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Revista Exitus

versión On-line ISSN 2237-9460

Rev. Exitus vol.7 no.2 Santarém mayo/Agosto 2017  Epub 20-Mayo-2019

https://doi.org/10.24065/2237-9460.2017v7n2id311 

Artigos

Práticas socioculturais xerente em comunidades de prática

Practices socioculturais xerente in communities of practice

Prácticas socioculturales xerentes en comunidades de práctica

Elisangela Aparecida Pereira de Melo37 

Tadeu Oliver Gonçalves38 

37Universidade Federal do Tocantins (UFT). Campus de Araguaína, Curso de Licenciatura em Matemática. E-mail: elisangelamelo@uft.edu.br.

38Doutor em Educação Matemática. Professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), Instituto de Educação Matemática e Científica e do Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Matemáticas. E-mail: tadeuoliver@yahoo.com.br.


Resumo

Este artigo apresenta às interconexões entre as práticas socioculturais do povo Xerente, em especial, as relações de pertencimentos dos indígenas às metades clânicas patrilineares – Doi e Wahirê e as matemáticas evidenciadas nas simbologias das pinturas corporais dessas metades clânicas e subclânicas. Na perspectiva do dialogo intercultural, objetivamos investigar as matemáticas que emergem nas simbologias das pinturas corporais Doi e Wahirê, de modo a questionar em que termos dos saberes e dos fazeres destas práticas podem balizar aprendizagens para o ensino das matemáticas, nas escolas indígenas? As articulações teóricas e metodológicas deram-se, a partir da teoria de comunidades de prática proposta por Wenger (2001); a investigação foi desenvolvida mediante a abordagem da pesquisa qualitativa etnográfica. As recolhas de informações foram obtidas nos contextos comunitários da aldeia Porteira e Salto, com os indígenas. As análises apontam que as simbologias das pinturas corporais a partir da negociação coletiva com a comunidade podem contribuir com a criação e recriação de novas aprendizagens matemáticas professores e estudantes indígenas e não indígenas.

Palavras-chave:  Práticas Socioculturais Xerente; Relações de pertencimentos; Pinturas Corporais; Ensino e Aprendizagens das Matemáticas

Abstract

This paper presents to the interconnections between the socio - cultural practices of the Xerente people, in particular, the relations of indigenous belonging to the patrilineal clan halves - Doi and Wahirê and the mathematics evidenced in the symbologies of the body paintings of these clan and subclanical halves. In the perspective of intercultural dialogue, we aim to investigate the mathematics that emerge in the symbologies of the body paintings Doi and Wahirê, in order to question in what terms of the knowledge and the practices of these practices can guide learning for the teaching of mathematics in indigenous schools? The theoretical and methodological articulations were based on the theory of communities of practice proposed by Wenger (2001); the research was developed through the approach of qualitative ethnographic research. The data collection was obtained in the community contexts of Porteira and Salto, with the Indians. The analyzes show that the symbologies of body paintings from collective bargaining with the community can contribute to the creation and recreation of new mathematical learning teachers and students indigenous and non-indigenous.

Keywords:  Sociocultural Practices Xerente; Relationships of Belongings; Body Paintings; Teaching and Learning of Mathematics

Resumen

Este artículo presenta las interconexiones entre las prácticas sociales y culturales de la gente de Xerente, en particular, las relaciones de los indios pertenecientes a las mitades clánicas patrilineales – Doi y Wahiré y las matemáticas evidenciadas en las simbologías de las pinturas corporales de esas mitades clánicas y subclánicas. Desde la perspectiva del diálogo intercultural, el objetivo fue investigar las matemáticas que surgen en los símbolos de la pintura corporal Doi y Wahirê, de modo de interrogarnos ¿en qué sentido los saberes y los haceres de esas prácticas pueden proporcionar aprendizajes para la enseñanza de las matemáticas, en las escuelas indígenas? Las articulaciones teóricas y metodológicas provenían de las comunidades de teoría práctica de Wenger (2001); la investigación fue desarrollada desde un enfoque cualitativo etnográfico. La recogida de información fueron obtenidas em los contextos comunitários de la aldeã Porteria y Salto, con los indígenas. Los análisis indican que los símbolos de la pintura del cuerpo a partir de la negociación colectiva con la comunidad pueden contribuir a la creación y recreación de nuevos aprendizajes matemáticos por parte de maestros y estudiantes indígenas y no indígenas.

Palabras clave:  Prácticas Socioculturales Xerente; Relaciones de pertenencia; Pinturas Corporales; Enseñanza y el Aprendizaje de las Matemáticas

Introdução

Apresentamos nesse texto, parte de um empreendimento compartilhado, a partir da pesquisa de doutorado Intitulada “Sistema Xerente de Educação Matemática: negociações entre práticas socioculturais e comunidades de prática”, já concluída39, desenvolvida entre os anos de 2013 e 2016, com permanência de cinco, dez e quinze dias nos contextos comunitários das aldeias indígenas Porteira e Salto, do povo Xerente, localizadas no município de Tocantínia, Região Central do estado do Tocantins.

A vivência junto aos indígenas nos propiciou conduzir a pesquisa de modo a dar vez às vozes dos colaboradores, no sentido de compreendermos se os indígenas Xerente, em seus sistemas de práticas socioculturais40, constituem como uma comunidades de prática, a partir do engajamento mútuo, empreendimento conjunto e repertório compartilhado (WENGER, 2001), de maneira que possamos com eles negociarmos parte desses sistemas de práticas socioculturais, na perspectiva do ensino e da aprendizagem das matemáticas na escola indígena.

Desta pesquisa, trazemos para a discussão a partir da negociação com a comunidade e com os professores indígenas as práticas socioculturais de pertencimentos dos indígenas às metades clânicas patrilineares – Doi e Wahirê, as práticas de pertencimentos, que perpassam a constituição, o fortalecimento, a reafirmação da identidade e da construção permanente da autonomia e alteridade do povo Xerente, desde os seus antepassados às presentes gerações, por meio dos distintos saberes e fazeres culturais, transmitidos e ensinados na oralidade que se manifesta, dentro de certas perspectivas do saber fazer na prática de uma educação apreendida em tempo de liberdade e do bem viver em comunidade, onde há um engajamento completo, por parte dos núcleos familiares, no compartilhar dos empreendimentos, como são as práticas socioculturais do povo Xerente.

As descrições e reflexões sobre as práticas de pertencimentos dos indígenas às metades clânicas patrilineares – Doi e Wahirê são provenientes de um sistema partilhado de recolha de informações, que se deram na perspectiva da pesquisa de abordagem qualitativa etnográfica, realizada diretamente com os indígenas, as quais, constituíram as interconexões entre as práticas socioculturais e a negociação dos significados dessas ações, por meio do repertório compartilhado das simbologias encontradas nas pinturas corporais clânicas, que evidenciam aspectos conceituais das matemáticas, de modo a mobilizar ações de fronteiras indisciplinar para o ensino e aprendizagens da Matemática escolar balizadas nas comunidades de prática do Ser indígena Xerente professor, em contexto de vivência diária e comunitária.

Com o intuito de fomentar ações educativas e formativas no contexto das escolas indígenas Xerente, por meio das práticas socioculturais de pertencimentos clânico patrilinear – Doi e Wahirê, essa pesquisa questionou: em que termos dos saberes e dos fazeres destas práticas podem balizar aprendizagens matemáticas? No sentido do dialogo intercultural do ensino e da aprendizagem, objetivamos investigar as matemáticas e as geometrias que emergem nas simbologias das pinturas corporais Doi e Wahirê.

Para o entrelaçamento de ideias que compõem esse texto, optamos por organizá-lo em quatro seções; na primeira seção, apresentamos o contexto investigado, evidenciando os distintos modos de organização sociocultural do povo Xerente. Na segunda seção evidenciamos parte do repertório das práticas socioculturais deste povo, de modo a elucidar as relações de pertencimento dos indígenas nas metades exogâmicas Doi e Wahirê.

Na terceira seção discorremos sobre aspectos teóricos de comunidades de prática perpassando pelos campos literários de etnomatemática e indisciplina que embasaram as leituras e escritas da investigação. A quarta seção apresenta os caminhos metodológicos assumidos para as recolhas de informações no contexto investigado. Por fim, expomos as análises das informações recolhidas junto à comunidade investigada, evidenciando as contribuições para os processos educativos e formativos, na área do ensino e aprendizagem das matemáticas.

O povo xerente

No sentido de abordar parte dos repertórios compartilhado dos saberes e fazeres tradicionais do povo Xerente, evidenciamos sua localização geográfica, seu modo de vida, sua organização social e cultural e, sua (com)formação histórica transformada durante o processo de contato com o não indígena. Dessa maneira, consideramos a perspectiva de evidenciar a pluralidade do contexto sociocultural em que se encontram esse povo.

Para contextualizar essas riquezas tradicionais que nos motivaram a investigar as práticas socioculturais das pinturas corporais desse povo, destacamos a fala do professor Samuru, ao se referir à realidade sociocultural a partir do seu território, o seu espaço comunitário, de vivência diária e de aprendizagem familiar: “Os pássaros cantam, os bichos correm, as florestas dançam, as águas dos rios e córregos nos refrescam, e a noite é muito bonita, é de uma beleza sem tamanho, a vida é assim aqui na terra indígena Xerente” (SAMURU, ago. 2016).

As reflexões do professor Samuru, nos conduz a uma viagem no tempo e no espaço, constituído do viver em liberdade as mais distintas diversidades que a natureza nos oferece, quer sejam por meio das formas de expressão ou quer sejam do apreciar o dia a dia desse contexto plural e simbólico.

Logo é em meio a contexto que se deu a demarcação e homologação do território indígena Xerente, por parte do Governo Federal, ocorrida em dois momentos distintos, a saber: o primeiro ocorreu antes da divisão do estado de Goiás, em 1972, com a demarcação da Terra Indígena Xerente, com 167.542 hectares. O segundo ocorreu junto com a criação do estado do Tocantins, em 1988, que foi a demarcação da Terra Indígena Xerente Funil, com 16.000 hectares.

Essas terras indígenas estão localizadas no cerrado tocantinense, Região Central, do estado do Tocantins, no município de Tocantínia, situada à direita do rio Tocantins. Dista 70 quilômetros ao norte da capital do estado, Palmas. A 01 apresenta as demarcações das terras indígenas Xerente e Funil, margeadas pelos rios Tocantins e Sono, cortadas por alguns córregos, como o Piabanha.

Autoria: Sieben, 2014. Fonte: Elaboração Coletiva.

Figura 01 Localização das terras indígenas Xerente 

Mas, de acordo com os nossos colaboradores, o povo Xerente ocupavam uma área muito maior do que as que foram demarcadas, pois, muitos dos anciãos, que ainda estão vivos, lembram do território historicamente ocupado em oposição à ocupação atual, uma vez que esse povo tem formas próprias de se orientar no espaço físico por meio do mapa da memória oral.

Da organização espacial dos indígenas no seu território dão-se pela formação de aldeias, as quais são constituídas por núcleos familiares. Assim os Xerente, estão distribuídos em 72 aldeias e somam uma população de aproximadamente 3 500 pessoas, entre crianças, jovens, adultos e anciãos41.

Desse contexto de organização social os indígenas Xerente, autodenominam-se Akwẽ e pertencem, linguisticamente, ao tronco Macro-Jê, de família Jê-Central. São também considerados por assimetria linguística os Xavante A’wẽ, localizados no estado de Mato Grosso e os Xakriabá, localizados no estado de Minas Gerais, a estes incluíam, os Akroá, hoje extintos pelo genocídio, por parte daqueles que queriam e querem dominar a terra, enquanto, espaço de ocupação, exploração, especialmente, para a produção agrícola.

Os Xerente organizados desde seus antepassados por meio dos partidos ou metades exogâmicas patrilineares clânicas Doi e Wahirê42. São também considerados povos da floresta, grandes guerreiros e corredores. Tem sua subsistência advinda da coleta de frutos, da caça, da pesca e das roças de vazantes e de tocos.

Das tradições culturais do povo Xerente, dá-se destaque para a tradicional festa do Dasipsê. No decorrer desta festa, muitas atividades culturais são realizadas com o intuito de fortalecer e preservar a cultura como são, as corridas com toras grandes de buriti (masculina e feminina), a nominação masculina e feminina, os cantos e as danças, as corridas de taquara, a reunião das quatro Associações de Clãs Daksu: Krara, Annrõwa, Krêrêkmô e Akennhã.

A história de vida dos Xerente e dos demais povos indígenas do estado do Tocantins mistura-se com a história de constituição e destituição do norte goiano, dada a Promulgação da Constituição Federal de 1988, que criou em 05 de outubro, deste mesmo ano, o estado do Tocantins, “[...] é impossível reconhecer o estado do Tocantins sem a presença dos Xerente em seu território” (FARIAS, 1990, p. 20).

Entretanto o povo Xerente nos últimos anos, têm sofrido com muitos impactos ambientais, particularmente os provenientes da Usina Hidrelétrica Luís Eduardo Magalhães (UHE), localizada no rio Tocantins, entre os municípios de Lajeado e Miracema do Tocantins. De acordo com os indígenas, a construção deste empreendimento hidrelétrico se constituiu em um sonho perdido para eles, pois os efeitos são drásticos para as aldeias que estão localizadas à margem do Rio do Tocantins, como também para as demais aldeias, pois os impactos ambientais têm provocados danos irreparáveis à comunidade, de um modo geral.

Desse empreendimento, os indígenas destacam que os impactos provocados na natureza são irreparáveis, pois inundou grande parte do entorno das terras Xerente, mudando o curso das águas do rio Tocantins, provocando alterações nos modos de vida e subsistência familiar, em especial, na produção dos alimentos advindos das roças de vazantes. Estas alterações provocaram também a redução das caças do cerrado, a morte demasiada e constante de peixes e o desbarrancamento das áreas próximas ao rio. Estes impactos, segundo o ancião e Vice Cacique Sozẽ Xerente43 da aldeia Porteira, têm sido avassaladores para o seu povo, conforme esclarece no depoimento a seguir:

Os impactos que estamos vivendo em nossa terra e nas nossas aldeias vão além da dimensão econômica, ambiental ou de comida como o peixe e a caça que estão sumindo dia após dia. Na verdade atingiram a nossa cultura, os nossos costumes, o nosso povo, o nosso jeito de viver, a nossa vida nunca mais foi a mesma. Hoje os mais velhos não banham mais no rio Tocantins, porque ele está cheio de almas perdidas e não sabemos o que essas almas tem de bom ou ruim. As crianças têm medo da água do rio, porque não sabemos quando vai está cheio ou vazio. O nosso Deus Waptokwa Zawre está revoltado com nós, porque não estamos fazendo roça de vazante, pescando, caçando e os saberes que aprendemos com os nossos antepassados podem acabar, por não estarmos mais praticando e ensinando as crianças como antes. Há cada dia que se passa nós Akwẽ, estamos vivendo e consumindo as coisas do homem branco.

Paralelamente aos impactos ambientais provenientes desta Usina, temos que destacar as frentes avassaladoras do Agronegócio que adentram o estado do Tocantins e, de forma direta, afetam as comunidades indígenas por meio das suas plantações mecanizadas de arroz, de milho, de soja e da criação de gado, dentre outros que devastam as terras do cerrado, que se tornarão improdutivas, em um futuro não muito distante, em particular, por considerar o ritmo dos avanços tecnológicos global.

Estas frentes do Agronegócio já têm evidenciado os seus fins prejudiciais às comunidades indígenas, pois os produtores plantam nas proximidades extremas da demarcação das terras indígenas e a pulverização de produtos químicos para combater as pragas tem provocado sérios danos à saúde dos indígenas. Há casos de doenças de pele e respiração entre os indígenas. Deste contexto socioambiental, o desafio atual para os Xerente é aprender a conviver e tentar evitar os conflitos interpessoais, quer sejam os internos e ou os externos, com os não indígenas, para manterem o bem viver em suas comunidades.

Por conseguinte, imersos no arcabouço de saberes da tradição, conforme expressão de Almeida (2010), do povo Akwẽ, que vive os constantes atravessamentos e imposições das políticas não indigenistas, mas que fazem destes um entrelaçamento de conhecimento e aprendizado diversos, esse povo se fortalece cada vez mais por meio dos arranjos políticos, sociais e clânicos, como “[...] entidade cultural e linguística diferenciadas” (LOPES DA SILVA; FARIAS, 2000, p. 89).

Assim, são os Xerente, um povo destemido e guerreiro, que tem apreendido a cada dia a lutar pelos seus direitos em diferentes espaços sociais, de modo a garantir e preservar seu território, seus saberes tradicionais, fazendo valer a autoafirmação étnica e a valorização da cultura indígena. Um povo que sempre marcou presença em momentos diversos da sua própria história, como em diferentes frentes e organizações políticas e indigenistas.

Práticas socioculturais das pinturas corporais xerente

Os Xerente são detentores de vários repertórios de saberes tradicionais que, em parte, se constituem em práticas socioculturais compartilhadas socialmente, transmitidas e produzidas entre as gerações desse povo, por meio das aprendizagens e experiências próprias, que vão da oralidade da linguagem ao silêncio do aprender, observando o saber fazer na prática dos diversos artefatos que compõem as formas de organizações sociais deste povo, tendo toda uma orientação do núcleo familiar.

Entretanto, há muitos saberes próprios deste povo que estão deixando de ser ensinados às crianças e aos jovens, sendo, esses, apenas vividos em momentos especiais, como os que ocorrem na grande festa Xerente – Dasipsê, ou seja, como destaca o ancião Mmiro44“[...] muitos saberes e rituais, são praticados e demonstrados às novas gerações de Akwẽ como um raio que corta o céu de um lado ao outro, no inverno. Quem se interessa e quer aprender vai procurar um velho para lhe ensinar”.

O sentimento que o ancião Mmiro expressa em seu depoimento é o mesmo que Gonçalves-Maia (2011, p. 93) quando considera que “as “ideias” existem, mas quem não “conhece”, não sabe”, ou, ainda, como preconiza Almeida (2010, p. 141) ao asseverar que “parece haver sempre casulos de ideias adormecidas, mas prontos para nascer quando acordados por circunstâncias imprevisíveis”.

A preservação dos saberes tradicionais não é uma preocupação recente entre os anciãos, já vem ocorrendo desde os primeiros contatos com os não indígenas, isto é, no período em que se iniciou os processos de escolarização e inserção da língua portuguesa, como uma das formas mais avassaladoras de dominação.

Foi reagindo a essas formas de inserção de conhecimentos resultantes do contato e do acesso à informação, sejam os vindos dos meios educativos ou das tecnologias da informação (televisão, internet, redes sociais, ...), que muitos dos saberes tradicionais estão sendo negociados e guardados nas memórias dos anciãos, como um meio de preservação.

Mas, estes saberes são reavivados em fases distintas de vida dos Xerente e praticados em momentos de manifestação cultural deste povo. Isto não significa dizer que os saberes estão se perdendo no decurso do tempo, mas, podem adormecer devido à ausência de uma prática diária, como ocorria há tempos passados. Mesmo diante as várias situações impostas pelo contato com a sociedade não indígena os Xerente têm a força do poder intracultural de se fortalecerem e reavivarem os traços tradicionais de sua cultura diante das situações impostas por diferentes frentes de enfraquecimento da cultura, ou seja, estes indígenas têm a:

Capacidade de recuperar e revitalizar práticas, rituais, instituições inteiras de sua vida social, que durante certo período – por razões certamente históricas –, estiveram obscurecidas, parecendo irremediavelmente perdidas, mortas, desaparecidas. Renascem em outros momentos históricos, que oferecem condições adequadas (LOPES DA SILVA; FARIAS, 2000, p. 110).

Em meio a este cenário metafórico proveniente de distintos saberes e conhecimentos que os Xerente buscam preservar a sua identidade cultural e linguística. Nessa perspectiva, nota-se a valorização por parte destes indígenas com relação também à conservação do patrimônio ambiental e cultural como elemento de pertencimento, de vivência, de aprendizagem, de revitalização e de fortalecimento do indígena Xerente como um membro nato da natureza – floresta.

Nesse sentido, há de se destacar que o povo Xerente vive uma dinâmica cultural em vários sentidos da vida cotidiana, quer sejam por meios das manifestações socioculturais, das práticas esportivas, míticas e religiosas, e outros que contribui para que haja uma inclusão de conhecimentos, ou como afirma Almeida (2010), embasada nos estudos de Edgar Morin sobre complexidade, uma ecologia de conhecimento:

[...] isto é, uma operação do pensamento que leva em conta a cadeia de múltiplas correlações, determinações, aproximações e também distintos padrões de auto-organização dos fenômenos se configura como um metaprincípios para a comunicação interna aos saberes científicos, e destes com outras formas de saberes. [...] uma ecologia dos conhecimentos supõe comunicação e troca entre a diversidade de informações e saberes constituídos por vezes por hibridismos, por vezes por mestiçagens entre domínios de especialidades (ALMEIDA, 2010, p. 151).

Essa dinâmica cultural é determinada por diferentes ecologias de conhecimentos, que os saberes e os fazeres são compartilhados por meio da oralidade e da realização das práticas socioculturais vivenciadas cotidianamente pelos indígenas Xerente. Nesta perspectiva, destacamos que são vários os rituais desenvolvidos pelos Xerente como práticas de um saber que é transmitido de geração a geração a partir da linguagem, do visual e da simbologia, do aprender observando e do fazer na prática, como é a prática socioculturais do saber tradicional das relações de pertencimento nas metades exogâmicas patrilinear Doi e Wahirê.

Dessa ambiência de pertencimento clânico os Xerente são organizados socioculturalmente em duas metades ou partidos exogâmicas regidas por sub partidos ou subclãs, de filiação patrilinear, ou seja, os filhos independentes do sexo pertencem ao clã ou ao partido do pai. É por meio desta lógica de organização e de identidade cultural que os Xerente são classificados como uma comunidade, com princípio de dualidade, ou seja,

[...] os membros da comunidade – tribo – aldeia – são distribuídos em duas divisões, que mantêm relações complexas, as quais vão da hostilidade declarada à intimidade mais estreita, e a que se acham habitualmente, associadas diversas formas de rivalidade e cooperação. Frequentemente, estas metades são exogâmicas, isto é, os homens de uma só podem escolher esposas entre as mulheres da outra, e reciprocamente (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 108).

A dualidade entre os Xerente existe e é evidenciada em diferentes elementos que compõem as estruturas culturais deste povo e se expressam em diferentes rituais de manifestações dos saberes e dos fazeres tradicionais. Para estes indígenas, o mundo é organizado e vivido em pares, ou seja, um homem e uma mulher, sol e lua, terra e céu, água e fogo. Outras evidências desse sistema dual estão presentes no sistema de contagem, pois contam aos pares, ou seja, juntando um dedo ao outro, conforme destacou Melo (2007). Temos que, os rituais sempre ocorrem aos pares, evidenciando assim, uma reciprocidade entre os indígenas.

Para os Xerente, a natureza, o céu e seus elementos que compõem estes universos não podem viver sozinhos, eles têm que ter sempre um companheiro de modo a complementar o ciclo de vida, “[...] uma andorinha quando fica adulta, ela precisa de um andorinho para ser seu companheiro. Eles vão formar a sua família. Assim é o Akwẽ ” (ANCIÃO SEVERO SÕWARÊ, set. 2014). De igual modo, são também a organização social das metades exogâmicas patrilineares, chamadas de Doi e Wahirê, que significam Sol e Lua e fazem parte da cosmologia mística de criação deste povo. Estas metades são duais e se complementam na harmonia da reciprocidade compartilhada pelos seus membros.

Contam as narrativas do povo Xerente que estas metades clânicas, por muitos anos foram e, em parte, ainda são as responsáveis pela estrutura das aldeias em formato de ferradura ou meia lua, com casas dispostas ao longo da circularidade, abrangendo a comunidade do norte ao sul da aldeia, de modo a favorecer as relações de parentesco entre as pessoas pertencentes a estas metades e suas respectivas subdivisões clânicas, conforme já descreveram Souza Filho (2007), Lopes da Silva; Farias (2000) e Nimuendaju (1942).

É a partir deste contexto de pertencimentos em metades clânicas patrilineares que os indígenas são reconhecidos desde crianças, em diferentes espaços de convívios diários, tanto os de sua aldeia, como em outras, por meio das simbologias das pinturas corporais clânicas das metades e suas subdivisões entre Doi (bolinhas – kritoizapto/círculo) e Wahirê (listra–ĩhirê/traço). Podemos registrar, ainda, de acordo com Lopes da Silva; Farias (2000, p. 98), “esses motivos são hoje, como sempre, uma das referências básicas, aos olhos dos próprios Xerente, para a identificação de suas metades patrilineares e exogâmicas tradicionais”.

Estas metades exogâmicas possuem seis subdivisões clânicas, que estão distribuídas da seguinte forma: Kuzâ, Kbazi e Krito pertencem à metade DoiIsaptotdêkwainõrĩ (clã dono das bolinhas/círculos – kritoizapto), e se caracterizam visualmente pela pintura corporal em bolinhas (pequena ou miúda, médio, grande ou graúdo) e, Wahirê, Krozake e Krãiprehi pertencem à metade Wahirêĩsake tdêkwainõrĩ (clã dono das listras – ĩhirê/traço), e utilizam o traço (traços retos sendo uns finos entre os retos grossos e outros com pequenos traços horizontais e três traços finos retos entre os retos grossos). Conforme mostra a 02.

Autoria: Ailton Kmõmse Xerente, jul. 2015. Fonte: Elaboração coletiva

Figura 02 As metades exogâmicas patrilineares – Doi e Wahirê 

As representações clânicas vividas entre listras – ĩhirê ou traço – ĩwawikrarê, bolinhas kritoizapto ou círculos – kuipturê, obedecem à estrutura lógica e cultural das metades patrilineares exogâmicas Doi e Wahirê, que são retratadas simbolicamente nos corpos dos indígenas. Essas representações têm em si as variações exclusivas das respectivas metades, conforme indicou a Figura 02. São por meio destas pinturas corporais que os indígenas são reconhecidos nos diversos espaços das aldeias, como membros pertencentes a uma destas duas metades e filiados a seus respectivos subclãs. Observe o que nos diz uma anciã:

Os Akwẽ, antes de aprenderem a usarem roupas, sempre estavam pintados, principalmente para se protegerem dos maus espíritos, que andam solto por aí. Assim, a pintura tinha que renovada sempre e nunca sumia do nosso corpo. Quando chegava um índio de outra aldeia ele sabia pela minha pintura o meu clã e as vezes o meu nome. Os índios de outro povo também sabiam reconhecer os Akwẽ pela sua pintura, porque a nossa pintura não muda, será sempre a mesma, por isso as aikde – crianças aprendem desde pequena a sua pintura e a pintar-se também. A nossa pintura é um saber que deve ser apreendido e guardado por todas as gerações (ANCIÃ EURIDES XERENTE, jul. 2014).

Assim, o povo Xerente é reconhecido, não só nos espaços cotidianos de suas aldeias, caracterizados por suas pinturas corporais em listras ou traços e círculos, mas nos diversos ambientes que transitam, sejam eles de caráter social, cultural ou político, em âmbito estadual, nacional ou entre os demais povos indígenas do estado do Tocantins, a saber: Apinayé, Krahô, Krahô-Kanela, Kanela do Tocantins, Javaé, Karajá de Xambioá e Karajá (conhecidos como Karajá da Ilha).

Os povos citados anteriormente também têm suas pinturas corporais que se distinguem entre si por seus repertórios de variados desenhos, traçados ao longo do corpo, mantendo uma ligação direta com os elementos da organização social, cultural, mística e cosmológica que transmitem, igualmente, o sentido do ser indígena.

Todavia, as pinturas corporais em metades exogâmicas e clânicas são de pertencimentos patrilinear, e fazem parte da identidade do Ser indígena Xerente45, uma vez que o pertencimento a uma das metades exogâmicas é vitalício, não podendo os indígenas mudar de filiação. Portanto, não é permitido o indígena pintar-se com as pinturas de um outro clã, somente com a do seu.

Nesta perspectiva, cabe-nos inventariar entre listras ou traços e círculos ou bolinhas, de modo a descrevermos os artefatos utilizados pelo indígena Xerente para adornarem seus corpos, nos momentos da vida cotidiana, de ritual e de manifestação cultural, o que permite considerar estes artefatos como um patrimônio cultural de natureza material e imaterial destes povos. Esses artefatos tendem ao desdobramento a partir dos desenhos ou padrões das iconografias de um repertório compartilhado proveniente da especificidade clânica das metades patrilineares exogâmicas Doi e Wahirê.

Verifica-se, assim, que a maioria dos artefatos empregados na realização de uma pintura corporal cumpre uma única função, uma vez que: “A pintura corporal para os povos indígenas é uma forma de comunicação, utilizando o corpo como instrumento” (MASTOP-LIMA, 2009, p. 78). Ocasionando, uma multiplicidade de implementos, decorrentes dos fatores relacionados ao ato de quem realiza a tarefa de pintar o outro, conforme observamos na habilidade artesanal de dominar o fino ou médio talo, extraído da folha da palmeira de babaçu ou da tala da taboca (siba), entre os dedos das mãos a delimitar as formas dos desenhos clânicos a serem reproduzidos no corpo do indígena.

Logo, a sabedoria e a arte de pintar os corpos dos indígenas com os traços simbólicos dos desenhos clâncios, está também, relacionada com algumas aprendizagens compartilhadas nos núcleos familiares e, em diferentes espaços de convívios diários, ou seja, “[...] os povos indígenas, são excelentes observadores da natureza e nela se inspiram para fazer, por exemplo, suas pinturas corporais” (MASTOP-LIMA, 2009, p. 76).

Das diversas leituras que os indígenas Xerente fazem para retratarem os desenhos clânicos em seus corpos, destacamos ainda, as destrezas demonstradas pelos indígenas no manuseio do jenipapo nas mãos, para dele extrair a tinta de cor preta azulada. Dessa sabedoria e arte, temos também, as narrativas dos Akwẽ sobre as distintas formas clânicas das pinturas corporais, que estão presentes entre os saberes da tradição do povo Xerente assumidos por estes indígenas na acepção de vida, confere-lhes aspectos cognitivos deste saber fazer na prática das pinturas, revelando a existência de habilidade e de reprodução de todo um repertório que reflete significados do Ser indígena que vive cotidianamente entre listras – ĩhirê ou traço – ĩwawikrarê, bolinhas kritoizapto ou círculos – kuipturê, e expressam em si linguagens e veículos de comunicação visual.

A prática das relações tradicionais de pertencimento nas metades exogâmicas patrilinear Doi e Wahirê nos permitem alcançar um entendimento de ideias presentes neste contexto sociocultural que dizem respeito à organização social, cultural e de identidade do Ser indígena Xerente, pois, envolvem compreensões diversas e que adotam diferentes critérios de identificação dos indígenas, como membro pertencente a uma das metades exogâmicas, seja ela Doi ou Wahirê e mais, especificamente, a um dos seis subclãs, que os constituem e os fortalecem como o povo Xerente.

Pressupostos teóricos de comunidades de prática

Para que pudéssemos focalizar o contexto investigado, os colaboradores da investigação, de modo a compreender que os indígenas Xerente, por meio das relações de pertencimentos às metades clânicas patrilineares – Doi e Wahirê e suas práticas do saber fazer na prática das simbologias das pinturas corporais, possibilitaram o entendimento acerca do pertencimento e engajamento do Ser indígena Xerente professor, nessas práticas que são apreendidas e compartilhadas de geração em geração. Práticas estas que possibilitam mobilizar ações de ensino e aprendizagem das matemáticas na escola de indígena.

Assim sendo, os fundamentos a respeito dos estudos sobre comunidades de prática, proposto por Wenger (2001), pressupõe associar prática e comunidade, a partir das dimensões de empreendimento conjunto, de engajamento mútuo e de repertório compartilhado, as quais se relacionam entre si, de modo que a prática se converte em uma propriedade da comunidade.

Para os povos indígenas, particularmente para os Xerente, comunidades são todos os espaços físicos do seu território, incluindo a floresta, a terra, a água, o céu e todas as criaturas que vivem nesses espaços. “A comunidade também é a minha aldeia, a minha casa, a escola, o campo de futebol, o pátio, tudo isso aqui..., A comunidade para os Akwẽ são os lugares onde ocorre a transmissão de saberes, onde se vive a cultura” (ANCIÃO SEVERO SÕWARÊ, fev. 2015).

Nesse sentido, comunidades são espaços ou contextos físicos, que agregam as pessoas como elas são. Estas pessoas fazem parte da comunidade desde a sua constituição, ou seja, desde o seu nascimento; outras integram a comunidade pelos seus objetivos, empreendimentos e repertórios compartilhados. Com relação ao espaço da comunidade, esse é:

[...] é um lugar “cálido”, um lugar confortável e aconchegante. É como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada, com uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia gelado. [...] E ainda: numa comunidade podemos contar com a boa vontade dos outros. Se tropeçarmos e cairmos, os outros nos ajudarão a ficar de pé outra vez. [...] Se dermos um mau passo, ainda podemos nos confessar, dar explicações e pedir desculpas, arrepender-nos se necessário; as pessoas ouvirão com simpatia e nos perdoarão, de modo que ninguém fique ressentido para sempre (BAUMAN, 2003, p. 7-8).

Compreendemos, então, comunidade, partir deste campo teórico, em parte advindo das ciências sociais, como um espaço físico de agregação de pessoas que compartilham distintos saberes que são provenientes de contextos histórico, social e cultural e como esses podem se articular entre si, de modo a desenvolver as habilidades e competências, a gerar a troca, a reciprocidade e o conhecimento dos membros participantes da comunidade. Assim, a comunidade vai se constituindo e fortalecendo como uma comunidade de prática.

Wenger (2001) destaca que uma comunidade se fortalece por meio das práticas dos membros, e que estas unem os membros à comunidade. Desta conceituação, acreditamos que as práticas socioculturais que são desenvolvidas pelo povo Xerente, em diferentes estágios da vida em comunidade familiar ou comunitária, unem e fortalecem essa comunidade como um povo distinto culturalmente em seus repertórios de saberes linguísticos e de manifestação sociocultural.

Então, Wenger (2001), ao conceituar prática, ressalta a importância de se olhar a prática, não só pelo caráter funcional das atividades humanas, haja vista que é no desenvolvimento das atividades que está o fazer que em sua definição não é um fazer em si mesmo, mas sim o fazer que é advindo do contexto histórico e cultural, pois, este fazer fornece estrutura e significado a tudo que a humanidade vivencia, ou seja, a prática a partir desse entendimento é sempre uma prática social. Nesta perspectiva, o conceito de prática inclui ainda:

[...] os aspectos explícitos como os implícitos, o que falar e o que não falar, o que se apresenta e o que é suposição, a linguagem, os instrumentos, os documentos, as imagens, os símbolos, os papéis bem definidos, os critérios específicos, os procedimentos codificados, os regulamentos e contratos que várias práticas tornam explícitas para uma variedade de propósitos (WENGER, 2001, p. 71).

Desse ponto de vista conceitual, a prática enfatiza a aprendizagem como um processo que aglomera o indivíduo como um todo, por meio do vivenciar, do conhecer, da experiência, do agir com relação ao saber e ao fazer que se processam na prática. Como “O processo de participar de uma prática sempre implica a toda pessoa, atuar e conhecer ao mesmo tempo” (WENGER, 2001, p. 72).

No cerne da cultura Xerente, as práticas socioculturais comportam um repertório de saberes que evidenciam distintas formas de aprendizagem e de produção dessas práticas que envolvem todo o núcleo familiar na transmissão do conhecer, do ensinar e do aprender a prática que obedecem a critérios específicos dos pertencimentos às metades exogâmicas patrilinear. Assim, são também as vivências e as aprendizagens dos saberes tradicionais dos indígenas Xerente que são transmitidos e produzidos na oralidade, na observação do saber fazer de geração em geração deste povo.

Nesta perspectiva, o indígena Xerente ao atuar em determinada prática, ele está desenvolvendo ações específicas dessa prática, de modo que produzirá diferentes empreendimentos que dão a essas práticas diversos aspectos que são características do saber e fazer que envolvem processos de participação, negociação e engajamento nas tradições socioculturais, podendo ou não gerar um novo empreendimento para o contexto no qual são gerados. Dessa atuação, compreendemos que seja a participação do indígena no desenvolvimento da prática e de como esta participação evolui no contexto da comunidade de prática, haja vista que “Uma prática efetiva evolui com a comunidade como um produto coletivo. [...] Cada comunidade tem uma maneira específica de fazer sua prática visível pelos meios que desenvolve e compartilha conhecimento” (WENGER; MCDERMOTT; SNYDER, 2002, p. 39)46.

Nesse sentido, as ações compartilhadas pelos indígenas Xerente, igualmente por outras pessoas, por meio de atividades práticas e coletivas, balizadas pela interação e pelo engajamento na comunidade de prática podem ser entendidas como um conjunto de repertórios que são compartilhados entre as pessoas que estão desenvolvendo essas práticas, além de propiciar atividades relacionadas à aprendizagem de conhecimentos próprios da comunidade.

Dessa perspectiva decorre, dentre outras, a interação social, comunitária e de aprendizagem que envolve as relações pessoais, evolui constantemente pela participação ativa dos membros na comunidade que agregam interesses comuns às práticas que são desenvolvidas, evidenciando nos membros um sentimento de pertencimento à comunidade, ou seja, como apontam (WENGER; MCDERMOTT; SNYDER, 2002, p. 4-5):

[...] Ao longo do tempo, as pessoas desenvolvem uma perspectiva única sobre o seu tema, bem como um corpo de conhecimento comum, práticas e abordagens. Elas também desenvolvem relacionamentos pessoais e formas estabelecidas de interagir. Podendo desenvolver uma identidade e constituir uma comunidade de prática.

Esta conceituação só reforça que o povo Xerente é uma comunidade de prática, haja vista que é no decorrer processo de manifestação das relações de pertencimentos nas metades exogâmicas patrilinear Doi e Wahirê, os indígenas em suas comunidades de prática evidenciam os saberes e fazeres da tradição, propiciando distintas relações de ensinar e aprender culturalmente no cerne da comunidade de prática sociocultural.

Encaminhamentos metodológicos

A investigação foi realizada em um contexto de dinâmica plural, intercultural e intracultural, conforme D’Ambrosio (2004), do povo indígena Xerente, ocupantes das terras indígenas Xerente e Funil, em especialmente, as aldeias Porteira e Salto, tendo os indígenas como colaboradores desse processo.

A elaboração do nosso plano de investigação fundamentou-se nas premissas que regem as pesquisas de abordagem qualitativa como “[...] sendo um processo de reflexão e análise da realidade, através da utilização de métodos e técnicas para compreensão detalhada do objeto de estudo no seu contexto históricos e/ou segundo sua estruturação” (OLIVEIRA, 2010, p. 37).

Desta abordagem, a investigação realizada assumiu a perspectiva etnográfica por propiciar a interação e as interpretações das paisagens culturais, sociais, de linguagem e de simbologias, dos saberes e fazeres na prática que os contextos de comunidades de prática culturais e o educativo do povo Xerente favoreceram no decorrer da recolha e análises de informações junto aos colaboradores.

Mas, para que pudéssemos conduzir a investigação que ora está ancorada nos estudos qualitativos etnográficos, fez-se necessário o redirecionamento de nossos olhares para as vias teóricas, epistemológicas e metodológicas destas adoções de pesquisas que se pautam nas ciências sociais, em especial, na Antropologia, destacando que o objeto de estudo se constituiu a partir dos saberes e fazeres tradicionais de uma comunidade de prática socioculturais dos indígenas Xerente. Neste contexto, a etnografia e seus elementos metodológicos tornaram-se propícios por favorecer,

[...] uma orientação do olhar investigativo para os símbolos, as interpretações, as crenças e valores que integram a vertente cultural (ou, dado que a cultura não existe no vazio social, talvez seja mais apropriado dizer vertente sociocultural) das dinâmicas da ação que ocorrem nos contextos (SARMENTO, 2011, p. 152-153).

Assim, nós atravessamos a fronteira na perspectiva do encontro entre o ‘Eu’ e o ‘Outro’, de modo a movimentar-se no contexto investigado com o apoio intercultural e intracultural dos indígenas conhecer os processos de organização social, político e os saberes culturais referentes aos processos de filiação dos indígenas às metades exogâmicas e clânicas de filiação patrilinear Doi e Wahirê.

Os registros dessa prática se deram nos contextos investigados e foram obtidos pela narração oral e ilustrações das simbologias das pinturas corporais que identificam os indígenas, independente do gênero masculino ou feminino como membro pertencente a uma das metades clânicas. As informações foram analisadas com os colaboradores de modo que pudessem mobilizar atividades sociointerativas para o ensino e aprendizagem.

Compartilhando as informações

As relações de pertencimentos nas metades exogâmicas patrilinear Doi e Wahirê, dos indígenas Xerente, em suas comunidades de prática emergem como ações balizadoras para o ensino e aprendizagem das matemáticas junto aos professores e estudantes indígenas e não indígenas.

Mas, para que essas práticas socioculturais das pinturas corporais possam problematizar o conhecimento escolar devem ocorrer de forma conectado e compartilhadas no ensinar e aprender que ocorrem nos núcleos familiares, tendo a participação direta dos membros da comunidade para negociarem as práticas como ações de ensino e aprendizagem, somente assim, os conhecimentos estabelecidos nas escolas indígenas propiciaram a criação de algo novo para o ensino e a aprendizagem das matemáticas e das demais disciplinas que compõem o currículo das escolas.

Das leituras matemáticas, temos a educação escolar indígena Xerente é experienciada pelo Ser indígena professor que reflete a partir de suas ações educativas o uso das práticas socioculturais, dentre as quais se pode citar a língua materna Akwẽ e as histórias tradicionais da cultura deste povo. Em parte, estas práticas que também são as práticas de um saber fazer ensinado na oralidade e são apreendidos na escola pelo exercício da oralidade, da leitura e da escrita dessas histórias, por parte dos estudantes

Embora nessas práticas existam aspectos culturais e sociais da Matemática escolar, ainda são poucas as experiências formativas e educativas dos professores Xerente, no que tange ao ensino e aprendizagem da Matemática e a cultura nas escolas indígenas.

Desta perspectiva as análises aferidas por Melo (2016) sobre as simbologias das pinturas corporais dos clãs Doi – Sol e Wahirê – Lua, as possibilidades de estudos investigativos das geometrias a partir dos desenhos clânicos de cada metade exogâmica, expressados nos corpos dos indígenas, conforme ilustrou a Figura 02; as grandezas de medidas podem ser estudadas considerando o tamanho e altura que os desenhos ocupam nos corpos dos indígenas; a ideia de grande e pequeno expressos pelos indígenas durante a realização das pinturas corporais; espaço e forma com os estudos círculo e circunferência; distância entre um traço (reta), bolinha (círculo ou circunferência); dentre outros conceitos matemáticos presentes nestas pinturas clânicas.

E, ainda Melo (2016) sob o prisma do ensino e aprendizagem das matemáticas centradas no contexto local, sugeri que entre Doi (bolinhas–kritoizapto/círculo) e Wahirê (listra–ĩhirê/traço), pode-se redimensionar o ensino e aprendizagem com horizontes para além das fronteiras da aldeia, isto é, chegando aos espaços das escolas indígenas, a partir da construção de um ponto inicial (centro) que, ampliando-se em direção a horizontes mais largos (linha da circunferência), jamais perdem os movimentos (circulares) e o centro de convergência (ponto de partida) que são os estudos das práticas socioculturais interconectadas à Matemática escolar.

40Para maiores detalhes, desse termo, ver: FARIAS, C. A.; MENDES, I. A. As culturas são marcas das sociedades humanas. In: MENDES, I. A.; FARIAS, C. A. (Org.). Práticas socioculturais e Educação Matemática. São Paulo: Ed. Livraria da Física, 2014. p. 15-48. (Coleção Contextos da Ciência).

41Informação obtida no decorrer da realização do trabalho de campo, em setembro de 2014.

42São esses partidos ou metades os responsáveis por toda a organização da tradição quer seja a cultural ou a social do povo Xerente.

43Diálogo estabelecido em março de 2013, por ocasião de nossa visita (a pesquisadora em questão e os professores Marcelo Venâncio e Airton Sieben, todos professores da Universidade Federal do Tocantins), para apresentarmos o Edital de Extensão 2014 e elaborarmos uma proposta de projeto, que versou sobre a formação continuada de professores indígenas em diferentes áreas do conhecimento.

44Diálogo estabelecido com o colaborador Miró, em julho de 2015, por ocasião de nossa estádia na aldeia Salto, período em que ocorreu a tradicional festa Xerente – Dasipê.

45Assumo o termo Ser indígena, como a pessoa que vive a dualidade dos saberes – dos fazeres e das práticas cotidianas de seu contexto natural, face aos conhecimentos da sociedade escrita, capitalista, globalizada, tecnológica, dentre outros. Mas que se retroalimenta na transcendência da sobrevivência da pessoa, do Ser culturalmente distinto linguisticamente e socialmente, perante a sociedade não indígena.

46Todas as citações de Wenger, Mcdermott e Snyder (2002) descritas nesta tese, são traduções nossas do inglês para o português, a partir da leitura compreensiva.

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Recebido: Março de 2017; Aceito: Abril de 2017

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