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Revista Exitus

versão On-line ISSN 2237-9460

Rev. Exitus vol.8 no.3 Santarém set./dez. 2018  Epub 05-Jun-2019

https://doi.org/10.240065/2237-9460.2018v8n3id644 

Artigos

O PROFESSOR NA PRIMEIRA REPÚBLICA NO PARÁ: notas sobre seu papel e função na relação família x escola

THE TEACHER IN THE FIRST REPÚBLICA NO PARÁ: notes about his role and his function in the family and school relationship

EL PROFESOR EN LA PRIMERA REPÚBLICA EN EL PARÁ: notas sobre su papel y su función en la relación familia y escuela

Suellem Martins Pantoja1 

Alberto Damasceno2 

1Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal do Pará- UFPA. Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/UFPA, membro do Grupo de Estudos em Educação no Pará na Primeira República (GEPRE). E-mail: smartinspantoja@gmail.com

2Doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC. Professor Titular da Universidade Federal do Pará, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (PPEB). E-mail: albertod@ufpa.br


Resumo

Neste artigo, buscamos compreender a ideia disseminada sobre o professor no período da Primeira República, bem como sobre o papel que este exercia na relação entre a família e a escola a partir do Regulamento Escolar do Ensino Primário, do ano 1890, e dos artigos de H. de Sant’Anna na Revista de Educação e Ensino, que circulava no Pará em 1894. Ele resulta de uma pesquisa documental e bibliográfica, e analisa preliminarmente os preceitos que regulamentavam o ensino nesse período, que apontavam para a formação de cidadãos para o progresso da nação, funcionando a educação como um mecanismo de difusão do ideário republicano. Neste sentido, o professor não poderia se portar na escola e na sociedade como um “cidadão qualquer”, de modo que o Regulamento Escolar do Ensino Primário e os esritos de Sant’Anna chegam a explicitar regras de comportamento moral e social que ultrapassariam os limites da escola. Ao mestre, caberia a tarefa de ser um propagador e fiscalizador dos novos hábitos e regras no ambiente escolar, baseado no ideal de professor projetado pelo regulamento de ensino e pela imprensa educacional da época, que estava ligado a um projeto político — o de implementação do ideal republicano. Neste sentido, o professor era tido como um mestre da vida cidadã, titular de uma profissão tida e sabida como sacerdócio, cabendo-lhe forjar o futuro da nação brasileira, sobretudo cultivando nas crianças o sentimento de amor à pátria e à República.

Palavras-chave:  Primeira República; Família-escola; Professor; Ensino-primário

Abstract

In this text we aim at understanding the disseminated idea about the teacher in the period of the First Republic, as well as the role he/she exercised concerning the relationship between family and school evolved from the School Regulation of Primary Education [Regulamento Escolar do Ensino Primário] established in 1890 and the articles by H. de Sant’Anna in the Journal of Education and Teaching [Revista de Educação e Ensino], distributed in Pará in 1894. This text results from a documental and bibliographical research, that preliminarily analyzes the precepts which regulated teaching in this period and that pointed to the formation of citizens for the progress of the nation; thus, education would work as a mechanism for the diffusion of republican ideas. In this respect, teacher could not behave in school and in society as a “common citizen”, since both the School Regulation of Primary Education and Sant’Anna’s writings even express rules of moral and social behavior arrive that would exceed the limits of school. To the master, it would be a task to be a propagator and inspector of new habits and rules in the school environment, based in the concept of an ideal teacher designed by the educational regulation and the educational press of the period, which were linked to a political project – that of implementing the republican ideal. In this respect, the teacher was considered as a master of civic life, holder of a profession known as ministry, forging the future of the Brazilian nation, especially cultivating in the children the feeling of love of the homeland country and the Republic.

Keywords:  First Republic; Family-school.; Teacher; Primary school

Resumen

En este artículo buscamos comprender la idea diseminada sobre el profesor en el período de la Primera República, así como el papel que éste ejercía en la relación entre la familia y la escuela a partir del Reglamento Escolar de la Enseñanza Primaria del año 1890 y de los artículos de H. de Sant “Anna en la Revista de Educación y Enseñanza que circulaba en Pará en el año 1894. Este trabajo Resulta de una investigación documental y bibliográfica, y analiza preliminarmente, los preceptos que regulaban la enseñanza en ese período, y que apuntaban a la formación de ciudadanos para el progreso de la Nación, luego, la educación funcionaría como un mecanismo de difusión del ideario republicano. En este sentido, el profesor no podría portarse en la escuela y en la sociedad como un “ciudadano cualquiera”, tanto que el Reglamento Escolar de la Enseñanza Primaria y los eslabones de Sant'Anna llegan a explicitar reglas de comportamiento moral y social que sobrepasa los límites de la frontera de la escuela. Al maestro cabría la tarea de ser un propagador y fiscalizador de los nuevos hábitos y reglas en el ambiente escolar, basado en el ideal de profesor proyectado por el reglamento de enseñanza y la prensa educativa de la época, que estaban ligados a un proyecto político - el de implementación del ideal republicano. En este sentido, el profesor era considerado un maestro de la vida ciudadana, titular de una profesión tenida y sabida como sacerdocio, cabiéndole forjar el futuro de la nNación brasileña, sobre todo cultivando en los niños el sentimiento de amor a la patria y a la República.

Palabras clave:  Primera República; Familia-escuela; Profesor; Enseñanza primaria

INTRODUÇÃO

O presente trabalho surgiu a partir de investigação preliminar realizada durante o desenvolvimento de projeto de pesquisa sobre educação na Primeira República. Esta pesquisa, integrada a um projeto maior, acabou por despertar nosso maior interesse acerca de conteúdos presentes na imprensa educacional paraense, em especial no período da Primeira República. Ao longo do tempo, nossa compreensão sobre o tema foi sendo amadurecida com novas leituras que nos possibilitaram conhecer novas fontes documentais e coletâneas do referido período – entre as quais, alguns fascículos da Revista de Educação e Ensino, que circulava no Pará no ano de 1894, e o Regulamento Escolar do Ensino Primário, de 1890.

Acessamos os exemplares disponíveis da Revista na biblioteca estadual3 e os processamos em duas fases. Num primeiro momento, fizemos o levantamento e a preparação dos documentos a serem analisados e, num segundo momento, desenvolvemos a análise do seu conteúdo propriamente dito. Entre as seções da revista, priorizamos a coluna “Pedagogia”, mais particularmente nas edições em que Sant’Anna escreveu sobre “A Família e a Escola”. Inicialmente, buscamos identificar os subtemas abordados e, posteriormente, identificamos as concepções inerentes às reflexões ali expressas e seus principais referenciais teóricos, buscando sistematizar o pensamento do autor em relação à matéria, cuja base positivista facilitava uma defesa intransigente do papel redentor da figura do professor no espaço escolar.

Fonte: Sant’anna, 1894b.

Figura 1 - Exemplar da Revista de Educação e Ensino 

Durante a leitura do periódico, descobrimos uma coluna especializada, denominada “Pedagogia”, que nos chamou a atenção por abordar de modo peculiar a relação entre a família e a escola, especialmente no que tange à representação que se fazia do professor naquela época. A partir de então, decidimos nos dedicar à investigação acerca do tema, buscando compreender o que se pensava a respeito do professor no início da República a partir dos artigos de Hilario de Sant’Anna, publicados na mencionada coluna. Ao mesmo tempo, perseguindo nosso escopo, identificamos no Regulamento Escolar do Ensino Primário, de 1890, dispositivos que normatizavam aspectos do comportamento e da atuação do professor.

Definimos como nosso objeto de estudo o perfil esperado do professor na Primeira República no Pará e como objetivo das nossas investigações, compreender a ideia geral que se fazia a respeito do professor naquela época, marcadamente a partir do regulamento escolar e dos escritos de Sant’Anna na supracitada revista, relacionando e demonstrando aspectos do comportamento esperado do mestre pelas autoridades políticas e intelectuais no fim do século XIX.

A pesquisa se constituiu como de natureza documental e bibliográfica. Documental, segundo M. M. Oliveira (2007), por se caracterizar “pela busca de informações em documentos que não receberam nenhum tratamento científico, como relatórios, reportagens de jornais, revistas, cartas, filmes, gravações, fotografias, entre outras matérias de divulgação” (OLIVEIRA, M. M., 2007, p. 69). Nesta linha de raciocínio, utilizamos como fontes primárias três edições da Revista de Educação e Ensino do ano de 1894, além do Regulamento Escolar do Ensino Primário de 1890. A natureza bibliográfica se deveu ao fato de, ao acessarmos os documentos acima e definirmos nosso objeto de investigação, realizarmos um levantamento bibliográfico sobre o tema abordado e suas inter-relações, utilizando os trabalhos de Campos (2012), E. S. Costa (2015), R. P. Costa (2011), Faria Filho (2000), Varela e Alvarez-Uria (1992), entre outros.

A construção da representação da escola como “segunda família”

Em um artigo que trata da relação família e escola, Alexandra Campos apresenta um estudo realizado pela UNESCO, com colaboração do MEC, em 20044. Ali ela nos informa que “um dos dados mais apontados pelos professores, no que se refere aos aspectos que contribuem para o processo de ensino-aprendizagem dos alunos, é a participação das famílias” (CAMPOS, 2012, p. 2).

Segundo Campos (2012), as produções acadêmicas no campo da história da educação demonstram que no início do século XX já existia certa inquietação e também se buscava harmonizar a relação das famílias com a escola. Uma demonstração dessa busca encontra-se explícita nas falas e ações implementadas por estudiosos e simpatizantes do ideário da escola nova.

[...] se verificarmos a produção e as pesquisas referentes à história da educação no Brasil, é possível constatar que essa aproximação e preocupação com a relação família-escola não é recente. Desde o início do século XX, a preocupação em aproximar as famílias da instituição escolar já existia. Ela aparece principalmente com o discurso escolanovista, com o movimento higienista e com algumas práticas empreendidas por alguns intelectuais, como é o caso de Armanda Álvaro Alberto e Cecília Meireles (CAMPOS, 2012, p. 2).

Ao analisarmos o conceito de família, observamos um contexto no qual costumes, crenças e conhecimentos construídos socialmente são compartilhados e repassados de geração em geração – logo, cada um dos integrantes dessa instituição social exerce uma função. Como nos ensina Campos, “falar em família nos remete a pensar em um grupo ordenado composto pelos seus membros, em que cada um desempenha um papel específico” (CAMPOS, 2012, p. 3). É sabido que a educação familiar passou por mudanças ao longo do tempo, adaptando-se às transformações da sociedade, principalmente no âmbito das técnicas necessárias para o exercício do trabalho. Nesta linha de raciocínio, a autora afirma que “antes do século XVII, os valores e os conhecimentos relacionados às práticas profissionais e morais eram apreendidas, em sua maioria, no seio dos grupos familiares” (CAMPOS, 2012, p. 3), porém, com as mudanças promovidas pela revolução industrial, o modelo de educação proporcionado pela família já não mais supria as necessidades e aspirações da chamada “sociedade moderna e civilizada”, pois essa era uma época em que

[...] a família desempenhava o papel de instruir e educar, os indivíduos não estavam inseridos em uma sociedade complexa e evoluída. De acordo com Cunha (2000), esse conjunto de valores e ensinamentos técnicos que eram transmitidos aos mais novos era suficiente para a sobrevivência na sociedade (CAMPOS, 2012, p. 3).

Segundo Varela e Alvarez-Uria (1992), a escola tal qual conhecemos hoje, como instrumento de socialização, é uma invenção recente – porém, os instrumentos e mecanismos que formam essa maquinaria surgiram e se aperfeiçoaram no século XVI. Tanto a maquinaria escolar quanto o processo de escolarização vêm passando por profundas transformações e assumindo diferentes faces, de acordo com as transformações sociais. Na sociedade moderna, a escola assume a instrução e a educação, pois nas concepções modernas a família já não é capaz de educar obedecendo aos modelos da higiene, civilidade e da preparação para o trabalho, principalmente no âmbito das classes trabalhadoras. Essa concepção de “incapacidade” da família no âmbito educacional acaba promovendo o afastamento entre esse grupo e a escola “Não se produz em consequência uma relação de igualdade, de entendimento e reforço entre família e escola, mas, ao invés disso, a escola põe-se em ação para suplantar a ação socializadora destas necessitadas classes consideradas de um ponto de vista fundamentalmente negativo” (VARELA; ALVAREZ-URIA, 1992, p.87).

O século XVII proporcionou mudanças que impulsionaram a ideia de construção de uma nova sociedade pautada na modernidade e na civilidade. Entretanto, para que essas concepções se materializassem, fazia-se necessário aprimorar ou mesmo mudar os parâmetros educacionais a fim de que conseguissem atender às necessidades deste novo cenário, principalmente no que tange à ciência e à técnica. É nesse cenário,

com a origem das cidades modernas, que a instituição escolar ganhou importância e passou a ser vista como uma continuação da educação familiar. No momento em que a família deixou de ser a única responsável pela educação dos filhos, a escola assumiu a responsabilidade pelos conhecimentos técnicos e científicos (CAMPOS, 2012, p. 3).

Essa busca por instrução e civilização por parte da população chegou ao Brasil durante o século XIX, quando se fazia necessário instruir para garantir o avanço da nação, acreditando-se que “[...] um dos meios de se constituir uma Nação Brasileira, em um ideal liberal e iluminista, priorizando a ordem e a civilidade, era por meio da educação do povo (CAMPOS, 2012, p. 3)”. Deste modo, era de extrema importância um ensino escolar que qualificasse pessoas para o trabalho, seguindo os moldes da nascente sociedade republicana. Se a educação ultrapassou a esfera familiar, necessitava-se de um novo espaço dito como “escolar”, onde seriam aplicados novos programas, novos conteúdos, aprimoramento da formação do professor, bem como da equipe pedagógica das escolas.

[...] o início da República foi marcado pela preocupação em renovar a educação, uma pedagogia nova, que de fato levasse o conhecimento às massas populares. Foi nesse momento que surgiu o movimento de renovação da escola primária. Como destaca Silva (2008), o objetivo desse novo regime era “instruir e civilizar” por meio da educação. Pela reforma educacional, Lei nº 88, de 8 de setembro de 1982, surgiram os grupos escolares e uma valorização no que se refere aos materiais pedagógicos e à organização do tempo e da rotina escolares, ocorrendo também uma renovação do currículo escolar (CAMPOS, 2012, p. 4).

Com a escola assumindo a educação, que até então estava a cargo das famílias, estas foram como que “desobrigada” de sua missão de educar. Porém, com o surgimento da Pedagogia Nova e da Escola Nova, a família retomou a sua função, agora como colaboradora da instituição escolar, pois sem a colaboração da família não seria possível “instruir e civilizar5”, sendo justamente com os movimentos da “Escola Nova” e “Higienismo” que a relação entre família e escola passa a ter evidência, agora com a atribuição da formação moral.

Ademais, ao núcleo familiar foi creditado um importante espaço nesta formação, sobretudo moral: trata-se do conteúdo das representações sociais mais fundamentais, naquilo que compõe o habitus primário dos indivíduos, às quais são incorporadas, no decorrer da vida, outras representações – habitus secundário – de modo a constituir as referências sociais, culturais, ideológicas e políticas a partir das quais os indivíduos se relacionam e se agrupam (BOURDIEU apud COSTA, 2011, p. 90).

Com vistas a superar os resquícios do ensino tradicional monarquista – que se mostrava ineficiente para atender aos anseios da nova sociedade republicana de modernizar o país por meio da instrução –, surge o movimento que ficou conhecido como “escolanovista”, indicando mudanças que deveriam ser adotadas para aprimorar o ensino primário6.

Entre os representantes desse movimento educacional estavam

Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Lourenço Filho, entre outros. Estes intelectuais, inspirados pelos ideais da Escola Nova, procuraram implantar um novo modelo educacional no país. Foi na Revolução de 1930, que pôs fim à Primeira República no Brasil derrubando uma política voltada às grandes oligarquias rurais, que estes Renovadores perceberam a oportunidade de se implantar tal projeto que viria modernizar a atual situação do ensino no Brasil. Porém, conforme aponta Lamego (1996), algumas das ideias defendidas por este Movimento contrariavam o interesse de dois grupos de grande influência no Brasil: a Igreja Católica, e o grupo liderado pelo ministro da educação Francisco Campos” (PARDIM; SOUZA, 2012).

Em seguida, em 1924, um dos componentes desse processo de renovação educacional, Heitor Lyra da Silva, criou no Rio de Janeiro a Associação Brasileira de Educação (ABE), que tinha o intuito de reunir intelectuais e propagar ideias escolanovistas pelo país. Dentro da ABE, foi criada uma seção que tinha como meta promover ações que aproximassem a família da escola e conscientizar as famílias de que os métodos e práticas aplicadas na escola seriam importantes para a formação e desenvolvimento das crianças. “Cabia à Seção de Cooperação da Família propiciar a participação e a aproximação dos pais com a instituição escolar; caso contrário, o objetivo de ‘instruir e civilizar’ a população por meio da educação não se implementaria” (CAMPOS, 2012, p. 6).

As discussões e ideias que surgiram no espaço da ABE e foram difundidas pelos escolanovistas geraram resultados importantes, tanto que, em 1932, foi concebido e divulgado o documento conhecido como Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, destinado à população brasileira e ao governo (CAMPOS, 2012, p. 3). O Manifesto dos Pioneiros reafirmava as ideias dos renovadores da educação, demonstrando os princípios que deveriam nortear a educação nacional, bem como o papel do Estado e das famílias no processo educativo, destacando ainda que a escola não deveria jamais desenvolver seu trabalho desacompanhada da instituição familiar.

A nova pedagogia deveria ser pautada pelos princípios de solidariedade, cooperação e assistência social. Todos deveriam ter acesso à educação. Caberia ao Estado possibilitar o acesso das diferentes classes sociais ao sistema público e gratuito de ensino. Para os escolanovistas, a educação deveria ser única e comum para todos e o ensino deveria ser laico, uma vez que a escola não deveria ser um mecanismo de propagação de crenças e doutrinas religiosas.

[...] No que se refere à relação família e escola, o documento aponta que a escola deve reunir “em torno de si as famílias dos alunos”, incentivar as iniciativas dos pais em prol da educação e desenvolver atividades de cooperação entre os pais e os professores. A escola não poderia trabalhar isolada dos núcleos familiares (CAMPOS, 2012, p. 7).

Campos nos mostra que a relação família e escola é considerada importante e vem sendo discutida desde o final do século XIX. Destaca, principalmente, que apesar de o ideário maior do movimento escolanovista ser civilizar e instruir a população, estes foram pioneiros na ideia de conceber a escola como uma instituição que deveria estar aberta às famílias e aos conhecimentos externos, buscando desconstruir a ideia de uma instituição fechada e detentora de todo conhecimento a ser usado na educação dos alunos, pois “de uma maneira ou de outra, onipresente ou discreta, agradável ou ameaçadora, a escola faz parte da vida cotidiana de cada família” (MONTANDON; PERRENOUD, apud FARIA FILHO, 2000, p. 44). Diferentes fatores influenciam no formato e na força da relação família-escola, tais como classe, meio social, ocupação dos pais e escolarização, fatores que ora aproximam a família da escola ora a afastam, provocando inquietações acerca do lugar que a escola ocupa em relação a outras instituições sociais, como a família e a igreja.

No Brasil, ao longo do século XIX, a instituição escolar vai lenta, mas inexoravelmente, se fortalecendo como o locus fundamental e privilegiado de formação das novas gerações, estando diretamente relacionados a este fato a expansão da escolarização, o processo de profissionalização do magistério primário, dentre outros fatores (Faria Filho, 1999). Neste processo, ela desloca, como já foi observado por diversos autores (Alvares-Uria e Varela, 1991; Vicent, 1994), outras instituições (família, igreja, etc.) de seus lugares tradicionais de socialização, considerando-as, na maioria das vezes, incapazes de bem educar diante de uma sociedade que se urbaniza e se complexifica, que supõe novas dinâmicas e padrões de comportamento (FARIA FILHO, 2000, p. 45).

Por outro lado, no interior do espaço escolar, vamos encontrar uma figura decisiva no desenvolvimento das atividades pedagógicas e que se tornaria o centro do debate educacional em uma era de inovações na instrução pública: o professor, pois

o trabalho feito com este agente escolar tendo em vista a sua cooptação para o desenvolvimento do projeto político-educacional republicano esteve ligado à representação desta profissão como “sacerdócio”, como “missão” na construção da nação brasileira. O professor foi colocado no epicentro deste processo; e isto se traduziu na instrução de um conteúdo moral e cívico, ligado à tradição cristão-católica familiar e ao amor à pátria (COSTA, 2011, p. 90).

Não é imprevista ou improcedente, portanto, a ótica poética de Antonio de Almeida Oliveira, na qual o professor deveria ser puro, modesto, bondoso, paciente, zeloso e prudente, entre outras qualidades7. Já do ponto de vista legal, conforme as prescrições do Regulamento Escolar do Ensino Primário, este profissional vai ser alvo de importantes preocupações de lideranças políticas e intelectuais republicanas, empenhados que estavam na renovação pedagógica e educacional da nação.

O professor no regulamento escolar do ensino primário de 1890

O Regulamento Escolar do Ensino Primário se constitui em um documento oficial, redigido por José Veríssimo, Diretor Geral de Instrução Pública, e no qual constavam prescrições normativas acerca dos programas, horários e instruções pedagógicas para as escolas públicas primárias do Estado.

Fonte: Academia Brasileira de Letras, [20--].

Figura 2 - José Veríssimo 

Segundo sua biografia, no site da Academia Brasileira de Letras, José Veríssimo Dias de Matos foi

jornalista, professor, educador, crítico e historiador literário, nasceu em Óbidos, PA, em 8 de abril de 1857, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 2 de fevereiro de 1916. Compareceu a todas as reuniões preparatórias da instalação da Academia Brasileira de Letras. Escolheu por patrono João Francisco Lisboa, e é o fundador da cadeira nº 18 (ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, [20--], on-line).

Veríssimo fez seus primeiros estudos em Manaus e em Belém, mas em 1869, transferiu-se para o Rio de Janeiro e se matriculou na Escola Central, hoje denominada Politécnica, interrompendo seu curso por motivo de doença em 1876. Depois regressou a sua terra natal e se dedicou ao magistério e ao jornalismo, colaborando com o jornal Liberal do Pará, fundando a Revista Amazônica e o Colégio Americano. Foi nomeado diretor da Instrução Pública entre 1880 e 1891, ocasião na qual elaborou o mencionado regulamento.

Fonte: Pará, 1890.

Figura 3 - Regulamento do Ensino Primário 

As exigências presentes no documento, referentes ao comportamento do professor, são bastante diversas e abordam diferentes assuntos que vão desde o vestuário até o problema da assiduidade.

Em termos de comportamento do docente, o documento determina que estes deveriam se apresentar decentemente vestidos, dando lição de moral a seus alunos por meio da correção e asseio de seu traje e porte, sendo proibido o uso de chinelos. Também era vedado a eles fumar e ocuparem-se de “assuntos estranhos” à escola, principalmente os de natureza política ou religiosa.

No que se refere à sua relação com os alunos, esta deveria se orientar pela urbanidade e bonomia, além da necessária manutenção da ordem e da disciplina, que deveriam ser alcançadas pela brandura, pela moral e pela persuasão, evitando a severidade. Se fosse o caso de usar de energia, o professor deveria ter muita prudência.

Outro aspecto abordado pela norma dizia respeito ao local de funcionamento da escola. Caso esta funcionasse na casa do professor, deveria ser reservado o melhor compartimento para as aulas e as melhores dependências, para as necessidades escolares, cabendo a ele a guarda e conservação da classe, seus móveis e utensílios, não sendo permitido usar a sala para outro fim, a não ser que existisse permissão por parte das autoridades. No que tange à relação com os pais ou responsáveis, estes só poderiam se entender com os professores em ocasiões nas quais a escola não estivesse funcionando.

Como não poderia deixar de ser, a norma também regulamentava assuntos de ordem pedagógica, com dispositivos que definiam o modo de ensinar a ser adotado pelo professor. A correção dos temas e a recitação das lições se fariam nas horas determinadas para isto, e os temas seriam corrigidos no quadro ao mesmo tempo em que fosse feita a revisão dos cadernos dos alunos. A redação deveria ser corrigida fora do horário das aulas e não era permitido apenas registrar os erros, mas também corrigi-los.

Era obrigatório que, antes de começar a lição de escrita, o professor repetisse sempre “as regras e observações sobre a posição do corpo, da mão e do papel, corrigindo por si mesmo as posições defeituosas e contrarias á higyene” (PARÁ, 1890, art. 23). O Regulamento tinha uma posição rígida em relação à utilização de monitores. Determinava que, salvo em caso de exercícios materiais, como correção ou verificação de cálculos, recolhimento de cadernos e repetição do preparo de lição e leitura, era expressamente proibido aos professores empregarem monitores ou “decuriões”8 Nestes casos, eram escolhidos os alunos mais distintos do curso superior, tendo em vista também seu caráter e moralidade. Quanto às faltas dos docentes, as autoridades poderiam justificar até três faltas em um mês, mas nunca mais de três vezes por ano e faltas acima desta quantidade só poderiam ser justificadas “á vista de documento digno de fé, do qual será enviado o original á Direcção Geral”. Já o artigo 38 estabelecia que as autoridades escolares seriam particularmente severas quanto à assiduidade e à exatidão dos professores adjuntos.

Como podemos perceber, as regras estabelecidas pelo regulamento aqui descritas tinham como objetivo moldar o comportamento do professor de acordo com o perfil projetado e esperado pelo regime republicano. A atuação desejada do professor, sendo disciplinada e inflexível, deveria se tornar referência moral e política para seus alunos, sendo também eivada de exemplos inquestionáveis de dedicação, devotamento, entrega e sacrifício; tudo em nome do novo regime que se instaurara; convertendo-se em um “sacerdote esclarecido a favor do Estado republicano laico, na manutenção de uma nação temente a Deus e que almeja a civilização”. (COSTA, 2011, p. 91). Por outro lado, quatro anos depois, na coluna de um periódico paraense, o educador e jornalista Hilario de Sant’Anna também abordaria a temática do perfil desejado do professor, escrevendo sobre a relação entre a família e a escola e o papel a ser cumprido pelo mestre.

Hilario de Sant’anna, um professor que escrevia sobre professores

Hilario Maximo de Sant’Anna, professor e jornalista, nasceu em São Caetano de Odivellas9 no dia 21 de outubro de 1870, vindo a falecer em 28 de dezembro de 1915, aos 45 anos de idade. Era casado com uma também professora, Francisca Higyna de Sant’Anna, e tinha um filho de nome Andifax de Sant’Anna.

Era membro da Liga de Professores Normalistas, formado em Filosofia pelo Colégio Latino-Americano e diplomado pela Escola Normal do Estado. Foi, em 1890, professor interino da escola de Oeiras e, após ser aprovado em concurso público, foi nomeado para a escola de 2ª entrância da cidade de Soure, na Ilha do Marajó sendo removido, a pedido, pouco depois, para o município de Cametá, na região do Baixo Tocantins. Em 1895, foi nomeado professor de 3ª entrância, indo reger a cadeira do 4° distrito da capital. Para além da sua experiência docente, Sant’Anna também produziu teses junto com outros educadores — Alexandre Tavares, Firmo Cardoso e Octavio Pires — para o 1º Congresso Pedagógico Paraense realizado em 1º de janeiro de 1897.

No governo de Augusto Montenegro, ocupou o cargo de inspetor escolar, sendo depois nomeado chefe do ensino teórico do Instituto Lauro Sodré. Com a extinção do cargo, passou a ser regente efetivo de uma das cadeiras daquela instituição de educação profissional, ficando dois anos em disponibilidade devido a seu estado de saúde. Também foi colaborador da área de geografia do Álbum do Pará, editado e publicado em 1908. Como jornalista, atuou e fez parte das redações dos periódicos O Pará, A Provincia do Pará, Gazeta de Belém, Correio de Belem e Diario da Manhã, sendo secretário deste último. Nesse período, também foi membro do Conselho Superior de Instrução Pública do Estado, cargo ao qual renunciou em 27 de Julho de 1900.

Fonte: Pará, 1908.

Figura 4 - Álbum do Pará, publicado no governo de Augusto Montenegro 

Sant’Anna se identificava com o perfil de um republicano convicto, cumpridor dos deveres típicos de um correligionário, desempenhando com sucesso as tarefas que lhe eram atribuídas e que, como tal, foi também usufruidor dos direitos atinentes. Como se pode intuir, era uma figura reconhecida pelas autoridades republicanas naquele período; construiu uma sólida carreira como professor, mas também tinha destacada atuação como jornalista. Era, dessa forma, um dos grandes influenciadores do professorado paraense, no sentido de difusão do ideário educacional e pedagógico proposto pelo regime republicano, tanto que assinava uma coluna em uma importante revista voltada para a educação e o ensino, na qual eram abordados temas como os deveres do professor e sua missão de formar toda uma geração de devotados patriotas.

Entre a família que educa e a escola que instrui está o professor

Em fevereiro, março e abril de 1894, Sant’Anna escreveu na coluna “Pedagogia” da Revista de Educação e Ensino artigos tratando da relação entre a família e a escola. Na primeira parte, o autor defende a importância do ensino e relata que a escola é um complemento da família, sendo a educação dever da família e a instrução dever da escola. Diz ele:

Entre a familia, que educa, e a escola, que instrue, existe um laço de connexão indissolúvel e necessário, si bem quizerem os Paes desempenhar o seu nobilissimo e sagrado papel de enveredar a creancinha pelo caminho do bem e da virtude, e o professor cumprir fielmente o seu sacerdocio, innoculando na intelligencia infantil do menino os germens da instrução elementar, «base de toda sua felicidade futura›› (SANT’ANNA, 1894a, p. 18, grifo do autor).

Neste sentido, afirma que, no Brasil, os professores acabam desempenhando o papel de professor e de segundo pai. “Costuma-se, com raras e muito honrosas excepções, sobrecarregar o mestre-escola paraense e, podemos mesmo dizer, brazileiro, com o duplo trabalho da instrucção e educação da infância” (SANT’ANNA, 1894a, p. 19). O autor termina dizendo que esse “defeito” já vem de bastante tempo e não é culpa dos pais e sim da educação, e reafirma que os pais devem auxiliar o professor, devendo este último “deve cumprir seu dever estudando e pondo em prática os preceitos pedagógicos modernos” (SANT’ANNA, 1894a, p. 19).

Fonte: Sant’anna, 1894b, 1894c.

Figura 5 - Páginas da Revista Educação e Ensino (volume IV, n.º 3 e 4) 

Na segunda parte de seu trabalho, o autor inicia dizendo que se encontra encabulado por estar tratando de um delicado assunto (a relação entre a família e a escola) e segue relatando que, se por um lado ele se desgosta pela falta de boa vontade dos pais em dar aos filhos uma educação moderna baseada nos princípios da virtude, por outro, ele reconhece que existem bons e maus professores, o que o faz confessar

sem grande pesar, ver que, a par da plêiade de preceptores illustres e dedicados, de moços dignos de nossa admiração, existem outros que, sendo bastante para lamentar, não correspondem á grandeza de sua missão, uns pela falta do necessario preparo intellectual e pedagogico, outros por sua reconhecida negligencia e pouco amor à profissão (SANT’ANNA, 1894b, p. 35).

Além disso, o autor afirma que é para motivar estes últimos que ele escreverá uma palestra. Nesta, começa falando que a missão do professor (preceptor) perante a pátria é grandiosa, perante a sociedade é sublime e perante a família é divina. Para aprofundar suas ideias, Sant’Anna faz uso de dois pequenos textos motivadores nos quais o professor desempenha um papel de destaque. No primeiro texto, é retratada uma família na qual os pais receberam pouca ou nenhuma instrução e possuem muitos afazeres cotidianos, o que acaba prejudicando o desempenho com louvor de seus deveres de pais; neste caso, o professor primário desempenha, além de suas funções de mestre, a função de progenitor: “Ao professor primário para cuja escola é levada a creança, compete neste caso, não o dever de simples mestre; porém a nobre missão de progenitor, tornando-se assim a escola como já dissemos o complemento da família” (SANT’ANNA, 1894b, p. 35).

Segundo Sant’Anna (1894b), fazendo uso de lições acuradas de instrução moral e cívica, mostrando as crianças os deveres que o homem deve cumprir durante a vida, despertando no menino pelo exemplo o verdadeiro amor à pátria, os seus deveres para com ela e com a sociedade, o professor terá cumprido, ainda que mal, a sua missão de pai.

No segundo texto, são relatados três casos diferentes: no primeiro, o pai se encontra encarcerado; no segundo, trata-se de um pai viciado; e, no último, apresenta-se uma viúva que chora a perda de seu companheiro. Cada um desses pais/mães acima descritos teve um filho, razão para o autor questionar, qual o papel do professor para com essas crianças, respondendo que nestes casos, o professor, além de seu papel de pai que completa a educação, representa também a pátria e a sociedade.

A patria porque é d’lle. Sómente d’lle que se espera um fillho prestimoso e capaz de arrostar por Ella o sacrifício de sua vida; e a sociedade, porque tem tambem nelle fundadas as suas esperanças d’um membro proeminente e digno de permanecer em seu seio (SANT’ANNA, 1894b, p. 35).

Nestes casos o professor desempenha, nas palavras do autor, um “tríplice papel”.

No terceiro artigo, é abordada a norma de procedimento público e particular do professor primário e suas relações com a família, Sant’Anna busca mostrar que o comportamento do professor deve ser diferenciado de qualquer outro chefe, reconhecendo o importante papel que o professor desempenha na sociedade. Por este motivo, seu comportamento deve servir de modelo, pois embora o professor seja um sujeito como qualquer outro, suas atitudes afetam a sociedade como um todo e uma geração inteira. Diz ele:

Quando um membro qualquer da sociedade commette erros, quando, quer pervertel-a, quando, por seu procedimento pouco regular, torna-se uma nota dissonante no seio d’essa santa corporação, Ella tem nas leis do paiz e na expulsão, que lhe infringe, o remedio para esse mal, e a elle somente elle, affecta o seu desregramento de costumes. Com o professor, porém, succede o contrario. Sujeito como qualquer outro ás penas da lei á expulsão do corpo social, todavia o seu procedimento não affecta a elle só e sim a sociedade, á geração vindoura, ás esperanças da pátria no futuro (SANT’ANNA, 1894c, p. 52).

A criança tende a imitar o adulto, todavia, segundo o autor, elas têm por natureza predisposição a imitar o mal em vez do bem. Por isso, faz-se necessário um professor com bons princípios, pois durante o convívio diário espera-se que a criança incorpore as virtudes de seu mestre, para que ao final do relacionamento o professor devolva ao pai, que lhe confiou a importante missão de educar e instruir, um homem bem instruído e com caráter admirável. Sant’Anna reconhece que em nosso meio – no qual a família, por problemas rotineiros, não está preparada para educar e no qual os vícios estão por todos os lados – o professor encontra grandes dificuldades para desempenhar sua função. Ele admite que em seu meio

onde a família por um defeito que vem de rotina, não está convenientemente preparada para educar; onde os vícios abundam e o professor encontra difficuldades insuperaveis no desempenho de sua missão; onde elle tem estricta necessidade de entreter relações amistosas com as famílias de seus alumnos; deve seu procedimento, mais do que em outra qualquer parte, ser o modelo dos exemplares (SANT’ANNA, 1894c, p. 53).

Ao final do terceiro artigo, o autor fala da vocação e também sobre o fato de que a ciência da pedagogia da época era capaz de ensinar o caráter de qualquer um a se moldar mais ou menos à sublime missão de mestre; recomenda àqueles que não possuem a “vocação” que estudem e trabalhem, pois assim, ainda que não cumpram nobremente seu papel de mestre, terão mostrado boa vontade de cumpri-lo.

Como não poderia ser diferente, Sant’Anna, enquanto articulista da imprensa educacional, defende a tese de que a família tem uma responsabilidade decisiva na formação moral dos alunos e, assim como caberia ao pai — na função de chefe familiar — caberia ao mestre desenvolver sua profissão como missão sagrada de desenvolvimento e modernização da nação, como escopo de sua própria razão de ser.

Por essa razão, os artigos de Sant’Anna estavam permeados de intencionalidade e colocavam sempre em evidência a importância do professor na construção da “nova” sociedade que surgia no alvorecer do século XX. O autor fazia uso de exemplos nos quais o mestre ocupava lugar de destaque na sociedade e na família, constituindo-se em um dos traços distintivos da pátria republicana por meio da missão de suscitar, infundir e inspirar nos jovens os valores morais e cívicos esperados dos novos cidadãos republicanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em nossa análise acerca do perfil e papel do professor paraense na Primeira República, buscando estabelecer relações entre o Regulamento Escolar do Ensino Primário e os escritos de Hilario de Sant’Anna na Revista de Educação e Ensino, identificamos o professor como figura central em ambas as fontes. Por outro lado, é mister relembrar que as elites republicanas do final do século XIX e início de século XX eram movidas pelo desejo de formar uma nova geração de cidadãos cientes de seus deveres republicanos.

Deste modo, “nesse contexto a educação, de acordo com as autoridades políticas e intelectuais republicanos, seria um dos mecanismos para a construção de uma sociedade que se pretendia: moderna e civilizada” (COSTA, E. S., 2015, p. 10). Diante desse desafio, o regulamento e as ideias divulgadas nos periódicos da época, entre eles a Revista de Educação e Ensino, perseguiam o escopo de orientar e moldar o professorado paraense segundo os anseios da nascente República.

É neste sentido que as elites republicanas propunham “a afirmação do novo regime perante a sociedade, através de políticas de valorização da instrução pública e da exaltação dos valores cívicos e morais nos conteúdos ensinados nas escolas públicas, objetivando a formação de um povo civilizado e cidadãos úteis à pátria.” (COSTA; MENEZES NETO, 2016, p. 70).

Na mesma linha de pensamento, Shueler e Magaldi defendem que um elemento-chave no projeto da escola primária republicana “diz respeito ao papel assumido por essa instituição na formação do caráter e no desenvolvimento de virtudes morais, de sentimentos patrióticos e de disciplina na criança” (SCHUELER; MAGALDI, 2009, p. 45).

Os preceitos que regulamentavam o ensino nesse período, portanto, apontavam para a formação de cidadãos para o progresso da nação; logo, a educação funcionaria como um mecanismo de difusão do ideário republicano. Neste sentido, o professor não poderia se portar na escola e na sociedade como um “cidadão qualquer”, a ponto de o Regulamento do Ensino Primário e os artigos de Sant’Anna na Revista de Educação e Ensino explicitarem regras de comportamento moral e social que ultrapassariam os limites da escola. Portanto, podemos dizer que, no período da Primeira República, o comportamento do professor tanto em público quanto em particular se constituía em parâmetro para o estabelecimento de status de confiança entre a escola e a família.

Conforme verificamos no estudo, o professor era visto como uma extensão da educação familiar, assumindo, em alguns casos, como nos relatados por Sant´Anna, o papel de segundo pai e sendo visto pela família do aluno e pela legislação educacional da época como um grande influenciador na personalidade das crianças, no que tange à moral, à civilidade e ao respeito. Por outro lado, não era explícita a importância da relação entre a família e a escola na perspectiva da sua contribuição para o sucesso escolar do estudante. Naquela época, tal importância se constituía apenas do ponto de vista da formação do caráter e do desenvolvimento de boas maneiras nas crianças.

O perfil de “bom mestre” descrito nas páginas do documento oficial e nas páginas da revista estava estreitamente ligado à moral e ao bom comportamento — público e privado — do professor, que “não deve modelar seu procedimento por qualquer chefe de família, por mais exemplar que seja, pelo membro da sociedade o mais conspícuo, não; deve pelo contrario, servir-lhes de modelo” (SANT’ANNA,1894c, p. 53).

Por outro lado, se podemos afirmar que os dois documentos dialogam entre si quando se trata do perfil e do papel esperado do professor, não podemos dizer o mesmo em relação à abordagem da relação entre a família e a escola. Apesar do destaque dado pelo periódico à importância desta na formação moral dos alunos, o regulamento é quase omisso em relação à questão, abordando o tema de forma superficial e uma única vez, apenas determinando que “os paes ou responsaveis quando tenham de entender-se com os professores devem escolher ocasiões em que não esteja a escola funcionando” (PARÁ, 1890, art. 19, §único). Outro aspecto importante, que é fartamente abordado pelo Regulamento, é a questão da higiene, sobre o qual o documento apresenta uma série de regras a serem seguidas, sempre a enfatizar que o professor deveria ser um propagador e fiscalizador de seus hábitos e regras no ambiente escolar; entretanto, nos artigos de Sant’Anna não foram encontradas menções a esse aspecto.

Finalmente, é válido afirmar que o ideal de professor projetado pelo regulamento de ensino e pela imprensa educacional da época estava ligado a um projeto político — o de implementação do ideal republicano — e, por esse motivo, o professor era tido como um mestre da vida cidadã, titular de uma profissão tida e sabida como sacerdócio, cabendo-lhe forjar o futuro da nação brasileira, sobretudo, cultivando nas crianças o sentimento de amor à pátria e à República.

3Biblioteca pública estadual Arthur Vianna, situada no Centro Cultural Tancredo Neves, vinculado à Fundação Cultural do Estado do Pará.

4Pesquisa realizada pelo MEC, UNESCO e outros órgãos no ano de 2004, denominada “Perfil dos professores: o que fazem, o que pensam, o que almejam”.

5Ver Costa (2011).

6“A Escola Nova foi um movimento educacional que, por meio de propostas pedagógicas, procurou modernizar o ensino trazendo para a escola as novas descobertas, nos ramos das várias ciências. Segundo Lamego (1996), a Escola Nova propunha quatro pontos básicos: 1) A “revisão crítica” dos meios tradicionais do ensino, nos quais a individualidade não era fator de preocupação. 2) Inclusão de fatores históricos e culturais da vida social na formação educacional. 3) A utilização dos novos conhecimentos da biologia e da psicologia para que o educador estabeleça os estágios de maturação do indivíduo na infância, assim como o desenvolvimento de sua capacidade individual. 4) A transferência da responsabilidade da ação educadora da família e da Igreja para a Escola, como forma de amenizar as diferenças sociais e culturais existentes entre os diversos grupos e, juntamente com isso, a responsabilização do Estado pela educação do indivíduo (PARDIM; SOUZA, 2012).

7“Puro nos costumes, no dever exato / Modesto, polido, cheio de bondade, / Paciente, pio, firme no caráter, / Zeloso, ativo e tão prudente / Em punir como louvar; / Agente sem ambição, apóstolo / Em quem a infância se modela, / Espelho em que os mundos se refletem, / Mito e sacerdote, juiz e pai, / Eis o mestre, eis o professor” (OLIVEIRA, A. A., 2003, p. 204).

8Decurião era a expressão usada para designar o aluno mais adiantado que atuava como professor junto a outros alunos (decúria, que se constitui em um grupo de dez alunos).

9Município paraense localizado na região Nordeste do estado, cuja história começa a partir da ação jesuítica durante o período colonial. Em 1833, transformou-se na freguesia de São Caetano de Odivelas e emancipou-se como município em 1872. Com o início do regime republicano, foi instalada em março de 1890 a Intendência Municipal. Em julho de 1895, a sede municipal foi elevada à categoria de cidade.

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Recebido: Dezembro de 2017; Aceito: Junho de 2018

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