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Revista Exitus

versión On-line ISSN 2237-9460

Rev. Exitus vol.7 no.2 Santarém mayo/Agosto 2017  Epub 14-Mayo-2019

https://doi.org/10.24065/2237-9460.2017v7n2id299 

Artigos

Entrelaçamentos e possibilidades dos jogos de linguagem matemáticos: seus usos na comunidade remanescente de Quilombos da Agrovila de Espera, Alcântara – MA

Interlacements and possibilities of the mathematical language games: its uses in the remaining Quilombos community of Agrovila, Alcântara-MA

Entrelazamientos y posibilidades de los juegos de lenguaje matemático: sus usos en la comunidad restante de Quilombos de Agrovila, Alcântara-MA

Raimundo Santos de Castro5 

Ademir Donizeti Caldeira6 

5Doutor em Educação (Educação em Ciências e Matemática) pela Universidade Federal de São Carlos, São Paulo. Professor de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão. Agência de fomento: PROQUALIS - Programa de bolsa de incentivo à qualificação dos servidores do IFMA. E-mail: raicastro@ifma.edu.br.

6Doutor em Educação pela UNICAMP (1998). Professor Associado II do Departamento de Metodologia de Ensino da Universidade Federal de São Carlos. Líder do Grupo de Pesquisa em Educação Matemática e Cultura. E-mail: mirocaldeira@gmail.com.


Resumo

Este texto apresenta as problematizações oriundas de uma pesquisa de doutorado em Educação desenvolvida na Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Trata-se de uma pesquisa do tipo etnográfica realizada junto à comunidade remanescente de quilombos da Agrovila de Espera, na cidade de Alcântara – MA, que teve por objetivo compreender o que está manifesto nas práticas matemáticas constituídas como jogos de linguagem matemáticos em uso nas atividades de trabalho e sobrevivência dos membros dessa comunidade, decodificando os efeitos de sentidos e significados mobilizados sobre elas. Propõe discutir as questões da filosofia de Wittgenstein, especialmente a de jogos de linguagem, para tentar compreender como essa noção pode ser apresentada em estudos em Educação Matemática. Na análise das práticas matemáticas, tendo por base a ação de empaneirar a farinha de mandioca, buscou destacar as interações e influências dos jogos de linguagem postos em usos com o ambiente sociocultural nos quais se desenvolvem, a partir de suas atividades cotidianas e as interações produzidas entre os jogos de linguagem matemáticos e os sentidos e significados produzidos pelos membros da comunidade para aquilo que os mesmos elaboram como elemento que lhes possibilitem garantir a sobrevivência por meio de seu trabalho.

Palavras-chave:  Wittgenstein; Etnomatemática; Quilombolas

Abstract

This text presents the problematizações from a doctoral research in education developed at the Federal University of São Carlos-UFSCar. This is a survey of the ethnographic type held by the remaining quilombos community of Agrovila, in the city of Alcântara-MA which aimed to understand what is mathematical practices constituted manifest as mathematical language in use in work activities and survival of members of that community, decoding the effects of senses and meanings deployed on them. Proposes to discuss the issues of philosophy of Wittgenstein, especially that of language games, to try and understand how this notion can be presented in studies in mathematics education. On the analysis of mathematical practices, based on the action of empaneirar manioc flour, sought to highlight the interactions and influences of language posts in the sociocultural environment usages which develop from their daily activities and interactions produced between the mathematical language games and the senses and meanings produced by members of the community for the same produce as element that allow them to ensure survival through your work.

Keywords:  Wittgenstein; Ethnomathematics; Quilombolas

Resumen

Este texto introduce la problematización de una investigación doctoral en educación, desarrollada en la Universidad de São Carlos-UFSCar Federal. Se trata de un estudio de tipo etnográfico de la comunidad de Quilombos restantes de Agrovila, en la ciudad de Alcántara-MA; que pretende comprender lo manifiesto en las prácticas matemáticas constituídas como juegos de lenguaje matemático en uso en las actividades de trabajo y supervivencia de los miembros de esa comunidad, decodificando los efectos de sentidos y significados mobilizados por ellas. Propone discutir las cuestiones de la filosofía de Wittgenstein, especialmente la de juegos de lenguaje, para tratar de entender cómo esa noción se puede presentar en estudios en Educación Matemática. En el análisis de las prácticas matemáticas, basado en la acción de rallar la harina de mandioca, intentó poner de relieve las interacciones y las influencias del lenguaje puestos en los usos del entorno sociocultural en los cuales se desenvuelven, a partir de sus actividades cotidianas y las interacciones producidas entre los juegos de lenguaje matemático y los sentidos y significados producidos por los miembros de la comunidad para aquello que ellos mismos elaboran como elemento que les posibilita garantizar la supervivencia a través de su trabajo.

Palabras clave:  Wittgenstein; Etnomatematicas; Quilombolas

1 Puxando o fio da teia7 7

Este texto apresenta as problematizações oriundas de pesquisa de doutorado em Educação do primeiro autor, sob a orientação do segundo autor, na linha de pesquisa - “Educação em Ciências e Matemática”, desenvolvida na Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Trata-se de uma pesquisa do tipo etnográfica realizada junto à comunidade remanescente de quilombos da Agrovila de Espera, na cidade de Alcântara, estado do Maranhão, e teve por objetivo compreender o que está manifesto nas práticas matemáticas constituídas como jogos de linguagem matemáticos em uso nas atividades de trabalho e sobrevivência dos membros dessa comunidade, decodificando os efeitos de sentidos e significados mobilizados sobre elas.

As discussões acerca da situação das comunidades remanescentes de quilombos no Brasil não são recentes. Nos estudos realizados, deparamo-nos com uma série de pesquisas de mestrado e doutorado que discutiam os mais variados temas relacionados a estas e parte significativa deles discutia a Etnomatemática destes grupos sociais. Mas, especificamente no estado do Maranhão, a grande maioria das pesquisas encontradas consistia em estudos sociológicos, históricos e um número bastante elevado de estudos antropológicos. Estes últimos, em linhas gerais, visavam discutir a constituição de comunidades como remanescentes de quilombos e a problemática criada pela implantação do Centro de Lançamentos de Alcântara – CLA8.

Dentre os estudos encontrados, um em especial nos chamou bastante a atenção. Primeiro por discutir de forma pormenorizada a constituição das comunidades como território quilombola e, segundo, por relatar os problemas atualmente enfrentados pelas pessoas após as desapropriações, deslocamentos e reassentamentos ocorridos entre os anos de 1986 e 1987, em que foram realocadas compulsoriamente 312 famílias de 32 povoados, para a formação de sete agrovilas. Todos esses aspectos de modificação dessas comunidades remanescentes de quilombos provocam os seguintes questionamentos: como tais relações, hoje, anos após terem ocorrido as desapropriações, deslocamentos e reassentamentos, são manifestadas no interior das comunidades? Como elas têm se reorganizado internamente no intuito de buscar elementos de sobrevivência e trabalho? E, principalmente, como têm mantido suas tradições, crenças, aspectos de ancestralidade e seus componentes culturais?

A hipótese de que seus valores estéticos, morais, éticos, artísticos, religiosos, científicos, etc., ou seja, parte considerável daquilo que os constituiu como povo ao longo dos séculos, tenha sido alterado para uma lógica diferente daquela que inicialmente configurava tais valores, é perfeitamente possível de ter ocorrido. Aliás, o próprio Laudo do Ministério do Meio Ambiente já sinaliza para isto. Diante disso, sentimo-nos motivados a desenvolver uma pesquisa que pudesse problematizar algumas destas questões. Porém, tendo por pontos de discussão aspectos relativos às suas práticas sociais no que diz respeito a trabalho e sobrevivência e que envolve de alguma maneira relações de medir, contar, etc., mais precisamente, no que aqui chamaremos de práticas matemáticas. Isto posto, como lócus de realização para esta pesquisa, escolheu-se a comunidade remanescente de quilombos da Agrovila de Espera, em Alcântara, Maranhão, uma dentre as 312 comunidades tradicionais da zona rural da cidade, que também foi afetada pela instalação do CLA.

O presente trabalho propõe discutir parte das atividades de sobrevivência e trabalho dos membros dessa comunidade, a partir das questões da filosofia de Wittgenstein, especialmente, mas não a única, a de jogos de linguagem. Para tanto, lançaremos de maneira atenta um olhar para os seus primeiros escritos, mais precisamente aqueles de sua obra Tractatus Logico-Philosophicus. É importante destacar ainda que, para o desenvolvimento das análises aqui propostas, as discussões acerca das noções filosóficas de Wittgenstein, terão por objetivo subsidiar as discussões e análises em torno das várias questões apontadas antes, durante e após as atividades de campo.

Wittgenstein: formas de pensar e representar a realidade

O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein é considerado um dos maiores pensadores do século XX. Foi um dos precursores da chamada virada linguística2 e seu pensamento teve influências sobre diversas áreas além da própria filosofia. Na sua primeira obra, Tractatus Logico-Philosophicus, Wittgenstein parte da ideia de que a proposição lógica elementar procura estabelecer os limites de uma linguagem que seja capaz de ver e representar as coisas do mundo de maneira concreta, fazendo uso da teoria da figuração, que, como, nos aponta Glock (1998, p. 350), funciona da seguinte maneira:

O termo alemão Bild é ambíguo, podendo designar tanto pinturas quanto modelos abstratos. “Herdei de dois lados esse conceito da figura: primeiro da figura desenhada, e, depois, do modelo matemático, que já é um conceito geral. Pois um matemático fala em afiguração (Abbildung) em situações em que um pintor já não utilizaria a expressão” (WVC 185). Hertz havia afirmado que a ciência constrói modelos da realidade, de tal modo que as possíveis variações no modelo refletem, de forma exata, as diferentes possibilidades do sistema físico em questão (Mechanics I). Wittgenstein transformou as breves observações de Hertz acerca da representação científica em uma explicação detalhada sobre as precondições da representação simbólica geral. “Figuramos os fatos” (TLP 2.1.). A essência da linguagem – a FORMA PROPOSICIONAL GERAL – é afigurar como as coisas estão. Todas as proposições dotadas de significação são funções de verdade de proposições elementares; todas as relações lógicas devem-se a uma composição vero-funcional. Ao explicar as proposições elementares, a teoria pictórica explica a base da representação lógica. Glock (GLOCK,1998, p. 350)

O que Wittgenstein propõe se dá por meio da compreensão dos limites do pensamento e os limites da lógica como instrumento para o entendimento da linguagem ordinária. Na primeira filosofia wittgensteiniana, a lógica não pode ser dita, apenas mostrada, e o filósofo tenta, por meio da teoria da figuração, estabelecer as diferenças entre esse dizer e esse mostrar, separando, assim, as proposições com sentido daquelas que não o têm. Wittgenstein (2010, p. 135, 1; p. 143, 2.16; p. 145, 2.18) afirma que “[...] o mundo é tudo que é o caso”. Ora, para a teoria exposta no Tractatus, se o mundo é a totalidade dos fatos que determinam tudo que é o caso ou não, os fatos, no espaço lógico, de acordo com o autor, são o mundo. Consequentemente, “[...] o fato, para ser uma figuração, deve ter algo em comum com o figurado” e “[...] toda figuração, qualquer que seja sua forma, deve ter em comum com a realidade para poder de algum modo – correta ou falsamente – afigurá-la é a forma lógica, isto é, a forma da realidade”.

Sendo, portanto, a forma lógica o que determina a forma de figuração da realidade, o que pode ser dito sobre ela não pode ser mostrado, pois, a realidade tem que se mostrar na forma de sua figuração. Neste sentido, para Wittgenstein (2010, p. 143, 2.151; 2.1511), “a forma da figuração é a possibilidade de que as coisas estejam umas para as outras tal como elementos da figuração” e, ainda, “é assim que a figuração se enlaça com a realidade; ela vai até a realidade”. Sustenta Wittgenstein (2010, p. 147, 3), que “[...] a figuração lógica dos fatos é o pensamento [...]”, ou seja, os conteúdos descritivos da linguagem – as formas de expressão do pensamento –, enquanto parte do conjunto do mundo lógico, é que determinam o que pode ou não ser figurado na realidade objetiva.

Assim, portanto, as proposições da linguagem são percepções do pensamento sobre a realidade que se expressam através da correspondência com o mundo ou, como afirma Wittgenstein (2010, p. 147, 3.001; 3.01), “[...] um estado de coisas é pensável e isso significa que podemos figurá-lo” e “[...] a totalidade dos pensamentos verdadeiros são uma figuração do mundo”. A capacidade de expressar pensamentos e os limites da linguagem na representação da realidade se dão por meio de proposições no mundo lógico. O pensamento do primeiro Wittgenstein compreende a linguagem como a representação do real, as palavras expressam aquilo que o mundo nos apresenta e o pensamento, enquanto proposição dos sentidos, faz da linguagem uma espécie de cópia da realidade ou espelho do mundo.

Após uma profunda reclusão filosófica e detidos anos de análise de seu primeiro manuscrito, Wittgenstein retoma seus pensamentos e “refaz” seu sistema filosófico (sem que isso signifique construir um novo sobre as bases do antigo), colocando-se frente a frente com as suas ideias anteriores. Nesse “segundo” Wittgenstein há o primado da prática, um pragmatismo na linguagem que considera que nem todas as palavras designam objetos, o que vai de encontro à visão agostiniana da linguagem – crítica que faz logo no início das Investigações.

Ao observarmos que o tratamento dado à linguagem no Tractatus é embasado por regras que têm por eixo a investigação analítica, Sombra (2012, p. 13) nos alerta sobre o fato de que “[...] há ainda um processo 'lógico' de investigação, que permite distinguir as construções linguísticas que produzem significado daquelas que permanecem sem sentido”. Por isso, para Sombra (2012), no que se refere à diferença na filosofia proposta por Wittgenstein de sua primeira para a sua segunda fase, é importante compreender que,

Uma diferença fundamental, no entanto, é que há, no Wittgenstein tardio, um “primado da prática”. A linguagem passa a ser constituída com base em “formas de vida” e é significada pelo seu uso. Não há mais um fundamento lógico-ontológico que a constitua. Com essa mudança, Wittgenstein se inseriu, de forma mais incisiva, no contexto de “crise dos fundamentos” que caracterizou parte significativa da filosofia contemporânea. (SOMBRA, 2012, p. 13)

O deslocamento que o segundo Wittgenstein faz parte, inicialmente, de quando a ideia de totalidade, enquanto base das discussões do Tractatus, deixa de existir e a linguagem passa a ser orientada por regras que são socialmente estabelecidas. O realismo ontológico independente de nossas práticas linguísticas e que era parte dos elementos constituintes das tradições filosóficas anteriores, passa a ser questionado e deixa de ser completamente aceito. Como consequência, a contemplatividade, atemporalidade e imutabilidade são deixadas de lado, ou seja, nas investigações não há totalidade em si, mas várias formas de conceber a realidade.

Eis que, com o advento da obra Investigações Filosóficas, surge a noção de jogos de linguagem, compreendida por Wittgenstein (2014, p. 19), como “[...] a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada”. Os sentidos e significados, que são atribuições dadas ao estatuto do pensamento, deixam de ser uma atividade individual e passam a ser constituídos por regras socialmente determinadas. O segundo Wittgenstein discute que a relação entre a linguagem e a realidade não está vinculada às condições de verdade da proposição e o realismo ontológico não é mais aceito como único critério de “elaboração de verdades”. A noção, segundo Clock (1998),

[...] surge quando, a partir de 1932, Wittgenstein passa a estender a analogia do jogo à linguagem como um todo. Aparece pela primeira vez em TS211 578(...). Inicialmente, o termo é usado indistintamente como um equivalente de cálculo. Sua função principal é chamar a atenção para as várias semelhanças entre linguagem e jogos, do mesmo modo que a analogia como o cálculo sublinhava semelhanças entre linguagem e sistemas formais.

(...)

A analogia com o jogo substitui pouco a pouco a analogia com o cálculo. Isso corresponde ao abandono da utilização do CÁLCULO COMO MODELO da ideia de que as regras constituem uma ordem rígida, precisa e definida, oculta por detrás da aparência heterogênea da linguagem. Nesse mesmo espírito, juntam-se ao xadrez, na comparação com a linguagem, outros jogos menos rígidos, tais como cantigas de roda. Além disso, ao voltar-se à ideia de jogos de linguagem, Wittgenstein desviou o foco de sua atenção da geometria de um simbolismo (seja de uma linguagem de cálculo) para o lugar que ele ocupa nas práticas humanas. Clock (1998, p. 226)

Desta feita, a relação de designar objetos só faz sentido quando tem a ver com seu contexto linguístico, pois se constitui como um dos vários jogos de linguagem possíveis de serem estabelecidos no contexto das relações humanas que se estabelecem. Para Gebauer (2013), os caminhos de Wittgenstein do Tractatus até as Investigações podem ser estimados ao considerarmos a sua noção de conhecimento e pelo fato de que suas duas filosofias se ergueram sobre o princípio de que conhecer o mundo não se trata de uma atividade unicamente indivídual. Para refletir sobre as coisas do mundo, é necessário estar no seu interior e, de lá, pensarmos coletivamente como e no que buscar conhecer e como agir sobre ele.

Ainda segundo Gebauer (2013, p. 91), a passagem das ideias do Tractatus às das Investigações se deu por meio de “[...] um pensamento conector e uma forma de representação estética”. O movimento de pensamento filosófico que o chamado segundo Wittgenstein realizou tem por base ou “pano de fundo” tudo o que pensou antes, pois só assim lhe foi possível reconhecer o que havia deixado para traz e sem a devida análise ou mesmo sem tê-la realizado de maneira a contemplar o que verdadeiramente pretendia, propondo, assim, agora, alternativas para as contradições possíveis.

Para Wittgenstein (2014), a linguagem passa a ser constituída a partir dos seus diferentes usos. Por conseguinte, os seus limites impostos pelo mundo lógico deixam de existir. O autor articula a noção de jogos de linguagem a partir de vários aspectos relativos à ação social na qual a linguagem está inserida. Sendo assim, a sua aplicabilidade só terá sentido se considerarmos que há, nas múltiplas relações humanas, um funcionamento intencional que emerge dos processos e dos atos da fala. A ação de compreender e de ser compreendido traz em si o uso que se faz das palavras. Assim, segundo Gebauer (2013)

A estrutura do jogo de linguagem não apenas revela as intenções do jogo e dos jogadores, mas também organiza as perspectivas dos participantes e observadores. Um jogo nunca tem uma só perspectiva, mas tipicamente múltiplas perspectivas. Nos exemplos de Wittgenstein de jogos de linguagem, as perspectivas são dispostas de forma complementar: falante-ouvinte, quem ordena-quem obedece, comprador-vendedor. As perspectivas são parte de atitudes em relação aos outros: quem ordena quer que o colega lhe passe os materiais de construção; o comprador espera que o vendedor lhe dê as mercadorias pedidas. (GEBAUER, 2013, p. 101)

Jogos de linguagem fazem parte de atividades organizadas e utilizadas em uma ou em outra situação, dependendo do agente que os regula e deles faz uso. Esses jogos são marcados por uma práxis que determina ou estabelece os seus limites dentro da significação, que, voluntária ou involuntariamente, se pretende alcançar. Ressalta-se, porém, que a ação, mesmo que involuntária, tem por fim um sentido e isso a torna necessária no interior da prática linguística que está sendo desenvolvida. A forma de vida que utiliza um jogo de linguagem produz suas estruturas e, assim, reestrutura suas significações de acordo com a maneira como busca constituir o mundo à sua volta. É uma via de mão dupla: na medida em que os indivíduos constroem seus mundos socioculturais, agindo sobre eles, refletem, escolhem e decidem sobre a significação que pretendem alcançar. As expressões linguísticas passam a ser determinações do pensamento sobre as ações humanas, que, organizadas desta ou daquela maneira, se constituem em interações entre as ações e estas estabelecem os jogos de linguagem que pretendem usar para alcançar a significação pretendida.

Desta forma, constituem-se em uma ação intencional e têm por base a experiência ordinária no mundo. Jogos de linguagem, objetivamente, desempenham então o papel consciente de agir sobre o mundo, esquematizando atos individuais visando torná-los ação coletiva, tal qual um organismo vivo no seio de uma sociedade que se estabelece a partir de escolhas comuns. Conforme assevera Gebauer (2013, p. 103), “[...] na escolha de um jogo de linguagem está envolvida uma decisão sobre qual significado uma ação deve obter numa interação”.

Condé (2004, p. 48) assegura, no que chamou de originalidade da concepção pragmática proposta por Wittgenstein nas Investigações, que o limite da linguagem são os limites da pragmática da linguagem de uma forma de vida e é o que garante “[...] a infinita possibilidade de criação de significações linguísticas a partir de um grupo finito de fonemas ou signos atrelados à possibilidade dos usos e dos diversos contextos”. Ainda para Condé (2004), o caráter relacional atribuído aos usos da linguagem nos diferentes contextos e situações é um dos aspectos mais importantes da filosofia proposta por Wittgenstein, pois permite um novo modelo de racionalidade vinculado ao contexto que nos leva a pensar na ausência de uma essência invariável.

Como visto, a linguagem, para o Wittgenstein das Investigações, não se constitui como algo universal. Para a segunda fase do filósofo, a linguagem é transitória, mutável e capaz de recriar-se, refazer-se à medida que seu uso por uma forma de vida específica requer mudança na atividade na qual o jogo de linguagem está inserido. Por isso, as palavras são os elementos que, por meio dos jogos, constituirão as significações entre o emissor e o receptor. Eis, portanto, que a noção de semelhança de família se faz presente, pois, conforme nos alerta Condé (2004), não existe solo comum entre diferentes formas de vida que nos garanta um fundamento único nos jogos de linguagem. Há, no entanto, apenas comportamentos, práticas, intenções ou o que chamou de modos de atuar que podem ser compartilhados.

Sentidos e significados atribuídos à Etnomatemática: um dispositivo teórico para a Educação Matemática

De acordo com Wanderer (2013), em Educação Matemática, a filosofia de Wittgenstein tem proporcionado discutir e levantar questões centrais para uma perspectiva teórica em Etnomatemática com vistas a problematizar as regras que constituem as linguagens das matemáticas acadêmica e escolar. Quando da utilização do pensamento wittgensteiniano, neste caso, especificamente, a noção de jogos de linguagem, como parte de uma experiência teórica para as questões apontadas por pesquisas em Etnomatemática, devemos tratar de pensar e agir sobre cada questão como constituinte de um movimento que leva em consideração aspectos variados dos usos desses jogos pelas formas de vida distintas.

Neste texto, a forma como essa noção é apresentada expressa a preocupação de não se alongar, mas tentar, minimamente, ser consistente na discussão do pensamento de Wittgenstein, que consideramos pertinente para estudos em Educação Matemática. Isso tudo vale sem, obviamente, fazermos algum juízo de valor ou mesmo hierarquizar alguma delas. O foco é a noção de jogos de linguagem e dela (ou para ela), sem desconsiderar as demais, busca-se discutir um elemento que possibilite constituir um escopo teórico que nos auxilie nas análises e nas discussões que os objetivos das pesquisas em Etnomatemática propõem.

Tudo o que foi dito anteriormente tem por finalidade chegar à seguinte compreensão: as noções do segundo Wittgenstein, de cunho não essencialista9, podem auxiliar-nos a problematizar diversas questões de pesquisas que tratam da Etnomatemática. Tais noções, além de nos auxiliar a colocar em suspeição a ideia de uma razão universal, favorecem-nos buscar compreender a existência de diversos modos de matematizar10, questionando a existência de uma Matemática onipresente, absoluta e única em critérios de verdade. O segundo Wittgenstein concebe a filosofia e os problemas para os quais buscamos compreensões de forma diferente dos demais pensadores de sua época e, a partir de sua obra Investigações Filosóficas, a linguagem passa a fazer parte do pensamento e das ações. Compreendida dessa maneira, constitui-se como elemento da realidade – no sentido apresentado em Araújo (2004), em que

[...] a realidade tal qual ela é, isto não podemos saber, como queria Kant; mas é preciso ir além de Kant, pois pleitear saber o que é mesmo a realidade é pretensão que desaparece nas filosofias pós-metafísicas. Araújo (2004, p. 263)

Isso nos possibilita pensar acerca de situações diversificadas em significações e sentidos. Nessa perspectiva, favorece pensar em diferentes “racionalidades” sem que se busque uma relação mais geral, uma essência do fenômeno, o fundamento último do conhecimento e a primazia da dualidade sujeito/objeto. Ao tratarmos desse tema, abriremos a possibilidade de tratar não mais a partir de um a priori, de uma universalização do conhecimento, mas, sim, de várias “racionalidades” que considerem as diferentes formas de ver e de conceber a realidade. Desse modo, não podemos olvidar, no entanto, que isto não caracteriza presunção da existência de quaisquer relativismos ou, sendo mais preciso, conforme sustenta Condé (2004),

Diferente da racionalidade científica moderna – totalizante -, essa nova noção de racionalidade não se constitui a partir de uma ordem a priori e hierárquica, contrariamente, ela é vista como uma teia, uma rede multidirecional flexível que se estende através de Semelhanças de família (I.F. §§ 67, 77, 108). Não é totalizante porque, além de não possuir fundamentos últimos, não pretende fornecer a inteligibilidade total e completa do mundo, como se todas as visões de mundo devessem convergir. Entretanto, é holista porque apresenta uma dimensão panorâmica (Übersichtlichkeit) constituindo um tipo de sistema aberto e descentralizado no qual a racionalidade não está assentada em nenhum lugar privilegiado, mas se configura a partir das múltiplas relações no interior do sistema. E, embora constitua um sistema autônomo, não se fecha no relativismo extremo na medida em que está aberto a outros sistemas. Condé (2004, p. 4),

Sendo assim, esta nova maneira de ver e conceber a existência de diferentes “racionalidades” implica, também, aceitar a constituição de diferentes formas de saberes. Na esteira destes pensamentos, podemos colocar em evidência, em Educação Matemática, a possibilidade de constituição de diferentes práticas matemáticas, compreendidas no sentido a elas atribuído por Vilela (2013, p. 175), “[...] como um conjunto variado de jogos de linguagem ou diferentes usos de conceitos matemáticos em práticas específicas”. A partir das noções de Wittgenstein, tais práticas matemáticas caracterizar-se-ão como jogos de linguagem matemáticos, com regras próprias, estabelecidas por cada forma de vida que lhes faz uso.

As experiências e usos de jogos de linguagem matemáticos dos membros da agrovila de espera11 11

O termo “Quilombo” tem origem na língua banto, até hoje falado em grande parte do continente africano. A princípio, o termo designava acampamento ocupado por populações nômades na região da África. No Brasil, este termo deu nome à resistência dos povos escravizados. Atualmente, as comunidades quilombolas são grupos étnicos – predominantemente constituídos pela população negra rural ou urbana –, que se autodefinem a partir das relações com a terra, parentesco, território, ancestralidade, tradições e suas práticas culturais e religiosas próprias.

Neste texto, o foco é a análise das práticas matemáticas caracterizadas nos jogos de linguagem matemáticos da comunidade, as interações e influências de seus usos com o ambiente sociocultural nos quais se desenvolvem, a partir de suas atividades cotidianas. Buscar-se-á, sobretudo, destacar as interações produzidas entre os jogos de linguagem matemáticos e, a partir daí, entre os sentidos e significados produzidos pelos membros da comunidade para aquilo que estes elaboram como elemento que lhes possibilitem garantir a sobrevivência por meio do seu trabalho.

Conforme constata Almeida (2006a), as mudanças ocorridas nas formas de vida destas pessoas que durante anos viviam e conviviam entre si guardando suas tradições, foi alterada para outra lógica e isso, certamente, influenciou nas suas práticas sociais e, ousamos falar, dentre elas, as suas práticas matemáticas. Convém ressaltar que, apesar disso, quando das nossas visitas, pudemos observar, e os relatos que nos foram feitos deixam isso mais evidente, que algumas destas tradições ainda se mantêm. Houve significativas alterações na vida e produção social destas pessoas e, como podemos verificar na fala abaixo, tais mudanças acarretaram, inclusive, alterações no sentido e na compreensão acerca do tempo necessário para a realização do plantio e da colheita, resvalando na compreensão simbólica das atividades que estas pessoas faziam por séculos.

M1: Aqui você tinha uso comum da terra. Sujeito fazia uma roça aqui, nesse quadrado, e colhia depois de 1 ano, 1 ano e pouco. Ele só ia retornar aqui depois de 10, 11, 13 anos, quando essa área já estava mais ou menos recuperada. Isso ele aprendeu com o bisavô, com o tataravô, e veio. Em 1986, a partir de 86, esses trabalhadores que tinham essa prática foram privados dessa prática por terem recebido 16 hectares, mas não receberam orientação de como que tu vai viver agora fazendo essa mesma prática que você faz há 200, 300 anos.

De modo geral, as comunidades remanescentes de quilombos da região perderam tanto no que se refere à manutenção de suas práticas sociais históricas, quanto nos bens coletivos e pessoais, mais precisamente, os bens de terra e aqueles que ela poderia oferecer: produção de alimentos e, com a venda de parte deles, os que poderiam adquirir. À medida que as mudanças ocorridas obrigaram as pessoas do grupo a refazerem suas lógicas de vida, significativas alterações nas formas com que pensavam e reestruturavam os seus cotidianos ocorreram. E sendo fruto desse cotidiano, seus jogos de linguagens matemáticos, determinantes na constituição de suas práticas matemáticas, sofreram e sofrem influências e consequências diretas.

Para Gebauer (2013, p. 103), a ação dos jogos de linguagem e de seus participantes não devem ser separadas uma da outra. Compreende-se a ação como parte das inter-relações produzidas e “a concepção social do jogo de linguagem tem consequências de amplo alcance: propriedades essenciais que constituem a subjetividade do eu – sentimentos, intenções, desejo, consciência, identidade, conhecimentos, saber – são produzidas dentro do jogo de linguagem”. Neste sentido, alterando-se sua lógica de existência, de produção, de tempo e lugar, “desligamos” aquilo que envolve a decisão sobre a sua realização e as interações e inter-relações produzidas, sendo-nos obrigados a refazê-las numa outra lógica.

Alterando-se as bases de seu mundo objetivo e simbólico, alteram-se as de sua constituição e condições de possibilidade e, portanto, a própria constituição dos seus jogos de linguagem. Esta é, sem dúvidas, uma das consequências diretas das mudanças ocorridas na vida social do grupo em estudo. Isto posto, é possível que os seus jogos de linguagem matemáticos tenham mudado, se não na sua forma, mas no conteúdo de sua constituição. Ou seja, se não no produto, mas no processo para adaptar-se a uma nova realidade imposta socialmente. Esta nova realidade, fruto da imposição face aos deslocamentos, desapropriações e reassentamentos, imprimiu à vida dessas pessoas um ritmo diferente daquele que por vários séculos estava presente nos seus cotidianos.

A tarefa de descrever os usos dos jogos de linguagem matemáticos da comunidade de Espera é, também, a de compreender a forma com que se relacionavam com o mundo e se inter-relacionavam intrinsecamente, inclusive a forma e as consequências oriundas das alterações ocorridas. Wittgenstein (2014) diz, ao se referir à expressão jogos de linguagem em relação a falar uma língua, que aqueles são parte de uma atividade ou de uma forma de vida. Nesse sentido, vejamos, por exemplo, a forma como os membros da comunidade em estudo fazem uso de um jogo de linguagem matemático específico ao referirem-se à ação de “empaneirar a farinha”. Primeiramente, precisamos compreender que o empaneirar – no caso a farinha – é algo comumente empregado para acondicionar em um cofo12 (paneiro) a sua produção. Mas não é apenas isto. Verificamos pelos relatos que a ação de empaneirar corresponde a saber, a partir da construção do cofo, o quanto de farinha deve ser acondicionado: se em um cofo de uma quarta, uma quarta e meia, um alqueire ou de meio alqueire, meio paneiro, um paneiro, um paneiro e meio.

O jogo de linguagem matemático associado à ação de empaneirar a farinha, diz respeito a determinar a quantidade de farinha. Há nesta ação outra que lhe é anterior: determinar, por pura empiria, a quantidade de farinha (uma quarta, uma quarta e meia, um alqueire, meio alqueire, um alqueire e meio, meio paneiro, um paneiro, um paneiro e meio) que cada cofo deve conter. Assim, atrelado a isso, constrói-se o cofo tendo por base a experiência que considera, inclusive, que tipo de palha ou fibra e quanto desse material pode ser utilizado, além do traçado a ser realizado para que se possa estabelecer a quantidade requerida.

Retomando a questão, resta-nos, portanto, compreender que quem determinará a quantidade de farinha a ser acondicionada é o próprio cofo ou, melhor dizendo, quem o faz artesanalmente, pois é ele quem saberá fazê-lo de maneira a caber a quantidade pretendida. Assim, fará uso de determinado jogo de linguagem matemático que convém para que a ação seja feita. Wittgenstein (2014) afirma que há diversas possibilidades para um jogo de linguagem e que há, nos diversos casos, um acordo pré-determinado por meio de uma regra específica. Tal acordo, que é conduzido, estabelecido, por meio de uma regra geral, tem como recurso um instrumento próprio do jogo, que é a prática deste jogo, ou seja, um jogo é jogado de acordo com as regras socialmente estabelecidas e praticadas no interior de uma forma de vida.

Ao considerarmos os jogos de linguagem matemáticos em questão – uma quarta, uma quarta e meia, um alqueire, meio alqueire, um alqueire e meio, meio paneiro, um paneiro, um paneiro e meio –, tínhamos algo peculiar à ação de empaneirar a farinha que é estabelecer, a partir da construção do cofo que irá acondicioná-la e de maneira antecipada, o quanto de farinha ali será depositado. Isto deverá, portanto, considerar ainda outro aspecto igualmente importante que é para quantos subnúcleos familiares deverá ser dividida a farinha e, também, se for o caso, o quanto dessa farinha deverá ser vendida. Estabeleceu-se, para tanto, que a quantidade de farinha a ser produzida e empaneirada, deve obedecer a esta “convenção” de unidade que vem sendo utilizada desde os tempos da colonização por seus antepassados e que, de acordo com o relato abaixo, tem os seguintes correspondentes:

F1: 1 alqueire é 15 quilos. Então 1 alqueire daquele, 1 alqueire é 15 quilos, 2 daquele ali é 30 quilos. (...) O paneiro: 2 formam 1 paneiro. E 1 só é só meio alqueire, que é 15 quilos. Você entendeu? Aí se eu vou botar nesse saco aqui 3 alqueire daquele, 1 paneiro e meio. Se eu botar os 4, é 2 paneiro.

Como visto, a regra a ser utilizada considera que para empaneirar a farinha, deve-se ter em mente a quem a mesma será distribuída para se estabelecer o quanto deverá ser produzido. Isto, obviamente, ao considerar os subnúcleos familiares envolvidos na produção, também considera a necessidade de cada um para que seja pensada uma possível venda a fim de suprir com aporte financeiro esta necessidade e a disponibilidade dos participantes para, se for o caso, colocar a farinha à venda.

De acordo com Wittgenstein (2014), na linguagem, aquilo que define a palavra é o seu uso. Portanto, para que este uso seja efetivo e tenha sentido e significado para uma forma de vida, é necessário que dentro deste conjunto – que é a forma de vida específica, não deslocada da realidade, e o uso que se faz da palavra –, as regras estabelecidas sejam cumpridas como acordos sociais duráveis até que sejam, por meio de novas ações proporcionadas pelos usos dos jogos de linguagem, novas convenções, refeitas. Assim, estabelece-se o significado para aquilo que a convenção social estabeleceu. Percebe-se, aliás, que a ação de empaneirar tem atrelada a ela um acordo do quanto empaneirar, para quantos subnúcleos familiares deverá ser distribuída a produção e o quanto dela deverá ser vendida ou até se efetivamente será vendida.

Em todo esse processo, observa-se haver o uso de jogos de linguagem matemáticos que lhe são próprios, ou mesmo próprios do ato de fabricar farinha. A escolha da unidade adotada para o ato de empaneirar a farinha, por exemplo, é um dos processos que tem a ver com a tradição desses povos uma vez que, desde o período colonial, guardadas as devidas diferenças regionais, é o mesmo. Nisso residem dentre outras coisas, os jogos de linguagem matemáticos derivados da ação de empaneirar a farinha, conforme nos apresenta outro relato abaixo:

M2: É, uma carga 2 sacos ou é 2 cofos. (...). Dois cofos é uma carga. (...) Aí quando a farinha está boa, como agora. Aí você bota, eles dão um paneiro, conforme o tamanho mais de 1 paneiro um pouquinho.

M3: Dá uma carga. Aí você enche bem cheinho.

Aqui, conforme podemos constatar, há relativa mudança na forma com que o jogo de linguagem se apresenta. Entretanto, podemos também notar que o conteúdo do qual é feito, formado, estabelecido e para o qual tem seu desenvolvimento, ou seja, para aquilo que é utilizado, permanece inalterado, tanto no sentido quanto no significado. Observamos, ao se estabelecer agora como uma carga, que o jogo de linguagem matemático associado à ação de fabricar e empaneirar a farinha traz, novamente, o sentido prático da ação desenvolvida e cumpre mais uma vez com o objetivo do acordo mencionado anteriormente. Além disso, apresenta-se como mais uma alternativa de compreensão para a ação proposta dentro do contexto que é utilizado.

(In)conclusões ou novas considerações iniciais

Em Educação Matemática, dentre outras importantes discussões, tem-se debatido a possibilidade de constituir-se aportes teórico-filosóficos para a Etnomatemática. Procura-se evidenciar desdobramentos de teorizações que possibilitem entendimentos sobre saberes e fazeres não discutidos nos sistemas formais de ensino e/ou que favoreçam a entrada dos indivíduos nos sistemas de produção. Em especial, busca-se discutir de que maneira o conhecimento matemático pode auxiliar para que parte dos indivíduos economicamente ativos não sejam marginalizados nos processos formativos e produtivos.

Ao destacarmos o exposto neste texto, pretende-se demarcar, primeiramente, o repertório teórico-filosófico no qual esta pesquisa está inserida e, depois, destacar aquilo que a compõe como objeto de reflexão, qual seja, práticas matemáticas dos remanescentes de Quilombos da Agrovila de Espera, Alcântara - Maranhão. A tarefa aqui proposta passa, invariavelmente, pela compreensão de aspectos da vida social da comunidade de Espera, deste modo, pela compreensão daquilo que compulsoriamente lhes foi proporcionado por parte do Estado brasileiro, como condição para as suas existências e sobrevivências, a partir dos deslocamentos, desapropriações e reassentamentos, com vistas à implantação do CLA.

Para tanto, devemos levar em consideração aquilo que por séculos todas as comunidades remanescentes de quilombos da cidade de Alcântara possuíam e que, a partir do início dos anos 1980, constantemente tem-se perdido. Esta foi, também, uma preocupação latente do escopo desta pesquisa, com vistas a buscar entendimentos a respeito da realidade hoje presente na comunidade. Ao longo das análises aqui realizadas, procurou-se entender como eram utilizados os jogos de linguagem matemáticos decorrentes de uma ação específica sem, no entanto, desprezar as demais que foram surgindo ao longo dos trabalhos de campo e que os indivíduos utilizam cotidianamente como atividade laboral e de sobrevivência.

Além disso, buscou-se favorecer as compreensões sugeridas nos objetivos da pesquisa analisando-se, com auxílio do repertório teórico-filosófico do segundo Wittgenstein, a prática matemática de empaneirar a farinha de mandioca. Para tentar realizar as compreensões propostas acerca das práticas matemáticas sugeridas, sentiu-se a necessidade de também compreender aquilo que nas relações sociais mais amplas – sejam naquelas que decorrem das práticas matemáticas em si, sejam nas demais atividades do ambiente sociocultural –, tenham sofrido algum tipo de influência em decorrência da implantação do CLA. Assim, tentou-se buscar entender as relações internas e a forma com que a comunidade buscou se readaptar a uma realidade que difere daquela que foi vivenciada por muitos anos.

De pronto, constatamos com a pesquisa bibliográfica e as observações realizadas, que as alterações socioculturais ocorridas na comunidade em decorrência da implantação do CLA são uma realidade por vezes cruel. É a constatação de que há por parte do Estado brasileiro o completo desprezo por direitos e garantias básicas destes povos. As mudanças trazem, no que dizem respeito às práticas matemáticas, inclusive, graves implicações nas atividades que eram realizadas, uma vez que modificaram o modo de vida das pessoas e a forma em que buscavam meios de subsistência.

As observações e entrevistas que foram realizadas corroboraram para o entendimento daquilo que a pesquisa bibliográfica já nos mostrava: a estrutura social de existência desses povos foi modificada e isso trouxe implicações para as relações com a natureza e com os membros da própria comunidade e das demais que orbitavam à sua volta e que, em sua imensa maioria, também foram deslocadas, desapropriadas e reassentadas. Muitas das atividades que antes eram realizadas, deixaram de ser feitas e isso se deu seja por falta de estrutura técnica, falta de espaço territorial ou mesmo por terem sidos realocados a uma longa distância do mar como, por exemplo, no caso da pesca.

Durante toda a pesquisa bibliográfica realizada, as leituras feitas apontavam haver alterações significativas na forma de vida desses povos. Como forma de argumentação para aquilo que buscamos compreender, para as práticas matemáticas decorrentes de tais práticas sociais, as modificações foram também responsáveis por mudanças tanto na forma quanto no conteúdo de suas constituições, por exemplo, na produção da farinha de mandioca. Aquilo que antes era empaneirada em sua totalidade, ou seja, era acondicionada em cofos ou paneiros, agora é ensacada com maior frequência e, por conseguinte, a fabricação dos cofos tem diminuído sistematicamente.

E deixando-se de produzir os cofos, deixa-se de se fazer uso de uma prática matemática específica e atrelado a isso, de um jogo de linguagem matemático que vai se perdendo. Poucas são as pessoas que ainda se dão ao trabalho da fabricação dos cofos e parte daquilo que compõe as práticas matemáticas que eram utilizadas na sua constituição e fabricação, deixa de existir e como estas se caracterizam pelos usos dos jogos de linguagem matemáticos envolvidos, estes perdem o sentido e, consequentemente, sua existência está ameaçada.

A prática de empaneirar a farinha de mandioca tem em sua forma e conteúdo aquilo que aqui denominamos de práticas matemáticas e, com isso, carregam consigo alguns elementos que constituem fazeres e saberes que, de alguma maneira, utilizam relações de medir, processos de contar, etc. Nesse contexto, que os indivíduos dão vazão aos jogos de linguagem matemáticos que caracterizam tais práticas e mesmo que inconscientemente, dão sentido e significado àquilo que pretendem realizar, por exemplo, fabricar, empaneirar, distribuir a farinha entre os núcleos familiares ou se for o caso, vender parte dessa produção.

O arcabouço teórico-filosófico de Wittgenstein permitiu compreender os sentidos e significados atribuídos às práticas matemáticas e como estas auxiliam na realização das atividades cotidianas dos indivíduos da comunidade. Primeiramente, porque nos permitiu entender que são constituintes de suas práticas sociais e, depois, por carregarem consigo parte de suas tradições, saberes e fazeres; e, finalmente, por permitirem a esses indivíduos suprir parte de suas necessidades com suas subsistências. As práticas matemáticas possuem significados atribuídos pelas formas de vida e, assim, conforme os jogos de linguagem matemáticos são postos em prática, desenvolvem-se nas práticas matemáticas específicas elementos que possibilitem a existência e a garantia de meio de sobrevivência e subsistência.

Diante desse contexto, deve-se compreender que os deslocamentos territoriais, culturais e sociais produziram novas formas de elaboração de saberes e fazeres desses indivíduos e, consequentemente, novas maneiras de significar suas práticas sociais. A partir disso, consideramos que seja importante destacar que quando os jogos de linguagem matemáticos são postos em uso, possibilitam também ressignificar aspectos importantes de suas tradições.

8Segunda base de lançamento de foguetes da Força Aérea Brasileira, denominada de Centro de Lançamento de Alcântara, no município de Alcântara, Maranhão, destinada a realizar missões de lançamentos de satélites e sediar os testes do Veículo Lançador de Satélites – VLS.

9Tendência filosófica que considera como real apenas a essência e propõe explicar tudo o que existe a partir de seus termos, ou seja, confere o primado da essência sobre a existência.

10Compreenderemos o termo matematizar com o sentido de fazer uso de práticas matemáticas nos contextos específicos nos quais o indivíduo, por condição de sobrevivência e/ou trabalho, assim as desenvolve, sem, no entanto, que necessariamente isso se dê por meio da escolarização formal.

12Espécie de cesto oval, de boca apertada, no qual os fabricantes de farinha acondicionam a produção ou os pescadores guardam o pescado; samburá. Em algumas regiões do país é conhecido também pelo nome de tipiti, mas, neste caso, não é utilizado para prensa da mandioca na fabricação de farinha.

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Recebido: 00 de Março de 2017; Aceito: 00 de Abril de 2017

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