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Revista Exitus

versión On-line ISSN 2237-9460

Rev. Exitus vol.9 no.4 Santarém oct./dic 2019  Epub 15-Mayo-2020

https://doi.org/10.24065/2237-9460.2019v9n4id1033 

Artigos

“LEMBRO-ME DE QUERER ANDAR DURINHO, COMO SE DIZ QUE HOMEM DEVE SER”: a construção do corpo gay na escola

“I REMEMBER TO WANT TO BE HARD, HOW IT IS SAID A MAN SHOULD BE”: gay body building in school

"RECUERDO QUERER SER DURO COMO SE DICE QUE EL HOMBRE DEBE SER": construyendo el cuerpo gay en la escuela

Pedro Paulo Souza Rios1 
http://orcid.org/0000-0001-7981-9091

Alfrancio Ferreira Dias2 
http://orcid.org/0000-0002-5562-0085

José Paulo Gomes Brazão3 
http://orcid.org/0000-0003-3575-4366

1Doutor em Educação pela Universidade Federal de Sergipe. Mestrado em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos - UNEB; Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação, Gênero e Sexualidades do Sertão - GENESES-Sertão; Professor da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus VII. E-mail: peudesouza@yahoo.com.br

2Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe. Pós-doutor pela University of Warwick, Reino Unido. Professor Adjunto III do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: diasalfrancio@gmail.com

3Professor Auxiliar da Universidade da Madeira, na Faculdade de Ciências Sociais. Concluiu o mestrado em Psicologia Educacional em 2000, no ISPA e o doutoramento em Educação - Inovação Pedagógica em 2008, na Universidade da Madeira. Foi diretor do curso de mestrado em Educação Pré-Escolar e Ensino do 1º Ciclo do EB, entre 2010 e 2018. É Membro do Centro de Investigação em Educação CIE-UMa. Publica na área da Inovação Pedagógica. E-mail: jbrazao@staff.uma.pt


RESUMO

Este estudo tem como objetivo refletir acerca da construção de masculinidades/homossexualidades nas trajetórias de professores gays, egressos dos cursos de licenciatura em Pedagogia, Matemática e Biologia do Campus VII, da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, tendo em vista os processos de construção de gênero e sexualidade, em suas trajetórias de vida, formação acadêmica e, exercício profissional. Desenvolvemos uma pesquisa qualitativa com descrição e interpertação das narrativas (auto)biográficas, produzidas por seis professores gays. Dessas narrativas emergiram as produções educativas heterossexistas e normatizadoras que visam transformar crianças em adultos. O poder disciplinar sobre os corpos no contexto escolar é disseminado por práticas educativas instituídas que hierarquizam, regulamentam e padronizam espaços, atividades pedagógicas, cores, modos de se comportar, brinquedos e, brincadeiras, como sendo adversativas, ou para meninos ou para meninas. Contudo, os corpos gays impõem-se ao problematizarem questões não passíveis de discussão. Os sujeitos desenvolveram estratégias de enfrentamento das normas heterossexistas. Isso resultou numa nova concepção do que é ser estudante, assumindo uma postura queer. Ser queer funcionou como instrumento pedagógico, para permanecer na escola, enquanto um direito social para resolver os atos preconceituosos e excludentes.

Palavras-chave: Narrativas (Auto)biográficas; Gênero; Homossexualidades; Performatividade; Professores

ABSTRACT

This study aims to reflect on the construction of masculinities / homosexualities in the trajectories of gay teachers, graduated in Pedagogy, Mathematics and Biology courses at Campus VII, of the State University of Bahia - UNEB, in view of the construction processes of gender and sexuality, in their life trajectories, academic education and professional practice. We developed a qualitative research with description and interpretation of (auto) biographical narratives, produced by six gay teachers. From these narratives emerged the heterosexist and normative educational productions that aimed to transform children into adults. The disciplinary power over bodies in the school context is disseminated by instituted educational practices that hierarchize, regulate and standardize spaces, pedagogical activities, colors, ways of behaving, toys and games, as being adversative, or for boys or for girls. However, gay bodies impose themselves by problematizing issues that cannot be discussed. The subjects developed strategies to cope with heterosexist norms. This has resulted in a new conception of what it is to be a student, taking a queer posture. Being queer functioned as a pedagogical tool to stay in school, as a social right to resolve prejudiced and exclusionary acts.

Keywords: (Auto) biographical narratives; Genre; Homosexualities; Performativity; Teachers

RESUMEN

Este estudio tiene como objetivo reflexionar sobre la construcción de masculinidades / homosexualidades en las trayectorias de los maestros homosexuales, graduados de los cursos de pregrado de Pedagogía, Matemáticas y Biología en el Campus VII, Universidad de Bahía - UNEB, en vista de los procesos. de construcción de género y sexualidad, en sus trayectorias de vida, formación académica y práctica profesional. Desarrollamos una investigación cualitativa con descripción e interpretación de narrativas (auto) biográficas, producidas por seis maestros homosexuales. De estas narraciones surgieron las producciones educativas normativas y heterosexuales que tienen como objetivo transformar a los niños en adultos. El poder disciplinario sobre los cuerpos en el contexto escolar se difunde a través de prácticas educativas instituidas que jerarquizan, regulan y estandarizan espacios, actividades pedagógicas, colores, formas de comportamiento, juguetes y juegos, como adversos, ya sea para niños o niñas. Sin embargo, los cuerpos homosexuales se imponen problematizando temas que no pueden ser discutidos. Los sujetos desarrollaron estrategias para hacer frente a las normas heterosexistas. Esto ha resultado en una nueva concepción de lo que es ser estudiante, adoptando una postura Queer. Ser queer funcionó como una herramienta pedagógica para permanecer en la escuela, como un derecho social para resolver actos prejuiciosos y excluyentes.

Palabras clave: (Auto) narrativas biográficas; Género; Homosexualidades; Performatividad; Profesores

INTRODUÇÃO

Discorrer a respeito das relações estabelecidas entre escola e diversidade sexual e de gênero está longe de ser um assunto de fácil compreensão ou que concerne a uma única dimensão do fazer pedagógico ou das relações humanas, uma vez que o conflito é algo inerente à gênese dessa relação. Para estudantes e/ou profissionais gays, a escola se apresenta num misto entre o possível espaço de construção da liberdade sexual ao tempo em que também se coloca enquanto espaço que fabrica e dissemina preconceitos.

O arcabouço organizacional da escola, a estrutura curricular, as diretrizes, legislações, dentre outros fatores, estão necessariamente implicados com as estruturas de poder e a maneira como esse se reverbera nos processos pedagógicos e nos corpos, no ambiente escolar, nos fazem refletir que a liberdade é um direito cerceado.

Historicamente a sexualidade foi entendida como um dispositivo, sobre a qual incidem distintas estratégias de poder-saber. Contudo, mesmo na contemporaneidade, é perceptível a utilização de tal dispositivo para a produção e sistematização de pesquisas e saberes que tenham como base a análise do corpo humana, com a finalidade de produzir verdades sobre homens e mulheres. De acordo com Foucault (2007) o poder se constitui a partir de relações, estando presente em todas as organizações sociais. Assim, ao compreendermos que o sexo existe nas relações entre pessoas, ele ocorre, necessariamente, por meio de relações de poder.

Ao longo da história, pessoas e grupos passaram a ser estigmatizadas. O estigma suscita reações de discriminação, que vai desde o repúdio até a aversão. De acordo com Goffman (2012), pessoas estigmatizadas são aquelas que são banidas, ridicularizadas, excluídas e marginalizadas.

O estigma é, portanto, de grande relevância na maneira como homossexuais se percebem e se concebem socialmente. A sua exposição ou ocultamento do estigma varia de acordo com o grau de aceitação do homossexual nos espaços hostis, ou não, a este estigma. Assim, o estigma que circunda a homossexualidade atinge tanto a formação como a manifestação da subjetividade homossexual, sendo percebido de maneira distinta nos diferentes ciclos da vida daquelxs que são estigmatizados.

Nesse sentido, o corpo estigmatizado se aproxima da ideia de corpo abjeto, por serem conceitos que constituem os enunciados que estabelecem os sentidos produzidos pela matriz heterossexual acerca das travestis. De acordo com Butler (2002), o abjeto caracteriza aquelas zonas inóspitas e inabitáveis da vida social, onde se concentram aquelxs que não gozam do status de sujeito, com a finalidade de habitar sob o signo do inabitável, se torna imprescindível para que a autoridade do sujeito seja circunscrita.

Gays, lésbicas, transexuais, travestis se constituíram enquanto seres estranhos. Corpo abjeto e estigmatizado ao transgredir as normas de gênero pautadas na heteronormatividade compulsória (BUTLER, 2002), que busca controlar todos os corpos, adequando-os exclusivamente a um determinado padrão, considerado matriz normativa que pressupõe que todas as pessoas são sempre heterossexuais.

A saber, transcorrer sobre homossexualidades e a construção de masculinidades a partir de práticas pedagógica, significa discorrer sobre uma espécie de “fazer pedagógico”, pautado meramente na perspectiva heteronormativa, que visa adequar meninxs, que de alguma maneira, desviam das normas estabelecidas, por serem tomadas como natural.

Dessa forma, se constituiu enquanto objetivo desse estudo refletir a respeito da construção de masculinidades/homossexualidades nas trajetórias de seis professores gays egressos dos cursos de licenciatura em Pedagogia, Matemática e Biologia do Campus VII, da Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Esse estudo se configura enquanto pesquisa qualitativa e como método de pesquisa, optei pelas narrativas (auto)biográficas, por entender que as mesmas valorizam e exploram as dimensões pessoais dos sujeitos, seus afetos, sentimentos e trajetórias de vida, além de levarem à percepção da complexidade das interpretações que os sujeitos pesquisados fazem de suas experiências e ações, sucessos e fracassos, e dos problemas que enfrentam.

A ABORDAGEM METODOLÓGICA (AUTO)BIOGRÁFICA

Compreendemos que a pesquisa de abordagem qualitativa é a que melhor atende aos objetivos propostos neste estudo. A pesquisa transitará entre os processos de estranhamento e subjetivação de gênero e sexualidade, a partir das narrativas (auto)biográficas das trajetórias de formação de professores gays, desenvolvendo-se em movimentos entrelaçados, na perspectiva das teorias pós-críticas, dos estudos queer e do método (auto)biográfico.

As teorias pós-críticas são as correntes identificadas com o pós-modernismo e o pós-estruturalismo e que, primam por uma construção epistemológica distinta das perspectivas críticas, consolidando-se a partir da superação da concepção curricular crítica (SILVA, 2011; PARAÍSO, 2015). Enfatizam elementos vinculados às questões da cultura, relações de gênero, etnia, diferença e linguagem. Trata-se, portanto, de uma diversidade de pressupostos conceituais com o denominador comum da valorização da subjetividade, das relações sociais e da negação das metanarrativas.

Nesse estudo, a teoria queer articula-se à educação e às narrativas (auto)biográficas, para estudar a trajetória de vida e profissional de professores gays, atribuindo forma e sentido a questões que são particulares e comuns a eles, ao mesmo tempo em que convergem em outras vozes. Ao reconstituir aspectos da trajetória desses professores, ou “ao contar uma história, o narrador está se construindo e construindo o mundo à sua volta” (TILIO, 2003, p. 91).

As narrativas construídas através das trajetórias de vida estão presentes em todas as experiências humanas. Nas últimas décadas, teóricxs1 de diferentes áreas do conhecimento têm se debruçado sobre memórias, experiências, narrativas e fatos para construir os sentidos da vida, tanto na esfera individual quanto coletiva de um determinado período e que, de alguma forma, confrontam e aproximam situações que são comuns a diferentes sociedades, contribuindo para que possamos aprender a lidar com essas narrativas.

Ao reconstituir aspectos da trajetória desses professores, ou ao contar uma história, o narrador está se construindo e construindo o mundo à sua volta (SOUZA, 2006). Dessa maneira, a partir da análise das narrativas de formação desses professores, acorre um processo de autorreflexão sobre nossa formação e história de vida.

Contudo, suas revelações e seus sigilos, constituem-se em um material rico para a percepção dos conflitos a que esteve submetido aquelx que narra enquanto viveu e se formou ao longo da vida (JOSSO, 2010). Por meio das narrativas (auto)biográficas, podemos dizer que aquelx que narra produz a si mesmx, uma vez que o ato de narrar favorece a reflexão sobre os momentos vivenciados e suas próprias trajetórias, criando um ambiente de mudança através da própria reflexão. De acordo com Souza (2006, p. 95), o método (auto)biográfico contribui como parte das “experiências formadoras, as quais são perspectivas a partir daquilo que cada um viveu e vive, das simbolizações e subjetivações construídas ao longo da vida”.

Dessa maneira, entendemos que as narrativas (auto)biográficas se constituem em importantes instrumentos de investigação acerca dos processos de formação de professorxs, uma vez que avultam questões relacionadas às subjetividades dos sujeitos, suas trajetórias de formação e experiências de vida, elementos que têm suscitado, cada vez mais, a averiguação e a anuência de pesquisadorxs a estes métodos.

Quanto aos instrumentos metodológicos para a coleta de dados, optamos pela entrevista narrativa, que se configura enquanto atividade formadora e processo de formação e de conhecimento (SOUZA, 2006). Nesse sentido, a técnica de narrativas não só nos permite conhecer histórias individuais, mas nos possibilita conhecer a história de grupos e comunidades, uma vez que estrutura e ação se fazem presentes no momento em que a trajetória individual é reconstruída através da narração.

As entrevistas foram gravadas entre os dias 05 de agosto de 2018 e 11 de janeiro de 2019, em horários e lugares predefinidos, sempre respeitando a disponibilidade de tempo dos entrevistados. Antes do início da gravação, era feita uma breve explicação em torno do objeto deste estudo, sanando possíveis dúvidas dos entrevistados e, deixando-os inteirados dos assuntos a serem tratados durante a entrevista. Em seguida, explicávamos o Termo de Livre Esclarecimento - TLE, solicitando a sua leitura e a assinatura do mesmo. Posteriormente, era elucidada a dinâmica da entrevista narrativa. Após esses esclarecimentos, a entrevista era iniciada.

Foram gravadas seis entrevistas, com diferentes colaboradores, com duração entre trinta e cinco minutos e uma hora cada uma delas. A gravação das narrativas era quase sempre envolta por distintos sentimentos. Cada história que se desvelava, no exato momento em que era pronunciado “estamos gravando”, chegava até nós e era minuciosamente captada pelo gravador. Histórias únicas, imbuídas de vivências, marcadas por estranhamentos, superação, alegrias, tristezas, aprendizados, ensinamentos e, ao tempo que eram contadas, iam sendo re-visitadas e, por conseguinte, re-inventadas.

Considerando a importância das expressões gestuais durante a gravação das entrevistas, fundamental no momento da transcrição e imprescindíveis para uma maior compreensão do conjunto das narrativas, foi relevante fazer um caderno de anotações, denominado de Narrativas Gestuais, no qual procuramos marcar o tempo exato em que gestos que compunham a narrativa eram expressados intencionalmente ou não. Tais anotações foram cuidadosamente consultadas no momento de transcrição das narrativas.

Narrar não é no fio da memória, mas as experiências vivenciadas por aquelx que narra. Narrar é a própria vida que vai sendo desvelada e re-tecida no tear cotidiano, é a experiência vivenciada sofrendo metamorfoses. De acordo com Benjamim (2009, p. 21), a narrativa é um ato de comprometimento individual e social daquelx que narra suas experiências e, assim sendo, toda narrativa está suscetível a ondulações, uma vez que ao narrar tais experiências a pessoa recorre “à máscara do adulto”, objetivando uma narrativa seletiva, de acordo com aquelx que escuta.

Por isso, faz-se necessário estar atento para que a narrativa corresponda à palavra e a palavra à experiência, uma vez que, ao contar o que foi vivenciado a outrem, esse processo deixa de ser algo de cunho individual e, portanto, da memória subjetiva, passando a ser de cunho social, compondo uma narrativa coletiva.

No que se refere aos personagens deste estudo, é pertinente ressaltar, em primeiro lugar, que prezamos por diferentes experiências no tocante ao campo de atuação profissional, dessa maneira temos professorxs que trabalham na Educação Básica e/ou Ensino Superior. Além disso, vale dizer que o contato inicial com estxs foi estabelecido inicialmente nas reuniões do Grupo de Estudos em Gênero e Sexualidades Sertanejas - GENESES-Sertaneja,2 mas durante o processo da pesquisa sentimos a necessidade de buscar outros personagens, considerando o fato de que a maioria dos participantes do GENESES-Sertaneja, no momento de definição dos personagens e da escuta, não estava em sala de aula, inviabilizando sua participação no estudo em curso, em face de seus objetivos.

Num primeiro momento, elencamos uma lista com seis possíveis personagens, chegando a mais de trinta possíveis narradores. Passamos então a entrar em contato, após termos definido os seguintes critérios: estar exercendo a docência e ter interesse em colaborar com o estudo em questão, uma vez que o “[...] narrador retira da experiência o que ele conta [...]” (BENJAMIN, 2009, p. 201), sendo, portanto, essas experiências, a base de todx narradxr. Assim, as experiências vivenciadas pelos professores, personagens desta investigação, vão se entrelaçar a diferentes momentos da vida pessoal e da formação profissional.

No que se refere ao direito ao anonimato dos personagens colaboradores da pesquisa, consideramos pertinentes preservá-lo, optando pela escolha de codinomes relacionados à mitologia africana, por entendermos que, historicamente, assim como gays, as divindades africanas têm sido classificas como estranhas. Os codinomes foram escolhidos durante o processo de digitação das narrativas, procurando elementos similares entre as trajetórias e a divindade africana. Assim, a presente narrativa foi construída por meio das tessituras de Logun Edé, Obá, Oxumaré, Oxóssi, Iansã e Ossayn. Consideramos pertinente ressaltar que todas essas entidades, no Candomblé, estão associadas às experiências da sexualidade por serem vistas enquanto homossexuais, transexuais ou bissexuais.

Logun Edé é artista e professor. Atua na Educação Básica em um município há 171 km de Senhor do Bonfim. Tem 30 anos, é licenciado em Pedagogia e está cursando mestrado profissional em Extensão Rural, “[...] além dessas informações burocráticas, me considero uma pessoa com os pés no mundo, com os pés no chão desse mundo, que busca a partir da arte ressignificar muitas coisas”. Além disso, Logun Edé, relatou ser gay e não recorda de ter tido outras experiências afetivas/sexuais que não fossem com homens, conforme sinaliza: “[...] não lembro ter sido outra coisa se não gay; no que se refere à sexualidade, sempre me reconheci gay”.

Ossayn tem 36 anos, é professor de Biologia da rede pública estadual e está fazendo mestrado em Botânica. É gay, feliz e “[...] realizado profissionalmente, muito realizado profissionalmente”. Conforme afirma, “não tenho como não me apresentar dizendo que sou gay, realizado e feliz. [...]. Então eu diria que é isso: um cara feliz, bom profissional e gay”. Ossayn mora há 45 km de Senhor do Bonfim e estuda na Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS.

Oxumaré, 45 anos, é licenciado em Ciências com Habilitação em Matemática e desde muito cedo sabia que seria professor, o que o motivou a investir na formação docente. Outra característica de Oxumaré é sua a experiência em gestão, sempre associada à docência, conforme nos narrou. Ele diz: “durante muito tempo fui diretor de escola, fui diretor da DIREC 283 e do NRE 28 durante dez anos e tudo isso atrelado à minha experiência com a docência, pois, mesmo estando na gestão, nunca deixei de dar aulas [...]”, atuando na Educação Básica e no Ensino Superior, como docente do curso de Licenciatura em Matemática.

Oxóssi tem 39 anos, licenciado em Ciências com Habilitação em Matemática, fez especialização e mestrado em Matemática. Professor há mais de vinte anos, atualmente trabalha com Educação Básica e Ensino Superior no Instituto Federal de Ciência e Tecnologia Baiano - IFBAIANO. Anteriormente, foi docente na rede pública municipal e estadual de ensino, na UNEB, além de ter sido professor da Educação Básica, na rede privada. Conforme nos narrou, seu nome é muito forte, sendo motivo de brincadeira entre xs amigxs, ao afirmarem “[...] que Oxóssi é nome de homem. Por isso, quando falam que meu nome é Oxóssi, todos pensam que é homem másculo e quando olham é um gay. [...]”.

Iansã tem 28 anos, é licenciado em Pedagogia. Está na docência há oito anos, onde atua como professor do Ensino Fundamental II em escolas públicas de Senhor do Bonfim. Antes de assumir a sala de aula, atuava como promotor cultural. Iansã nos contou: “antes eu passeava pela ideia de ser uma pessoa andrógena. Tinha época em que me vestia mais afeminada, já em outras épocas me recatava mais e me vestia mais masculino”. Acerca de sua identidade, ele continua dizendo: “também considerado importante dizer que sou uma pessoa gay, agora trans e negra. Penso que ser negra e trans são duas coisas que marcam bastante. Como diz o povo: ‘não bastou ser negro, tinha que ser viado’”.

Obá, 39 anos, é graduado em Pedagogia, especialista em Psicanálise e está na docência há mais de dez anos. Atualmente, trabalha com Educação Infantil. Obá também é ator e frequenta religião de matriz africana. Em relação a sua sexualidade, ele nos contou que, buscando negar sua homossexualidade, tentou viver como heterossexual, depois se reconheceu bissexual e agora se reconhece como gay.

Nosso intuito com essa apresentação não é fazer uma reflexão acerca daquilo que foi dito pelos personagens, mas antes, fazer com que eles já sejam, em alguma medida, conhecidos, antes dos entrecruzamentos que faremos de suas trajetórias de vida e formação, no percurso analítico deste trabalho. Embora reconheçamos que uma breve apresentação não abarca a complexidade de suas identidades, apresentá-los pelo prisma dos modos como se autorreconhecem e suas experiências de estranheza, enquanto professores gays, uma vez que a (auto)biografia exprime o “escrito da própria vida” (JOSSO, 2010, p. 343), e nos ajuda a entender quem são, ao tempo em que nos possibilita maior compreensão de suas trajetórias de vida.

Diferente do depoimento, na narrativa (auto)biográfica, quem decide o que deve ou não ser contato, é o ator, a partir da sua própria trajetória de vida, não necessariamente obedecendo a uma cronologia dos acontecimentos vivenciados pelo sujeito. Ainda que eu tenha direcionado a conversa, foi cada um dos personagens que determinou o “dizível” da sua história, da sua subjetividade e dos percursos vivenciados ao logo de sua vida.

A CONSTRUÇÃO DO CORPO GAY NA/PELA ESCOLA

Compreendendo que os corpos são regulados por um sistema de significados que produzem subjetivações (BUTLER, 2014), já não é possível concebe-lo “em termos estáveis ou permanentes” (BUTLER, 2014, p. 18). Nesse sentido, tanto a heterossexualidade reconhecida quanto a homossexualidade contraventora são produzidas pela lei. Contudo, “operar no interior da matriz de poder não é o mesmo que reproduzir acriticamente as relações de dominação” (BUTLER, 2015, p. 55). Ainda que ninguém esteja fora dos mecanismos de poder, é possível vislumbrar possibilidades de agência, já que as pessoas podem refutar as prescrições da lei por meio de atos rebeldes e indagações.

A “estranheza” percebida durante minha trajetória de formação escolar, aqui compreendida como a fase da Educação Básica, suscitou em mim o interesse acerca da reflexão que convergisse para maior compreensão do não enquadramento social, uma vez que estando no universo dos meninos não me sentia confortável dentro dos padrões heteronormativos impostos à construção e as vivências de masculinidade.

A exposição a constrangimentos constantes, ao tempo em que era rechaçado por cruzar fronteiras de gênero e sexualidade, ao transitar livremente pelo universo das meninas, provocando deslocamentos, construindo outros significados e sentidos a respeito da masculinidade, do desejo, de gênero e sexualidade, fazendo assim o deslocamento da ideia de masculinidade hegemônica, pautando na noção de fluidez e subjetividade a partir de Scott (1995), para quem as relações de gênero são uma tradução do modelo binário arraigado na esfera social, embora o gênero concatena-se a identidade subjetiva.

Assim, o corpo deve ser educado para produzir e reproduzir o modelo normativo vigente. Xs que desviarem da norma, serão alvo de permanente proibição sendo penalizados por sanções sociais concernentes. Dessa maneira, é necessário compreender que as identidades sexuais são concebidas pelas relações de poder de uma sociedade, constituída historicamente, por meio de discursos reguladores sobre o sexo.

Foucault (1988) entende a sexualidade enquanto dispositivo histórico, buscando averiguar que os pontos de vista em torno da mesma são mutáveis e se articulam a partir de um arcabouço de regras que direcionam a sociedade, atuando, por meio “de acordo com técnicas móveis, polimorfas e conjunturais de poder” (FOUCAULT, 1988, p. 117). Esse poder é constituído por práticas discursivas e não discursivas, que elaboram um parecer do indivíduo como sujeito de uma determinada sexualidade, por meio da qual buscam normatizar, controlar e determinar verdades relativas ao sujeito na sua relação com o corpo e com os prazeres.

Desde o nascimento, somos educadxs no sentido de atender a um conjunto de expectativas sociais acerca do que é ser homem ou ser mulher, concernentes aos papéis que devemos executar, sendo estes demarcados e atribuídos através das relações de gênero e hierarquias sexuais fundamentadas apenas em questões biológicas. Nesse sentido, as masculinidades se instauram enquanto espaços simbólicos na construção do que é ser homem (SEFFENER, 2003), moldando emoções, comportamentos e atitudes a serem associadas nas práticas cotidianas.

Na contemporaneidade, associam-se atributos demasiados a um modelo de masculinidade pautada no antagonismo de feminilidade. Sendo o universo masculino identificado pela virilidade, pela força e agressividade, dentre outros. Sobre esses atributos o Professor Ossayn (2018) narrou que:

Você fica receoso de muita coisa. Receoso na forma de falar, para não ser muito afeminado, do que e como brincar, tem que ser brincadeiras de meninos, do que vestir, como andar. Lembro-me de querer andar durinho, como se diz que homem deve andar e de querer pertencer a esse grupo dos normais. Tudo que diziam que eu não podia fazer era sempre associado ao chamado universo das mulheres. Eu precisava ser forte, brigar, não chorar, porque fazendo isso, eu provava minha masculinidade. Qualquer movimento que deixasse meu corpo menos rígido era motivo para ouvir: isso não é coisa de menino. Mas eu gostava mesmo era de vestir roupas femininas, usava muitas roupas das minhas irmãs. Mas tudo isso era escondido, até porque eu já estava na adolescência e isso não era coisa de menino.

A masculinidade não é apenas a formulação cultural de um dado natural. Ela é um processo de construção social contínuo, frágil e disputado, envolto de receios. Ao menor dos deslizes, a masculinidade é colocada à prova: “isso não é coisa de menino” (PROFESSOR OSSAYN, 2018). A afirmativa acima, esteve presente em todas as narrativas analisadas nesse estudo. Assim, é possível inferir que o processo de construção identitária de gênero, se dá da mesma maneira em diferentes contextos sociais.

Os estímulos a serem reproduzidos, a partir de comportamentos culturais, relacionados a cada gênero sexual, determinado biologicamente, acontecem ainda nos primeiros dias de vida. Se responder de maneira contraria ao esperado a criança é repreendida. É o caso, por exemplo, do Professor Ossayn (2018) ao narrar: “Eu precisava ser forte, brigar, não chorar, porque fazendo isso, eu provava minha masculinidade”. A manifestação da agressividade se constitui um, dos inúmeros, comportamentos esperados durante as brincadeiras como arsenal do construto da masculinidade.

A manutenção desse processo é continuamente vigiada e, sobretudo, autovigiada. O professor Ossayn se lembrou de “querer andar durinho”, ou seja, não deixar transparecer qualquer possibilidade de que seu corpo tem tendências “estranhas”, uma vez que a malemolência corpórea é um atributo não designado ao homem. Nessa perspectiva, andar rebolando é atributo que compete às mulheres, conforme nos relatou o professor Logun Edé: “rebolar, por exemplo, te coloca num lugar de não masculino”.

As narrativas evidenciam que o homem é cultural e socialmente cobrado e deve, o tempo todo, evitar posturas consideradas não másculas, além de fornecer provas de sua masculinidade, como por exemplo, namorar meninas, sendo uma prova, além de se constituir “uma forma de aceitação”. É pertinente ressaltar que a masculinidade é algo que vai sendo construída ao longo da vida e, portanto, estar suscetível à mudanças, de acordo com as circunstâncias e a história de cada pessoa.

Assim, os modos de ser homem e o ser mulher aqui apresentados, concernem à perspectiva histórica, social e política defendida por Louro (2007, p. 22) ao afirmar que “o conceito [de gênero] pretende se referir ao modo como as características sexuais são compreendidas e representadas”. Compreendemos, assim, que as idiossincrasias sexuais são narradas e tecidas a partir de um dado contexto cultural. Sob essa ótica “O conceito passa a ser usado com um forte apelo relacional - já que é no âmbito das relações sociais que se constroem os gêneros”. Esta atitude não presume a concepção de que as masculinidades e as feminilidades se constituam uma em oposição à outra, mas que as mesmas se constituem em coparticipação.

Por ser classificada como estranha, a sexualidade gay é representada não apenas por comparação a identidade hegemônica, mas a partir da percepção hegemônica, e por ser estranha, a sexualidade gay não pode falar por si mesma, ou seja, é dita pelxs outrxs ou, o seu parâmetro para ser dita é sempre através do olhar dxs consideradxs normais. Sobre isso o Professor Logun Edé (2018) nos contou que:

[...] se perceber gay ainda na infância, ou melhor, se reconhecer enquanto gay ainda na infância é dolorido. E quando se é um gay afeminado, como é o meu caso, é ainda mais dolorido, porque você sofre por ser gay e por ser afeminado. Tem um dedo apontado para você, o tempo inteiro, por ser considerado fora da norma. Tem sempre alguém dizendo: ‘endurece essa munheca’, ou então: ‘fale igual a homem’ quando na verdade você já percebe que não é igual aos demais meninos, aquilo que falava sobre ser estranho. Porém na escola esse peso é ainda maior, porque no recreio eu preferia brincar as brincadeiras das meninas, como boneca, por exemplo. Lembro que na escola eu era uma pessoa hostil, violenta que utilizava da agressividade para ser aceito. Brigar, ser rebelde. Não ter medo de colocar as pessoas nos lugares delas. Na escola quando me diziam qualquer coisa só porque eu era gay, eu partia para cima, não levava desaforo pra casa, até mesmo porque já sabia que em casa ninguém iria me apoiar, muito pelo contrário, iriam era concordar com quem pedisse pra eu falar igual a homem.

Hoje entendo que essa rebeldia dentro da escola, na verdade, era uma válvula de defesa, ou eu partia para o enfrentamento, ou teria que viver me escondendo o tempo inteiro, então minha reação era sempre agressiva. Naquele momento ser violenta era a única arma que eu tinha para me defender, porque a educação - porra, ainda hoje mesmo com tanta informação que a gente tem, as universidades sempre promovendo cursos, discutindo essas questões de gênero, mas quando chegamos na educação básica é a mesma coisa. Os meninos e as meninas que fogem aos padrões heteronormativos continuam sendo hostilizados, apontados.

O Professor Logun Edé (2018) exterioriza o quanto a infância de crianças com sexualidades dissidentes é dolorida, podendo tal dor se reverberar em atos hostis e violentos como um caminho para ser aceito no grupo. Há na escola inúmeras crianças que borram a norma de gênero e sexualidade e subvertem as figuras, os estereótipos de um menino que prefere brincar de boneca ao invés de brincar de bola, ou de uma menina que gosta de jogar futebol ao invés de boneca.

Ao afirmar que no recreio “preferia brincar as brincadeiras das meninas, como boneca, por exemplo” Logun Edé subverte a concepção de identidade fixa e imutável, nos fazendo pensar outras possibilidades de ser menino e ser menina, ressignificando o universo simbólico responsável pelo construto das sexualidades humanas.

A criança estranha desestrutura o regime normativo re/produzido pela/na escola, revelando a flexibilidade de gênero e sexualidade, uma vez que “tem sempre alguém dizendo: ‘endurece essa munheca’, ou então: ‘fale igual a homem”. Nesse contexto, a criança estranha é um corpo que resiste à norma, à disciplinarização, uma vez que é um corpo “masculino” que carrega as marcas “femininas”.

As expressões “endurece a munheca” e “fale igual a homem”, “não rebole tanto”, “menino brinca com menino”, “se comporte igual a um homem” é a prova cabal da inadequação do comportamento de uma criança gay que causava desconforto a todxs, se configurando em violência psicológica. Nesse cenário, ser “afeminada” “viada”, “estereotipada”, “estranha” dentre tantos outros adjetivos rememorados pelos professores, acabam por manifestar como a homofobia é naturalizada na e pela escola, onde manifestações preconceituosas e discriminatórias contra pessoas que assumem um gênero e orientação sexual adversa aos padrões heteronormativos hegemônicos vigentes. Nesse contexto, qualquer demonstração sexual distinta dos padrões heteronormativos pode vir a ser alvo de violência psicológica, física e/ou sexual.

Entendemos como violência psicológica agressões verbais ou gestuais com o objetivo de aterrorizar, rejeitar, humilhar a vítima, restringir sua liberdade ou, ainda, isolá-lx do convívio social. As lembranças escolares do Professor Iansã (2019) são perpassadas por sequências de violências psicológicas. Ele nos contou que se “escondia muito por medo de que as pessoas percebessem meus trejeitos afeminados, eu era muito menininha”. Em outro momento da narrativa ele recordou que, na maioria das vezes, “acabava ficando na sala de aula e não ia para o pátio no recreio para não ser chamado de viadinho” (PROFESSOR IANSÃ, 2019). Dessa maneira, podemos caracterizar a violência psicológica como um fenômeno complexo, enquanto reflexo do preconceito e hostilidade direcionados às expressões de sexualidade não heteronormativa.

Para além da violência psicológica, tanto o Professor Logun Edé (2018), quanto os professores Iansã (2019) e Obá (2018), em suas narrativas, revelam situações de violência física. Ao narrar que “na escola eu era uma pessoa hostil, violenta que utilizava da agressividade para ser aceito”, o Professor Logun Edé (2018) se utiliza de atributos simbólicos associados à ideia de construção da masculinidade heterossexual. Entendemos que a violência desprendida pelos professores faz parte do arcabouço de defesa frente a uma concepção generalizada de que todo aquelx que foge à norma precisa viver escondido, com medo, quando não banido do convívio social.

A fala do Professor Logun Edé (2018) precisa ser melhor contextualizada, possibilitando assim, maior compreensão. Devemos considerar, por exemplo, o fato de que a narrativa se refere à adolescência, que, por si só, já se constitui num momento conturbado, e que nesse caso devem ser consideradas todas as descobertas inerentes à sexualidade, e que, por vezes, é um período vigiado por “olhares punidores, punições verbais e até violência física para [...] ficar igual a um “hominho”. Quantas vezes eu ouvi: ‘seja homem’, ‘se comporte como homem’”. Ao recobrar tais fragmentos da narrativa do Professor Logun Edé (2018), nosso intuito não é justificar a “violência” utilizada por ele para ser “aceito”, queremos apenas elucidar que ao utilizar desse atributo “para ser aceito” ele recorre ao universo simbólico masculino heterossexual, já que ainda não tinha “consciência e maturidade identitária para se reconhecer enquanto gay”, sendo esse “um processo de auto estranhamento e de ser estranhado”, conforme ele mesmo salientou.

De acordo com Seffener (2003), naturaliza-se o masculino atribuindo características fixas pelas normas de gênero a partir da dinâmica da dominação, da agressividade. Contudo, precisamos entender que a construção das masculinidades não diz respeito a elementos fixos, mas a algo em permanente estado de fluidez.

Foi curioso perceber que nos excertos que transcorrem acerca da violência, seja ela física ou psicologia, há por parte dos professores gays uma autojustificativa, onde, mesmo eles sendo as vítimas, fica perceptível que existe uma trama que os coloca no lugar de vilão, classificando-os sempre como os culpados. Isso nos leva a compreender, que por se constituir em um sistema arraigado na extinção daquilo que diverge da sua ideologia, a heteronormatividade acaba por rechaçar qualquer manifestação que ouse transgredir o imperativo da heterossexualidade como a única norma. Regidxs por esse terminante normativo, que sutilmente dissemina medo, se esconder, num primeiro momento se apresenta como a alternativa viável para se esquivar de olhares preconceituosos e punidores, até que se criem estratégias de enfrentamentos, conforme veremos mais à frente.

Ao narrar o que ele classificou como “a primeira agressão de verdade” sofrida na escola, o Professor Iansã (2019) contou que: “uma casca de melancia foi atirada em minha cabeça propositadamente” e “ninguém da direção via nada”. Quando ele resolveu revidar, empurrou um colega, ferindo-o na cabeça. Então ele conta que sua mãe foi chamada na escola e teve que pagar os remédios do menino agredido por ele, e que ainda foi suspenso das atividades escolares.

O Professor Iansã (2019) analisa esse episódio da seguinte maneira: “Era como se o fato de ter agredido um colega, por esse colega, ser diferente, ser viado, fazia parte da norma da escola, como se estivesse no currículo oculto: meninos héteros estão autorizados a bater em meninos que se comportam de maneira estranha”. Pautada numa perspectiva naturalizada, entendemos como equivocada a reflexão feita pelo professor Iansã acerca do fato narrado, pois circunscreve todxs aquelxs que diferem da norma heterossexual como sendo uma premissa marcada unicamente pela categoria sexual, sendo essxs apontadxs como insultos fluídos a transgredir a norma, responsável por manter um cenário na qual as pessoas LGBTQI se sintam culpadas.

Os fragmentos abaixo nos ajudam a compreender o que estamos denominando de insultos fluídos. Ou seja, independente do lugar em que o gay afeminado se encontre, ele será sempre alvo insultos, por fugir do padrão heteronormativo vigente e provocar conflitos, contrariando o modelo hegemônico e um sistema de valores, condutas e padrões sociais e sexuais:

[...] teve um lanche e todos foram para a fila, só que eu sempre esperava a fila terminar, para não pegar nem a fila das meninas, nem a fila dos meninos, porque quando eu ia para a fila dos meninos tinha a agressão física mesmo, tinha o bulliyng, tinha o empurra-empurra e, quando eu ia para a fila das meninas, os meninos reclamavam que eu tinha que ir para a fila dos meninos e algumas meninas também falavam que não podia porque eu era homem e tinha que ir para a fila dos meninos. Então eu esperava uma fila acabar e muitas vezes quando a fila acabava a merenda já tinha acabado. Era comum eu ficar sem lanche no recreio. Só que as merendeiras começaram a perceber que eu sempre ficava sem lanche e me deixavam ir pelo canto, entrava pelo cantinho da porta (PROFESSOR IANSÃ, 2019).

O corpo do Professor Iansã (2019), classificado como corpo gay, fluído, afeminado e, portanto, estranho passa a ser reivindicado tanto pelos meninos, por meios de insultos e agressões, quanto pelas meninas, ao requerer que ele se retirasse da fila “das meninas”. Por sua incompatibilidade nos espaços demarcados como sendo de meninos ou de meninas, a fluidez do corpo gay afeminado acaba suscitando insultos, uma vez que ele pode transitar nos dois espaços, ao tempo em que lhe é negado o direito de permanecer na “fila” com a qual se identificasse, sem que a mesma precisasse ser fixa.

Foi possível perceber que, de certa maneira, os insultos permeiam as trajetórias escolares dos professores envolvidos nesse estudo. Ao memorar os insultos homofóbicos sofridos no período de escola, após “longo período de distanciamento”, conforme salientou Professor Obá (2018): “foi interessante perceber como as coisas vão ficando mais claras em nossa cabeça. Nosso olhar muda. Atitudes antes vistas como cuidado, eram na verdade manifestação de preconceitos”. Entendemos que a narrativa, não é somente o ato de transcorrer sobre fatos e acontecimentos ocorridos ao longo da vida, mas se constitui enquanto processo formativo, possibilitando àquelx que narra tecer reflexões, rever conceitos e até mudança de posturas sobre determinados assuntos.

Compreendemos, dessa maneira, que a homofobia na escola, nem sempre é explícita e, quase sempre é classificada como “cuidado”, por professorxes que ainda não se atentaram para uma proposta pedagógica curricular de inclusão da diversidade. Assim, narrar os insultos sofridos na escola, ainda na infância e na adolescência, possibilitou ao Professor Obá (2018):

[...] perceber que para a escola o gay é sempre o culpado. Se baterem na gente porque a gente é gay, o culpado é sempre a gente. Eu ouvi tanto isso: ‘pare de querer ser igual uma mulher’, ou então ‘você só apanhou para aprender a ser homem’[...]. Tenho um irmão que também é gay, e ele é muito mais afeminado que eu, até mesmo porque ele assumiu a homossexualidade ainda na adolescência. Lembro que sempre entrava na briga para defender meu irmão. A gente sempre ia para escola juntos e quando alguém gritava: ‘viadinho’, ‘macho e fêmea’, ainda que fosse para mim, eu sempre achava que era para ele, por ele ser mais afeminado que eu, mas hoje eu sei que era para mim também. Difícil era o dia em que a gente não era insultado na escola. Fosse pelos colegas ou pelos professores.

Se olharmos por esse prisma, os gays estão perpetuamente condenados à condição de culpados, uma vez que o termo culpado aparece com frequência nas narrativas dos professores, sempre que se referiam às experiências vivenciadas por eles em diferentes momentos de suas trajetórias escolares. Sobre isso o Professor Oxóssi (2018) comenta: “Eu corria léguas de briga e confusão com medo de me botarem a culpa. É a história que o mais fraco é o culpado, e nesse contexto o mais fraco era eu por ser gay”. A expressão correr léguas é comumente atribuída ao ato de evitar veementemente alguma coisa. Dessa forma, qualquer manifestação sexual contrária aos padrões heteronormativos, pode vir a ser alvo de distintos modos de violências. Assim, evitar o conflito pressupõe não evidenciar a sexualidade, considerado estranha.

A culpa ostensiva designada às pessoas LGBTQI dificulta no processo de construção da auto-imagem positiva e, em casos de violência e discriminação, essas pessoas tendem a se culparem, como é o caso do professor Iansã ao relatar que: “quando era criança tudo de ruim que acontecia em minha volta eu achava que eu era o culpado”. O sentimento de culpa era originado pelo fato de se considerarem merecedoras de castigos pela abjeção que seus corpos exalam.

A culpa atribuída ao homossexual se refere a um processo histórico. Já houve um período em que o gay foi culpado pelo pecado da sodomia e, para se purificar de tal culpa, era necessário a purificação pelo fogo da inquisição. Posteriormente foram culpados por serem doentes, as homossexualidades foram objetos da observação médica e submetidas às terapias coordenadas pelas ciências (BORRILHO, 2009).

Contudo, devemos considerar que nem as questões inerentes à diversidade sexual, nem os gays “devem ser vistos ou entendidos exclusivamente sob uma perspectiva de um problema, da abjeção” (JOCA, 2009), uma vez que não há como impedir a existência de conflitos no encontro entre práticas educativas e sexualidade. Dessa maneira, “a negação dos/as homossexuais no espaço legitimado da sala de aula acaba por confiná-los a ‘gozações’ e aos ‘insultos’ dos recreios e dos jogos, fazendo com que, desse modo, jovens gays e lésbicas só possam se reconhecer como desviantes, indesejados ou ridículos” (LOURO, 2007, p. 67).

[...] de alguma maneira, meu corpo, meu jeito de ser incomodava tanto as professoras quanto alguns colegas. De alguma maneira as professoras tinham a sensação de não estarem conseguindo educar, sabe como é? Se elas estavam na escola exatamente para ensinar como é ser menino e como é ser menina, como um menino tem a petulância de querer ser menina? De transgredir as normas estabelecidas? Então elas faziam questão de evidenciar que de alguma maneira nossa presença era indesejada. Era como se elas não estivessem conseguindo ser professora, já que a educação se encarregava das questões morais, e naquela época ser gay era uma transgressão moral, até hoje ainda é, imagina naquela época. Então de alguma maneira eu era o estranho, era indesejado naquele espaço.

O Professor Obá (2018) chama a atenção para o regime de controle ao qual os corpos considerados abjetos são submetidos a insultos e agressões, estando sob constante vigilância. E quando algum corpo burla esse regime, quando ele incomoda “tanto as professoras quanto alguns colegas”, ele precisa ser punido para mostrar axs demais como não se deve ser.

É interessante perceber ainda, que o processo ensino-aprendizagem está intimamente associado ao bom comportamento dos corpos, não conseguir controlá-los é atribuir às professoras “a sensação de não estarem conseguindo educar”, conforme ressaltou Professor Obá (2018). Então são tomadas todas as precauções para que a sexualidade se mantenha “como alvo privilegiado da vigilância e do controle das sociedades. Ampliam-se e diversificam-se suas formas de regulação, multiplicam-se as instâncias e as instituições que se autorizam a ditar-lhe normas” (LOURO, 2008, p.21). Sobre isso o Professor Oxóssi (2018) nos contou que:

Há pouco tempo estava pensando sobre essas práticas que a escola utiliza para punir as questões da sexualidade, principalmente as chamadas “estranha”. Mas na época da escola eu não tinha essa consciência, até mesmo porque comecei a viver minha sexualidade, a ter relacionamentos com homens bem tarde. No período de escolarização era como se eu tivesse fugindo de algo, ou escondendo algo. Têm normas que nem são ditas, mas a gente já subentendeu. Só depois de tanto tempo entendo, compreendo que de alguma maneira, eu negava essas coisas da minha sexualidade, como se eu fugisse, ainda que inconscientemente, por compreender que na escola a gente é vigiado o tempo todo. Regulam nossa maneira de sentar. Controlam nosso tempo nos chamados “lugares perigosos”, como o banheiro, por exemplo. Coisa é quando o professor desconfia ou sabe que você é gay [...]. Então assim: professora, a diretora, a merendeira, a secretaria, o guarda da escola, vigia teu tempo, o tempo todo. Então, nesse período, minha vida se resumia em estudar, brincar e ajudar minha mãe a fazer as coisas em casa, desse modo, o foco deixou de ser as questões da sexualidade, como por exemplo, o namoro prévio, coisas desse tipo.

A partir da narrativa podemos aferir que a vigilância aos corpos e às sexualidades, com especial predileção aqueles considerados estranhos, muitas vezes acontece de maneira velada e, sutilmente dissipada em todas as instâncias do fazer pedagógico, passando quase que imperceptível e sempre em tom ameaçador.

Considerando o exposto acima, problematiza-se que a homofobia, enquanto processo de silenciamento e aniquilamento, não se restringe apenas à constatação de diferenças, já que ela também expõe e tira suas conclusões, por meio de ações que inferiorizam e desprezam pessoas LGBTQI, fazendo com as mesmas se sintam culpadas e estranhas por não corresponderem aos padrões heterossexuais idealizados.

A narrativa do professor Iansã corrobora com essa perspectiva. Afirma ele que: “[...] o simples fato de não corresponder ao que se espera dos meninos, como casar com meninas e ter filhos, por exemplo, faz com que se crie toda uma trama para que a gente se sinta culpado, inclusive não se aceitando, eu bem sei o que é isso”. O fragmento acima evidencia uma das estratégias mais recorrentes da homofobia, que a negação da homossexualidade e consequentemente daquelx que é homossexual.

A partir das narrativas é possível verificar que, historicamente, a educação brasileira estrutura-se a partir de discursos que reverberam práticas cotidianas fortemente subordinadas, e um conjunto dinâmico de regras, valores, crenças e normas responsáveis por reduzir à figura dx outrx, julgadx como estranhx, todxs aquelxs que não se adequassem ao único elemento valorizado pela heteronormatividade e pelos conjuntos multifacetados a ela associados, calcados na figura do adulto, masculino, branco, heterossexual, burguês, física e mentalmente “normal” (LOURO, 2000).

Nesse contexto fica notório que as questões de gênero, corpo e sexualidade na educação, acabam por gerar limites. Para Louro (1998), a instituição escolar se desenvolve em meio a relações de poder e saber, isso supõe forças maiores em um regime de segregação ao falar sobre o assunto. A dificuldade é encontrada à medida que existe certa tendência em estudar e compreender sexo, gênero, corpo e sexualidade como algo meramente biológico, esquecendo assim das representações sociais e individualidades.

Professor Obá (2018) ressalta que a escola e todo aparato educacional existe “exatamente para ensinar como é ser menino e como é ser menina”, não sendo possível conceber outra forma de existir que não fosse pautado na heteronormatividade. Transgredir esse padrão “era como se elas não estivessem conseguindo ser professoras” (PROFESSOR OBÁ, 2018). Assim, precisamos romper com a concepção de que as relações de gênero, sexualidade e corpo na educação se desenvolvem em meio a verbalizações de heteronormatividade e se constitui enquanto norma que tende a entender a heterossexualidade somente como natural e única forma de viver a sexualidade.

Assuntos como diversidade sexual e de gênero no contexto educacional brasileiro ainda são considerados como questões que não devem ser problematizadas pela escola, por considerar que tais temáticas são de cunho íntimo e, portanto, são negligenciadas, quando não silenciadas nos processos pedagógicos. Contudo, considerando as vivências escolares, a partir das narrativas analisadas nesse estudo, é possível compreender que as instituições educativas contemporâneas, no que se refere às questões de gênero, continuam produzindo e reproduzindo práticas pedagógicas excludentes, como castigos, privações, xingamentos e humilhações, para que a heteronormatividade seja compreendia como a única possibilidade humana de se viver a sexualidade e o gênero.

Conforme afirma Foucault (1988), onde se instala uma complexa relação de poderes, também se instaura contrapoderes e resistências. A “criança viada”, o “gay afeminado”, o “gay poc”, o “munheca quebrada” dentre tantas outras expressões pejorativas, se configuraram enquanto modo de transgressão ao modelo heteronormativo, ao tempo em que se constituíam enquanto formas de resistência e, inevitavelmente, suscitava a escola a repensar o fazer pedagógico, por meio de um currículo que consiga compreender a complexidade existente e os distintos modos de ser e viver dxs estudantes, através de práticas educativas que se apresente como um contrapoder. Ou seja: pensar mecanismos pedagógicos onde gays, lésbicas, travestis, transexuais, dentre outrxs formas de expressão e vivência da sexualidade e do gênero, não sejam tomadas como estranhxs, mas vistas apenas como um modo de ser.

CONCLUSÕES

A partir das narrativas analisadas nesse estudo é possível inferir que a escola vai intervir de forma preponderante na construção dos corpos gays, classificados como corpos estranhos. Contudo, nesse processo foi possível perceber que esses corpos transgridem a norma, demarcam fronteiras e se autodeclaram alforriados dos grilhões heteronormativos a que eram subjugados. Os corpos gays se impõem e problematizaram questões consideradas como não passíveis de discussão, propondo novas possibilidades de viver o gênero e as sexualidades a partir das diferenças.

As narrativas evidenciaram que a experiência do estranhamento acontece com maior incidência no espaço escolar. É na escola onde ocorre mais nitidamente atos de vigilância e punição. Frases do tipo: “seja homem”, “se comporte como homem”, “fale como homem” são difundidas nos processos e ao serem proferidas ganham cunho pejorativo. Neste contexto, a homofobia é tida enquanto dispositivo de controle da heteronormatividade com o intuito de buscar afastar toda e qualquer possibilidade de problematização acerca da norma tomada como natural.

Foi possível discorrer sobre a histórica rejeição das diferenças no espaço escolar. Das narrativas emergiram a gênese de cânones educativos que objetivam transformar crianças em adultos que se adequem às normas heterossexistas. As práticas pedagógicas contemporâneas estão pautadas em modelos pedagógicos que contribuem para a negação do corpo, da subjetividade e da criatividade, adequando xs estudantes às regras socioculturais heteronormativas. Conforme sinalizou o Professor Oxumaré (2019), ao dizer que: “Na escola me ensinaram a ser hétero, a ser homem hétero, eu tinha que ser hétero na escola o tempo todo”. O poder disciplinar, que recai sobre os corpos no contexto escolar, é disseminado por práticas instituídas educativas à medida que hierarquiza, regulamenta e padroniza espaços, atividades pedagógicas, cores, modos de se comportar, brinquedos e brincadeiras, como sendo de meninos e de meninas. Assim, cria regras para obstar possíveis desvios e estranhamentos, fomentando e fortalecendo instrumento de exclusão, mediante posicionamento que vislumbra a normalidade meramente a partir de modelos heterossexistas.

Tendo por princípio fundamental ajustar os corpos à convivência social e cultural, a partir dos pressupostos normativos, a escola, por meio do currículo e dos processos pedagógicos, se empenha na produção de corpos dóceis que aceitem com facilidade os princípios heternormativos como forma correta para viver o gênero e as sexualidades. Porém, as narrativas evidenciaram a presença de discursos perpassados pela transgressão às normas. Corpos viados, com trejeitos afeminados tomados como estranhos. De acordo com o Professor Ossayn (2018) o corpo se reverbera na própria história da pessoa, necessariamente marcada pela sexualidade. Ressalta ele: “[...] se eu fui uma criança viada, se tive e tenho um corpo afeminado, com trejeitos e, portanto, estranho, essa é minha história” e, é necessariamente essa história e, a história de tantxs outrxs meninxs, tomadxs como estranhxs que a escola precisa aprender a respeitar, a conviver e assegurar o direito à diferença a partir das práticas curriculares.

Uma vez subjugadxs, social e culturalmente, à condição de estranhxs e, portanto, imorais e desviantes, a escola se recusa a enxergar e a reconhecer a diferença presente nos distintos espaços do fazer pedagógico. “É como se não existíssemos”, ressaltou o Professor Obá (2018). Neste contexto, as narrativas sinalizam que foram necessários a criação de estratégias de enfrentamento às normas heterossexistas, por considerar que o enfrentamento, comumente, tem se constituído a única maneira de se viver as diferentes subjetivações de sexualidades e gênero.

Tais enfrentamentos perpassam desde a concepção de que estudantes que rompem com as normas vigentes, precisam mostrar algo a mais, “se destacar em alguma coisa e, ser muito bom naquilo que faz” (PROFESSOR IANSÃ, 2019), buscando assim, serem tratadxs como xs demais no ambiente escolar. Contudo, nesta estratégia não há nenhuma garantia de inclusão, uma vez que “ser viado é viver em constante estado de trincheira” (PROFESSOR LOGUN EDÉ, 2018), nunca se sabe o que pode acontecer.

Outra postura perceptível foi a performatividade desses corpos no espaço escolar, constado que se esconder não seria a solução assumir uma postura queer se configurou enquanto possibilidade de enfrentamento. Ser queer funcionou como instrumento pedagógico, estabelecendo conexões entre o sentido de permanecer na escola, enquanto um direito social e o enfretamento a atos preconceituosos e excludentes. Neste contexto, se assumir enquanto viado, gay afeminado, se mostrar ao invés de se esconder, “Coisas que só quem é gay e, gay afeminado sabe [...] chega um momento que a gente precisa se posicionar, dizer a que veio. Se não, montam na gente” (PROFESSOR LOGUN EDÉ, 2018). Esse posicionamento de que fala o Professor Logun Edé (2018), se configura enquanto postura queer, uma vez que problematiza conceitos e valores que se perfilaria às vivências escolares, introjetando assim, singularidades e características atribuídas aos estranhxs, que até então eram invalidadas na construção do conhecimento, produzido nas instituições de ensino.

Sob esse prisma, se faz necessário pensar a formação docente de tal modo que assegure efetivamente a problematização de temas relacionados às questões de gênero e sexualidades. Dessa maneira, salientamos a necessidade da realização de reflexões sobre a presença de sexualidades não normativas no ambiente escolar como instrumento potencial para compreender a educação como produção da diferença, aqui entendida não como sinônimo de diversidade, como comumente é apresentado nos currículos escolares, mas pensar propostas pedagógicas e de currículo que respeite as diferenças a partir dos pressupostos da teoria queer, que propõe a desnaturalização e a incerteza como estratégia de reflexão de todas as dimensões da existência humana. Louro (2008) salienta que a teoria queer torna a dúvida estimulante e produtiva. Ressaltamos, portanto, que o que move o fazer pedagógicos são as dúvidas e não as certezas.

Entendemos, portanto, que além de problematizar questões relacionadas às práticas pedagógicas, é necessário que o currículo escolar seja reestruturando, no sentido de pensar as diferenças sem camuflar a homofobia, o racismo e toda forma de exclusão que perpassam tais práticas. As discussões e problematizações sobre as práticas homofóbicas e discriminatórias nas instituições escolares e de formação docente, nas últimas décadas, tem se constituído enquanto questões prioritárias de reflexão.

A contemporaneidade se apresenta enquanto espaço e tempo propício à mudanças significativas a partir do rompimento de barreiras e fronteiras que classificam o que é normal e o que é estranho. Nesse contexto, cabe à escola compreender esse momento, de mudanças sociais e culturais enquanto momento favorável e fértil, no sentido de colocar em xeque certezas cristalizadas enquanto arcabouço das práticas pedagógicas.

Compreendemos que a escola precisa efetivamente bafejar esse momento histórico de emancipação, no sentido de trazer as diferenças existentes no espaço escolar para o centro discussão. Pensar a educação na perspectiva das diferenças, através de um currículo que assegure práticas pedagógicas de inclusão, se apresenta enquanto desafio para a escola contemporânea. Dentre as inúmeras funções atribuídas à educação, ensinar o respeitar as diferenças, buscando educar para um convívio harmonioso, é sem dúvida um dos maiores desafios. Construir uma educação que tenha por base a inclusão, seja qual for a diferença, é fazer com que a escola desconstrua rótulos, estereótipos e preconceitos que ao longo do tempo foram sendo naturalizadas, como sendo a única verdade (DIAS; MENEZES, 2017; DIAS et al., 2017).

Mesmo considerando todas as instabilidades e inseguranças, para a problematização das temáticas de gênero e sexualidade e, das diferenças como um todo, no atual cenário nacional, salientamos a relevância do papel da escola enquanto espaço de enfrentamento à homofobia, uma vez que ela se constitui, como um importante referencial na produção e desenvolvimento de conceitos e valores de novas gerações, tendo influência na formação da cidadania e no respeito aos direitos humanos. Ademais, é preciso que a escola reconheça a complexidade que envolve as questões das diferenças como primeiro passo para o reconhecimento das distintas subjetivações identitárias.

Pesquisar sobre gênero e diversidade sexual ainda se constitui um desafio se pensarmos por meio da concepção desestabilizadora provocada à sociedade, tanto por parte daquelx que colabora com a pesquisar, quanto por parte daquelxs que pesquisam as questões inerentes a essas temáticas, já que além de todo caráter transformador que um estudo com essa dimensão pode contribuir com a comunidade acadêmica e social.

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1Na escrita do texto, vamos optar pelo uso do “x” por considerar que essa é “uma tentativa de, no âmbito da escrita, tornar a língua mais democrática, pois as distinções decorrentes do fato do gênero neutro ter as mesmas marcas morfológicas que o masculino, no caso da língua portuguesa, geram uma série de discussões e levam até a afirmações como “a língua é machista” (ROLOFF et al, 2015, p. 32).

2Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação, Gênero e Sexualidades, fundado em 2016. Vinculado à Universidade do Estado da Bahia - UNEB, Campus VII.

3As Diretorias Regionais de Educação - DIREC’s eram coordenações regionais de ensino localizadas em polos regionais do Estado da Bahia, sendo substituídas, em 2015, pelos Núcleos Regionais de Educação - NRE.

Recebido: 10 de Janeiro de 2019; Aceito: 20 de Maio de 2019

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