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Revista Exitus

versión On-line ISSN 2237-9460

Rev. Exitus vol.7 no.3 Santarém set./dic 2017  Epub 21-Mayo-2019

https://doi.org/10.24065/2237-9460.2017v7n3id354 

Artigos

CURRÍCULO: a teia dos arranjos sociais na educação de jovens e adultos

CURRICULUM: the web of social arrangements in youth and adults education

CURRÍCULO: la tela de los arreglos sociales en la educación de jóvenes y adultos

Cristiane Alves da Silva1 

Diene da Silva Oliveira2 

Sônia Maria Alves de Oliveira Reis3 

1Graduanda do curso de Pedagogia da Universidade do Estado da Bahia, Campus XII- Guanambi/BA. Bolsista de Iniciação Científica da Fapesb/Uneb, membro do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão Educacional Paulo Freire (NEPE). E-mail: cris_silvacte@hotmail.com.br

2Graduanda do curso de Pedagogia da Universidade do Estado da Bahia, Campus XII- Guanambi/BA. Bolsista Pibid//Uneb, membro do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão Educacional Paulo Freire (NEPE). E-mail: dienegbi@hotmail.com

3Mestre e doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais, Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia, Campus XII- Guanambi/BA. Atualmente é professora da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UESB e Coordenadora do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão Educacional Paulo Freire (Nepe). E-mail: sonia_uneb@hotmail.com


RESUMO

O presente trabalho tem como problemática investigativa o seguinte questionamento: como o currículo escolar pode influenciar ou ser determinante na inclusão e/ou na exclusão dos educandos que precisam de Atendimento Educacional Especializado (AEE) na Educação de Jovens e Adultos (EJA)? Alguns dos objetivos de pesquisa são: destacar as teorias que versam sobre o currículo e suas contribuições para a compreensão da dinâmica curricular na Educação de Jovens e Adultos; perceber, por meio da análise do currículo formal e ação, os conteúdos que fortalecem a relação entre currículo e poder; identificar, mediante o currículo escolar, como ocorre (ou não) o processo de inclusão dos educandos com necessidades de AEE. Fez-se uma pesquisa de campo, com abordagem qualitativa, em uma escola da rede municipal de Ensino que oferta a Educação de Jovens e Adultos nos turnos vespertino e noturno. Os instrumentos de coleta de dados constituíram-se em entrevista semiestruturada, questionário, análise documental e observação das práticas pedagógicas nos espaços e nos tempos da sala de aula. Conclui-se que as dificuldades de aprendizagem que os jovens da turma de EJA possuem provavelmente não serão superadas se as práticas pedagógicas dos professores e a forma como estes concebem o currículo (formal e ação) não forem repensadas. Os dados mostram que os jovens da EJA questionam o currículo e pedem uma reconfiguração curricular que atenda a suas particularidades para aprender.

Palavras-chave:  Currículo; Educação Especial; Educação de Jovens e Adultos

ABSTRACT

The presented work has as a problematic investigative the following question: How the school curriculum can influence or determine the inclusion and/or the exclusion of learners with needs of Specialized Educational Service at EJA? Some of the research goals are: to highlight the theories that deal with curriculum and its contributions to the understanding of the curricular dynamics in the Youth and Adult Education; to perceive, through the analysis of the formal curriculum and action, the contents that strengthen the relation between curriculum and power; to identify how happens (or not) the process of inclusion of learners with Specialized Educational Assistance needs through the school curriculum. A field research was carried out with a qualitative approach, in a school of the Municipal Education Network that offers Youth and Adult Education in the afternoon and evening shifts. Data collection instruments consisted of a semi-structured interview, questionnaire, documentary analysis and observation of pedagogical practices in the spaces and times of the classroom. It is concluded that the learning difficulties that young people in the EJA class have can hardly be overcome if the teachers' pedagogical practices and the way they conceive the curriculum (formal and action) were not rethought. The data show that youth of the EJA question the curriculum and ask for a curricular reconfiguration that accords their particularities for learning.

Keywords:  Curriculum; Special Education; Youth and Adult Education

RESUMEN

El presente trabajo tiene como problemática investigativa el siguiente cuestionamiento: ¿cómo el currículo escolar puede influir o ser determinante en la inclusión y/o en la exclusión del alumnado que necesita de la Atención Educativa Especializada (AEE) en la Educación de Jóvenes y Adultos (EJA)? Algunos de los objetivos de la investigación son: destacar las teorías que versan acerca del currículo y de sus contribuciones para la comprensión de la dinámica curricular en la Educación de Jóvenes y Adultos; percibir, a través del análisis del currículo formal y activo, los contenidos que fortalecen la relación entre currículo y poder; e identificar, por medio del currículo escolar, cómo ocurre (o no) el proceso de inclusión de los alumnos con necesidad de AEE. Se hizo una investigación de campo, con abordaje cualitativo, en una escuela municipal que oferta la Educación de Jóvenes y Adultos en los turnos vespertino y nocturno. Se utilizó estos instrumentos de recolección de datos: entrevista semiestructurada, cuestionario, análisis documental y observación de las prácticas pedagógicas en los espacios y en los tiempos del aula. Se concluye que las dificultades de aprendizaje que los jóvenes del aula de EJA poseen probablemente no serán superadas si las prácticas pedagógicas del profesorado y la manera como este comprende el currículo (formal y activo) no fueren repensadas. Los datos muestran que los jóvenes de la EJA cuestionan el currículo y piden un cambio que considere sus particularidades para aprender.

Palabras clave:  Currículo; Educación Especial; Educación de Jóvenes y Adultos

INTRODUÇÃO

O estudo das relações existentes entre educação e sociedade despertou-nos o interesse em compreender as ideias dominantes que permeiam os sistemas de ensino. Ademais, por meio do estudo das Teorias do Currículo, sentimo-nos motivadas a entender como se dão as relações de poder no currículo escolar e como este pode se tornar um instrumento de inclusão e/ou marginalização dos educandos das camadas populares na sociedade.

Somando-se a isso, ao nos depararmos recentemente com a trajetória da Educação de Jovens e Adultos (EJA), por meio do estudo desse componente curricular na universidade, percebemos que o processo de ensino-aprendizagem para os sujeitos que nela estão inseridos perpassa por grandes exclusões sociais, culturais, etc., principalmente, quando estes apresentam algum tipo de necessidade de Atendimento Educacional Especializado (AEE). Logo, questionamo-nos: como o currículo escolar pode influenciar ou determinar a inclusão e/ou a exclusão dos educandos com necessidades de Atendimento Educacional Especializado na EJA?

Para viabilizar a resposta a esse questionamento, nossa pesquisa foi norteada por determinados objetivos. São eles: destacar as teorias que versam sobre currículo e suas contribuições para a compreensão da dinâmica curricular na Educação de Jovens e Adultos; perceber, mediante análise do currículo formal e ação, os conteúdos que fortalecem a relação entre currículo e poder; identificar os conteúdos negativos e/ou positivos ensinados por meio das práticas pedagógicas na Educação de Jovens e Adultos; analisar as práticas-metodologias realizadas na sala de aula observando se os professores resistem à legitimação das desigualdades sociais ou se apenas reproduzem as desigualdades e a exclusão; identificar como ocorre (ou não) o processo de inclusão dos educandos com necessidades de Atendimento Educacional Especializado no currículo escolar; e, finalmente, conhecer as teorias do currículo acerca da inclusão ou da exclusão dos alunos da EJA.

Ao fazermos um levantamento dos trabalhos produzidos em um recorte temporal de 10 anos, ou seja, de 2005 a 2015, em três Grupos de Trabalho (GT) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) ─ sendo eles GT 18 Educação de Pessoas Jovens e Adultas, GT 12 Currículo e GT 15 Educação Especial ─, percebemos uma carência de produções que envolvessem, em um mesmo trabalho, esses três campos do conhecimento. Foram encontrados 15 trabalhos que apresentam um entrelaçamento entre Educação de Jovens e Adultos e Currículo, 7 relacionados a áreas de Currículo e Educação Especial e apenas 3 que dialogam com Educação Especial e EJA. Nenhuma investigação que faz um cruzamento entre Currículo, EJA e Educação Especial foi encontrada, o que torna este trabalho de suma relevância para a produção e a divulgação de nossos conhecimentos a respeito dos atuais desafios da educação.

PERCURSO METODOLÓGICO

Devido ao problema deste estudo exigir uma investigação aprofundada, detalhada e minuciosa, foi realizada uma pesquisa de campo de abordagem qualitativa, pois entendemos que tal tipo de trabalho,

consiste em defrontar-se com os fatos, discutir com os informantes, compreender melhor os indivíduos e os processos sociais. Sem esta sede de descobrir, sem esta vontade de saber, de tudo esmiuçar, o trabalho de campo torna-se uma formalidade, mero exercício acadêmico, sem interesse. (BEAUD; WEBER, 1998 apud ZAGO, 2011, p. 308).

As ferramentas de pesquisa utilizadas foram a observação, o questionário, a entrevista semiestruturada e a análise documental.

Nossa intenção, ao utilizar a observação, que durou cerca de três meses, foi verificar as práticas metodológicas dos(as) professores(as) e perceber o modo como o currículo formal está posto em ação. Esse recurso permitiu que fizéssemos um contraponto entre o que está posto no currículo formal e o que os professores praticam em sala de aula, bem como possibilitou que compreendêssemos fatos, situações e conflitos que permeiam a realidade escolar.

É preciso ressaltar que a observação não se restringiu apenas a olhar o que envolvia os sujeitos da pesquisa, uma vez que tal ação “pressupõe o envolvimento do pesquisador em múltiplas ações, entre elas o registrar, narrar e situar acontecimentos do cotidiano” (TURA, 2003, p. 184).

Tendo isso em vista, utilizamos, nesta investigação, um diário de campo, que nos permitiu registrar nossas observações e nossas reflexões sobre a turma e a escola investigada, além de possibilitar que fizéssemos apontamentos acerca das práticas pedagógicas presentes no cotidiano escolar.

Usamos ainda, como instrumento de coleta de dados, a entrevista semiestruturada. Nesta etapa, tivemos um cuidado minucioso com a preparação de um roteiro prévio de perguntas. Contudo, este, no momento da entrevista, não foi um fim em si mesmo; muito pelo contrário, dele surgiram novas interrogações que precisavam de respostas, pois os próprios entrevistados, por meio de suas narrativas, foram nos conduzindo a novos questionamentos.

As entrevistas foram realizadas com a gestora da instituição pesquisada, com três professoras da Educação de Jovens e Adultos (sendo estas das disciplinas de Inglês, Língua Portuguesa e Matemática) e sete discentes da EJA, dos quais seis eram alunas e um aluno. Nosso objetivo, ao realizar as entrevistas, foi conhecer as percepções desses sujeitos acerca dos pressupostos que orientam o currículo (formal e ação) da instituição investigada.

Cabe ressaltar que também fizemos uso do questionário. Com ele, objetivamos conhecer o perfil da turma de EJA pesquisada. Ademais, foi por meio dele que escolhemos os alunos que iríamos entrevistar.

Outro instrumento de pesquisa empregado na investigação foi a análise documental. Nesta etapa, encontramos grandes barreiras, pois, ao procurarmos o Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola para analisarmos, disseram-nos que ele havia desaparecido da instituição. Após tantas outras iniciativas de buscá-lo, afirmaram novamente que ele havia sumido. Também não tivemos acesso ao Plano de Curso da EJA, pois este ainda se encontra em processo de elaboração e, portanto, indisponível para consulta.

Diante desse quadro, a análise documental foi feita a partir do livro didático adotado pela escola, constituindo este a principal referência para a apreciação do currículo formal.

As análises dos dados qualitativos coletados durante a investigação foram direcionadas com base na análise de conteúdo proposta por Bardin (1977). Desse modo, as diferentes fases da análise de conteúdo foram organizadas em torno de três polos cronológicos: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados, sendo que este último se subdivide em inferência e interpretação.

A investigação foi realizada em uma turma de Educação de Jovens e Adultos de uma escola pública da rede municipal de ensino na cidade de Guanambi/BA. Tal escola oferece o Ensino Fundamental I e II nos turnos matutino e vespertino, e a Educação de Jovens e Adultos nos turnos vespertino e noturno. A escola está situada próxima aos bairros mais carentes/populares da cidade, de onde é a maioria dos discentes que a frequentam.

A turma investigada se refere à classe do turno vespertino, sendo composta pelos alunos do segundo segmento da EJA, Estágio II, o que corresponde ao 8º e 9º ano do Ensino Fundamental II, e a maioria de seus discentes possui idade entre 15 e 18 anos, ou seja, a turma é composta exclusivamente por jovens. Dos 33 alunos matriculados, em torno de 25 frequentam as aulas regularmente. São cinco as professoras que lecionam para essa classe; todas essas docentes possuem graduação e pós-graduação, mas algumas não possuem especialização/formação para atuar na EJA.

AS TEORIAS DE CURRÍCULO: aproximações do objeto de pesquisa

Segundo Silva (2005), podemos enumerar três teorias que versam sobre o currículo: a tradicional, a crítica e a pós-crítica. Cada uma delas apresenta reflexões essenciais para o entendimento de como o currículo se constitui e se materializa na escola.

Ainda de acordo com Silva (2005, p. 22), o currículo como campo especializado de estudo tem início com a publicação do livro The Curriculum de Franklin Bobbitt:

O livro de Bobbitt é escrito num momento crucial da história da educação estadunidense, num momento em que diferentes forças econômicas, políticas e culturais procuravam moldar os objetivos e as formas da educação de massas de acordo com suas diferentes e particulares visões. É nesse momento que se busca responder questões cruciais sobre as finalidades e os contornos da escolarização de massas.

Na concepção de Bobbitt (1918 apud SILVA, 2005), o sistema de ensino deveria funcionar para atender os interesses da sociedade capitalista, ou seja, a economia. Nesta perspectiva, a escola se volta para a formação de indivíduos para o mercado de trabalho, cabendo a ela transmitir, por meio do currículo, as habilidades necessárias para capacitar o eficiente trabalhador (SILVA, 2005).

Compreendemos, desse modo, que as teorias tradicionais voltavam-se, sobretudo, para as questões de técnica e organização do currículo, para o modo de fazer o currículo. O conhecimento era dado e tido como legítimo; as teorias tradicionais simplesmente reproduziam o que lhes era posto como hegemônico, sem se preocupar, por exemplo, com os interesses dominantes e as relações de poder que estavam por trás da estruturação dos currículos escolares.

Indo em oposição a essa concepção, surge, a partir da década de 60, uma nova teorização sobre a educação e sobre o currículo. Silva (2005, p. 29) discorre sobre ela:

[...] a década de 60 foi uma década de grandes agitações e transformações. Os movimentos de independência das antigas colônias europeias; os protestos estudantis na França [...], os movimentos de contracultura; o movimento feminista; a liberação sexual; as lutas contra a ditadura militar no Brasil: são apenas alguns dos importantes movimentos sociais e culturais que caracterizaram os anos 60. Não por coincidência foi também nessa década que surgiram livros, ensaios, teorizações que colocavam em xeque o pensamento e a estrutura educacional tradicionais.

Podemos destacar inicialmente que as teorias críticas desconstroem a ideia de neutralidade da escola e do currículo, uma vez que, para elas, existe uma relação direta entre o currículo e o poder. O currículo não é neutro e desinteressado, mas repleto de interesses de capitalistas e de grupos dominantes.

Ademais, essa perspectiva afirma que a escola, por meio do currículo, reproduz os arranjos sociais existentes ─, ou seja, as desigualdades sociais ─ e, por meio de seus mecanismos ideológicos, convence as pessoas de que esses arranjos são naturais. Para ilustrar tais afirmações, cabe aqui ressaltar o que pontua Silva (2005, p. 147-148):

Com as teorias críticas aprendemos que o currículo é, definitivamente, um espaço de poder. O conhecimento corporificado no currículo carrega as marcas indeléveis das relações sociais de poder. O currículo é capitalista. O currículo reproduz ─ culturalmente ─ as estruturas sociais. [...]. O currículo transmite a ideologia dominante. [...]. O currículo atua ideologicamente para manter a crença de que a forma capitalista de organização da sociedade é boa e desejável. Através das relações sociais do currículo, as diferentes classes aprendem quais são seus respectivos papéis nas relações sociais mais amplas.

Nesse sentido, as teorias críticas são teorias de inquietude e de suspeita. Para elas, os conhecimentos ensinados na escola e estabelecidos nos currículos são o que certos grupos dominantes querem que os dominados aprendam.

Se as teorias críticas focalizaram as questões de classes sociais, as teorias pós-críticas partem da concepção de que não podemos nos restringir às relações de poder implicadas no currículo simplesmente nas questões de classe, mas devemos considerar que essas relações permeiam a educação em vários outros aspectos, por exemplo, nos “[...] processos de dominação centrados na raça, na etnia, no gênero e na sexualidade” (SILVA, 2005, p. 149). Cabe, pois, a todos nós, também analisá-los como instrumentos de desigualdades e exclusão social.

Com as teorias pós-críticas aprendemos que os processos de exclusão e marginalização social estão por toda parte, inclusive nas questões aparentemente mais sutis. Na complexidade do mundo atual, na qual imperam múltiplos interesses e aspirações dos diversos segmentos sociais, a escola tem sido o alvo direto para moldar as identidades e manter toda uma lógica social que prioriza os interesses da sociedade capitalista.

Diante de tudo o que foi dito, podemos concluir que o currículo é algo bem mais complexo do que imaginamos. Muito além de um conjunto de disciplinas rigidamente distribuídas, como é por muitos compreendido, ele está permeado por relações e interesses de grupos antagônicos na sociedade.

O CURRÍCULO ESCOLAR E OS PROCESSOS DE EXCLUSÃO E/OU INCLUSÃO NA EJA

As reflexões propostas sobre o que as teorias de currículo assinalam a respeito dos processos de exclusão nos impulsionam a entender como a organização curricular pode carregar e reproduzir as vantagens de uns em detrimento das desvantagens de outros. Neste sentido, ao analisarmos os processos de exclusão e/ou inclusão na Educação de Jovens e Adultos, entendemos que,

a EJA se caracteriza por uma história construída à margem de políticas públicas, portanto marcada pela exclusão, da mesma forma, esta modalidade é o reduto formal do nosso sistema de ensino para o qual se encaminham os excluídos deste mesmo processo [...] (CHRISTOFOLI, 2008, p. 93).

A EJA não pode ser reduzida somente ao resgate do ensino para aqueles que não tiveram condições e oportunidades de estudar no tempo e na idade certos, mas deve ser ampliada para o oferecimento de condições para uma educação de qualidade que se prolongue ao longo da vida. Aqui surgem, então, os questionamentos: que tipo de educação tem sido dada aos alunos da EJA? Como esses sujeitos estão sendo contemplados nos currículos formal e em ação? O que está oculto no currículo e nas práticas pedagógicas desenvolvidas nos espaços e nos tempos da sala de aula?

Tais atitudes de inquietude e questionamento se tornam essencialmente importantes quando paramos para analisar como, de fato, esses sujeitos jovens, adultos, idosos, negros, pobres, deficientes, etc., são percebidos nos currículos. Segundo Arroyo (2011, p. 138),

Há coletivos que não são reconhecidos como atores, apenas como beneficiados agradecidos ou mal-agradecidos de uma história cultural, pedagógica, política, econômica construída e conduzida pelos grupos hegemônicos detentores do poder, da terra, da riqueza ou do conhecimento e da ciência e da cultura. Há uma ausência seletiva de sujeitos sociais, étnico-raciais, de gênero, dos campos e das periferias; dos trabalhadores.

Diante disso, percebemos que o que é tido socialmente como conhecimento legítimo, como história e cultura válida e exemplar, é aquilo que está, inconfundivelmente, relacionado aos grupos abastados de nossa sociedade. Com isso, é importante ressaltar o que Arroyo (2011, p. 140) afirma:

Os coletivos populares classificados como irracionais, sensitivos, incultos, ilógicos atolados em experiências tradicionais do viver cotidianos, da vida comum, só poderão produzir o senso comum, os saberes e valores tradicionais, ilógicos. Logo não reconhecê-los sujeitos de história nem de cultura e de conhecimentos. Como abrir espaço no território do nobre conhecimento científico, racional para esses coletivos e para suas experiências e saberes do senso comum? Nessa relação política de ocultamento, segregação e classificação se justifica a ausência desses coletivos nos currículos. São convidados a entrar na escola, mas não se encontrarão como sujeitos nos conhecimentos que terão de apreender, nem na cultura e na história ensinada.

Percebemos que esses sujeitos/grupos se referem àqueles que viveram por muito tempo às margens da sociedade e foram excluídos do sistema de ensino, são eles os “oprimidos” de nossa sociedade, como sinalizou Paulo Freire (2005). Eles tiveram seus costumes, seus valores, suas formas de viver, suas crenças, suas tradições, ou seja, sua “cultura”, invisibilizada e inferiorizada por séculos.

Logo, falar sobre os processos de exclusão e/ou inclusão na Educação de Jovens e Adultos é um grande desafio. Isso porque é preciso, antes de tudo, que nos debrucemos sobre todo o contexto histórico-social que a EJA construiu e requer para existir, já que falarmos dela é adentrarmos em um mundo de exclusões, significados, lutas e necessidades de reparações.

ALUNOS COM NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS EM UMA TURMA DE EJA: algumas reflexões

A inclusão escolar pode ser entendida como o direito de todos terem acesso à escola, ou seja, defende uma educação para todos, independentemente das diferenças de classe, cultura, etnia, raça, gênero, etc., uma vez que considera que todos devem ter as mesmas oportunidades e direitos, e ser respeitados e reconhecidos em suas diversidades. Quando falamos em Educação Inclusiva, defendemos que todos os alunos, com ou sem deficiência, devem estar inseridos em uma mesma escola, ou melhor, em um sistema de ensino único, nas classes regulares.

Ao levar todas essas reflexões em consideração e ao buscar discutir como o currículo escolar pode influenciar ou determinar a inclusão e/ou a exclusão dos educandos com necessidades de Atendimento Educacional Especializado na Educação de Jovens e Adultos, realizamos uma entrevista com a diretora da escola que oferta a EJA. Procuramos, com isso, verificar se na turma investigada têm alunos com Necessidades Educacionais Especiais.

De acordo com a gestora, na turma estudada (8º e 9º ano, vespertino) não existia nenhum aluno com deficiência física ou intelectual ou com altas habilidades/superdotação. Também não havia nessa turma de EJA alunos com Necessidades Educacionais Especiais (NEE) no que se refere às dificuldades de aprendizagem tais como dislexia, discalculia, disortografia, dentre outras, comprovadas por meio de laudo médico. Isso pode ser constatado na fala dela4:

nessa turma do vespertino nenhum professor nunca falou nada comigo não, assim, identificou ou que eu tenho identificado ou o próprio professor não [...] não ... Que me disseram, que observaram, porque às vezes a gente tem casos de meninos que não têm laudo, e é notório, e aí a gente chama a família [...] (Entrevista realizada com a diretora da escola).

Cabe ainda destacar as falas de duas professoras da turma sobre tal questão:

[...] a dificuldade de aprendizagem [gaguejou], a principal que eu observo [risos] é a discalculia, que não consegue calcular, né. [...] A gente consegue com o decorrer da ... você fala pra ele que um mais um é dois, aí, quando você pergunta “dois mais um é quanto?”, ele não consegue falar, entendeu? Alguns casos desse naquela turma têm. [...] A gente não atesta, porque a gente não tá apto a atestar, só uma psicopedagoga, porém a gente percebe essa dificuldade muito grande, em [gaguejou] calcular e dificuldade de aprendizagem também [...]. (Entrevista realizada com a professora de matemática).

[...] eles têm dificuldades às vezes de compreensão, agora eu não tenho assim nada com laudo, sinto às vezes a dificuldade deles entenderem o conteúdo, tem hora que você tem que criar três, quatro formas... três caminhos ou mais... diferentes falando do mesmo assunto pra que eles consegue captar e responder... mas não tenho não, não tem laudo nenhum não. (Entrevista com a professora de Inglês).

Diante do que foi dito acima, confirmamos a colocação da gestora sobre a não existência de alunos com dificuldades de aprendizagem com laudo. No entanto, ela, assim como duas docentes da turma, deixou a entender que existem alunos que possuem dificuldades evidentes no processo de ensino-aprendizagem, sendo possível, por meio destas, identificar casos de discentes com NEE que não foram diagnosticados por meio de parecer médico ou de especialistas.

Nessa perspectiva, é válido esclarecer que as dificuldades de aprendizagem podem ser de dois tipos, tanto podem estar relacionadas a fatores de disfunção no sistema nervoso central quanto a aspectos, como

queixas quanto ao método de alfabetização e ensino, queixas [...] com relação aos professores, histórico de mudanças constantes de escola e professores, baixo nível de escolaridade dos pais, diversas condições psicossociais, envolvendo a família, o contexto social e outros (LIMA et al., 2006, p. 189).

A tendência é culpar o próprio aluno por sua situação de fracasso, quando não são considerados: os métodos de ensino mecânicos e desestimulantes dos professores; os currículos que fogem à realidade do estudante ao não possibilitar que este visualize sua realidade concreta, por conta dos quais ele começa a achar tudo sem significado para sua vida; a própria cultura da escola que, ao priorizar a cultura dominante, seus valores, seus conhecimentos, seus gostos, etc., não leva em conta a cultura do aluno, suas dificuldades e suas necessidades.

Percebemos que as dificuldades de aprendizagem apontadas pelas professoras entrevistadas não se limitam apenas às hipóteses de alunos com distúrbios de aprendizagem como a discalculia e a dislexia. É unânime entre elas a afirmação de que muitas das dificuldades que os alunos da turma apresentam no processo de ensino-aprendizagem são ora devido ao desinteresse e ao descompromisso dos discentes, ora devido à frágil formação/base teórica que tiveram em anos anteriores de escolarização.

Destacamos falas de duas docentes sobre as principais causas das dificuldades que os jovens da turma apresentam:

a dificuldade é uma questão do desinteresse, aquele que é desinteressado, quem não quer, né, que tá aqui porque a família obriga vir, então ele não avança. Mas o que quer, ele consegue acompanhar. [...] Aquele que parou de estudar muitos anos e que não teve assim, o que ele conseguiu absorver da escola foi muito pouco, ele tem dificuldade de acompanhar, tem dificuldade de entender, de interpretar, de calcular, de fazer um cartaz, de fazer um resumo, porque o acesso que ele teve, ele teve há muito tempo e conseguiu absorver pouca coisa, então tem essa dificuldade. (Entrevista com a professora de Português).

[...] tem uns também que é ... falta de compromisso ... falta de compromisso, não pode generalizar, mas tem grande parte que tem muita dificuldade que, mesmo com reforço, que, mesmo estudando bastante, mesmo assim, ainda tem aquela dificuldade muito grande que não consegue decorar uma tabuada, que você toma a tabuada e que no mesmo instante não perguntou, respondeu, mas daqui a pouco não consegue assimilar de novo. Se você pergunta, se você inverte produtos, pergunta cinco vezes sete ele sabe responder, mas sete vezes cinco não sabe ... porque não estudou a tabuada do sete. (Fala professora de Matemática).

De acordo com as falas das professoras, as dificuldades dos jovens e adultos dizem respeito a sua própria falta de interesse e compromisso, como se suas dificuldades fossem consequências de seu não esforço para aprender. Ao alegarem isso, não levam em consideração os fatores que se relacionam diretamente com os processos pedagógicos, principalmente, ao não analisarem as barreiras que os discentes da EJA estão enfrentando para aprender, o que requer um atendimento particular e específico para suas especificidades, dificilmente o professor irá perceber como sua prática está desfavorecendo a aprendizagem de seus educandos.

Assim, podemos nos perguntar: como aprender em um ambiente que não estimula a imaginação, a criatividade e a reflexão crítica do aluno? Como compreender significativamente quando tudo lhe parece “abstrato”, sem sentido ou utilidade para a vida? Em entrevista com alguns jovens da turma de EJA investigada, perguntamos quais as dificuldades que apresentam para aprender e qual seria o motivo/causa. Destacamos as seguintes falas:

aqui assim, ô ... igual essas professora fica, nóis vem pra escola assim pra [gaguejou] fala mesmo pra perder tempo, porque as professoras, tem professora assim, a maioria delas, não explica os conteúdo e fica sentada lá na mesa lá conversando não sei com quem no celular, e nós fica. Elas passa um trenzinho no quadro lá e nem coisa com nóis. Nóis fica sonsano [relativo a sonso] lá ... praticamente é [gaguejou] é muito chato ... eu acho ...(Flor5).

[...] porque ... é difícil, a gente não consegue compreender, e às vezes o professor fica muito estressado e acaba é não explicando tanto assim. Acaba trazendo os problemas deles pra dentro da escola e daí não incentiva a gente. Eu acho muito complicado, porque às vezes a gente quer perguntar mais de não sei quantas vezes e eles não tem a paciência de chegar e ensinar. Ensina uma vez, duas vez e acaba trazendo os problemas deles pra escola ... é isso... (Hellen).

eu entendo quando explica várias vezes, principalmente matemática, tipo eu percebo no olhar dela que ela não tem muita paciência de ficar explicando. Então, assim, quando a gente fica sem fazer uma tarefa ela falou que ia tirar a gente da sala, pelo fato da gente não ter fazido a tarefa. [...]. É bem, até que em tratar ela nunca criticou a gente não, mas pra explicação ela não é muito boa não [abaixou a voz]. [...]. É porque algumas coisas são muito complicadas em matemática, aí tipo eu não consigo entrar na cabeça, quando ela explica aí eu peço pra explicar, aí ela fica meio sem querer explicar, aí eu perco a vontade de querer explicação, por causa não tem muito vontade de explicar. (Ester).

Todo dia a mesma coisa enjua, né... deveria fazer umas aulas mais diferentes [...] porque em outros colégios... assim, muitas vezes é... a gente ia pra sala de vídeo... essas coisas diferente... aí chega num determinado colégio, e a gente vê que é sempre as mesmas coisas ... (Esmeralda).

É recorrente nas falas das alunas a afirmação de que as professoras não explicam os conteúdos escolares de forma a possibilitar a aprendizagem, pois, pelo o que foi relatado, estas não têm paciência de esclarecer os assuntos que os discentes não compreendem. Dentre os motivos elencados pelas jovens acerca da recusa das professoras em explanar os conteúdos repetidamente, estão: o uso do celular no horário de aula, o estresse, o fato de levarem problemas pessoais para a escola e a falta de paciência e vontade de ensinar.

Algo interessante a ser frisado é que a professora ao não querer reexplicar o assunto faz com que, consequentemente, a estudante perca a vontade de entender, por meio da explicação, aquilo que não compreendeu. Logo, se não compreende e não obtém uma resposta sobre sua dúvida, acaba por não aprender significativamente. Outra situação ainda a ser pensada é o que a última aluna relata ao se referir às aulas como monótonas, sem mudanças e novidades, o que compreendemos como algo desmotivador do interesse e da vontade de aprender do discente. É visível que muitas das barreiras que os alunos encontram para aprender referem-se às próprias metodologias adotadas pelos docentes.

A relação professor-aluno também é elemento importante para os laços de confiança, afetividade e amizade. Quando a relação entre ambos é de escuta, de solidariedade e de compreensão, o discente se sente muito mais à vontade para perguntar e questionar, para conversar sobre seus problemas, suas dificuldades e suas inseguranças. Nesse sentido, cabe aqui expor a fala de uma das jovens entrevistadas que, quando solicitamos que indicasse maneiras de superar suas dificuldades na EJA, relatou o seguinte:

se os diretores e as professoras sentasse com os alunos e perguntasse o que estava havendo, o que tá precisando, o que realmente tá acontecendo. [...] Porque tem coisas que, tipo assim, a gente é aluno, e elas precisam perguntar o que a gente precisa. É obrigação deles, e, se eles não senta pra conversar, eles nunca vai saber o que a gente precisa. (Ester).

Diante dessa fala, percebemos que muitas das dificuldades enfrentadas pelos discentes no processo de ensino-aprendizagem na EJA ocorrem porque, geralmente, essa relação de diálogo e de afetividade inexiste. O desabafo da entrevistada nos faz refletir sobre como os professores saberão sobre as carências dos discentes e como oferecerão um atendimento diferenciado, em vista das necessidades de cada um, se não dialogam sobre o que estes precisam, se não enxergam suas angústias e suas aflições, deixando a entender, muitas vezes não se importar com elas.

Nas palavras de Freire (2011, p. 95), “precisamos aprender a compreender a significação de um silêncio, ou de um sorriso ou de uma retirada da sala”. Dessa forma, a escuta, a solidariedade e o olhar atento dos docentes para os jovens e adultos podem fazer com que aqueles primeiros percebam como se faz presente o desacerto e busquem soluções e um atendimento diferenciado para resolver ou, pelo menos, tentar solucionar as necessidades educativas de seu alunado.

INCLUSÃO X EXCLUSÃO: o currículo pensado para a EJA no município de Guanambi/BA

Chegamos ao ponto central do trabalho. Faremos as análises dos currículos (formal e ação) que permeiam os processos de ensino-aprendizagem na turma de EJA investigada. Para tanto, é preciso esclarecer que o livro didático constituiu o meio pelo qual analisamos os conteúdos estabelecidos/ensinados para/no segundo segmento da EJA, Estágio II o que corresponde ao 8º e 9º do Ensino Fundamental II. Isso decorreu, como já afirmado, da impossibilidade de acessar o Plano de Curso da EJA do Município, que seria nossa principal análise do currículo formal, uma vez que tal documento ainda se encontra em processo de elaboração. As observações das aulas também foram importantes para analisarmos como os assuntos do livro são trabalhados pelo professor e constatarmos a importância que este atribui ao material didático na mediação dos conteúdos.

O livro adotado tem como título EJA Moderna (AOKI et al, 2013), sendo destinado ao 8° ano do Ensino Fundamental da Educação de Jovens e Adultos. Trata-se de uma obra coletiva, desenvolvida e produzida pela Editora Moderna. No mesmo livro são apresentados conteúdos de Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia, Ciências, Arte e Línguas Estrangeiras, sendo estas Inglês e Espanhol. Os conteúdos de cada disciplina estão distribuídos por partes e obedecem a mesma ordem dos componentes curriculares relacionados acima. O exemplar faz parte do Programa Nacional do Livro Didático e deve ser usado em três anos consecutivos, ou seja, 2014, 2015 e 2016.

A fim de relacionar o conteúdo indicado no livro e o modo como é posto em ação na sala, ou seja, como é mediado pelo professor, relatamos a realização de uma atividade proposta pela docente da disciplina de Geografia. A professora registrou a tarefa no quadro da seguinte forma:

Quadro 1 – Atividade de Geografia 

Atividade 1
Leia os textos das páginas 226 a 229, observando os gráficos, mapas e imagens com atenção. Despois responda as questões abaixo.
1 Explique o que é população.
2 O que é demografia?
3 O que é censo demográfico?
4 Qual a importância de responder o censo demográfico?
5 Explique o que é população absoluta.
6 Explique o que é população relativa.
7 O que é densidade demográfica?
8 Qual a diferença entre um país populoso de um povoado?

Fonte: Atividade desenvolvida pela professora de Geografia da turma observada a partir do livro didático (AOKI et al, 2013)

Na atividade acima, percebemos que em um momento inicial a professora sugere que os alunos leiam os textos nas páginas indicadas e, em seguida, que respondam às questões. Ao analisarmos o livro, principalmente os textos das referidas páginas, notamos se tratar do próprio conteúdo, ou seja, textos que tinham informações sobre a população brasileira, sobre o censo demográfico, etc. Apresentamos nossas percepções desse momento:

enquanto a professora vai escrevendo no quadro a atividade, muitos alunos copiam, outros conversam ou mexem no celular. Uma aluna contava casos no fundo da sala para outras colegas, e a professora, focada na atividade, parece não se importar com as conversas paralelas. Em seguida, a docente fala para a turma que as respostas estavam no texto, no livro didático, e assim que respondessem deveriam levar para ela dar o visto. (Diário de campo, 27/04/16).

Diante desse acontecimento, podemos refletir sobre algumas questões fundamentais. Primeiro é o fato de que inexiste uma explicação e/ou problematização sobre os conteúdos a serem ensinados, uma vez que a docente apenas propõe a atividade para ser respondida. Entendemos, nesse sentido, que bastaria os jovens lerem os textos e automaticamente iriam aprender e assim responder às questões, como se não pudessem apresentar dúvidas, incompreensões, etc.

Notamos que não se levou em conta os conhecimentos prévios dos estudantes sobre os assuntos, sequer estes foram problematizados pela professora. Simplesmente o conteúdo foi dado, como se o ato de aprender se resumisse a apenas ler as informações e reproduzi-las, já que sugere-se a busca das respostas no próprio texto do livro, bastando “achá-las” para aprender o conteúdo.

Ademais, há a forma mecânica e acrítica diante da leitura dos textos das páginas indicadas. Ao não problematizar as informações, corre-se o risco de influenciar os estudantes a pensar a partir de um único ponto de vista, no caso, a partir da perspectiva de quem escreve os textos, não considerando outros pontos de vista referentes ao mesmo conteúdo. Ainda no que se refere a essa atividade, podemos perceber uma demasiada ação de moldar o aluno a tornar-se um copista, que apenas copia mecanicamente de forma automática os conteúdos que não são problematizados. Ao observarmos as questões elaboradas pela docente, percebemos uma relação de pergunta-resposta (“o que é...”), como se os discentes da EJA não precisassem pensar sobre a pergunta ou colocar suas percepções e seus conhecimentos de vida.

Ao entender que os conhecimentos selecionados e organizados em propostas curriculares e livros didáticos não são livres de interesses particulares e de relações de poder, como poderemos romper com a alienação e tornar nossos alunos críticos e emancipados, se não questionamos o que está posto? Como poderemos romper com certos estereótipos e até mesmo lutar pela inclusão dos conhecimentos/saberes dos setores desfavorecidos e minoritários da sociedade, se não mostrarmos para os discentes outras formas de pensar e enxergar o mundo? Como fazer com que o aluno aprenda e supere suas dificuldades de aprendizagem, se apenas transmitimos informações e não o ajudamos a pensar, comparar e contextualizar suas vivências?

Diante desse episódio, concordando com Freire (2011, p. 56), podemos afirmar que o “educador que, ensinando geografia, ‘castra’ a curiosidade do educando em nome da eficácia da memorização mecânica do ensino dos conteúdos, tolhe a liberdade do educando, a sua capacidade de aventurar-se. Não forma, domestica”.

Entendemos que o(a) docente deve saber que seu papel vai muito além de transferir informações. Ele(a) deve ter consciência que desempenha uma posição importante na manutenção ou na subversão dos interesses dominantes, na formação de sujeitos críticos e donos de seus próprios pensamentos ou na formação de pessoas passivas e alienadas.

Durante as observações percebemos que o livro didático é o único meio pelo qual os conhecimentos/conteúdos são apresentados aos alunos. A maioria dos professores o adotam como recurso didático exclusivo na sala de aula. Notamos também que seu uso, na maioria das vezes, se dá de forma acrítica, pois os docentes não problematizam o que está posto nele.

O currículo em ação, ou seja, a forma como o assunto é mediado pelo professor, se dá de forma muito artificial, resumida, pois não são utilizados outros recursos e também não é feita a contextualização com a realidade do aluno. Prioriza-se a realização de exercícios e de provas como garantia e verificação do aprendizado.

Ao perguntarmos para os alunos entrevistados sobre como é feita a mediação dos conteúdos na sala, alguns relataram o seguinte:

[...] tem hora que as professoras fala bem assim: “ó faz um resumo do capítulo de não sei quanto até não sei quanto”. E, tipo, acontece isso quase todos os dias... Ninguém merece fazer isso, tem que ter alguma diversão ou então uma gincana pra, tipo, distrair a gente, entendeu. (Ester).

[...] assim, sei lá, eu não aprendo muito assim, porque no EJA, assim, as professora deixa muito liberal, assim. Não ensina muito sabe .... E é assim que eu penso do EJA. [...] Ela não explicam o suficiente pra nóis gravar na mente e aprender. (Flor).

[...] não sei, o modo de explicá que as professora têm pouco, né, tem pouco tempo. Ela faz um resumo assim fácil e explica. Muitas professora é assim [...]. Eu acho que pejudica. Tem muitas pessoa, muitos professor que por mode de preguiça não passa assunto todo, passa mais assim um resumo. Aí, projudica nóis lá na frente. [...] Se nóis fô vê mesmo o assunto, nóis perde muito como aluno. Muita gente fala, meus parente fala, que o EJA é bom mais também perde muito [incompreensível]. A gente fô vê nosso assunto com a turma da manhã do 9o ano fica muito ruim. (Beto).

Observamos, nessas falas, que a atividade de resumo é algo frequente nessa sala de aula da EJA, pois constantemente se solicita que os discentes façam resumos de conteúdos. Neste contexto, os estudantes percebem que o resumo é uma forma fragmentada e reduzida que os professores utilizam para mediarem os conteúdos na sala de aula.

Diante disso, estamos de acordo com Vasconcellos (2005, p. 11) quando afirma que,

objetivamente, o que se constata hoje é que a escola não tem conseguido garantir a apropriação significativa, crítica, criativa e duradoura, por parte do conjunto dos educandos, do conhecimento fundamental acumulado pela humanidade, de tal forma que pudesse servir como instrumento de construção da cidadania e de transformação da realidade.

Entendemos, nesse sentido, que a melhor forma de fazer com que os alunos aprendam é proporcionar oportunidades por meio das quais estes possam pensar o conhecimento de forma crítica e contextualizada com sua realidade, consigam fazer a leitura do mundo a sua volta e, mediante comparações, associações e reflexões, construam o conhecimento. Quando o discente é levado a fazer isso pelo professor, conseguirá não só aprender significativamente, mas pensar de modo mais abrangente e obter maior autonomia. Dessa forma, ele deixa de ser mero recebedor de conhecimento, passando a construir saberes.

Na fala do entrevistado Beto, mostrada acima, percebemos um questionamento do currículo, principalmente quando afirma que, pelo fato de o professor não mostrar o conhecimento de forma abrangente, este tende a prejudicar o aluno mais adiante. A interpretação que podemos fazer disso é a de que, quando o discente não tem uma compreensão global e qualitativa dos conhecimentos historicamente acumulados, a própria inserção desse aluno na sociedade e suas oportunidades de passar em vestibular e concurso tendem a ser diminuídas, pois são esses os conhecimentos que a sociedade valoriza e cobra.

Quando perguntamos aos discentes entrevistados se se sentiam preparados pela escola para fazer um vestibular e entrar em uma universidade mais adiante, dois responderam:

[...] não vou tá preparada... por conta das dificuldade, né, em relação à escola, às matéria ... nas matéria ... em compreender e aprender, então ... o ensino atrasado também ... nas matéria que eu te falei que tá faltando moça, isso atrasa muito. (Hellen).

[...] menos chance... Por causa do assunto que é muito pouco ... de nóis fô vê mesmo o EJA perde muito assunto, só pega a metade. Igual nóis agora vamo mudá já de coisa, já pro nono, mais perdemo muito assunto. (Beto).

Nas falas acima percebemos que o currículo é interrogado o tempo todo pelos discentes dessa turma de EJA investigada, pois eles questionam a condensação tanto do currículo formal, ou seja, do livro didático, quanto do currículo ação que é reflexo de como as docentes trabalham os conteúdos do currículo formal na sala de aula.

Algo importante ainda a ser pensado é o fato de eles não se sentirem preparados para fazer um vestibular mais adiante, o que nos faz refletir sobre até que ponto a escola, por meio do currículo formal e em ação, está possibilitando uma formação suficiente para a inclusão de seu alunado na sociedade. Em relação ao modo como esses conteúdos são apresentados, os próprios alunos percebem que o material didático que utilizam os deixa em desvantagem, se comparado com os livros didáticos das turmas do regular.

Ao procuramos saber sobre a visão que as docentes da turma têm sobre o livro didático, uma fala nos chamou bastante a atenção:

Resumido, mais é um resumido assim, é como porque você pega o livro grande, o autor floreia, fala um mundo de coisa. Se você pede um resumo pro menino, ele não vai lá e tira os pontos principais? É o caso. Então, eu vejo assim, é como se fosse o resumo. E se você for resumi, sempre dá pra resumir mais, né. Mais tem os [gaguejou] acontecimentos, os fatos, as coisas principais tá tudo lá ... tudo. (Entrevista realizada com a professora de português).

Percebemos na fala da professora que ela também percebe que o livro didático é excessivamente resumido e considera as explicações dele breves; porém, por sua fala, ela deixou a entender que isso não é algo negativo, já que, em sua opinião, o livro expõe os aspectos, os fatos e os acontecimentos principais. No entanto, o que se deveria questionar é até que ponto o resumo apresenta as informações necessárias para a compreensão e a construção do conhecimento pelo aluno.

A propósito, durante a observação notamos que em algumas atividades resolvidas nos livros de alguns alunos é evidente a falta de incentivo que desperte a criticidade do estudante, que acaba fazendo a atividade para cumprir a obrigação e receber o visto. No momento da correção das atividades, as professoras acabam resolvendo-as praticamente sozinhas, pois muitos alunos não participam, alguns realmente respondem, mas, em contrapartida, outros restringem-se apenas a copiar as respostas dos colegas ou a aceitar a “correção” feita pela professora no quadro.

Nota-se, por meio do livro e da forma como ele se materializa na sala de aula, que os professores o utilizam como se fosse uma autoridade. A maneira como ministram o conteúdo é um reflexo de como os assuntos são postos no manual. Há que considerar que atribuir esse valor demasiado ao manual contribui para que o professor seja apenas um instrumento de perpetuação das normas vigentes e das desigualdades sociais, tais como elas são.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se nos dessem a tarefa de representar o currículo por meio de uma imagem o ilustraríamos como uma teia de aranha, a qual vista de longe é quase invisível, mas, se nos aproximarmos de forma curiosa para tentar compreender sua organização e sua construção, teremos a chance de resistir às armadilhas que podem nos deixar presas a ele. Esse currículo, que constrói teias de arranjos sociais, pode possibilitar condições para a resistência aos interesses dominantes ou para a permanência de tais interesses. A depender da forma como é pensado e estruturado, tanto pode emancipar quanto marginalizar os sujeitos que por ele são formados.

Diante dessas reflexões acerca do currículo e dos dados que aqui foram apresentados, podemos concluir que as dificuldades de aprendizagem que os jovens da turma de EJA possuem dificilmente poderão ser superadas se as práticas pedagógicas dos professores e a forma como eles concebem o currículo (formal e ação) não forem repensadas. Vimos, por meio das falas dos discentes, que grande parte deles possuem dificuldades de aprender, devido, sobretudo, a fatores relacionados à metodologia das professoras que não consideram sua realidade e à apresentação resumida do conteúdo, o que não lhes permitem ter o acesso igualitário ao conhecimento historicamente acumulado em comparação aos outros alunos do ensino regular.

Logo, tal fato já se configura como uma forma de exclusão e desigualdade dos alunos da EJA em relação aos demais. Isso é acentuado ainda mais quando percebemos que os conteúdos do currículo formal para as turmas da EJA são reduzidos e suprimidos devido aos programas de aceleração.

Constatamos que o currículo formal, corporificado no livro didático, e o currículo em ação ─, ou seja, a forma com que os professores externam os conhecimentos ─ não favorecem a formação de sujeitos emancipados e críticos, uma vez que suas metodologias estimulam os alunos a serem passivos, alienados e acríticos diante do conhecimento posto. Sabendo que esses conhecimentos perpassam por relações de poder e expressam interesses das classes dominantes na sociedade, corre-se o risco de contribuir para a modulação das consciências, de forma a tornar os discentes acomodados e indiferentes na luta por seus direitos.

Ficou evidente nas falas da diretora e das professoras que elas têm a consciência de que na turma possa ter alunos com distúrbios de aprendizagem, mesmo sem ter o laudo. Mas o que fica subentendido é que, mesmo sabendo disso, não procuram atender esses alunos de forma diferenciada, a fim de ajudá-los na aprendizagem.

As professoras percebem as dificuldades de seus alunos que são expressas no decorrer das atividades propostas em sala de aula. Contudo sempre culpam o aluno, que, muitas vezes, é oprimido em consequência de metodologias tradicionais, livros didáticos extremamente resumidos, conteúdos abstratos e atividades mecânicas sem posicionamento crítico.

As falas dos jovens estudantes da EJA mostram que eles interrogam o currículo e expressam fielmente a necessidade de uma reconfiguração curricular que atenda a suas especificidades para aprender, pois tanto o livro didático quanto as metodologias dos professores promovem uma formação fragmentada ao aluno. Desse modo, o currículo escolar acaba excluindo os educandos com Necessidades Educacionais Especiais quando tenta desconsiderar suas dificuldades e considerá-los de forma homogênea.

4As entrevistas foram transcritas obedecendo ao modo de falar de cada um dos entrevistados.

5Os nomes de todos os entrevistados são fictícios, criados a fim de preservar a identidade dos participantes da pesquisa. Alguns desses nomes foram escolhidos pelos(as) próprios(as) entrevistados(as).

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Recebido: Março de 2017; Aceito: Julho de 2017

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