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Revista Exitus

versão On-line ISSN 2237-9460

Rev. Exitus vol.8 no.3 Santarém set./dez. 2018  Epub 28-Maio-2019

https://doi.org/10.24065/2237-9460.2018v8n3id637 

Conferência

LER COM CRIANÇAS1

Luiz Percival Leme Britto2 

2Professor da Universidade Federal do Oeste do Pará. E-mail: luizpercival@hotmail.com


Isso, ainda que nem todos façam, todos dizem: ler com crianças tem muito valor.

Eu também acho. Mas acho também que é preciso pôr mais direitinho as cores nesse quadro, para que não nos percamos numa nebulosa enganosa, cheia de frases de efeito e poucos feitos. Fiar-se em um consenso assim tão forte traz grande risco de a palavra cair no vazio, deixando-se de examinar as condições de verdade em que a ideia se aplica, em que funciona de fato.

Sabemos bem que há umas tantas meias verdades quando o assunto é leitura. Verdades de dourar a pílula, enaltecendo a prática de ler como se fosse panaceia. E, se elas imperarem nas falas e gestos que se querem de leitura com criança, serão bem poucos os frutos que se poderão colher.

O que farei, então, para entabular a conversa, é pôr no ar umas tantas perguntas que me fazem professores em cursos de formação e meus alunos de Pedagogia e Letras nas aulas de Alfabetização e de Literatura Infantil – ora com o olhar profissional, ora como adultos que vivem com suas crianças – e tentar respondê-las desenhando um cenário em que o desejo de ler com crianças faça sentido.

São perguntas um pouco desordenadas, que aparecem provocadas pela situação de reflexão sobre o ensino da língua e pelas descobertas que os alunos vão fazendo à medida que têm algumas de suas convicções afetadas pelo estudo, num movimento de ansiedade pela novidade e apego ao que sempre tiveram como verdade (é sempre difícil reorganizar a forma como vemos o mundo).

Também fora da escola esse movimento acontece, ainda que normalmente (e infelizmente) com menor explicitação das tensões e ambiguidades – a ordem do cotidiano, marcada pela urgência e pela necessidade, é mais pragmática. Contudo, como há aí forte dose de afetividade, de intenção amorosa, pode ser que o espírito se livre dos ouvidos moucos e dê lugar a caraminholas novidadeiras.

Vamos às perguntas.

1.O que a criança aprende quando lemos com ela?

Essa é a pergunta mais comum e que tem como motivação o princípio pragmático de que o que fazemos sempre tem de ter utilidade: ler não se justificaria por si mesmo, mas apenas se servir para outra coisa.

Pois bem, a resposta, ainda que incomodada com a dimensão limitada que lhe impõe a perspectiva pragmática, é que, sim, aprende-se muito com a prática da leitura, principalmente quando se cuida com o que e o como se lê.

A leitura é uma atividade intelectual muito particular, que exige, mais que em outras atividades intelectuais, que a pessoa se ponha inteira de corpo e mente na ação; exige do leitor autocontrole, domínio de si, de sua atenção, de seus olhos, de seu corpo e de suas ideias.

Ler se faz com palavras. É uma ação da e com a linguagem; e de um modo necessariamente diferente da ação de falar ou ouvir, porque a escrita reorganiza e transforma a fala, sempre, e de forma mais ou menos extremada conforme o gênero textual (de passagem, que não tratarei nesse tema aqui: não se leem imagens, muito menos coisas, situações ou pessoas, leem-se textos escritos).

O fluxo verbal do texto que se fez escrito é outro, tem ordenação mais fixa e recepção mais controlada, sem os refluxos, repetições, interrupções e oscilações características da oralidade – é outra a sintaxe do texto escrito. Assim, a leitura implica inflexão tonal e ritmo diferentes do que se percebe no discurso oral; e não se usam as mesmas estratégias de fixação e recuperação de sentido – é outra a prosódia do texto escrito, mesmo quando enunciado em voz alta.

Além disso, cada palavra é sempre marcada como palavra solta (o que se indica na pauta escrita com o espaço vazio) e tem sempre a mesma forma, diferentemente da fala comum, em que as palavras se agregam, se juntam e variam na forma com maior ou menor intensamente. E, em função da possibilidade de fixar e guardar o enunciado e de relacioná-lo com contextos diversos e distantes do aqui e agora, há mais e outras palavras, palavras que normalmente não aparecem no cotidiano falado.

Também as dimensões argumentativas e narrativas – o fluxo discursivo – são distintos na escrita e na oralidade. Com a progressiva produção cultural sobre a língua possibilitada pelas práticas e tecnologias da escrita, a forma como se apresentam e se propõem os cenários, as personagens, os fatos, as causas, ganhou novas conformações, ao mesmo tempo mais amplas e mais coesas. O texto escrito permite ao leitor o retorno ao já enunciado, oferecendo-lhe o controle de sua recepção, e, por isso, o abandono de esquemas de recuperação textual apoiados no redizer contínuo, nas retomadas tópicas, nas inserções locucionais, próprias do fluxo oral. Quando há repetição, ela tem intencionalidade, inserindo-se numa dinâmica discursiva que, entre outras coisas, pode ser a de fazer que o texto escrito se pareça com um texto que se fala.

Disso se depreende que aprender a ler (e a escrever), em boa medida, é aprender outras estratégias de produção linguística, uma vez que, como destaca Haquira Osakabe, “a escrita atua como complemento da oralidade, cumprindo certas atribuições que se situam além das propriedades inerentes a esta”3

Se é certo que ler com desenvoltura e propriedade implica conhecer e dominar o sistema de representação gráfica da escrita (por assim dizer, o código), também é certo que implica conhecer a ordem discursiva dos textos escritos, especialmente daqueles que se fazem em gêneros nascidos e criados numa tradição cultural única, e ter convivência com os conteúdos e argumentos relacionados com as coisas que se fazem em e pela escritura – o mundo da escrita.

Na medida em que é convidada a experimentar este universo textual, isto é, a ler coisas escritas que não remetem para seu viver imediato e que não se referenciam nos conceitos cotidianos, a criança inevitavelmente é instada a interagir com outras formas de ser da língua – outra sintaxe, outro léxico, outros gêneros, outras estratégias argumentativas – e outras formas de ver e perceber as coisas. Ela é posta num mundo de linguagem (portanto, de cultura) que, sem desvalorizar ou abandonar, transcende as formas de ser da língua (e da vida) cotidiana, falada e usada para as coisas de todo dia, e expande os referenciais específicos do mundo comum. E, com isso, é instigada a exercitar o pensamento controlado (metacognição), a não apenas falar, ouvir (e, mais tarde, ler e escrever), mas também a pensar sobre o que fala e ouve, pensar e controlar o discurso que ouve.

Tudo isso promove outras relações da pessoa com a linguagem e o desenvolvimento de domínios linguísticos distintos, que não se encontram as interações vis-à-vis nem nas narrativas e argumentações tipicamente orais. O que se tem com a leitura não é o simples ganho de informação ou de vocabulário (conhecimento enciclopédico); é, além disso, a produção de contextos intelectuais e culturais inusitados na ordem comum, a ampliação de repertório, a diversificação das formas de perceber o mundo e as coisas.

Enfim, podemos dizer que a experiência com a leitura – especialmente quando esta se faz de forma intensa e diversificada com objetos complexos da cultura – traz a possibilidade única de elaboração e de como relacionar-se com sentimentos, situações, de desenvoltura linguística e de desenvolvimento da consciência linguística e social.

2. E se a criança não ler, como fica?

Essa é uma questão importante, sobre a qual temos de pensar desapaixonadamente e com muita sinceridade.

Há grande diferença entre dizer que as crianças pequenas podem viver e conhecer muitas coisas interessantes na experiência da leitura com o outro e dizer que elas têm de ler para se fazerem inteiras.

De fato, crianças não têm de ler e podem muito bem crescer sadias, felizes e inteligentes sem vivenciar por um bom tempo (pelo menos até os quatro anos) nenhuma experiência com o texto escrito. Não há imperativo psicológico ou pedagógico que estabeleça a necessidade de a criança pequena ter de ler para o bom desenvolvimento cognitivo e afetivo.

Sabemos que as crianças crescem e se desenvolvem em função das formas como estabelecem as relações de interação com o outro humano; sabemos também que, neste processo, ela se põe inteira e experimenta e utiliza toda a potência de seu corpo. “Na criança – ensina Henri Wallon – enfrentam-se e se implicam mutuamente fatores de origem biológica e social”4.

Em seu primeiro ano de vida, a criança realiza um gigantesco trabalho de auto-organização, em que a percepção do espaço e o desenvolvimento das bases da linguagem são essenciais. Ela não fala e não compreende a fala, especialmente do modo como o mundo adulto a realiza e a compreende. Desde muito cedo, a criança tratará, em parte pelo dinamismo de seu organismo e em parte pela informação que vem do outro que a acolhe, a operar com as formas da língua, fazendo aquilo que conhecemos por balbucio. O som da voz humana é matéria primordial para sua descoberta, e isso se faz nas conversações que o adulto tem com ela, com as cantigas, os ninares, os cantos e contos.

Portanto, ler para a criança em seu primeiro ano de vida não é ler no sentido convencional; o conteúdo que ela recebe é outro, relacionado com o “afeto”, e não com os sentidos referenciais que ainda não percebe. Importa a interação focada e intensa, e isso pode ser feito com o livro, com histórias, com cantigas, com conversas. Mas terá de ser com a voz humana que se propõe à criança.

O adulto, sim, produz sentido humano neste momento: ele se projeta na criança, oferece-lhe amor, deseja-lhe felicidade, e faz para si um caminho de conexão que poderá permanecer por toda uma vida. Nisso ele se abre em fantasia, e se descobre, e aprende coisas que não sabia.

A partir dos três, quatro anos, a criança vive um momento em que está a formar a personalidade e a autoconsciência, num processo em que se multiplicam as situações de oposição entre ela e o mundo adulto. Já possuindo linguagem (ainda que não pensando como o adulto), passa a ter no texto um objeto de intelecção e de percepção do mundo externo e, na forma de ser do texto, um novo e aguçado jogo de linguagem. A leitura, neste momento, torna-se convite à experimentação e a organização simbólica, complementar a todas as outras formas de fabular e de perceber.

Ainda assim, seria mais razoável dizer que o mais importante é a abertura da criança para a diversidade e a intensidade de experiências do que propriamente a leitura; crianças que tenham a possibilidade de experimentar-se na vida sem a violência do silenciamento, que possam jogar e mexer com as coisas, que brinquem de roda e ouçam história e cantorias, que interajam com diversidade de registros orais, que manipulem objetos e testem suas texturas podem se desenvolver com a mesma intensidade que “crianças leitoras”.

A leitura – é justo que se diga –, mesmo quando intensa e com textos criativos, é uma possibilidade, mais que uma necessidade. Uma ótima possibilidade, mas ainda assim, uma possibilidade.

O ingresso definitivo no mundo da escrita se faz com a escola e por necessidade de ser numa sociedade em que ler e escrever com desenvoltura é imperativo, tanto do ponto de vista pragmático como o da formação cultural. E o ideal é que isso se faça não na lógica do pragmatismo produtivista, mas sim no princípio da liberdade e da formação cultural.

3. Por que “ler com a criança” em vez de “ler para a criança”?

Aparentemente, essa sutil troca de preposição não passa de firula, artifício para dar feição de novidade àquilo que todos sabem bem. Mas não, não é simples filigrana de intelectual, é mudança de percepção.

Ler é necessariamente uma atividade social em que estão implicadas duas inteligências: de um lado, está aquele que enuncia o texto; de outro, aquele que toma essas palavras como coisa a ser percebida, entendida, vivida, que as incorpora, se faz com elas e as devolve ao mundo, ao outro (a contrapalavra bakhtiniana). O resultado desse processo, nas dimensões determinadas pela história humana, é o sentido.

Ler para supõe um movimento em que a pessoa que enuncia o texto em voz alta para outra que escuta não está nem de um lado nem de outro; seria apenas o controlador do processo; ela não interage com o objeto de leitura, não é afetada pelo texto. Não tem interesse no sentido; é uma máquina ou instrumento de intermediação. Ademais, estabelece com o outro para quem lê condição hierárquica em que o polo de cima comanda uma ação cuja finalidade é fazer com que um dos polos viva por si uma experiência que não cabe ao outro; apenas aquele para quem se lê é que a leitura serve.

Ao ler com, a pessoa que enuncia o texto em voz alta se compromete com a outra que a escuta, propondo-se a partilhar a experiência, deixando-se afetar tanto pelo texto como pelas reações da parceira de leitura. Ambas criam e aprendem e interferem uma na leitura da outra, produzem sentidos comuns, ainda que não idênticos, pelo intercâmbio de percepções e emoções. É uma atividade compartilhada.

Ainda bem que muitas vezes – quase sempre – quando a gente diz estar a ler para a criança, de fato está a ler com a criança.

4. Qual o efeito do ler com a criança em sua relação com o outro?

Para além dos aprendizados possíveis, da criança e do adulto, sobre que já falei ao responder a primeira pergunta, ler com a criança, especialmente quando se faz dessa atividade um momento de reconhecimento de estar junto, instaura um espaço privilegiado de intersubjetividade, de efeito recíproco, com claras repercussões na constituição da personalidade e no desenvolvimento integral da criança.

A leitura e a circunstância que se cria com ela – uma espécie de setting – instaura uma relação de afeto, conduz ao estabelecimento de um vínculo particular que permite a elaboração de tensões psíquicas, de projeções de desejos e ansiedades; de elaboração do vivido e de produção de memória de um fazer comum em que se exploram lugares, pessoas, coisas reais e imaginárias.

Outra vez me reporto a Wallon: “as influências afetivas que rodeiam a criança desde o berço têm sobre sua evolução mental uma ação determinante. (...) À emoção compete o papel de unir os indivíduos entre si por suas reações mais orgânicas e mais íntimas, e essa confusão deve ter por consequência ulterior as oposições e desdobramentos dos quais poderão gradualmente surgir as estruturas da consciência”5.

O texto, a história e o livro são, nesse sentido, objetos da experiência conjunta, mediadores materiais (culturais e físicos) do vínculo. Daí a importância da rotina: a repetição criativa e prazerosa (não é o prazer do texto, é o prazer de estar fazendo junto a leitura) torna-se um forte elo entre o adulto e a criança, elo que repercutirá por toda a vida.

É necessário observar que essa dinâmica pode ser instaurada de outras formas e com outros objetos, e é bom que assim seja. A diversidade das experiências enriquecerá a vivência com as coisas do mundo, a intersubjetividade e o afeto. A particularidade da leitura está exatamente na especificidade do objeto e na dimensão projetiva para fora de si e para o mundo da cultura, bem como no tipo de investimento intelectual e cognitivo que ela implica.

5. Ler com crianças é ler de brincadeira?

Esse parece ser o que sugere o famoso convite de José Paulo Paes, quando chama ao jovem leitor para brincar de poesia: uma brincadeira muito especial, em que as coisas (as palavras) não se gastam, antes ficam mais novas6.

Brincar aqui é projetar-se livremente em direção ao nada, imaginar, transformar, criar formas – sons e sentidos – com o puro prazer de fazer, se fim ou finalidade – o lúdico. O inusitado se aparece diante do leitor, que mastiga sons, que tateia imagens, que escuta cores – tudo isso instado pelas palavras que se enunciam, pelo imaginário que corrompe o tempo e inverte acontecimentos imaginários em reais. Penso que foi essa dimensão da experiência de ler – dimensão a um só tempo lúdica, estética e epilinguística – que Bartolomeu Campos de Queirós chamava de fantasia.

Na brincadeira com a palavra, manifestam-se e avolumam-se as dimensões essencialmente humanas da imaginação, do desejo, do receio, da posse, de significação, todas presentes no investimento subjetivo. Gilles Brougére: “quando se brinca se aprende antes de tudo a brincar, a controlar um universo simbólico particular”7.

Mas adverte esse autor que “brincar não é uma dinâmica interna do indivíduo, mas uma atividade dotada de uma significação social precisa que, como outras, necessita de aprendizagem. (...) Se é verdade que há a expressão de um sujeito no jogo, essa expressão insere-se num sistema de significações, em outras palavras, numa cultura que lhe dá sentido. Para que uma atividade seja um jogo é necessário então que seja tomada e interpretada como tal pelos atores sociais em função da imagem que têm dessa atividade”8.

6. Que livros ler com a criança?

Para responder essa pergunta, vejo-me obrigado a fazer umas tantas considerações preliminares, para evitar as respostas prontas que tanto imperam por aí, tais como aquelas que tendem a diminuir a criança, projetando sobre ela uma miniatura do mundo adulto ou tornando-as bonequinhos de reinos de fada.

É comum a crença de que, porque muito imatura e com pouca capacidade de elaboração intelectual e linguística, à criança deve-se oferecer textos fáceis, pequenos, em que o entendimento das palavras, quando não imediato, se faz com o apoio da imagem. Perguntam-me: a criança dá conta de história com muito texto? Não é melhor escolher livrinhos pequenos com bastante imagem?

Novamente, o olhar adulto sobre a forma de ser da criança impede que se perceba, em toda sua complexidade, o sentido e os efeitos de ler. A criança pequena, como disse em outra oportunidade, “lê com os ouvidos”, tomando emprestada a voz do outro para o anúncio da pauta escrita. Ela não sabe, não pode ainda decifrar o escrito, mas pode e deve interagir com os discursos e ideias que se elaboram com base nas formas de ser na língua escrita (que, como disse, acima, não é a simples cópia da oralidade).

Principalmente quando se lê com – e não para ou por ou no lugar de –o alcance do que se faz é maior e evidentemente supõe algo que a criança não é capaz de fazer sozinha. A gente faz mais com o outro; a criança faz muito mais com o outro que sabe mais que ela.

As crianças, mesmo as muito pequenas, são capazes, a seu modo, de ouvir histórias longas, muito mais intensas e vivas que o que se encontra em frases curtas e em textos que mimetizam o aqui e agora. Quando o adulto enuncia em voz alta uma história, em sua prosódia particular, à criança que ainda não sabe o sistema de escrita, permite-lhe intensa interação com conteúdos, imagens e sentidos que não estão em nenhum outro lugar.

É certo que, se lhe pedir que reconte o que leu (e é bom que se faça isso), evidentemente ela não repetirá a história com as exatas palavras do texto original, tampouco reproduzirá o enredo em sua exatidão (de qualquer modo, nenhum leitor faria isso), mas dará a luz ao que percebeu do texto e como se projetou e incorporou o que ali se apresenta, a partir do já vivido e das elaborações intelectuais e psíquicas próprias de sua constituição. Talvez selecione aspectos mínimos, talvez destaque nuances que lhe tocaram de um modo especial, talvez projete outras imagens por livre associação. No jogo, ela se faz pessoa e se põe no mundo comum da cultura com o outro. Além disso, haverá elementos da leitura que ela não manifestará de imediato, mas que estará processando internamente e devolverá, quase de surpresa, em outro momento, às vezes muito depois daquele momento em que leu o texto.

Ao ler com os ouvidos, a criança não apenas se experimenta na interação, na interlocução, no discurso escrito organizado, com suas modulações prosódicas próprias, como também aprende as formas de ser da língua escrita, aprende a sintaxe da escrita, seu ritmo e respiração, aprende as palavras escritas e os conteúdos referenciados por este discurso.

É preciso, para encerrar esse tópico, fazer três breves esclarecimentos.

O primeiro é que ao afirmar o valor de ler com os ouvidos não quero minimamente sugerir que não seja necessário aprender a ler com os olhos – isto é, aprender a decifrar com automatismo e desenvoltura a escrita; quero, isto sim, destacar uma dimensão essencial da apropriação do texto que transcende essa habilidade e que, em certas circunstâncias, prescinde dela.

O segundo é que não se está desconsiderando as criações estéticas e culturais que se façam com poucas palavras (há muitas, e belíssimas, que assim se fazem), mas sim que não há razão para limitar a escolha de textos com essas características para serem lidos com as crianças, e que há textos longos interessantes e importantes de serem conhecidos e experimentados desde muito cedo.

O terceiro e último é que o bom texto para ler com a criança não é aquele que foi feito para ela, mas sim aquele que é interessante, vivo, provocativo – enfim, belo – para ela e para o adulto que lê com ela. Um importante critério de escolha do texto é o sentimento estético que ele causa em nós, adultos.

De todo modo, podemos, com base no quadro conceitual que desenhei há pouco, assumir alguns critérios de escolha:

  • Textos com intensidade e densidade cultural;

  • Textos que provoquem reflexão metalinguística e o gesto epilinguístico;

  • Textos que propõem experiências rítmicas, rímicas e prosódicas;

  • Textos que projetam e provocam sentimentos – investimentos subjetivos, processamentos psíquicos;

  • Textos que instigam a invenção e a imaginação de coisas, lugares, bichos gentes e acontecimentos;

  • Texto com linguagem que contrasta com a linguagem comum e a linguagem infantil.

7. Como ler com a criança?

Muita gente pensa que, para que a criança tenha interesse, deve-se ler representando, com a voz e corpo, o texto, a história. O texto é pretexto para se contar uma história, uma espécie de script, roteiro, com base no qual se representa. De certa forma, se lê oralizando, respeitando mais ou menos o texto original conforme a situação e a percepção que o leitor tem do outro.

A bem dizer, não há propriamente nada de errado nisso, se entendido como possibilidade, principalmente quando a interpretação tem graça, força e criatividade (infelizmente, mais frequentemente, esse movimento é realizado de forma banalizada, apoiado em clichês de comicidade, como se pode verificar visitando brevemente canais de youtube dedicados a explorar esse tipo de leitura ou contação de história).

O problema está em entender que essa é a forma correta de ler para crianças (ler para, porque assim feito não há como ser um ler com a criança. Lembro-me de uma intervenção que fiz já há muitos anos em um seminário de literatura infantil organizado pelo CEALE cujo título era A criança não é tola. Porque é disso mesmo que se trata: não perceber a criança como um sujeito/que cria (e se cria na criação) e que pode dar conta do aparentemente difícil. Como já disse há pouco, não há que esperar no infante que ele simplesmente repita, copie ou reproduza o que lhe é proposto pelo texto; em seu processo de criação e de desenvolvimento, a criança apropria-se de modo particular dos objetos que se lhe apresentam e progressivamente ocupa o mundo existente, percebe-o e se faz nele.

Na leitura de textos complexos – de histórias provocativas e que valorizam o inusitado e o desconhecido, os leitores são instados a perceber novos ritmos, formas de interação diferentes, palavras estranhas (ou estranhadas). E nesse processo, aprende-se ouvir atenta e silenciosamente o fluxo verbal que nasce da voz sugerida no texto. E quando for de o desejo se impor, caberá interromper o discurso e comentar a história ou uma palavra ou um fato ou um personagem e – quem sabe – fazer comparação do lido com a vida própria. Esse jogo da leitura se aprende e tem de ser cuidado para que aconteça com toda sua pujança. Trata-se, portanto, de diversificar continuamente a forma de ler, promovendo experiências diversas com o texto; trata-se de propor à criança tanto a escuta atenta como a inquirição e o comentário (aprender e ensinar a ouvir e a comentar).

8. Com que idade a gente deve começar a ler com a criança?

Não tem idade “certa” de ler o que determinado. Mas há a vida, o corpo e a aprendizagem. O bebê ainda não tem linguagem simbólica constituída e, portanto, não tem como ler propriamente. Ele opera e percebe as modulações da voz, está constituindo a linguagem e a personalidade; ler para ele é assim oferecer a própria voz e nenhuma semântica. Crianças de um a dois anos pouco sabem de enredos; a imagem é o objeto concreto, coisa que se vai nomeando. Crianças de quatro a seis anos podem ter consciência do que é a escrita e quais são seus objetos, gêneros e assuntos; já dão conta do mundo que as cerca, ainda que mágica, fabulosamente. E tratam de brincar de faz-de-conta para apropriar-se e compreender o mundo e os adultos com que se relacionam. Crianças de dez anos sabem ler e tem condições de estabelecer relações causais sofisticadas. Dão conta das possíveis interações entre texto e imagem.

O que importa que a forma de ler com a criança vai se transformando à medida que a criança vai se assenhorando das coisas e das palavras, dos jogos simbólicos, das formas como vemos e representamos o mundo, e da própria escrita.

9. Qual a diferença entre ler em casa e ler na escola?

Essa pergunta é relevante, mas acho que posso respondê-la brevemente.

Em casa, a leitura é privada e a relação entre os leitores é íntima, pessoal. As mediações intersubjetivas produzem fortes vínculos afetivos, criam uma ponte entre o pequeno e o grande, que, além de leitor, é mãe, pai, avó irmão, amigo.

Na escola, a leitura é pública e a relação entre os leitores é institucional, profissional (isso não quer dizer afastamento, falta de sensibilidade ou impossibilidade de manifestação de sentimento); o vínculo tem outra dimensão – confiança, respeito, segurança, liderança.

O valor está em ambas, e em ambas vale fazer.

Certamente, há muitas outras questões que poderia considerar nessa reflexão, questões que pudessem iluminar aspectos importantes da experiência estética e leitora. Um elemento tão determinante em nossa cultura jamais poderia plenamente considerado em tão pouco tempo e por uma só perspectiva. Mas espero ter contribuído para que aqueles que trabalham com leitura-escrita – os professores – e os que vivem com crianças – pais, mães, cuidadores – encontrem apoio para ler mais e com mais vida e criatividade para si e para outros.

REFERÊNCIAS

OSAKABE, H. Considerações em torno do acesso ao mundo da escrita. In: ZILBERMAN, R. Leitura em crise na escola – as alternativas do professor. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1983. [ Links ]

1Conferência apresentada no 11º Seminário Beagalê: ler, brincar e aprender na primeira infância. Belo Horizonte, 14 de setembro de 2017.

3OSAKABE, H. Considerações em torno do acesso ao mundo da escrita. In: ZILBERMAN, R. Leitura em crise na escola – as alternativas do professor. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1983. p. 147.

4WALLON, H. Henri Wallon – textos selecionados. Seleção de Hélène Gratiot-Alfandéry; tradução e organização de Patrícia Junqueira. Coleção Educadores / MEC. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010, p. 47

5WALLON, H. Op. cit., p. 73.

6PAES, J. P. Convite. In Poemas para brincar. São Paulo: Ática, 1990.

7BROUGÈRE, G. A criança e a cultura lúdica. R. Fac Educ, São Paulo, v.24, n.2, p. l03-116, jul./dez. 1998, p. 107.

8BROUGÉRE, G., op. cit. p. 104-105.

Recebido: Fevereiro de 2018; Aceito: Maio de 2018

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