissional fragmentado e constituído sob um cenário singular, pautado nas relações estabelecidas nesta sociedade, sem descartar as condicionantes deste processo, como costumes, hábitos, a cultura e demais necessidades específicas geradoras de demandas concernentes com seus modus operandi e, nesta compreensão, a sociedade se estabeleceu sob um determinado contexto histórico, onde as relações foram se estabelecendo de modo hierarquizado, em razão da evolução da enfermagem moderna, que propunha ações e práticas assistenciais alicerçadas, inicialmente, no campo da saúde pública, prática que não perdurou e, sob uma mudança de rumo na história política, econômica e social, na perspectiva da era de produção, orquestrada pela industrialização, o ensino profissional ganha um novo entendimento, passa a ser encarado como algo objetivo, especializado e de resposta rápida aos anseios capitalistas tendentes da época.

O movimento de profissionalização da enfermagem no estado de Sergipe teve início com a criação do Departamento de Saúde Pública do Estado, momento de tamanha relevância e significado, onde saúde e educação demarcaram sua trajetória alicerçados na ciência, pesquisa e ensino, não obstante, ganhou formato e fundamentação com as diretrizes propostas na lei 775/1949. O presente texto elucida ainda que, o processo de implantação e estruturação do serviço de enfermagem em Sergipe ganhou relevo na década de 1950, com o funcionamento da primeira escola profissional de auxiliares de enfermagem do estado, Escola de Auxiliares de Enfermagem Drº Augusto Leite. No curso evolutivo do aprimoramento das técnicas e práticas do cuidado em enfermagem, o campo científico teve como consolidação, o decreto responsável pela autorização da criação do Curso de Enfermagem da Universidade Federal de Sergipe. Pauta para uma nova história.

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Recebido: 13 de Julho de 2023; Aceito: 08 de Abril de 2024

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