Introdução
O presente artigo é resultante de um recorte da pesquisa de dissertação de Mestrado, vinculada ao Programa de Pós Graduação em Educação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que tem por objetivo analisar as representações sobre a educação feminina no jornal Brado Conservador (1876-1881), que circularam durante o século XIX, na cidade de Assú (RN).
A cidade supracitada é um município do Rio Grande do Norte que está localizada a uma distância de 210 km de Natal, e que ficou reconhecida historicamente pelo seu desenvolvimento cultural, por meio da produção de jornais e poesias; esse foi um aspecto determinante para que Assú ganhasse pseudônimos como, por exemplo, Terra dos Poetas e Atenas Norte-rio-grandense.
Segundo Santos e Barros (2016), o pseudônimo de “Atenas Norte-rio-grandense” aparece desde o livro Poetas do Rio Grande do Norte (1922), de autoria de Ezequiel Wanderley, que apresentou em sua obra o total de 25 poetas assuenses, como também a canção composta por Rômulo Wanderley, intitulada “Terra dos verdes carnaubais”. Dessa forma, podemos notar a influência da elite da época, em garantir esse poder simbólico/cultural para a cidade de Assú, a partir da referência à Atenas, capital da Grécia, uma das principais cidades do mundo grego antigo; considerada como o berço da civilização ocidental, dando origem a filosofia e literatura.
Neste sentido este trabalho tem relevância por contribuir com a historiografia da educação feminina, na cidade de Assú (RN), pois, durante nosso processo de estudo, notamos que há certa tendência em destacar a educação dos homens assuenses, e nós enquanto pesquisadoras buscamos, por meio de análise documental, evidenciar o que se pensava e propagava também sobre a educação voltada para as mulheres, percebendo através das representações sobre a educação feminina, veiculadas no jornal Brado Conservador, as influências na formação das mulheres assuenses na determinação de normas, costumes e valores que moldaram o papel feminino perante a sociedade da época.
Desta forma, analisamos as representações da educação feminina presentes no jornal, observando minuciosamente as mensagens, ideários e perspectivas veiculadas em relação à educação do gênero feminino.
O caminho teórico metodológico que seguimos é através da Nova História Cultural, embasada no que afirma Chartier (2002) que a história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler.
A partir dessa análise bibliográfica e documental, buscamos compreender como o jornal Brado Conservador contribuiu para a construção de representações da educação feminina, intervindo nas concepções, nos ideários, e sobre o papel da mulher na sociedade da época.
A representação feminina no século XIX
O período oitocentista foi marcado por uma forte divisão entre os sexos feminino e masculino, com a imposição de discursos e normas sociais que limitavam e restringiam o papel das mulheres na sociedade.
No Brasil, em meados do século XIX, as mulheres exerciam diferentes níveis de poder e representação de acordo com sua classe social e raça. Aquelas pertencentes a grupos privilegiados, com poder econômico e influência social, desfrutavam de uma expressão de poder divergente das mulheres pobres e negras.
Falci (2004) retrata quais representações eram definidas entre os homens e as mulheres, no sertão nordestino:
Hierarquias rígidas, gradações reconhecidas: em primeiro lugar e acima de tudo, o homem, o fazendeiro, o político local ou provincial, o “culto” pelo grau de doutor, anel e passagem pelo curso jurídico de Olinda ou Universidade de Coimbra, ou mesmo o vaqueiro. O pior de tudo era ser escravo e negro. Entre as mulheres, a senhora, dama, dona fulana, ou apenas dona, eram categorias primeiras; em seguida ser “pipira” ou “cunhã" ou roceira e, finalmente, apenas escrava e negra. O princípio da riqueza marcava o reconhecimento social. O princípio da cor poderia confirmá-lo ou era abafado, o princípio da cultura o preservava. Ser filha de fazendeiro, bem alva, ser herdeira de escravos, gado e terras era o ideal de mulher naquele sertão. (Falci, 2004, p. 203)
A condição social, a cor da pele e o gênero influenciavam as posições ocupadas pelos indivíduos na sociedade. Vale salientar que essas diferenças de poder não são isoladas, mas estão inseridas em um contexto social mais amplo que acabava por reforçar hierarquias e desigualdades.
Por esta razão, destacamos a importância de realizar uma pesquisa sobre o feminino, na busca de compreender a diversidade de mulheres que existem, sendo necessário pensar também sobre sua classe social e sua raça, para que possamos entender os privilégios e dificuldades que as diversas mulheres enfrentaram, não apenas pelo seu gênero, mas também por sua classe ou raça.
Segundo D’incao (2004), no período oitocentista, o Brasil passou por diversas transformações que impactaram significativamente a sociedade, como por exemplo, o processo de consolidação do capitalismo, o crescimento das áreas urbanas, a ascensão da burguesia e o surgimento de uma nova mentalidade burguesa, que trouxeram mudanças profundas nas relações familiares e nas atividades femininas.
A representação da nova mulher burguesa emergiu nesse período, marcada por uma série de expectativas e normas sociais que a colocavam como o pilar central da vida familiar.
Um sólido ambiente familiar, o lar acolhedor, filhos educados e esposa dedicada ao marido, às crianças e desobrigada de qualquer trabalho produtivo representavam o ideal de retidão e probidade, um tesouro social imprescindível. Verdadeiros emblemas desse mundo relativamente fechado, a boa reputação financeira e a articulação com a parentela como forma de proteção ao mundo externo também marcaram o processo de urbanização do país. (D’icao, 2004 p. 187).
Esta representação da mulher no século XIX é atravessada pela idealização patriarcal, burguesa e religiosa, sobre como deveria ser o comportamento ideal feminino, restringindo sua postura e até sua maneira de pensar, limitando sua essência feminina à imagem atrelada aos adjetivos de pureza, doçura, moralidade cristã, entre outros, incumbindo a elas todo equilíbrio social que deveria perdurar na sociedade.
Mais dedicado às mulheres que aos homens, o autor J. I. Roquette propunha que a vida fosse feita de polidez, cortesia, subserviência e dissimulação. Para ele, a boa conduta feminina em ambiente social deveria seguir as seguintes regras básicas: “Caso se calarem, cala-te também [..]; se te divertires, não mostres senão uma alegria moderada; se estiveres aborrecida, dissimula e não dês a conhecer[..]nunca por tua vontade prolongues a conversação. Aceita e come o que te oferecem e, quando desejes outra coisa, não o digas. Não ostente em público suas prendas”. Ainda segundo Roquette, numa convivência festiva deveriam ser servidas aos homens três taças de vinho, para evitar excessos, e para a mulher nenhuma, pois, assim, garantia-se uma conduta respeitosa e obediente por parte delas para com seus senhores, assegurando um comportamento feminino conveniente. (Del Priore, 2020, p. 104).
O período oitocentista é marcado pela linha tênue entre o espaço privado e o público, principalmente, quando olhamos para o feminino, através de sua raça e classe, pois mulheres brancas e pertencentes à elite estavam reservadas ao espaço privado, eram vistas como donas do lar, boas esposas e mãe.
Em contraponto, as mulheres pobres e em sua maioria negras, já participavam do espaço público, servindo as mulheres da elite, muitas trabalhando em suas casas ou lavanderias, fazendo doces ou costuras. Essas mulheres frequentemente transitavam no espaço público, em contraste com as mulheres da elite, que tinham uma presença mais restrita ao espaço privado. (Del Priore, 2004)
Essas dinâmicas revelam a complexidade das relações de gênero, raça e classe social na sociedade brasileira do período, e compreendemos que esse fator dissonante entre as mulheres é uma das razões de ser tão difícil escrever sobre a história delas, como bem afirma Del Priore (2004), quando fala da dificuldade de conhecer a história das mulheres, pois muitas não tiveram sequer o direito à educação. Nada escreveram, não existem vestígios sobre sua vida; se sonharam, para poder sobreviver, não podemos saber.
Na cidade de Assú, conseguimos perceber através de nossa investigação, a presença dessas distinções entre as mulheres, como afirma Silva (2017), as comemorações festivas, os bailes, reforçavam as desigualdades sociais presentes na sociedade. Nos bailes, por exemplo, permitia-se apenas a participação de membros da elite assuense. Um grupo ficava encarregado de permanecer na entrada anunciando a chegada das famílias e de impedir o acesso de pessoas que não pertenciam a esse meio social.
[...] Apesar de ser uma festa de todos, existiu uma preocupação de não se misturarem as classes. A medida encontrada foi organizar outro baile para os membros das classes consideradas inferiores com a determinação de que as moças comparecessem vestidas de linho todo sombreado forrado de cor rósea para não confundir com os vestidos brancos utilizados pelas moças da elite. (Pinheiro, 1997, p. 77. apud Silva, 2017, p. 59-60).
Esse trecho mencionado acima, nos revela um aspecto curioso sobre as festividades em Assú, destacando a existência de distinções de classes e a preocupação em preservar a hierarquia social mesmo em eventos festivos, que teoricamente, deveriam ser abertos a todos.
Através dessa organização de um baile separado para membros de classes abastardas, com a orientação de que as moças usassem vestidos de linho e forrados de cor rósea, enquanto as moças de elite usavam vestidos brancos, evidencia-se uma clara segregação social. Essa separação por meio da vestimenta buscava evitar confusões e manter as diferenças sociais bem definidas mesmo que em um ambiente de celebração, Como nos aponta Freyre (2013):
A mulher patriarcal no Brasil - principalmente a do sobrado - embora andasse dentro de casa de cabeção e chinelo sem meia, esmerava-se nos vestidos de aparecer aos homens na igreja e nas festas, destacando-se então, tanto do outro sexo como das mulheres de outra classe e de outra raça, pelo excesso ou exagero de enfeite, de ornamentação, de babado, de renda, de pluma, de fita, de ouro fino, de joias, de anel nos dedos, de bichas nas orelhas. (Freyre, 2013, p. 133).
Essa prática ilustra a forma como a sociedade do período reproduzia e reforçava as hierarquias sociais e as distinções de classe. Havia uma nítida preocupação em manter as classes separadas, preservando a imagem e a posição social da elite.
Compreendemos dessa forma que a vida feminina, independentemente de sua cor ou classe social, sempre foi circunscrita pelos ideais sociais masculinos, determinando normas e condutas, com características bem definidas, polarizando cada vez as desigualdades. Desta forma, destacamos que as mulheres de Assú, que pertenciam à elite, é que poderiam ter mais acesso à leitura e escrita, do que as mulheres pobres, que não tinham tanto acesso à leitura e à escrita, quanto às mulheres com maiores condições financeiras.
O espaço educacional foi um dos primeiros passos que as mulheres da elite caminharam para além do seu lar. Um local que também foi um campo minado. O patriarcado temia o mau uso da leitura e da escrita feminina, sugerindo que elas poderiam utilizar desse recurso para trai-los. Então, a educação feminina, por um longo período, se restringia a recitar preces e algumas poucas noções básicas matemáticas. A ignorância feminina era de interesse de controle dos homens sob a vida das mulheres.
Somente em meados do século XIX que a educação passou a ser considerada como o primeiro passo a ser dado para tirar as mulheres do estado de inferioridade em que a ignorância as havia colocado. E, desde o início, a educação feminina foi concebida a partir de uma visão romântica, respaldada na religião e na moral, necessária para estimular a dignidade e preparar a futura mulher para assumir suas funções de mãe e de esposa junto à família.
Essa visão restritiva da educação feminina enfatizava a importância da dignidade e das virtudes morais, deixando de lado uma formação intelectual mais aprofundada, que era reservada exclusivamente aos homens. Para as mulheres, bastava o ensino primário e o desenvolvimento de habilidades práticas e manuais. (Duarte, 2010)
Em Assú, segundo Silva (2017), os primeiros vestígios sobre a educação se dão através da política para o funcionamento das Escolas de Primeiras Letras, que teve início com a criação de uma cadeira masculina de primeiras letras, em 2 de setembro de 1829. No dia 5 do mesmo mês, é criada outra cadeira feminina. Apenas em 1873, foi criada uma segunda cadeira primária do sexo masculino na cidade. (Lima, 1990, p. 143 apud. Silva, 2017, p. 77)
Sobre as mulheres de Assú, em espaço público, no campo educacional, Silva (2017) nos fornece a informação de que Dona Maria Joaquina Ezequiel da Trindade assumiu, em 1834, a segunda cadeira da Escola de Primeiras Letras em Assú, especificamente criada para o público feminino, sendo a primeira professora a lecionar na cidade. Essa escola funcionava na própria residência da professora.
Outra mulher em destaque no campo educacional de Assú é a professora Luiza de França. De acordo com Silva (2017), ela exerceu atividades entre os anos de 1881 a 1893. O autor destaca que a professora “era responsável pela inclusão de homens e mulheres de uma condição social mais abastada no mundo das letras.” (Silva, 2017, p. 81).
É importante ressaltar novamente que, durante meados do século XIX, a educação na cidade de Assú era um privilégio de poucos afortunados, e que grande parcela da população era analfabeta. De acordo com Silva (2017, p. 86), “a parcela ‘afortunada’, era formada pelos filhos da elite local, compreendendo principalmente fazendeiros, políticos, comerciantes e industriais das firmas de algodão e cera de carnaúba”.
Os dados demográficos apontam uma população estimada em 8000 pessoas por volta de 1872. Considerando esse total e o número de matriculados em 1873, 48 alunos, o percentual chega a menos de 1% de alfabetizados na cidade nesse período. Por meio desse percentual, e relembrando os hábitos excludentes e elitistas existentes na cidade nesse mesmo período, podemos prever que a Escola de Primeiras Letras atendia prioritariamente os filhos da elite local. (Silva, 2017, p. 86).
Outro ponto a ser mencionado é a educação que as mulheres de elite recebiam dentro de suas próprias casas. Pinheiro (1997, apud. Silva, 2017, p. 87) fala sobre a educação da professora Maria Carolina Wanderley Caldas (1876-1954)1:
Como membro de uma das famílias mais importantes na cidade do Assú durante o século XIX e início do século XX, Sinhazinha recebeu em sua própria casa, por parte dos familiares ou de professores particulares, aulas de música, literatura, catecismo, francês, inglês e latim. Além das cadeiras avulsas, essas aulas de línguas estrangeiras eram oferecidas em determinados momentos às pessoas de destaque social na cidade por padres e freiras que desenvolviam trabalhos religiosos na localidade.
Destacamos na citação que Sinhazinha recebeu uma formação educacional elaborada e completa em um período em que as mulheres, mesmo aquelas de seu nível social, geralmente tinham acesso apenas a aulas básicas de leitura, escrita e cálculo. Como nos aponta Duarte (2010):
As jovens de posses continuavam recebendo educação nas próprias casas através das preceptoras ou sob a orientação dos pais. Enquanto isso, as demais, ainda que houvesse a possibilidade de estudar numa escola pública, raramente o faziam; permaneciam em suas casas, em pleno meado do século XIX, condenadas à mesma sorte de suas antepassadas. (Duarte, 2010, p. 20).
Ainda, de acordo com Silva (2017), o fato de a educação acontecer na própria casa, pode ser interpretado de duas maneiras. Por um lado, sugere a dificuldade enfrentada para o estabelecimento de escolas destinadas especificamente à educação feminina na época.
Por outro lado, o fato de Sinhazinha ter recebido aulas em sua própria casa com professores particulares pode indicar uma opção feita pelas famílias da elite de Assú, de oferecer educação às mulheres em um ambiente mais privado e personalizado. Silva (2017) destaca que há bastante dificuldade em compreender esse fenômeno do acesso à educação feminina assuense, até mesmo com relação às mulheres pertencentes à elite, esbarrando-se no fato de se ter identificado apenas a formação de Sinhazinha Wanderley, de forma mais ampla.
No período oitocentista, era evidente a existência de um grande número populacional rural em Assú, tendo em vista tratar-se de uma cidade do interior do estado. Essa realidade acabava por contribuir com a exclusão educacional, compreendendo que o estudo não era algo relevante para a classe trabalhadora, pois precisavam trabalhar nas atividades agrícolas e pecuárias. Enquanto a elite se preocupava em oferecer uma educação letrada aos seus filhos, que se distanciava da prática do trabalho manual:
a nossa elite intelectual brasileira foi formada por diferenciações econômicas, uma vez que os donos de engenhos, os fidalgos portugueses e os mineradores preocupavam-se em dar uma educação letrada aos seus filhos, muito distanciada da prática do trabalho manual, posto que era executada por escravos. Assim, a formação acadêmica procurada por essa elite era muito mais voltada para o status do que para uma prática profissional. Nesse sentido, a educação recebida era uma educação marcadamente literária com influencias europeizantes, adquiridas nos colégios dos padres ou em suas próprias casas. (Ferreira, 1999, p. 55, apud. Silva, 2017, p. 86-87).
A falta de investimento na educação da população rural evidencia a desigualdade social e o descaso das autoridades em relação às camadas mais pobres da sociedade. A falta de acesso à instrução reforçava a condição de marginalização e perpetuava a divisão entre uma elite privilegiada, que tinha acesso à educação formal, e as classes trabalhadoras que, devido à falta de oportunidades educacionais, ficavam presas a atividades rurais sem perspectivas de ascensão social.
De acordo com Silva (2017) “os filhos de famílias humildes e pobres realmente não recebiam nenhum tipo de formação na cidade. Só estavam presentes no contexto local apenas para prestar serviços à elite” (Silva, 2017, p. 92). A educação, nesse sentido, era vista como um privilégio reservado a poucos, acentuando ainda mais as disparidades sociais e econômicas.
Jornal Brado Conservador
Por meio das leituras em Barros (2005), evidenciamos uma forte tendência que tem se instalado durante alguns anos nas ciências humanas, que é a necessidade de falar sobre uma pluralidade de culturas, e não somente utilizar uma única cultura de forma generalizada.
Nessa perspectiva, compreendemos que as fontes históricas são produções humanas, e que cresce o aumento de investigações na academia por meio de sua diversidade, sejam elas impressas, orais, digitalizadas, entre outras; com o propósito de registro ou não, na intenção de levantar questões que possam ser investigadas.
Essa ampliação de possibilidade de trabalho com diversas fontes auxiliou no avanço de estudos voltados à cultura, em sua ênfase, sobre hábitos, costumes, gênero, às ditas minorias, às esferas marginalizadas pela sociedade, que vão ganhando espaço na historiografia. Esse movimento, intitulado como História Cultural, abre espaço para que possamos falar detalhadamente sobre objetos, dedicando-se a suas particularidades. Assim, nos apresenta De Lucca (2008):
A face mais evidente do processo de alargamento do campo de preocupação dos historiadores foi a renovação temática, imediatamente perceptível pelo título das pesquisas, que incluíam o inconsciente, o mito, as mentalidades, as práticas culinárias, o corpo, as festas, os filmes, os jovens e as crianças, as mulheres, aspectos do cotidiano, enfim uma miríade de questões antes ausentes do território da História. (De Lucca, 2008, p. 113).
Essa mudança foi significativa, pois trouxe para o centro das discussões históricas temas e aspectos da vida cotidiana que anteriormente não eram considerados relevantes ou dignos de análise histórica. Esse aumento temático contribuiu para uma compreensão mais abrangente e diversificada do passado, permitindo que diferentes aspectos da experiência humana fossem explorados e valorizados.
É neste contexto que a imprensa periódica se apresenta como uma fonte necessária, para as pesquisas históricas. Compreendemo-la como um meio importante no campo social do século XIX. Era a ferramenta em que a informação chegava mais rápido ao povo, mostrando elementos socioculturais no momento em que foi produzida.
Nossa possibilidade de investigação, se deu pelo jornal Brado Conservador, mediante acesso em rede de comunicação na Hemeroteca Nacional Digital, tendo ali exemplares a partir do ano de 1876 até 1882, iniciando pela edição de número 11. A partir dessa análise, identificamos também que o jornal tinha sua própria tipografia, e até o ano de 1880 era publicado semanalmente. Somente a partir de 1881 que suas publicações passam a ser quinzenalmente.
O jornal Brado Conservador: Folha política, moral e noticiosa foi fundado no ano de 1876, por Antonio Soares de Macêdo (1831-1917),2 nascido na cidade de Assú, do qual era diretor e principal redator, defendendo por meio de suas páginas a flâmula do Partido Conservador, em que o mesmo era o líder do partido. O jornal se manteve até o ano de 1890, quando o partido foi desfeito, desaparecendo tempos depois.
Costa (2005) afirma que a disputa acirrada entre os partidos e o uso da imprensa para divulgar suas opiniões eram práticas que prevaleceram desde o período imperial, até a república:
Durante o Período Imperial existia a disputa entre o Partido Liberal e o Partido Conservador e essas entidades políticas foram às primeiras que utilizaram a imprensa para divulgar seus interesses partidários. O conflito político no fim do período imperial era tão intenso que fez com que surgissem inúmeros jornais que defendiam as ideologias dos dois partidos existentes. Estas disputas continuaram pela Primeira República, e estiveram presentes no Rio Grande do Norte. (Costa, 2005, p. 23-24).
A imprensa desempenhou um papel central no cenário político da época, permitindo que os partidos políticos alcançassem um público mais amplo e disseminassem suas ideias. Ao mesmo tempo, essa disputa política acirrada também reflete as tensões e conflitos existentes na sociedade brasileira durante aquele período de transição política. Conforme nos diz Vieira (2010):
a identificação cuidadosa do grupo responsável pela linha editorial, estabelecer os colaboradores mais assíduos, atentar para a escolha do título e para os textos programáticos, que dão conta de intenções e expectativas, assim como fornece pistas da leitura de passado e futuro compartilhada por seus propugnadores. Apresenta-se também como relevante, inquirir sobre suas ligações cotidianas com diferentes poderes e interesses financeiros. (Vieira, 2010. p. 6).
Ao assumir este nome “Brado Conservador”, o jornal já anunciava sua posição ideológica e seus princípios editoriais, e por meio de nossa pesquisa, identificamos a forte veiculação de representações conservadoras da época, influenciando a sociedade assuense, seus princípios, valores e defendendo pontos de vista alinhados à sua orientação política.
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio. Ocupar-se dos conflitos de classificações ou de delimitações não é, portanto, afastar-se do social - como julgou durante muito tempo uma história de vistas demasiado curtas -, muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto mais decisivos quanto menos imediatamente materiais. (Chartier, 2002, p. 17).
Diante dessa citação exposta, em que Chartier (2002) enfatiza que as percepções do social não são discursos neutros, mas sim produzem estratégias e práticas que buscam impor autoridade em detrimento de outros, compreendemos que as representações que circulavam no jornal Brado Conservador possuíam o poder de legitimar projetos reformadores ou justificar escolhas e comportamentos individuais. Nesta perspectiva, Martins (2012) enfatiza que:
Política e imprensa se conjugam, a serviço dos partidos - Conservador ou Liberal - atrelados a grupos familiares, condicionados a seus interesses econômicos e afinidades intelectuais. Em geral, os partidos e respectivas famílias se fazem representar por meio de um jornal, demarcador de suas posições, ambições e lutas. (Martins, 2012, p. 24).
Deste modo, ressaltamos a importância de compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, sua concepção do mundo social, seus valores e seu domínio, destacando a relevância das representações sociais na construção do poder e da autoridade, evidenciando a importância de analisar as lutas simbólicas e as dimensões culturais da sociedade para compreender as dinâmicas sociais e as relações de poder.
A representação feminina no jornal Brado Conservador
Em nossa investigação pelas páginas do jornal, conseguimos identificar alguns textos, nas mais variadas colunas, dedicados a discutir sobre a vida feminina. Esses conteúdos abordavam temas como o papel da mulher na sociedade, habilidades e conhecimentos educativos apropriados ao gênero feminino, de elite.
Através dessas representações, o jornal, que tem por destaque ser um propagador dos ideais conservadores, influenciava a opinião pública e contribuía para moldar os pensamentos da sociedade sobre a educação feminina daquela época, servindo como meio de transmissão da tradição, valores morais e normas sociais.
Em nossa organização documental, selecionamos alguns textos, para que possamos pensar de forma crítica e reflexiva, sobre quais os tipos de representações que eram propagadas pelo jornal Brado Conservador, em torno da educação feminina.
No texto intitulado “A mulher”, no jornal Brado Conservador, edição 00065, de 1879, p. 2, está escrito:
A mulher bôa é o regozijo da casa; a mulher laboriosa é a fortuna de sua família; a mulher que, sendo boa e laboriosa, tem alteza em suas ideias, prudência em seus sentimentos, é a benção do Deus, o encanto do marido, a providencia dos seus filhos.
Este pequeno texto publicado no jornal, começa descrevendo a mulher como boa e motivo de alegria para sua família, sendo a alegria da casa, sugerindo desta forma que uma mulher virtuosa e bondosa é valorizada e apreciada no contexto doméstico. Enfatiza também que uma mulher boa e trabalhadora possui nobreza de ideias, prudência em suas ações e delicadeza em seus sentimentos, sendo assim, considerada uma bênção divina. Isso demonstra uma super valorização da sabedoria, virtude e sensibilidade feminina.
Além disso, a mulher é descrita como o encanto do marido, sugerindo que sua presença e virtudes atraentes são elementos de felicidade e satisfação para ele. Ela também é retratada como a providência para seus filhos, implicando seu desempenho fundamental na proteção e cuidado dos filhos.
Mulheres casadas ganhavam uma nova função: contribuir para o projeto familiar de mobilidade social através de sua postura nos salões como anfitriãs e na vida cotidiana, em geral, como esposas modelares e boas mães. Cada vez mais é reforçada a ideia de que ser mulher é ser quase integralmente mãe dedicada e atenciosa, um ideal que só pode ser plenamente atingido dentro da esfera da família “burguesa e higienizada”. Os cuidados e a supervisão da mãe passam a ser muito valorizados nessa época, ganha força a ideia de que é muito importante que as próprias mães cuidem da primeira educação dos filhos. (D’incao, 2004, p. 191).
Através desta citação é perceptível notar a representação feminina, atravessada por uma visão tradicional e patriarcal, que durante o século XIX, limitou seu papel no âmbito familiar e sua importância como uma figura virtuosa.
A representação reforçava o papel tradicional da mulher como cuidadora e educadora dos filhos, destacando a importância de seu papel na construção da família e na perpetuação dos valores e tradições sociais. Ao mesmo tempo, essa valorização da maternidade e da dedicação materna pode refletir uma visão idealizada e restritiva do papel feminino na sociedade, que limitava as possibilidades de atuação das mulheres a esse âmbito familiar.
Essa visão simplista e restritiva tendia a colocar a mulher em um lugar secundário, subordinada ao marido e com ênfase em sua função de cuidadora da família. Ao enfatizar a bondade e a delicadeza da mulher, o texto no jornal Brado Conservador propaga uma representação de gênero que delimitavam o limite do potencial e as aspirações das mulheres.
Em 1879, na edição 00066, p. 4, o jornal Brado Conservador escreve o texto, intitulado “Qual é cousa peior do mundo?”, em um trecho o encontramos a seguinte afirmação “A peior cousa do mundo, e que mais nos apouguenta, é ter mulher aluada, indiscreta e ciumenta.”
Identificamos que esta frase reflete uma visão negativa e estereotipada sobre as mulheres, condenando aquelas que não possuem o trato social das mulheres de elite ou mesmo aquelas que defendiam seus pontos de vista e buscavam reconhecimento. A ideia de aluada refere-se pejorativamente ideia de louca, ou de ser à frente do seu tempo. A indiscrição era em razão de falarem como se estivessem no lugar do homem, se posicionar diante de um assunto. E ciumenta por defender o que lhes era de direito, numa sociedade de época onde a maioria dos homens buscavam aventuras fora do matrimônio e até constituição de outras famílias bastardas.
Essa afirmação perpetua representações negativas e prejudiciais sobre as mulheres, retratando-as como emocionalmente instáveis, indiscretas e possessivas, no entanto, se faz necessário compreender que as mulheres, assim como os homens, são indivíduos com personalidades e experiências únicas e não devem ser reduzidas a representações limitantes, baseadas em seu gênero. Essas experiências decorrem de suas vivências e seus meios socioeducativos.
Um trecho como este, circulando na cidade de Assú, durante o século XIX, pode ser compreendido como um meio de propagação de estigmatização generalizada das representações femininas, prejudicando a capacidade de serem vistas como indivíduos autônomos, inteligentes que devem ser respeitados.
Além disso, essa visão negativa sobre elas poderia reforçar a ideia de que os homens detêm o poder de controlá-las e dominá-las, como uma forma de mantê-las em situação de inferioridade justificando, assim, as desigualdades de gênero que fez e faz parte da sociedade até os nossos dias.
No ano de 1881, o jornal publica o texto intitulado “O que são as mulheres”, na edição 00102, p. 4 em que afirma:
Saint Foi diz que as virtudes da mulher impedem o homem de duvidar do bem; a sua fé faz crer em Deus, e a sua esperança na eternidade. Chateaubriand diz, que sem as mulheres, o homem seria rude, grosseiro solitário e ignoraria a graça, que è o sorrir do amor. A mulher continua o mesmo autor, suspende em torno della as flores da vida. Otwis diz que para representar a belleza dos anjos, os pintam á imagem das mulheres; Voltaire, que a sociedade depende das mulheres. [...] Balzac, que a mulher é o ente mais perfeito entre as criaturas: é uma creação transitoria entre o homem e o anjo. [...] o que as mulheres têm de mao a nos o devem. González diz, todas as virtudes das mulheres são suas; os seus vicios são nossos; nós insinamos lhos. (Brado Conservador, 1881).
Eles descrevem as mulheres como o coração do homem, flores que brilham nos jardins do universo, parte do céu, criaturas divinas e fonte de inspiração poética, além disso, enfatizam que a presença das mulheres é fundamental na sociedade, e que elas têm um papel essencial na formação do homem, na expressão da beleza, no equilíbrio social e na busca pela perfeição. Reconhecem que as mulheres têm virtudes admiráveis e atribuem aos homens a responsabilidade pelos seus vícios. A citação final do autor Barboza Nogueira sintetiza a importância e a influência das mulheres, retratando-as como objetos de aspirações, sonhos e grandes esforços dos homens.
Utilizamos esse texto para discutirmos sobre a presença de diversos escritores masculinos escrevendo sobre as mulheres, para que possamos destacar a posição de poder e privilégios que os homens historicamente detiveram na sociedade. O período oitocentista é marcado por representações femininas, muitas vezes ajustadas de acordo com a visão e expectativa masculina.
Ao observar de forma minuciosa as características empregadas às mulheres, notamos palavras como seres angelicais, inspiradoras ou objeto de aspirações. Os autores reforçam uma visão limitada e idealizada do papel feminino, colocando-as em um pedestal e perpetuando expectativas irrealistas.
Essas representações que os homens expressam sob as mulheres têm a capacidade de criar padrões e pressões sociais, normas de comportamentos que limitam a diversidade feminina, ao estabelecer essas características através desse tipo de texto. O periódico pode estimular as relações de poder de forma desiguais, subordinando o sexo feminino ao masculino, resultando em uma visão parcial e incompleta da realidade das mulheres.
No ano de 1881, na edição 00103, p. 4 o jornal Brado Conservador apresenta um texto intitulado “A emancipação da mulher”, assinado por uma mulher, Felisbella N. da G. Machado, que expressa uma visão conservadora que era predominante no século XIX, com relação ao papel e liberdade feminina.
A autora inicia o texto criticando a ideia de que as mulheres deveriam abandonar os privilégios de seu sexo e buscar posições profissionais ou intelectuais, como advogadas ou doutoras. Ela considera isso como um luxo de vaidade e uma forma de extravagância que não condiz com a seriedade necessária que se esperava do sexo feminino para a época. Felisbella Machado não deseja se assemelhar ao sexo masculino, valorizando a diferenciação entre homens e mulheres.
Em uma parte do texto, Felisbella diz:
Aos reformadores do sexo feminino direi como Cherbuliez: é mister restituir a mulher á família e a família á mulher e só permite-lhe aquella liberdade a que deve ser consentida ao seu estado de mãe de família. É este o unico meio para salvar a sociedade da actual corrupção dos costumes. Não existe outra medida salvadora. (Brado Conservador, 1881, p. 4).
No decorrer do texto, Felisbella reforça sua posição contrária à emancipação das mulheres, considerando-a absurda e imoral. Ela defende que, além de todos os pontos mencionados anteriormente, o bom senso não poderia deixá-la de criticar essa visão. Ela também faz referência às ciências médicas, afirmando que a estrutura dos órgãos femininos e suas funções específicas impedem que as mulheres possam competir com os homens e ter os mesmos direitos.
Ao final da análise de algumas páginas do jornal Brado Conservador, conseguimos identificar uma representação específica que o periódico propagava em suas páginas. De acordo com sua ideologia conservadora, este jornal, através de seus escritos reforçavam as representações da educação feminina, reforçando a ideia de mãe e esposa, sempre subserviente ao gênero masculino.
Por se tratar de uma cidade pequena, com pouca instrução pública, o possível público-alvo deste jornal seria as elites assuenses, que foram influenciadas pelos conteúdos conservadores que o jornal disseminava na cidade de Assú, durante o século XIX.
Conclusão
Através deste trabalho, conseguimos identificar quais representações sobre a educação feminina eram veiculadas no jornal, assuense, Brado Conservador, e percebemos que este jornal desempenhou um papel relevante na disseminação de representações e normas relacionadas à educação das mulheres, reforçando representações de gênero, impondo certos limites e possibilidades para o desenvolvimento intelectual feminino.
As representações da educação feminina, que encontramos no jornal, reproduziam as expectativas e normas sociais da época, que acabavam por regular o acesso das mulheres ao conhecimento formal e reforçavam sua submissão aos papéis tradicionalmente atribuídos a elas na sociedade, como de donas de casa, boas esposas e mães exemplares.
Diante do exposto, é fundamental compreender a representação sobre as mulheres que circulava no jornal Brado Conservador, como um reflexo das relações de poder e das normas de gênero da sociedade oitocentista. Essas representações acabavam por influenciar diretamente na vida feminina, na tentativa de restringi-las somente ao espaço privado.
Nesta perspectiva, esta investigação contribui para o campo da História da Educação, com ênfase no feminino, com destaque aos estudos de gênero, fornecendo compreensões sobre a forma que o jornal Brado Conservador moldou as representações sobre o feminino.














