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Revista Exitus

versión On-line ISSN 2237-9460

Rev. Exitus vol.9 no.2 Santarém abr./jun 2019  Epub 19-Jul-2019

https://doi.org/10.24065/2237-9460.2019v9n2id854 

Artigos

O ENSINO DE NÚMERO NA ESCOLA PRIMÁRIA: transformações lidas em manuais didáticos (1888-1965)

THE NUMBER TEACHING IN THE ELEMNTARY SCHOOL: transformations read in textbooks (1888-1965)

LA ENSEÑANZA DE NÚMERO EN LA ESCUELA PRIMARIA: transformaciones leídas en manuales didácticos (1888-1965)

Maria Célia Leme da Silva1 

1Doutora em Educação (Currículo) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; professora associada da Universidade Federal de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da UNIFESP. E-mail: mcelialeme@gmail.com


RESUMO

O propósito do presente artigo é retomar estudos já desenvolvidos no GHEMAT e discutir diretrizes para a continuidade das pesquisas, na intenção de construir objetos teóricos. Toma-se o número, como um saber escolar, presente desde sempre nas escolas primárias brasileiras, seleciona-se quatro manuais escolares (COLLAÇO, 1885; TRAJANO, 1895; BUCHLER, 1943; GROSSNICKLE; BRUECKNER, 1965), de diferentes tempos e vagas pedagógicas, com o intuito de ler as transformações deste saber escolar, a partir da mobilização dos conceitos de saberes a ensinar e saberes para ensinar. Os quase oitenta anos que separam a publicação do primeiro ao quarto manual examinado nos permitem evidenciar as múltiplas e complexas dinâmicas da matemática escolar, nos convidando a repensar representações construídas socialmente de que na escola nada muda, de que “o ensino de número na escola primária é sempre o mesmo, tudo igual”. De outra parte, possibilita ainda abrir a nossa caixa-preta sobre os saberes matemáticos e mobilizar os saberes a ensinar e os saberes para ensinar, como saberes que ao longo do tempo vão se lapidando, se institucionalizando na formação de professores como saberes para ensinar matemática.

Palavras-chave: Método Intuitivo; Escola Nova; Saber escolar

ABSTRACT

The purpose of this article is to resume studies already developed in the GHEMAT and to discuss guidelines for the continuity of research, aiming to construct theoretical objects. The number is taken as a school knowledge, always present in Brazilian primary schools, four school textbooks (Collaço, 1885; Trajano, 1895; Buchler, 1943; Grossnickle and Brueckner, 1965) are selected from different times and pedagogical vacancies with the purpose of reading the transformations of this school knowledge from the mobilization of the concepts of knowledge to teach and knowledge for teaching. The almost eighty years that separate the publication from the first to the fourth manual examined allow us to highlight the multiple and complex dynamics of school mathematics, inviting us to rethink socially constructed representations that nothing changes in school, that "number teaching in elementary school it's always the same, everything is the same." On the other hand, it also makes it possible to open our black box about mathematical knowledge and to mobilize the knowledge to teach and the knowledge four teaching as knowledge that over time are lapidating, becoming institutionalized in the training of teachers as knowledge to teach mathematics.

Keywords: Intuitive Method; New school; School knowledge

RESUMEN

El propósito del presente artículo es retomar estudios ya desarrollados en el GHEMAT y discutir directrices para la continuidad de las investigaciones, con la intención de construir objetos teóricos. Se toma el número como un saber escolar, presente desde siempre en las escuelas primarias brasileñas, se seleccionan cuatro manuales escolares (Collaço, 1885, Trajano, 1895, Buchler, 1943, Grossnickle y Brueckner, 1965) de diferentes tiempos y bagajes pedagógicos con el fin de leer las transformaciones de este saber escolar a partir de la movilización de los conceptos de saber a enseñar y saber para enseñar. Los casi ochenta años que separan la publicación del primero al cuarto manual examinado nos permiten evidenciar las múltiples y complejas dinámicas de las matemáticas escolares, invitándonos a repensar representaciones construidas socialmente de que en la escuela nada cambia, de que "la enseñanza de número en la escuela primaria es siempre el mismo, todo igual”. Por otra parte, permite abrir nuestra caja negra sobre los saberes matemáticos y movilizar los saberes a enseñar y los saberes para enseñar como saberes que a lo largo del tiempo se van lapidando, institucionalizándose en la formación de profesores como saber para enseñar matemáticas.

Palabras clave: Método Intuitivo; Escuela Nueva; Saber escolar

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O propósito do presente artigo é retomar estudos já desenvolvidos no GHEMAT2 e discutir possibilidades de análise, diretrizes e inserção de novos referenciais teóricos, para a continuidade de estudos, na intenção de construir objetos teóricos. É preciso esclarecer, desde já, que estamos considerando a produção científica como uma ciência em ação, na concepção de Bruno Latour (2000), ao contrapor a ciência pronta e a ciência em construção. Convida-se os leitores, a abrir a caixa-preta fechada e ao retirar a tampa, questionar os resultados da ciência pronta, provocar, evidenciar incertezas, controvérsias, ações próprias da “entrada no mundo da ciência e da tecnologia pela porta de trás, a da ciência em construção, e não pela entrada mais grandiosa da ciência acabada” (LATOUR, 2000, p. 17).

É importante deixar claro o que se designa por objetos teóricos, tomados de Borba e Valdemarin (2010), que por sua vez, apoiam-se nas ideias de construção teórica do objeto científico de Bourdieu et al (1999) e de Cardoso (1978), para fazer a distinção entre o real e o objeto de conhecimento,

o real é colocado na posição de ser conhecido, ele não se apresenta ao sujeito que conhece, ou seja, não é ele que se faz objeto de conhecimento. A realidade só será objeto de conhecimento na relação que o sujeito estabelece com o mundo (p. 31).

As pesquisadoras Borba e Valdemarin reiteram que o objeto científico, objeto de conhecimento ou objeto teórico é uma construção teórica “e a verdade sobre ele [objeto] estará, cada vez mais próxima, à medida que a teoria for mais completa e cuidadosa: a uma teoria mais rica e rigorosa corresponde um objeto mais específico e preciso” (2010, p. 32). Neste sentido, espera-se que a inserção de uma nova teoria seja argumentada, problematizada e justificada como elemento central na produção de novos objetos de conhecimento, considerando que:

a análise de Cardoso (1976,1978), apesar de não anular o significado da observação e da experiência, atribui, no entanto, ao conhecimento teórico, à teoria, a tarefa central da atividade de conhecimento: a construção teórica do objeto, ou seja, fazer do real um objeto inteligível (BORBA, VALDEMARIN, 2010, p. 32, grifo nosso).

Diante desta breve introdução e de constatar, desde o XV Seminário Temático3, o emprego de uma nova base teórica4 pelo GHEMAT, a qual vem sendo desenvolvida pela Equipe de Pesquisa em História das Ciências da Educação (ERHISE) da Universidade de Genebra/Suíça, colocando no foco das pesquisas dois conceitos chave - saberes a ensinar e saberes para ensinar -, parecem ser pertinentes algumas indagações: O que a nova teoria adotada pelo GHEMAT pode oferecer para a construção de objetos teóricos? Como mobilizá-la em nossas pesquisas? Qual sua relação com a história cultural e os autores centrais (em particular, Chartier, De Certeau, Chervel e Julia) que fundamentaram os estudos do GHEMAT ao longo de seus dezessete anos de investigação?

Como já dito, a inclusão desses novos conceitos e teorias é um percurso recente no grupo e não se tem a pretensão de delinear respostas para as indagações supracitadas. O que se objetiva, no presente ensaio, é um exercício de análise das propostas para o ensino dos números, em um conjunto de quatro manuais escolares5, de diferentes tempos e vagas pedagógicas6, com o intuito de compreender as transformações deste saber escolar, a partir da mobilização dos conceitos de saberes a ensinar e saberes para ensinar.

SABERES A ENSINAR E SABERES PARA ENSINAR

Antes de tratar das especificidades dos saberes, é preciso esclarecer a distinção que Hofstetter e Schneuwly (2017) fazem entre conhecimento e saber. Alicerçados em Pastré, Vergnaud e Mayen (2006) consideram a escola como um espaço de “aprendizagem intencional” e assim sendo, esclarecem a distinção entre conhecimento e saber:

Para ajustar-se a todos os tipos de situações, um sujeito dispõe dos recursos construídos no passado e adquiridos da experiência. Mas ele dispõe, sobretudo, de uma capacidade de criar novos recursos, para reorganização daqueles já adquiridos. [...] por um lado, os nossos conhecimentos são recursos que utilizamos para resolver os nossos problemas. Por outro lado, estes mesmos conhecimentos podem ser encarados em si próprios, de modo a que se possa identificar neles mesmos propriedades, tornando-se assim saberes. Estes constituem conjuntos de enunciados coerente e reconhecidos por uma comunidade científica ou profissional. Adquirindo então um lugar central na aprendizagem intencional (HOFSTETTER, SCHNEUWLY, 2017, p. 117-118).

Desta maneira, os saberes escolares constituem um conjunto de conhecimentos que são produzidos, reconhecidos e validados no âmbito escolar. Na mesma linha de argumentação, considera-se ainda a diferença entre a matemática escolar e a matemática acadêmica, defendida por Santos e Lins (2016), como comunidades distintas de profissionais, cada qual com suas práticas, normas e finalidades. O exemplo que se analisa, número, pode ser interpretado como um conhecimento ao ser mobilizado para resolver muitos dos problemas práticos do dia a dia7. O número também pode ser tratado como um saber, visto que, integra programas e manuais escolares para os primeiros anos de escolarização, assim, como também participa de disciplinas inseridas na formação docente. No entanto, as finalidades do ensino de número nos primeiros anos escolares e na formação de futuros professores são distintas, do mesmo modo que a comunidade de profissionais que mobilizam esse saber em suas práticas - de um lado, o professor primário e de outra parte, docentes universitários ou da Escola Normal, cada qual com formações igualmente diferenciadas.

Hofstetter e Schneuwly (2017) consideram em sua proposta que a questão dos saberes está no centro das instituições de ensino e de formação e colocam os saberes formalizados (ou ainda objetivados8) no centro de suas reflexões, para conceitualizar dois tipos de saberes referidos a essas profissões: saberes a ensinar, que correspondem aos objetos do seu trabalho e os saberes para ensinar, que constituem as ferramentas do seu trabalho.

Valente (2017), ao apropriar-se dos conceitos chave de saberes a ensinar e saberes para ensinar, indica que a revolução pedagógica em âmbito internacional no final do século XIX, sob a égide do ensino intuitivo, produz:

mudanças em obras didáticas, em manuais para professores e em toda sorte de orientações didáticos pedagógicas. Esse processo irá lapidar saberes para ensinar matemática a estarem presente na formação inicial de professores, e, ainda no que hoje denominamos formação continuada dos docentes (VALENTE, 2017, p. 215-216, grifo nosso).

Retoma-se o nosso ensaio - o número no ensino primário, um saber inserido, validado e reconhecido tanto nas instituições de ensino (escolas básicas) como de formação docente (escolas normais, Institutos) e assim, indaga-se: Quais as transformações que podem ser lidas nos manuais escolares no processo de lapidação de saberes para ensinar número? No presente texto, propõe-se o exercício de examinar, como o conceito de número é proposto em diferentes manuais escolares tomando como lupa os saberes a ensinar e para ensinar.

UMA REVISÃO DE ESTUDOS SOBRE O TEMA

É preciso destacar que o ensino de número já foi objeto de investigação de pesquisas do GHEMAT9. David Costa, em sua tese defendida em 2010, analisa a trajetória de um saber escolar: a Aritmética escolar e em específico, trata das transformações ocorridas no ensino do conceito de número, no período de 1890 a 1946, nos livros didáticos. Observa-se de pronto, que o saber escolar é designado por aritmética e o número como um conceito. O autor não explicita o que está sendo designado por saber escolar e seu uso é restrito ao resumo da tese, o número é mobilizado na pesquisa, como um conceito. A base teórica principal que ancora a análise é a história cultural, em particular Chervel (1990).

Como resultado, a investigação de Costa (2010) aponta que nos livros que precedem a última década dos oitocentos, o conceito de número está associado ao resultado da contagem e privilegia a memorização e regras dos algoritmos nas operações elementares, designada pelo autor como aritmética clássica ou tradicional. Uma segunda periodização construída pelo pesquisador é a chegada do ensino intuitivo com as ideias de Pestalozzi, designada por aritmética intuitiva e caracterizada por referenciar primeiro o número na forma oral, para depois serem estudados em sua forma escrita, metodologia que se articula com as ideias de Pestalozzi. Ao analisar os livros deste período, identifica o número no seu aspecto relacional, promovendo o entendimento do conceito de número associado a medidas e comparações, o que refletem as influências de Dewey (1895).

Três anos depois, Nara Pinheiro (2013) defende a dissertação de mestrado que trata das transformações do significado do conceito de número no período de 1880 a 1970, abarcando três movimentos pedagógicos: pedagogia intuitiva, renovada e moderna. O estudo também se embasa na história cultural, especialmente em Chartier (2002, 2010), Certeau (2012) e Julia (2001).

Como conclusão, Pinheiro (2013) indica que no ensino intuitivo, o conhecimento do conteúdo número vem da concepção sensorial, a partir da observação de coleções de objetos, a criança aprenderia a ideia de unidade e os números se desenvolveriam pela composição e decomposição de unidades. Em seguida, o ensino pelas figuras intermedia a passagem do concreto para o abstrato. Com a vaga escolanovista, a concepção de interesse passa a ser o ponto de partida para a aprendizagem. As duas vagas, intuitiva e escolanovista, defendem o número como um indicador de qualidade, tal como um adjetivo, que define exatamente a quantidade numa coleção de objetos. Na vaga moderna, o número é visto como uma abstração e seria necessário construir outros conteúdos que permitissem o acesso, os elementos da Teoria dos Conjuntos.

O uso dos saberes na dissertação de Pinheiro (2013) é empregado na apresentação do quadro teórico, ao se referir à cultura escolar, que define saberes e comportamentos a serem ensinados e também, na crítica realizada por Chervel, de que as disciplinas escolares seriam uma adaptação dos saberes científicos. A análise do estudo, pauta-se sobre o conceito de número, sem fazer referência ao número como um saber escolar.

Uma terceira investigação é a tese de Marcus Oliveira, defendida em 2017, que trata de um estudo da Aritmética, no curso primário brasileiro de 1870 a 1920, com vistas a responder que transformações sofrem esse saber escolar, com a vaga pedagógica intuitiva. Explicitamente designado na problemática de pesquisa, o autor define, logo na introdução, o que entende por saber escolar10, diferenciando-o de conhecimento. A pesquisa toma como hipótese que uma pedagogia produz mudanças epistemológicas nos saberes escolares e altera o estatuto do próprio saber, do aluno e do professor. Pauta-se em Develay e Astolfi (2005), para defender que a epistemologia escolar se distingue da epistemologia, em vigor nos saberes de referências, “fala-se de uma epistemologia interessada pela natureza e as condições de emergência dos saberes escolares” (OLIVEIRA, 2017, p. 38). Anuncia que os conteúdos de ensino são objetos de análise na investigação e que a emergência da Aritmética escolar nos livros é analisada nos níveis epistemológico e didático.

A tese de Oliveira (2017) defende nas conclusões, que a pedagogia de ensino intuitivo resulta em profunda mudança no estatuto epistemológico do saber escolar. Cita o exemplo do livro de Trajano, que estrutura alguns conteúdos, de modo que impulsione primeiro as faculdades sensíveis (utilizando ilustrações) e em seguida, as faculdades reflexivas (exercícios e problemas) como formas de revisão prática do saber. Nos cadernos de Dordal, mesmo sem os objetos, coisas e imagens, o autor distribui os saberes aritméticos em seis cadernos, em que as lições são graduadas, de modo que passo a passo, o aluno aprenda consigo mesmo, sem ter que, inicialmente, decorar regras e definições, representando o equilíbrio entre seriação do ensino e do saber aritmético. As obras didáticas de Dordal (1891), Trajano (1895), Barreto (1912) e Buchler (1923) e Tolosa (192?) reorganizam a Aritmética, denominada de Aritmética intuitiva e configuram uma lógica própria de estruturação dos saberes, sem dependência e correspondência com saberes de outros níveis:

Com a constituição de um novo saber escolar do curso primário - a Aritmética intuitiva -, evidenciou-se que a pedagogia moderna não só alterou a organização curricular da escola primária, mas também alterou métodos e conteúdos. Isso confirma a hipótese levantada no início desta investigação: que uma pedagogia produz mudanças epistemológicas nos saberes escolares, o que altera não só o estatuto do próprio saber, mas também do aluno e do professor (OLIVEIRA, 2017, p. 244, grifos nossos).

As três pesquisas inventariadas tomam a aritmética no curso primário, como objeto de investigação, as duas primeiras com maior proximidade de referenciais teóricos e a terceira introduz o conceito de epistemologia escolar. Destaca-se também, que o número é tomado como exemplo para análise nos estudos de Costa e Pinheiro, sendo que em Oliveira, o número não é analisado com o mesmo enfoque em relação aos dois primeiros estudos.

De todo modo, sem realizar um amplo inventário das pesquisas sobre número, identifica-se no conjunto selecionado, uma problemática de pesquisa, ao designar número como conceito ou saber, em promover uma efetiva análise que conjugue, articule, e permita compreender, como método e conteúdo se configuram, nos processos de constituição de uma Aritmética intuitiva11.

Para a vaga intuitiva, Costa (2010) destaca separadamente aspectos do método de ensino do número (oral precedendo à escrita), como apropriação de Pestalozzi e particularidades do conceito de número (como medidas e comparações), por influência de Dewey, Pinheiro (2013) une os dois aspectos, ao evidenciar que o número vem da concepção sensorial, a partir da observação de coleções de objetos, aprende-se a ideia de unidade e os números se desenvolvem como composição e decomposição de unidades. Oliveira (2017) evidencia que a pedagogia moderna altera métodos e conteúdos, produzindo mudanças epistemológicas no saber escolar.

O ENSINO DE NÚMERO EM MANUAIS ESCOLARES

Como dito nas considerações inicias, selecionam-se quatro manuais produzidos em tempos distintos e em diálogo com diferentes vagas pedagógicas, para a análise de como o conceito de número é proposto. O livro de Collaço (1888), representante do ensino tradicional; o livro de Trajano (1895), de muitas edições e considerado pelos estudos referenciados na revisão como ícone da vaga intutiva; o livro de Buchler (1943), que anuncia princípios da vaga escolanovista e finalmente, a tradução do livro de Grossnickle e Brueckner (1965), como marca da Pedagogia Científica.

Felippe Nery Collaço12 - 1888

Parte Primeira

P. O que se entende por numero?

R. A expressão da relação existente entre uma grandeza dada e sua unidade.

P. Para que serve o numero?

R. Para mostrar de quantas unidades, ou partes da unidade, se compõe qualquer quantidade.

Exemplo

O imperio do Brazil contem 20 provincias: império do Brazil é a quantidade, provincia a unidade e 20 o numero que mostra de quantas províncias se compõe o Brazil.

P. Que se entende por grandeza ou quantidade?

R. Tudo o que tem a propriedade de poder augmentar ou diminuir, bem como uma boiada, uma casa, uma pedra.

P. Quantas espécies há de quantidade?

R. Duas, continua e discreta ou descontinua

P. O que se entende por quantidade continua?

R. Aquella cujas partes estão ligadas umas ás outras de sorte que se não podem distinguir, como um tijolo, uma taboa.

P. Que se entende por quantidade discreta ou descontinua?

R. Aquella cujas partes estão separadas umas das outras de sorte que se podem distinguir, bem como um batalhão, uma boiada.

P. O que se entende por unidade?

R. Duas, a unidade natural e a unidade convencional ou legal. [...]

P. De quantos modos podemos considerar os números relativamente as suas unidades?

R. De dous, como abstractos, ou como concretos.

P. O que se entende por numero abstracto? R. Aquelle que não se applica a espécie alguma determinada de unidade, bem como dous, cinco, nove, sete e meio, oito e tres quartos.

P. Que se entende por numero concreto?

R. Aquelle que se applica a alguma espécie determinada de unidade, bem como dous livros, cinco homens, nove horas. (COLLAÇO, 1888, p. 1-3).

A obra de Collaço estrutura-se como perguntas e repostas13, método comum à época, nos livros didáticos. O conceito de número é abordado nas primeiras páginas da obra, parte de um exemplo em contexto brasileiro, para na sequência, esboçar a definição pautada em grandezas e unidades, com explicação das diferentes grandezas e consequentemente a distinção entre número concreto e abstrato. Logo a seguir, apresenta os algarismos e os números até os bilhões. Há exemplos de escrita e pronuncia de números na representação arábica e romana, sem exercícios propostos aos alunos.

As operações constituem o próximo tópico do livro, designado por “Do cálculo dos números inteiros” seguindo a ordem adição, subtração, multiplicação e divisão. Ressalta-se que os exemplos tratados nas operações não diferenciam os números em concretos e abstratos, as operações são desenvolvidas somente com números abstratos, sem situações contextuais. A partir de um exemplo, segue-se a explicação do procedimento para efetuar a operação, como se pode observar na figura 1:

Fonte: Collaço, 1888, p. 18.

Figura 1: Explicação de como efetuar a soma 

Os problemas iniciam somente depois da finalização das operações, em seção separada, como aplicação das operações, em que os números concretos são retomados, como a figura 2:

Fonte: Collaço, 1888, p. 42.

Figura 2: Problemas 

Podem-se classificar as abordagens consideradas, como características de um método tradicional de ensino: parte da definição de número, esboça poucos exemplos com números elevados, operações com números abstratos, seguidas de regras e sem exercícios.

Antonio Trajano14 - 1895

O livro de Trajano inicia com os algarismos arábicos e romanos como ponto de partida e logo a seguir apresenta uma Nota - “Os discípulos tendo lido os seguintes números, o professor dictará estes e outros, não excedendo a 100, para eles escreverem na pedra”. Trata-se dos primeiros exercícios15 - a escrita de números ditados pelo professor para, então, trazer a definição:

Antes de entrarmos no estudo da numeração, precisamos primeiro saber o que é quantidade, unidade e numero.

5. Quantidade é uma porção de alguma cousa que se pode pesar, medir ou contar. Uma quantidade de café póde ser pesada; uma quantidade de vinho póde ser medida com o litro; uma quantidade de panno póde ser medida com o metrô, e uma quantidade de laranjas póde ser contada.

6. Unidade significa uma só cousa, por onde se começa a contar as quantidades. Assim, 25 livros, a unidade é um livro; 18 vintens, a unidade é um vintém; 8 meninos, a unidade é um menino.

7. Numero é o que exprime quantas unidades contem uma quantidade. Em 38 barricas de farinha, a quantidade é toda aquella farinha; a unidade é barrica, e o numero das unidades ou barricas é 38

8. Os numeros se dividem em pares e impares, abstractos e concretos, primos e multiplos. [...] Numeros abstractos são os que não estão unidos a nome algum, como: 5, 20, 35, etc. Numeros concretos são os que estão unidos ao nome dos objetos para exprimir o seu numero, como: 5 livros, 20 pennas, 35 casas, etc. (TRAJANO, 1895, p. 6-7).

A definição de número é pautada em unidades e quantidades, explícita logo nas primeiras páginas, com destaque para a distinção entre números concretos e abstratos. Explica-se a organização das unidades, classes e ordens dos números e na página 8, o exemplo dado é 27938456875214, finalizando com a exposição da regra de como se deve ler um número. Uma segunda nota indica exercício similar ao primeiro, em que o professor dita os números, para o registro na pedra, porém, agora com valores que iniciam em 109 e chegam a 3875873893. Antes das operações, há uma seção de numeração das quantias em que se apresenta a moeda da época: real, mil réis e cento de réis, incluindo mais um exercício de leitura de quantias. Não há nesta primeira parte o uso de figuras ou ilustrações que exemplifiquem os números concretos, nem mesmo exercícios propostos aos alunos que façam referência a eles.

O chamado ensino intuitivo da figura por Trajano é apresentado na página onze, no item SOMMAR, em que há uma ilustração com imagem de uma igreja, árvores, pessoas, cavalos. Junto à ilustração, uma lista de perguntas é feita sobre quantidades de casas, cavalos, árvores, assim como de soma de objetos. Vale considerar que o livro de Collaço (1888) não apresenta nenhuma figura. Oliveira (2017) compara e analisa a ilustração de Trajano com as do manual de Peck (1878), dos EUA e destaca, entre outros aspectos, que o autor americano usa a imagem para ensinar o conceito de número e Trajano para ensinar a operação de adição. A organização das operações fundamentais de dispor ilustrações e problemas antes das definições é um recurso metodológico, que propagava um ensino intuitivo, como se observa na figura 3:

Fonte: Trajano, 1895, p. 12.

Figura 3: Problemas com números concretos 

Constata-se a diferenciação de postura de Trajano, como um processo de apropriação. Para ensinar o conceito de número, o autor brasileiro16 não mobiliza os recursos metodológicos intuitivos de Peck, mas para o ensino de adição, segue de perto sua proposta. Valente (2015), ao analisar os métodos de ensino para a aritmética nos livros didáticos, enfatiza que os autores não tomam uma mesma orientação como regra para toda a sua obra, o que se observa neste caso.

De todo modo, o número de exercícios, aumenta significativamente de quantidade, na lição de soma exposta por Trajano, e neles, são trabalhados os números concretos que reforçam a necessidade de mesma unidade, ou unidades semelhantes, para ser possível realizar a soma das quantidades. Fica claro, que o processo deve ser iniciado com os números concretos e de maneira explícita, como se observa na figura 4:

Fonte: Trajano, 1895, p. 13.

Figura 4: Exercícios propostos 

Destaca-se, ainda, como relevante, a presença da taboada de somar até 10 (com números abstratos), na página anterior aos exercícios propostos com números concretos. O livro inova, na proposta de exercícios de soma, de números concretos em colunas, antes de somar números abstratos, mesmo tendo trabalhado em páginas anteriores números até os trilhões. Os problemas propostos aos alunos são reservados para a lição 8, depois da exposição de regras e provas. Novamente, destaca-se a convivência de exercícios com números concretos e a presença de regras cujo objetivo é sistematizar procedimentos.

O próximo tópico, DIMINUIR, segue a mesma estrutura, a partir do Ensino intuitivo da figura com perguntas, porém, os exercícios propostos já não trazem os números concretos empregados na adição, trabalha-se somente com os números abstratos. O mesmo padrão é adotado para a multiplicação e divisão.

Pode-se dizer que, Trajano toma a definição de números concretos para o ensino de soma, ao elaborar exercícios em que o concreto é explícito, em outras palavras, o autor traz para o nível didático, a definição inicial, mobiliza o número concreto como ferramenta para ensinar a adição. Observa-se ainda, que outros conceitos constituintes da definição de números concretos não são mobilizados, como a diferença entre grandezas. Aliás, a grandeza não está presente, de forma explícita, no rol dos programas do 1o ano escolar, do estado de São Paulo entre 1894 a 1949/5017.

George Augusto Buchler18 - 1943

A obra de Buchler, não inicia pela definição de número e nem a apresenta ao longo de todo primeiro volume. Esta é uma primeira ruptura, comparativamente aos livros anteriores analisados. A imagem de uma mesa posta para o café é o ponto de partida do ensino, a seção não é designada por números, operações ou outro termo matemático, intitula-se “O Café” e aborda os diferentes objetos da imagem e o contexto no qual ela é inserida, uma família. No índice do final do livro, o autor descrimina para cada lição uma súmula explicativa, na lição I - O café, que indica atribuir um objeto (cadeiras da mesa, pratos, chícaras etc) a uma pessoa (mãe, pai e os filhos), conforme a figura 5:

Fonte: Buchler, 1943, p. 1.

Figura 5: A primeira lição - O café 

A contagem inicia na lição II - A compra dos pães, que trabalha a numeração falada e os números de 1 a 6. A partir da lição III - A economia, é tratada a numeração escrita, os algarismos de 1 e 2 e os sinais de + e - .

As figuras seguem distribuídas pelas páginas do livro e como analisa Dynnikov (2016), as imagens não servem somente para ilustrar, elas são essenciais como promotoras de um contato visual do ambiente infantil. Sem fazer referência, Buchler emprega, nos diversos exercícios, números associados aos elementos de uma figura e em outros números abstratos, mas todos eles abaixo de dez, até a página quarenta e dois, conforme os exemplos:

Fonte: Buchler, 1943, p. 14-15.

Figura 6: Exemplos de exercícios da Lição VII - A bola. 

As atividades propostas com números menores que 10 são expandidas em comparação aos demais livros, a proposta trabalha soma e subtração conjuntamente, mas com números até 10, sem formalizar ou definir nenhum desses conceitos. Somente, a partir da página quarenta e três, apresenta-se a dezena, sempre atrelada a um contexto, no caso, a lição XV - O pacote de fósforos. A multiplicação é introduzida na lição XVIII - As roseiras e a divisão na lição XXII - Da subtração para a divisão, que se distingue das demais lições, por não utilizar uma situação contextual.

Ao identificar a ruptura da obra de Buchler, em não apresentar uma definição matemática aos saberes a ensinar em questão, pode-se identificar um rompimento com uma marca do campo disciplinar da Matemática, que tem como princípio o encadeamento lógico dos saberes e suas respectivas definições e propriedades. Outra distinção é o trabalho prolongado com números de 1 a 10, praticamente 36% do primeiro volume, antes de iniciar o estudo com dezenas, além das operações, adição e subtração serem introduzidas simultaneamente, o que não é observado nos livros anteriores.

Observa-se, ainda, a importância e relevância de cada lição ser apresentada em um contexto, no qual o número e as operações são trabalhados, como uma proposta que busca integrar o interesse da criança e os saberes a ensinar, no caso, o número. Por exemplo, na lição XII - Os dentes há um texto explicando quantos dentes de leite, espera-se que uma criança tenha, e que eles são substituídos, etc., lições que podem ser lidas como uma apropriação do denominado método Decroly (uma das vertenetes da vaga escolanovista), que tem como princípio, associar o programa escolar com centro de interesses das crianças.

Foster E. Grossnickle e Leo J. Brueckner19 - 1965

O livro de Grossnickle e Brueckner que foi traduzido pelas protagonistas do ensino da Aritmética do PABAEE - Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino Elementar e analisado na tese de doutorado de Rosália Carvalho (2017) apresenta orientações aos professores para o ensino da aritmética. De acordo com Carvalho (2017), os autores defendem um programa sistemático de aritmética que enfatize o sentido matemático e a aplicação social do número e apontam uma sequencia de tópicos, em que o primeiro é a Contagem até 100, dividido em seis estágios:

  1. Contagem de rotina. É a mera repetição dos números na ordem sequencial, sem significação.

  2. Enumeração. Ou contagem racional, significa contar para achar o número de objetos em um grupo.

  3. Identificação. A identificação responde à questão tal como: “Em que grupo há quatro bolas? A criança que responde a esta questão corretamente pode identificar o número ou por contagem ou por mero reconhecimento.

  4. Reprodução. É a resposta correta a afirmações tal como “Destas bolas, dê-me 4”.

  5. Comparação. A comparação é requerida para responder à questão tal como: “Quantas bolas pretas há mais que brancas? ”

  6. Agrupamento. Verifica-se se a criança possui habilidade em agrupar quando identifica, de relance, o número em um grupo ou parte de um grupo sem contar os objetos (GROSSNICKLE, BRUECKNER, 1965, p. 138-140).

Depois de explicar os estágios que a criança deve seguir, os autores apresentam diversos testes, que podem ser facilmente utilizados pelo professor, para determinar o nível de maturidade da criança na Contagem. Novamente, identifca-se uma ruptura com o enfoque acentuado dado aos aspectos sociais do livro de Buckler. A presença dos testes para avaliar os conhecimentos da criança é também uma marca da vaga designada por Pedagogia Científica20. Como exemplo, cita-se teste sobre contagem sugerido no livro:

3. Um outro teste individual:

  • a) Pedir à criança que conte de um em um até onde ela possa.

  • b) Apanhe 10 botões, blocos ou moedas de brinquedo. Tome 5. Ponha-os inteiramente compacto. Pedir à criança que os conte. Observe suas técnicas e quaisquer erros ou omissões em contagem. Ela pode contar de um em um. Por outro lado, ela pode reconhecer o número no grupo sem contar. Conserve um registro das respostas da criança. Inicie uma pasta para aluno.

  • c) Proceda de maneira semelhante com 7, 9 e 10 blocos.

  • d) Faça uma avaliação de quando a criança é capaz de contar bem. Esta informação é de valor para o planejamento do que ensinar sobre contagem. Conserve um registro de suas observações. (GROSSNICKLE; BRUECKNER, 1965, p. 144).

A apresentação do número, novamente não se dá por uma definição matemática única, pode-se observar que o conceito de número é classificado de acordo com suas propriedades - como repetição, enumeração, identificação, reprodução, comparação e agrupamento. O saber a ensinar, número, ganha outra abordagem, certamente em decorrência dos estudos e pesquisas sobre a aprendizagem da criança à época, em particular, dos testes, os quais se configuram como ferramentas de alicerce do ensino na Pedagogia Científica, em outras palavras, como saberes para ensinar, que subsidiam o trabalho pedagógico a ser desenvolvido pelo professor. Destaca-se ainda, no livro em análise, a ênfase na diversidade de atividades e de materiais didáticos que possam contribuir para o ensino de números. Os autores afirmam que: “um programa sistemático de Aritmética nas primeiras séries deve dar ênfase a ambos: o sentido matemático e à aplicação social do número” e que usar situações do interesse da criança em muitas das atividades na sala de aula, conforme se evidencia na figura 7:

Fonte: Grossnickle e Brueckner, 1965, p. 139.

Figura 7: Foto de crianças trabalhando em atividades 

Será possível identificar e conceituar a trajetória do saber a ensinar - número - num primeiro momento, definido como concreto ou abstrato (Collaço e Trajano), depois sem necessidade de definições, ensinado somente por exercícios (Buchler), num novo momento ensinado a partir de suas propriedades (Grossnickle, Brueckner)? Tais modificações podem e devem ser interpretadas como alterações decorrentes dos saberes para ensinar número?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A opção por escolher um saber escolar - número - para ser examinado em excertos de manuais escolares de um longo período, permitiu problematizar o que a História da Educação Matemática pode trazer de contribuições para o ensino da matemática atual, de modo a evidenciar o papel ativo e dinâmico da escola e as diferentes propostas para o que é considerado conceito elementar na matemática - o número. A análise dos quatro livros, revela a dualidade entre os saberes a ensinar, referenciados pelo campo disciplinar da matemática e os saberes para ensinar, referenciados pela prática profissional dos professores e suas relações com as vagas pedagógicas.

Apesar da definição matemática de número, presente nos livros de Collaço e Trajano analisados (número concreto e número abstrato), ser praticamente a mesma, as mobilizações dos números concretos na proposta de ensino de número fica evidenciada no livro de Trajano, que indica mudança no saber para ensinar número. Trajano incorpora o número concreto, antes do número abstrato nas operações, com destaque para os primeiros cálculos da operação de adição. O livro de Buckler, apesar de não fazer referência a definições, trabalha a noção de número concreto, nas inúmeras imagens e representações propostas no estudo dos números de 1 a 10.

Tais transformações, da inserção dos números concretos como ponto de partida para o ensino da matemática, a identificação do número associado à quantidade e grandezas, pode ser lida como uma prática incorporada à cultura escolar21 dos dias de hoje, uma incorporação de novos saberes, para ensinar números, pela escola primária, validada pela prática docente.

O livro de Buckler ainda faz aparecer a importância de, efetivamente, inserir o ensino dos primeiros conceitos, como o caso do número, de maneira articulada com a realidade social da criança, ao estruturar o livro e os respectivos capítulos com temas que discutem aspectos cotidianos dos alunos e de outras matérias escolares. Esta é mais uma prática enraizada na cultura escolar atual, ou seja, é possível identificar heranças da proposta escolanovista, como um saber para ensinar número inserido à realidade do aluno.

Finalmente, o útlimo livro examinado, destaca a relevância dos testes pedagógicos para a condução do ensino de número começando pela contagem. A prática de aplicar teste aos alunos, de modo a organizar o ensino de matemática, diferentemente de outras práticas inovadoras, não se incorporou, efetivamente, como ferramentas para a prática docente no ensino de número. Tais exemplos constituem experiências, que após um tempo, a escola exclui, não ganha legitimidade e reconhecimento necessários para se tornar um saber para ensinar.

Os quase oitenta anos que separam a publicação do primeiro ao quarto manual examinado nos permitem evidenciar as múltiplas e complexas dinâmicas da matemática escolar, nos convidando a repensar representações construídas socialmente, de que na escola nada muda, de que “o ensino de número na escola primária é sempre o mesmo, tudo igual”. De outra parte, possibilita ainda, abrir a nossa caixa-preta sobre os saberes matemáticos e mobilizar os saberes a ensinar e os saberes para ensinar como saberes que ao longo do tempo vão se lapidando, se institucionalizando na formação de professores como saberes para ensinar matemática.

REFERÊNCIAS

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2GHEMAT - Grupo de Pesquisa em História da Educação Matemática no Brasil - http://www.ghemat.com.br

3O XV Seminário Temático: Cadernos escolares de alunos e professores e a história da educação matemática, 1890-1990, ocorreu de 2017, na Universidade Federal de Pelotas, como momento de encontro de vários grupos de pesquisa de cursos de pós-graduação, sob a organização do GHEMAT. Maiores detalhes podem ser encontrados no site do evento: http://xvseminariotematico.paginas.ufsc.br/

4A tradução de artigos suíços e publicação do livro Saberes em (trans)formação: tema central da formação de professores, organizado por Rita Hofstetter e Wagner Valente em meados de 2017 reforça a inserção da nova base teórica nos estudos do grupo.

5De acordo com Choppin (2009) “hoje, ainda, os termos aos quais recorrem as diversas línguas para designar o conceito de livro escolar são múltiplos, e sua acepção não é precisa, nem estável” (p.19). No presente estudo, denomina-se por manuais escolares todos os livros que trazem orientações didáticas aos professores ou monitores (no caso do período do ensino mútuo), atividades propostas para serem desenvolvidas pelos alunos, e que indiquem ou façam referência ao seu uso nas escolas primárias.

6Designa-se por vaga pedagógica, os movimentos educacionais construídos e periodizados por historiadores da educação, como Pedagogia Moderna (CARVALHO, 2000), Método do ensino intuitivo ou Lições de coisas (VALDEMARIN, 2004), Escola Nova (VALDEMARIN, 2010), Pedagogia Científica (MONARCHA, 2009).

7O livro “Na vida dez, na escola zero” de Terezinha Carraher, David Carraher e Analúcia Schliemann de 1988 é exemplo emblemático.

8Saberes objetivados remete a realidades com o estatuto de representações [...] dando lugar a enunciados proposicionais e sendo objeto de uma valorização social sancionada por uma atividade de transmissão-comunicação. Elas, essas representações, têm consequentemente uma existência distinta daqueles que as enunciam ou daqueles que delas se apropriam. São conserváveis, acumuláveis, apropriáveis (BARBIER, 1996, p. 9 apud HOFSTETTER, SCHNEUWLY, 2017, p. 131).

9Muitas são as pesquisas que tratam da aritmética primária e abordam o ensino de número. Uma busca com a palavra “número” no repositório da UFSC, em 13/09/2018, indicou trinta e quatro dissertações e teses. A proposta não foi realizar um inventário de todos os estudos, mas considerar as teses de doutorado mais próximas da temática, em especial uma das primeiras produções, a de Costa (2010) e as teses defendidas em 2017.

10Na sua tese, Oliveira considerou a seguinte distinção entre conhecimento e saber, a partir dos escritos de Jacques Legroux (1981): “O conhecimento se constrói e se confunde com a identidade da pessoa; ele não é transmissível, ele é da ordem do ser. O saber é o sistema interfacial entre a informação e o conhecimento; ele é constituído por informações postas em relação entre si, estas também estão em relação com a pessoa” (LEGROUX, 1981 apud OLIVEIRA, 2017, p. 21).

11 Valente (2014) defende que o processo de produção de conhecimento científico precisa ultrapassar o real empírico para a construção de objetos teóricos e para tanto o investimento deve ser feito na elaboração de problemáticas de pesquisas. Talvez uma problemática pertinente ao grupo seja a de investigar os saberes que participam da produção da aritmética intuitiva no curso primário.

12O manual chama-se “Aritmética pratica para uso das Escolas Primarias de ambos os sexos” e é publicado em 1888. O livro é apresentado e analisado em Costa (2010) e em Oliveira (2017) e encontra-se disponível no repositório da UFSC (https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/1769).

13O método de ensino de perguntas e respostas conduz o compêndio de Collaço na exposição dos saberes aritméticos e é designado como método erotemático ou na forma catequética (OLIVEIRA, 2017).

14A obra analisada é Arithmetica Primaria, na sua 12a edição, 1895. O livro é apresentado e analisado em Costa (2010), Pinheiro (2013) e em Oliveira (2017) e encontra-se disponível no repositório da UFSC (https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/1769).

15 Oliveira (2017) considera tais exercícios como pré-requisitos, a escrita antes da oralidade, e busca desenvolver no aluno um saber-fazer mental.

16Trajano nasceu em Portugal em 1843 e aos 14 anos, ele chegou no Brasil e se tornou brasileiro por naturalidade (OLIVEIRA, 2016).

17Um estudo sobre as grandezas lidas na matéria Aritmética nos programas de SP de 1890 a 1950 indica que “Vale considerar que, apesar do termo grandezas não ser referenciado em nenhum desses programas para o 1º ano escolar, percebe-se no decorrer do período, que implicitamente a noção de grandeza foi ganhando visibilidade mais acentuada, com evidência nos programas de 1925 e o de 1949/50 em que se propunha ensinar por meio de “grupos de objetos, os números 1 a 10. Exercícios concretos, cálculos com auxílio de estampas e problemas orais com esses números abrangendo as quatro operações” em 1925 e na designação de “ideia de quantidade, noção de unidade e de coleção” em 1949/50” (TRINDADE, LEME DA SILVA, 2018)

18Uma apresentação detalhada da obra Aritmética Elementar do autor pode ser lida em DYNNIKOV (2016) que analisa as representações de aritmética no livro de Georg Buchler. O livro também é analisado por Costa (2010) e Oliveira (2017) e encontra-se disponível no repositório da UFSC (https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/1769).

19A obra O ensino da aritmética pela compreensão é uma tradução de Olga Barroca, Helena Lopes, Rizza de Araújo Pôrto, Evangelista Meireles de Miranda e Regina Almeida. O manual é apresentado e analisado por Carvalho (2017) e encontra-se disponível no repositório da UFSC (https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/1769).

20Sobre o ensino de matemática na Pedagogia Científica, ver a tese de Pinheiro (2017) intitulada: A aritmética sob medida: a matemática em tempos da pedagogia científica.

21Emprega-se o conceito de cultura escolar em acordo com Julia (2001) que a definie como “um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos (p. 10).

Recebido: 27 de Setembro de 2018; Aceito: 18 de Fevereiro de 2019

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